Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5025/21.0T8VNF.G1
Relator: MARGARIDA PINTO GOMES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PERDA TOTAL DO VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO PELA PRIVAÇÃO DO USO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1.O artº 41º do DL 291/2007, de 21 de agosto do artº 41º do DL nº 291/2007, fora do seu âmbito de aplicação, não substitui o princípio indemnizatório da reconstituição da situação anterior ao dano, do statuo quo ante, decorrente dos artºs 562º e 566º do Código Civil.

2. Sendo o bem danificado um veículo automóvel cabe ao lesado a opção entre mandar reparar o veículo ou optar por uma indemnização em dinheiro e, optando pela indemnização em dinheiro, cabe-lhe demonstrar o valor da reparação.

3.Sendo o bem danificado um veículo automóvel, não sendo o autor vendedor de automóveis e não sendo o veículo comercial, aquele não tem para o seu dono apenas um valor comercial, mas o valor que o veículo representa dentro do património do lesado, para se deslocar, passear com a família, normalmente um conjunto de utilidades que correspondem a necessidades que a utilização do veículo satisfaz.

4.Cabe à responsável civil demonstrar que o sinistrado conseguiria adquirir, pelo valor venal que atribuiu ao veículo, um veículo nas iguais condições em que o veículo sinistrado se encontrava antes do acidente.

5.A privação do uso, constitui, por si só, um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa durante o período da privação, ou seja, basta a própria privação para haver indemnização, pois o facto de não ter aquele veículo à disposição já é por si um dano.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

AA intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra F..., S.A., na qual pede que seja condenada a ré a:

a) pagar ao autor o montante necessário para a total reparação do seu veículo automóvel de matrícula ..-..-JZ, em valor nunca inferior a €5.152,80;
b) pagar ao autor o montante inerente à imobilização e privação do uso do veículo, valor este a computar numa taxa diária de € 10,00, contada desde a data do acidente (que ocorreu a 21.09.2018) até à data em que a ré lhe pague o valor supra referido e que, neste momento, ascende ao valor de € 10.950,00;
c) pagar ao autor os juros sobre o montante referido em a), à taxa legal, a contar da data do acidente ou, subsidiariamente, a contar da data da citação.

Alega, em síntese, que, no dia 21 de Setembro de 2018, pelas 21h15m, num troço da Rua ..., ocorreu um acidente de viação que consistiu no embate do seu veículo, marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-JZ, por si tripulado num amontoado de lixo proveniente dos coletores de saneamento público e numa tampa de saneamento público que se encontrava escondida naquele amontoado de lixo, acidente que ocorreu porque o Município ..., entidade responsável pela manutenção da rede de saneamento público e da rede viária municipal, não cuidou de, atempadamente, recolocar no seu devido lugar a tampa de saneamento que havia saltado do seu lugar em virtude de entupimento no sistema de esgotos e de limpar todo o lixo que, entretanto, havia brotado abundantemente de tal caixa de saneamento sem tampa.
Mais alega que, do choque ocorrido resultaram danos no veículo automóvel do Autor cuja reparação ascende ao valor de € 5.152,80, encontrando-se o mesmo imobilizado desde a data do acidente, com o consequente dano da privação de uso, que estima em € 10,00, dado que se tratava do veículo que utilizava todos os dias nas suas deslocações para o trabalho, médicos, bancos, mercados e lojas comerciais, bem como, ao fim de semana, em lazer, com a família.
Por fim, alega que a ré é uma próspera companhia seguradora, que aufere largos lucros ao fim de cada ano de exercício e para ela, mercê do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...90, do ramo responsabilidade civil geral, se encontra transferida a responsabilidade civil emergente de sinistros ocorridos na rede viária do Município ....

Citada veio a ré contestar, impugnando a matéria alegada, apenas quanto aos danos invocados, mais alegando, a título de defesa por excepção, que, de acordo com as condições gerais do contrato de seguro celebrado com o Município ..., estão excluídos da garantia do seguro os danos indirectos de qualquer natureza, ou seja, os danos que não sejam consequência imediata e directa do acto ou omissão do segurado, aí se incluindo os danos reclamados pelo Autor a título de privação de uso do veículo.

Saneado o processo procedeu-se á realização da audiência de discussão e julgamento tendo sido proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência:
a)condenou a ré, “F..., S.A.”, a pagar ao autor, AA, a quantia de € 5.152,80, acrescida de juros vencidos desde a data da citação e vincendos até efectivo e integral pagamento, sobre o capital de € 5.152,80, à taxa legal de 4%;
b)condenou a ré, “F..., S.A.”, a pagar ao autor, AA, a quantia diária de € 10,00, desde a data do acidente e até 21.05.2020, bem como desde a data da propositura da acção até ao efectivo e integral pagamento da quantia referida na alínea anterior.

Inconformada com a sentença veio da mesma recorrer a ré formulando as seguintes conclusões:

1.Face ao teor do depoimento gravado da testemunha BB e ainda ao teor das declarações de parte gravadas do Autor, nunca o Tribunal recorrido podia dar como provados os factos constantes dos nº 21 (pare final), 26, 28 dos factos provados constantes da douta sentença recorrida nos termos que da mesma constam.
2.Nos termos das alíneas a), b) e c) do nº 1 do art. 640º do CPC, entende e defende a Ré que os factos constantes dos nº 21 (parte final, desde “pois que” até final), 26 e 28 dos factos dados como provados e constantes da douta sentença recorrida devem ser dados como não provados.
3.Face ao teor do depoimento gravado da testemunha BB e ainda ao teor das declarações de parte gravadas do Autor, nunca o Tribunal recorrido podia dar como provado o facto constante do nº 33 dos factos provados constantes da douta sentença recorrida nos termos que da mesma constam.
4.Nos termos das alíneas a), b) e c) do nº 1 do art. 640º do CPC, entende e defende a Ré que o facto constante do nº 33 dos factos dados como provados e constantes da douta sentença recorrida deve ser dado provado nos termos seguintes: “Encontrando-se o Autor impossibilitado de uso de veículo automóvel a até Setembro de 2019, pois que nessa data adquiriu um veículo Citroen C4”.
5.Nesta conformidade, deve revogar-se a douta sentença recorrida nesta parte e quanto à matéria de facto nos termos que constam das conclusões que antecedem – é o que se requer nos termos do art. 662º do CPC.
6.Face aos factos provados e tendo também em consideração a alteração da matéria de facto que ora se alega, nunca a Ré podia –e pode –ser condenada nos termos que constam da douta sentença recorrida
7.Face aos factos provados resulta que a situação do ... do Autor após o acidente é de perda total, de acordo com o estabelecido na lei, tanto mais que o Autor não pede a condenação da Ré na reparação “in natura”, pelo que,
8.Atento o valor da estimativa de reparação e ainda o valor do veículo do Autor antes do acidente, o valor do salvado e a idade do referido veículo, a indemnização devida pela Ré ao Autor era de 1,600,00 €.
9.Assim, ao