Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
83752/20.4YIPRT.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
FACTOS PESSOAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Deve ser sancionada à luz da litigância de má-fé a conduta processual do réu que alicerçou a sua oposição na exceção do pagamento integral das quantias peticionadas na ação, nas circunstâncias que também descreve, quando a mesma se mostra de todo incompatível com os factos que resultaram provados, dos quais decorre a efetiva demonstração do facto negativo atinente à falta de pagamento/restituição pelo réu/recorrente do valor peticionado na ação (correspondente à diferença entre a quantia recebida por este do autor/mutuante e a importância já assumidamente restituída, de acordo com a versão apresentada pelo autor, que resultou demonstrada) e estão em causa factos pessoais, de que o réu não podia deixar de ter conhecimento.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA intentou procedimento de injunção, entretanto convolado como ação especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos contra BB peticionando o pagamento da quantia global de 14.719,64 € sendo 13.977,00€ de capital; 640,64€ de juros de mora vencidos, montantes a que acresce a taxa de justiça suportada. 
Para tanto alegou, em síntese, que, por contrato de mútuo, celebrado no dia 5 de fevereiro de 2019, foi mutuada pelo requerente ao requerido a quantia de 15.000,00€. Dessa quantia foi, entretanto, restituído pelo requerido o valor de 1.023,00€, encontrando-se, ainda, por restituir a quantia de 13.977,00€.
O requerido apresentou oposição. Aceita que o requerente lhe mutuou a quantia alegada mas sustenta que restituiu a totalidade do valor do mútuo muito antes do seu vencimento, nas circunstâncias que descreve, nunca tendo sido nem formalmente nem extrajudicialmente interpelado para pagamento da dívida. Conclui, pedindo a improcedência da ação.
O requerente respondeu à matéria de exceção, mantendo o alegado no requerimento inicial e pedindo a condenação do requerido como litigante de má-fé, no pagamento de uma indemnização condigna ao requerente, correspondente ao reembolso das despesas e dos honorários que, com a sua conduta, este suportou e venha a suportar e, ainda, aos danos não patrimoniais sofridos, a fixar nos termos do n.º 3, do artigo 543.º, do Código de Processo Civil (CPC), por deduzir oposição cuja falta de fundamento não ignora. Sustenta que o requerido tem plena consciência da falsidade do que ali alega, ao alterar a verdade dos factos e fazendo, assim, do presente processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de obter um objetivo ilegal, de não pagamento do que deve.
O requerido pronunciou-se sobre o pedido de condenação como litigante de má fé, pugnando pela sua improcedência.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença a julgar a ação totalmente procedente, decidindo o seguinte:
«(…)

Pelo exposto, tudo visto e considerado julgo a presente acção totalmente procedente, condenando-se o réu a pagar ao autor a quantia de € 13.977 (treze mil, novecentos e setenta e sete euros), acrescida de juros, à taxa de 7% ao ano, desde 06/02/2020, inclusive, até efectivo e integral pagamento.

Mais se condena o réu, como litigante de má-fé:

a) no pagamento de multa, no montante de dez unidades de conta;
b) no pagamento ao autor de indemnização de € 734,22 (setecentos e trinta e quatro euros e vinte e dois cêntimos).
Ao abrigo do disposto no artº 17.º, nº 4, do regime anexo ao D.L. 269/98, condena-se o réu em multa no valor de duas vezes a taxa de justiça devida nesta acção declarativa.
Custas da acção, na sua totalidade, pelo réu – artºs 527.º; e 607.º, nº 6, todos do C.P.C. – sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie ou venha a beneficiar».

Inconformado com a sentença proferida, na parte em que julgou procedente a suscitada litigância de má fé, dela apelou o requerido, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«I. Vem o presente recurso ser interposto da decisão proferida pelo Digno Tribunal a quo, que condenou o o réu, como litigante de má-fé:
a) no pagamento de multa, no montante de dez unidades de conta;
b) no pagamento ao autor de indemnização de € 734,22 (setecentos e trinta e quatro euros e vinte e dois cêntimos)
II. Verifica-se erro notório na apreciação das provas, que determinou incorreta decisão de facto e, consequentemente, do decisório, no que concerne à condenação enquanto litigante de ma fé.
III. Na douta sentença a quo - com o devido e merecido respeito que, ademais, é muito - andou mal o Digno Tribunal ao imputar a conduta do R. descrito nos factos provados 3 a 7 como de litigante de má fé.
IV. Isto porque, como se explicará adiante, da prova documental e testemunhal produzida nos autos, se extraí de forma evidente que, ainda que o R. não tenha demonstrado a prova do pagamento devido ao A., a sua defesa não abarca os pressupostos de litigância de má fé.
V. No Ponto 4 dos Factos Provados, é considerado que o R. não cumpriu o contrato no seu termo, 05 de Fevereiro de 2020, ainda que o tenha expresso na sua contestação.
VI. Contudo, o mesmo R., por confissão, rectificou esse facto abertamente e sem reservas;
VII. Por outro lado, da própria contestação resulta claro que o pagamento alegado pelo R. só ocorreu em Julho de 2020.
VIII. Pelo que não se podem aceitar as conclusões que o Tribunal retira de tal facto, valorizando exponencialmente o que foi, claramente, um lapso notório e cuja contradição era inegável na própria peça processual.
IX. Por outras palavras, ab initio, é claro que o R. declara só ter liquidado a dívida em Julho de 2020.
X. Pelo que, o Tribunal “a quo” ignorando tal evidência e decidindo desconsiderar absolutamente o depoimento das testemunhas CC e DD faz uma errada apreciação da prova produzida e obtém conclusões contrárias à lógica e experiência.
XI. Em abono da verdade, da prova documental e testemunhal carreada aos autos temos duas visões dissonantes da mesma realidade:

O Autor alega que não recebeu:
O R. alega que pagou.
XII. Enquanto o A. beneficia de suporte documental, o R. não se pode arrogar tal sorte, somente lhe sendo possível arrolar prova testemunhal.
XIII. Como, efectivamente, o ónus da prova do facto lhe competia, aceita-se a decisão do Tribunal “a quo” no que à decisão de fundo diz respeito, conformando-se que não lhe foi possível fazer melhor prova que a que fez.
XIV. Pelo que a versão do R. é somente que pagou, não beneficiando de qualquer suporte documental de sustentação.
XV. Ainda que se possa considerar que a testemunha CC, por ser companheira do R., possa ser parcial – o que não se concebe e somente por mero exercício se coloca tal possibilidade – a testemunha DD nenhum interesse tem no desfecho dos presente autos, respondendo com clareza, frontalidade e sem quaisquer hesitações.
XVI. Em conclusão, ainda que o Tribunal “a quo”, considere que o R. não cumpriu com o seu ónus de prova, não poderá, no nosso entender, admitir que a conduta do R. se circunscreve na litigância de má fé, limitando-se a tentar fazer valer a sua posição, com lealdade e carreando a (limitada) prova ao seu dispor. 
XVII. Compulsados os factos considerados provados e a impugnação da matéria de facto acima produzida não pode os R./Recorrente conformar-se com a decisão na matéria de direito, no concerne à condenação como litigante de má-fé, em multa no valor de 10 UC’s e em indemnização ao A. no valor de € 734,22€ (setecentos e trinta e quatro euros e vinte e dois cêntimos).   
XVIII. Pugna o recorrente pela apreciação da questão da litigância de má-fé, defendendo que não se mostram preenchidos os requisitos contemplados no n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil.    
XIX. Os R. não agiu, nunca por nunca, norteado por qualquer fim ou estado de espírito reprovável.
XX. Afigura-se que a condenação como litigante de má-fé se ficou a dever, grosso modo, ao modo em que o Tribunal “a quo” valorou a prova produzida em sede de julgamento, com a qual o R não concorda, conforme supra se evidenciou, o que por sua vez conduziu a uma errada aplicação direito e prejudicou a boa decisão da causa.
XXI. Não se podendo confundir a não produção de prova de certos factos com o comportamento típico de quem recorre aos meios processuais para obter um fim avesso ao direito e à justiça.
XXII. O R. apenas se limita a tentar sustentar a sua versão dos factos, com os riscos inerentes à (não) produção de prova!
XXIII. Não logrando alcançar os seus intentos.
XXIV. Considera, o R. que o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, não seguiu a regra da prudência. O R., desde o primeiro momento e impulso processual estive, como ainda está, convencidos da justiça da sua pretensão!
XXV. E por isso vem requerer a reapreciação da sentença proferida pugnando pela sua revogação e prolação de outra que faça a necessária justiça ao caso. Por tudo quanto vem supra apontado, não se indicia nos autos a má-fé do R., pelo que deve a douta sentença recorrida ser revogada.
XXVI. Sem prescindir, sem conceder tudo quanto supra exposto e só por cautela e mero dever de patrocínio se coloca tal possibilidade,
XXVII. Ainda que se pudesse considerar que o R. actuou com má fé, sempre se afigura, como excessivo o montante de 10 UCs em que os R. foi condenado.
XXVIII. A multa de 10 UC com que a sentença sancionou a conduta do R. afigura-se desajustada, por excessiva, não correspondendo a um justo equilíbrio entre o grau de culpa e a censurabilidade do comportamento.
XXIX. Carecendo de qualquer fundamentação a decisão emanada e, consequentemente, ferida de nulidade, cujo reconhecimento expressamente se requer.
XXX. Impõe-se destarte a sua redução para o montante mais equilibrado e próximo dos mínimos legais.
XXXI. A sentença do tribunal a quo, violou assim, o disposto nos artigos 342.º, n.ºs 1 e 2; 334.º; 406.º; 562.º e seguintes; 798.º; 799.º, n.º 1, todos do Código Civil e 542.º e 543.º do Código de Processo Civil.   
Nestes termos e nos melhores de Direito que V/ Excias doutamente suprirão, em face de tudo o que ficou exposto, deverá este Venerando Tribunal dar provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Mas V/ Excias. farão, como sempre, JUSTIÇA».
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido para subir de imediato, nos próprios autos, e com efeito devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, confirmando-se a admissibilidade do recurso nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações do recorrente, e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - cf. artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC - o objeto da apelação circunscreve-se às seguintes questões:

A) saber se a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação;
B) se estão verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso respeitante à decisão da matéria de facto; em caso afirmativo, se existe erro no julgamento da matéria de facto;
C) aferir se deve manter-se a condenação do requerido/apelante como litigante de má-fé e, em caso afirmativo, se o montante da multa fixada em 10 unidades de conta deve ou não ser alterado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação
1. Os factos

1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda os seguintes factos considerados provados pelo tribunal a quo na sentença recorrida:
1. Por contrato de mútuo, celebrado no dia 5 de fevereiro de 2019, foi mutuada pelo requerente ao requerido a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), conforme documento junto a fls. 35 dos autos do qual consta:

CONTRATO DE MÚTUO
ENTRE
AA, solteiro, maior, portador do cartào de cidadão n." ...01 ZY6, contribuinte fiscal n." ..., residente na Avenida ..., em ..., adiante designado como PRIMEIRO OUTORGANTE;
E
BB, casado, portador do cartão de cidadão n." ... Z"r7, contribuinte fiscal n." ..., residente na Estrada Municipal n." ...60, ..., ..., em ..., adiante designado como SEGUNDO OUTORGANTE;
é celebrado o presente contrato de mútuo nos termos dos arts. 1142.º e seguintes do Código Civil e que se rege pelas seguintes cláusulas:
PRIMEIRA
o Primeiro Outorgante entrega, nesta data, ao Segundo Outorgante a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros) a título de empréstimo, quantia que este recebe e da qual se reconhece e confessa devedor.
SEGUNDA
o prazo de amortização da quantia mutuada é de doze meses, podendo, no entanto, tal prazo ser prorrogado, por mútuo acordo dos outorgantes, reduzido a escrito;
TERCEIRA
1. O Segundo Outorgante obriga-se a pagar, mensalmente, ao Primeiro Outorgante, a quantia de €150,00 (cento e cinquenta euros), como retribuição do mútuo, com início um mês apôs a data da assinatura do presente contrato.
2. Acresce a esta remuneração, em caso de mora na restituição do empréstimo, juros de 7 % (sete por cento) a título de cláusula penal.
QUARTA
Pode o Segundo Outorgante antecipar a amortização do empréstimo, fazendo, assim, cessar o vencimento de juros, a partir do último dia do mês da antecipação da amortização.
Ambos os Outorgantes celebram este contrato de boa-fé, que corresponde integralmente à sua vontade, prescindindo reciprocamente do reconhecimento das assinaturas nele apostas.
..., 5 de fevereiro de 2019.
o Primeiro Outorgante,                                                o Segundo Outorgante,
2. Foi, entretanto, restituído pelo requerido o valor de €1.023,00.
3. O réu procedeu ao pagamento de mais qualquer quantia.
4. O contrato não foi cumprido pelo réu atá à data do seu termo, em 5 de Fevereiro de 2020, nem nos meses subsequentes.
5. O réu procedeu, unicamente, às entregas (amortizações), em género, alegadas pelo mesmo, no valor de € 1.023,00, entretanto deduzido ao valor global do mútuo, nunca tendo entregue ao autor o valor remanescente da quantia mutuada, no montante de € 13.977,00.
6. No dia 4 de Julho de 2020, o réu fez, única e exclusivamente, a entrega de algumas caixas de vinho, para abatimento parcial do seu valor no montante global em dívida, não tendo entregue ao Autor qualquer “envelope” com “€ 14.000,00”.
7. O réu trocou SMS com o autor, relativas ao pagamento do mútuo em causa, entre os dias 5 de Agosto e 30 de Setembro de 2020, sendo que, no dia 30 de Setembro de 2020, lhe é comunicado, pelo autor: «Então é valor é de 13.997», ao que o ora réu respondeu: «Ok AA».
8. Por causa da presente acção, o autor incorreu nas seguintes despesas:

1.2. Factos considerados não provados pelo tribunal a quo na sentença recorrida:
a) o requerente, após ter emprestado o dinheiro ao requerido e segundo aquele contou a este, quando chegou a casa comunicou à companheira EE que tinha emprestado a quantia de 15000€ ao Requerido.
b) atónita com esta informação a companheira do Requerente ficou extremamente aborrecida e desiludida com o mesmo sendo que a relação entre ambos se deteriorou (vindo até, supostamente por tal facto, a acabar por terminar).
c) uma vez que o Requerente estava com a relação muito abalada com a companheira, pressionou imenso o requerido para que este procedesse ao pagamento integral da dívida com vista ao “salvamento” da sua relação amorosa.
d) o Requerido inicialmente negou, uma vez que pretendia cumprir o acordado e, a devolver, teria de pedir esse valor a outra pessoa, não sabendo a quem.
e) atenta a intensa e praticamente diária pressão do Requerente, o Requerido, até por conta da acima referida amizade, cedeu, recorrendo a terceiro para que lhe mutuasse quantia que lhe possibilitasse saldar a divida.
f) tendo já pago ao Requerente por conta do mútuo 645,00€ e estando já acordado com este um segundo pagamento, em espécie, no valor de 378,00€, o requerido logrou obter, em mútuo, a quantia de 14.000,00€ com vista a saldar definitivamente a divida com o Requerente e com isto, atenta a amizade, contribuir para salvar a relação deste.
g) combinaram os mesmos, encontro em ..., local de residência e trabalho do Requerente, para devolução integral do mutuado.
h) nessa ocasião o requerido entregou, num envelope os 14.000,00 €, ao requerente, ainda antes da data de vencimento acordada.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso
2.1. Na alegação da apelação vem o recorrente invocar a nulidade da decisão recorrida, sustentando que a multa de 10 UC com que a sentença sancionou a conduta do R. se afigura desajustada, por excessiva, não correspondendo a um justo equilíbrio entre o grau de culpa e a censurabilidade do comportamento, carecendo de qualquer fundamentação a decisão emanada e, consequentemente, ferida de nulidade, cujo reconhecimento expressamente se requer, mais alegando que se impõe a redução da multa para o montante mais equilibrado e próximo dos mínimos legais - cf. conclusões XXVIII, XXIX e XXX da alegação.
Apreciando a nulidade suscitada, importa considerar que as causas de nulidade da sentença encontram-se previstas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC, segundo o qual é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Delimitando o âmbito das sentenças nulas, o Prof. Alberto dos Reis[1] ponderava a hipótese de saber se devem admitir-se duas categorias de nulidades - absolutas e relativas, insanáveis e sanáveis - ou se todas as nulidades da sentença são sanáveis, caso em que, em vez de se falar de nulidade, deve falar-se de anulabilidade.
Neste domínio, acaba por reconhecer que «dificilmente se descobrem casos da vida real que devam enquadrar-se na figura da nulidade absoluta», concluindo que «[t]odas as sentenças afectadas de vícios de formação ou de vícios formais, que não hajam de enquadrar-se na categoria da sentença nula, pertencem à classe das sentenças anuláveis». E enunciando o regime jurídico das sentenças anuláveis, por contraponto com as sentenças inexistentes e com as absolutamente nulas, refere: «o meio adequado para obter o suprimento das nulidades sanáveis é o recurso. A parte interessada, querendo arguir as nulidades de que enferme a sentença anuláveis, tem de servir-se do recurso; impugna a decisão mediante o recurso adequado e denuncia, na respectiva alegação, o vício que afeta a sentença».
Também no regime atual, a propósito do enunciado no artigo 615.º, n.º 1 do CPC, referem Lebre de Freitas-Isabel Alexandre: «entre os fundamentos de nulidades enunciados no n.º 1, um há que merece indiscutivelmente essa qualificação: é o da alínea (falta de assinatura do juiz). Trata-se dum requisito de forma essencial. O ato nem sequer tem a aparência de sentença (…)». Já «[o]s casos das alíneas b) a e) do n.º 1 excetuada a ininteligibilidade da parte decisória da sentença (…) constituem, rigorosamente, situações de anulabilidade da sentença, e não de verdadeira nulidade.
Respeitam eles à estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)», esclarecendo, a fls. 734 da obra citada, que esses vícios «carecem da arguição da parte»[2].
O vício invocado pelo apelante é suscetível de consubstanciar a causa de nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, o qual dispõe que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Dispõe o artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O artigo 154.º do CPC, em consonância com o preceito constitucional antes enunciado, impõe ao juiz o dever de fundamentar as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo (n.º 1), sendo que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade (n.º 2).
Também o artigo 607.º, n.º 3, do CPC, relativo à sentença, impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que julga provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Porém, no domínio da concreta causa de nulidade da sentença agora em análise constitui entendimento unânime na doutrina e na jurisprudência que só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de indicação dos fundamentos de facto ou de direito, gera a nulidade prevista na al. b), do n.º 1 do citado artigo 615.º do CPC, não se verificando perante uma fundamentação meramente deficiente[3].
A propósito do fundamento de nulidade enunciado na alínea b) do n.º 1, do artigo 615.º do CPC referem ainda Lebre de Freitas-Isabel Alexandre[4], «Face ao actual código, que integra na sentença tanto a decisão sobre a matéria de facto como a fundamentação desta decisão (art. 607, n.os 3 e 4), deve considerar-se que a nulidade consagrada na alínea b) do n.º1 (falta de especificação dos fundamentos que justificam a decisão) apenas se reporta à primeira, sendo à segunda, diversamente, aplicável o regime do art. 662, n.º s 2-d e 3, alíneas b) e d)».
Analisada a decisão recorrida verifica-se que a mesma enunciou de forma expressa, ainda que sucinta, os fundamentos que determinaram o sentido e o âmbito da decisão impugnada, indicando as normas jurídicas nas quais se alicerça e os motivos em que assentou.
Assim sendo, não ocorre a alegada nulidade, por falta de fundamentação, posto que da fundamentação da decisão recorrida constam os elementos, de facto e de direito, que permitem evidenciar, ainda que de forma sucinta, os motivos em que se alicerça, enunciando os respetivos fundamentos e concluindo pela correspondente decisão.
Em consequência, a decisão recorrida não enferma de qualquer nulidade, improcedendo, nesta parte, a apelação.

2.2. Aferir se estão verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto; em caso afirmativo, se existe erro no julgamento da matéria de facto
Na presente apelação, o apelante alude a «erro notório na apreciação das provas, que determinou incorreta decisão de facto e, consequentemente, do decisório, no que concerne à condenação enquanto litigante de ma fé», mas não especifica qualquer revisão da correspondente decisão sobre a matéria de facto.
Com efeito, o apelante não indica, nas conclusões da alegação ou no corpo da mesma, eventuais resultados específicos que pretenda ver reconhecidos em sede de impugnação da decisão na vertente de facto, nem especifica quais os concretos enunciados fácticos que considera incorretamente julgados.
Ao invés, parece reportar-se a um alegado erro de julgamento no que respeita à decisão de direito proferida relativamente à litigância de má fé, sustentando, designadamente, que «[n]a douta sentença a quo - com o devido e merecido respeito que, ademais, é muito - andou mal o Digno Tribunal ao imputar a conduta do R. descrito nos factos provados 3 a 7 como de litigante de má fé», «[i]sto porque, como se explicará adiante, da prova documental e testemunhal produzida nos autos, se extraí de forma evidente que, ainda que o R. não tenha demonstrado a prova do pagamento devido ao A., a sua defesa não abarca os pressupostos de litigância de má fé» - cf. conclusões III e IV da alegação.
Tal como resulta da análise conjugada do disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC, os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como de facto, sendo este último o meio adequado e específico legalmente imposto ao recorrente que pretenda manifestar divergências quanto a concretas questões de facto decididas em sede de sentença final pelo Tribunal de 1.ª instância que realizou o julgamento, o que implica o ónus de suscitar a revisão da correspondente decisão.
Efetivamente, a impugnação da decisão de facto feita perante a Relação não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em 1.ª instância, razão pela qual se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação[5].

Enunciando os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o artigo 640.º do CPC, o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Relativamente ao alcance do regime decorrente do preceito legal acabado de citar, refere Abrantes Geraldes[6]: «a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar, com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto».
Deste modo, «a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos»[7].
Como se viu, o recorrente não indica expressamente a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre a matéria de facto relevante para a apreciação da causa, não especificando, nas conclusões da alegação ou na correspondente motivação, eventuais modificações que preconize introduzir à decisão de facto que foi considerada na decisão recorrida, nem qualquer facto que considere dever ser aditado a tal matéria.
Assim sendo, facilmente se conclui que o apelante não observou os ónus previstos nos artigos 639.º, n.º 1, e 640.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do CPC, o que configura fundamento legal de rejeição do recurso relativo à matéria de facto.
Pelo exposto, decide-se rejeitar o recurso na parte relativa à impugnação da decisão de facto, mantendo-se, em conformidade, a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo.

2.3. Reapreciação da decisão de direito
2.3.1. Dos pressupostos da litigância de má-fé

Atenta a rejeição da impugnação da matéria de facto resulta evidente que os factos a considerar na apreciação da questão de direito são os que se mostram enunciados sob o ponto 1.1., supra.
O quadro fáctico que releva para a subsunção jurídica é exatamente o mesmo que serviu de base à sentença recorrida.
O recorrente, nas respetivas alegações, expressa a sua discordância relativamente à condenação como litigante de má-fé, sustentando, além do mais, que não agiu, nunca por nunca, norteado por qualquer fim ou estado de espírito reprovável, não se podendo confundir a não produção de prova de certos factos com o comportamento típico de quem recorre aos meios processuais para obter um fim avesso ao direito e à justiça. Sustenta que se limitou a tentar sustentar a sua versão dos factos, com os riscos inerentes à (não) produção de prova, não logrando alcançar os seus intentos. Conclui que o tribunal a quo, ao decidir como decidiu, não seguiu a regra da prudência, estando o réu/apelante, desde o primeiro momento, convencido da justiça da sua pretensão, pelo que pede a revogação da sentença recorrida nessa parte.
Em qualquer caso, pugna pela redução do montante da multa de 10 UC em que foi condenado, afigura-se desajustada, por excessiva, não correspondendo a um justo equilíbrio entre o grau de culpa e a censurabilidade do comportamento.

Nos termos do artigo 542.º, n.º 2, do CPC, litiga de má-fé a parte que, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Tal como decorre do n.º 2 do citado preceito legal, só a atuação dolosa ou gravemente negligente da parte pode sustentar a responsabilização da parte como litigante de má-fé, orientação que perdura desde que foi consagrada pelo Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12-12 relativamente ao n.º 2 do correspondente artigo 456.º do CPC então em vigor, passando assim a sancionar-se, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária[8].
Assim, «as partes têm o dever de pautar a sua atuação processual por regras de conduta conformes com a boa-fé (art. 8). A lide diz-se temerária, quando essas regras são violadas com culpa grave ou erro grosseiro, e dolosa, quando a violação é intencional ou consciente. A litigância temerária é mais do que a litigância imprudente, que se verifica quando a parte excede os limites da prudência normal, atuando culposamente, mas apenas com culpa leve»[9].
Deste modo, como resultado da ampliação, pelo legislador, do elemento subjetivo da litigância de má-fé, passou a exigir-se aos litigantes, para que sejam considerados de boa-fé, não apenas que declarem aquilo que subjetivamente consideram verdade, mas aquilo que considerem verdadeiro após cumprirem os mais elementares deveres de prudência e cuidado, impostos pelo princípio da boa-fé processual[10]. Como tal, tanto poderá ser considerado de má-fé aquele que oculta um facto essencial do qual tem perfeito conhecimento, como quele que não podia deixar de o conhecer caso tivesse empregado o mínimo de diligência exigível a que atua em juízo[11].
A este propósito, explicam ainda António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa[12], em anotação ao referido preceito, que «a má-fé, quer dolosa, quer baseada em culpa grave, continua a poder apresentar-se sob as vestes da litigância substancial ou instrumental. Integrará a primeira a conduta da parte que infringir o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava ou não devia ignorar, a que alterar a verdade dos factos ou a que omitir factos relevantes para a decisão da causa.
(…)
Já a litigância instrumental resultará da violação grave do dever de cooperação ou da utilização dos meios processuais para fins ilegítimos que constam do art. 542º, nº 2, al. d), como sucede com a sistemática interposição de recursos com vista ao protelamento do trânsito em julgado (…)».
A regra da boa-fé é uma norma cogente, de ordem pública no sentido de que atua independentemente da vontade dos interessados e mesmo contra a vontade destes, que não podem impedir a sua aplicação, atuando como norma delimitadora do exercício doutros princípios processuais como o do contraditório e o da igualdade das partes[13].
Assim, a aplicação do instituto da litigância de má-fé, à semelhança do instituto do abuso de direito, traduz uma aplicação do princípio da boa-fé no domínio processual civil, tendo de se ter em conta a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente, através da análise global dos factos provados e não provados, e não apenas de um segmento desses factos[14].

Em consequência, tal como salientam ainda os Autores antes citados[15], «não deve confundir-se a litigância de má-fé com:

a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo;
b) A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
c) A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos e determinados factos ou até na defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor».

Decorre do exposto que à litigância de má-fé não se basta a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta, pois, tal como refere o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 18-02-2015[16], «tal pode ter ocorrido por a parte se encontrar, embora incorretamente, convencida da sua razão ou de que os factos se verificaram da forma que os descreve, hipótese em que inexistirá má fé. Impõe-se, pois, para que haja litigância de má fé, que a parte, ao deduzir a sua pretensão ou oposição infundamentada ou ao afirmar factos não ocorridos, tenha atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, ou encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento».
Neste contexto, concluiu ainda o citado aresto, «[a]tuam como litigantes de má fé, os réus que, no articulado contestação, alegam uma realidade que se provou inexistir e cuja inexistência forçosamente conheciam, o que significa terem eles alterado a verdade dos factos a fim de deduzirem intencionalmente, portanto, com dolo, oposição, cuja falta de fundamento não podiam deixar de conhecer».

Na situação em apreciação observa-se que a decisão recorrida alicerçou a condenação do réu como litigante de má-fé com base essencialmente nos seguintes fundamentos:
«(…)
Entende o tribunal, que não leva de ânimo leve estas situações, sendo especialmente exigente para condenações em litigância de má-fé, que nestes autos se apurar com evidência a má-fé com que litigou o réu, comunicando ao seu Advogado – que por sua vez os fez verter na contestação – factos que tinha que saber serem falsos.
Não podia réu deixar de saber que o prazo para pagamento do mútuo terminava em Fevereiro de 2020, pois que havia assinado um contrato onde o prazo de pagamento era de 12 meses, com início em 5 de Fevereiro de 2019 (data em que a quantia lhe foi mutuada). Não se coibiu, no entanto, de comunicar ao processo que havia procedido ao pagamento da quantia mutuada em data anterior à do vencimento da obrigação, data essa que alegou ser de Julho de 2020, o que teria que saber ser falso. Igualmente, ademais, não só não provou ter feito esse alegado pagamento, como se provou, positivamente, que o não fez, nem na data que havia alegado nem em qualquer outra.
Ou seja, o réu alegou, na sua oposição, factos extintivos da obrigação cujo cumprimento era peticionado, factos que sabia não serem verdadeiros, alterando a verdade dos factos a fim de deduzir intencionalmente oposição, cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer, assim integrando o estatuído nas als. a) e b) do n.º 2 do artº 542.º, do C.P.C.; tal como, ademais, a previsão do artº 17.º, nº 4, do regime anexo ao D.L. 269/98.
Impõe-se, por isso, em conformidade com o nº 1, do artº 542.º, do C.P.C., a condenação do réu em multa e indemnização, neste último caso, porque a mesma foi pedida pelo autor».
Ponderando as considerações antes expostas, em face dos factos provados que constam da decisão recorrida - a qual não foi relevantemente impugnada nesta vertente -, confirma-se que ficou efetivamente demonstrado o não pagamento pelo réu da quantia peticionada na presente ação, ou seja, que o réu procedeu, unicamente, às entregas (amortizações), em género, alegadas pelo mesmo, no valor de € 1.023,00, entretanto deduzido ao valor global do mútuo, nunca tendo entregue ao autor o valor remanescente da quantia mutuada, no montante de € 13.977,00 e que no dia 4 de julho de 2020, o réu fez, única e exclusivamente, a entrega de algumas caixas de vinho, para abatimento parcial do seu valor no montante global em dívida, não tendo entregue ao Autor qualquer “envelope” com “€ 14.000,00”, tal como decorre de forma inequívoca dos factos enunciados em 1.1.4., 1.1.5., e 1.1.6.
Deste modo, ficou devidamente provado o facto negativo atinente à falta de pagamento ou restituição pelo réu/recorrente dos valores reclamados e não apenas que não tenha feito a prova do pagamento alegado, como parece sustentar o apelante na alegação de recurso.
Ora, contrariamente ao que sucede relativamente aos factos de que não se fez prova - em que tudo se passa como se tais factos não tivessem sido sequer alegados, não podendo retirar-se deles qualquer consequência jurídica, designadamente a prova do facto inverso, com exceção da imposta pelas regras do ónus da prova[17] - a demonstração do facto negativo atinente à falta de pagamento pelo réu/recorrente dos valores reclamados na presente ação permite afirmar que o réu não só deduziu oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, como igualmente alterou (deturpou) a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, permitindo consubstanciar os pressupostos da litigância de má-fé[18], em sentido idêntico ao entendimento adotado no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-2018[19], onde se entendeu violar gravemente o dever de cooperação com o tribunal e a parte contrária, devendo ser sancionada por litigância de má-fé, a conduta do réu que nega factos pessoais que vieram a ser declarados provados.
Também o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 4-07-2019[20], manteve a decisão de condenação da ré como litigante de má-fé, confirmando encontrar-se preenchido o pressuposto do artigo 542.º, n.º 2, alínea b), do CPC, por constatar que a ré negou factos pessoais que não podiam deixar de ser do seu conhecimento e que vieram a provar-se, atuando assim dolosamente.
Compulsando o que resulta dos factos provados, em especial o que consta dos pontos 1.1.4., 1.1.5., 1.1.6., e 1.1.7., resulta evidente que se provou uma versão dos factos que se mostra de todo incompatível com o alegado pelo réu em sede de contestação, ou seja, e tal como também se sintetizou na decisão recorrida: «(…) o réu alegou, na sua oposição, factos extintivos da obrigação cujo cumprimento era peticionado, factos que sabia não serem verdadeiros, alterando a verdade dos factos a fim de deduzir intencionalmente oposição, cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer, assim integrando o estatuído nas als. a) e b) do n.º 2 do artº 542.º, do C.P.C.; tal como, ademais, a previsão do artº 17.º, nº 4, do regime anexo ao D.L. 269/98».
Deste modo, atenta a natureza dos factos em apreciação e que vieram a provar-se, os quais consubstanciam factos pessoais que não podiam deixar de ser do conhecimento do réu, não pode deixar de se concluir que o réu não só deduziu oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, como igualmente alterou (deturpou) a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, apresentando nos autos uma falsa versão da realidade ocorrida.
Por conseguinte, a conduta processual do réu/recorrente permite configurar uma alteração consciente da verdade dos factos, deduzindo uma oposição cuja falta de fundamento forçosamente conhecia, o que leva a qualificar tal comportamento à luz do disposto no artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), e b), do CPC, o que configura a qualificação jurídica feita pelo tribunal a quo.
Improcedem, assim, nesta parte, as conclusões do apelante.
Tal como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 542.º do CPC, a litigância de má-fé pode conduzir à aplicação ao litigante de duas sanções: a condenação em multa, a qual a lei não faz depender de prévio pedido da parte, e uma indemnização à parte contrária, se esta a pedir, conforme decorre da parte final do normativo em referência.
Atendendo ao objeto do presente recurso, a única questão que resta apreciar e resolver prende-se com o valor da multa devida pela litigância de má-fé, tal como fixada pelo Tribunal a quo na decisão recorrida no montante equivalente a 10 (dez) unidades de conta, valor que considerou adequado atendendo às circunstâncias que determinam a condenação do autor como litigante de má-fé, defendendo o apelante a sua redução por considerar tal valor desajustado, por excessivo, não correspondendo a um justo equilíbrio entre o grau de culpa e a censurabilidade do comportamento.
A propósito dos critérios atinentes à fixação do montante da multa por litigância de má-fé importa considerar o que estabelece o artigo 27.º, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), ao prever que nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC (n.º 3), e que o montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (n.º 4 do citado preceito legal).
A propósito do critério que deverá guiar o juiz na fixação do quantum da multa, dentro da moldura que lhe foi previamente fixada, refere Marta Frias Borges[21]: «De acordo com o art. 27º, nº 4 do RCP, deverá o juiz tomar em consideração os efeitos da conduta de má-fé no desenrolar do processo e na correta decisão da causa, bem como a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património, em consonância com aquilo que era já afirmado por ALBERTO DOS REIS quando, ainda na vigência do CPC39, aludia à necessidade de atender ao grau de má-fé e à situação económica do litigante. De facto, a multa por litigância de má-fé, como qualquer outra pena, procurará desempenhar uma função repressiva (punindo aquele que não cumpre com os deveres de lealdade e correção) e, simultaneamente, preventiva (evitando que esse, ou qualquer outro litigante, volte a desrespeitar a lealdade processual). Mas estas funções apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração a situação económica do litigante, adaptando o montante da multa à sua condição financeira, assim garantindo que esta tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo».
A este propósito, salienta ainda o Ac. TRP de 26-02-2008[22] «[a] multa devida por litigância de má fé deve ser fixada com base no “prudente arbítrio” do juiz, que deve sopesar a gravidade da infracção e a situação económica do infractor, a maior ou menor gravidade dos riscos de lesão patrimonial causada ao litigante de boa fé, os interesses funcionais do Estado e o valor da acção».
Ora, como vimos, os factos provados nos autos levam a concluir que o réu alterou conscientemente a verdade dos factos, deduzindo uma oposição cuja falta de fundamento forçosamente conhecia, permitindo concluir que configurou dolosamente os factos em que baseou a defesa apresentada.
Acresce constatar que a litigância de má-fé ocorre desde o momento de apresentação da respetiva contestação, com as consequências inerentes à subsequente tramitação processual, estando o valor da ação fixado em 14.617,64 €.
Por conseguinte, à luz de todo o enquadramento antes enunciado, consideramos que a atuação do réu configura uma hipótese relativamente grave de litigância de má-fé, pelo que, diversamente do que defende o recorrente, o montante da multa não pode ser reduzido, por se mostrar adequado e proporcional às circunstâncias do processo e às finalidades da condenação.
Pelo exposto, cumpre julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada improcedente, as custas da apelação são integralmente da responsabilidade do recorrente, atento o seu decaimento.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, assim confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Guimarães, 9 de março de 2023

(Acórdão assinado digitalmente)
Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
Luísa Duarte Ramos (Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
Eva Almeida (Juíza Desembargadora - 2.º adjunto)


[1] Cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Volume V - reimpressão - Coimbra, Coimbra-Editora, 1984, pgs. 122-123.
[2] Cf. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pgs. 734 e 735.
[3] Neste sentido, cf. Alberto dos Reis - obra citada -, p. 140; Lebre de Freitas-Isabel Alexandre - obra citada -, p. 736; na jurisprudência, cf., por todos, o Ac. TRL de 8-03-2018 (Relatora Teresa Prazeres Pais), p. 908/17.4T8FNC-B. L1-8 disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. Lebre de Freitas-Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 736.
[5] Cf. o Ac. do STJ de 19-05-2015 (relatora: Maria dos Prazeres Beleza), revista n.º 405/09.1TMCBR.C1. S1 - 7.ª Secção - disponível em www.dgsi.pt.
[6] Cf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 126.
[7] Cf. Abrantes Geraldes - Obra citada - nota 5.
[8] Cf. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 456.
[9] Cf. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre - Obra citada -, p. 456, em anotação ao artigo 542.º do CPC.
[10] Cf. o Ac. TRG de 31-10-2019 (relator: Alcides Rodrigues), proferido no p. 33627/18.4YIPRT.G1, subscrito pelo aqui relator enquanto 2.º adjunto e disponível em www.dgsi.pt
[11] Cf. o Ac. TRG de 31-10-2019 (relator: Alcides Rodrigues), antes citado.
[12] Cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 593.
[13] Cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa - obra citada -, p. 35.
[14] Cf., Ac. TRG de 23-05-2019 (relatora: Eugénia Cunha), p. 1473/17.8T8BGC.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[15] Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa - obra citada -, p. 593.
[16] Relator Silva Salazar, revista n.º 1120/11.1TBPFR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[17] Cf., o Ac. TRP de 10-01-2019 (relator: Aristides Rodrigues de Almeida), p. 21800/16.4T8PRT-A. P1, acessível em www.dgsi.pt.
[18] Neste sentido, cf., por todos, o Ac. TRG de 31-10-2019 (relator: Alcides Rodrigues), antes citado.
[19] Relator: Ilídio Sacarrão Martins P. 74300/16.1YIPRT.E1-A. S1 - 7.ª Secção -, disponível em www.dgsi.pt.
[20] Relatora: Maria da Graça Trigo, p. 7070/17.0T8VNF.G1. S1- 2.ª Secção -, disponível em www.dgsi.pt.
[21] Cf., Marta Alexandra Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre),na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas, com Menção em Direito Processual Civil, 2014, Coimbra, pg. 69, acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt.
[22] Relator Vieira e Cunha, p. n.º 0820769, disponível em www.dgsi.pt.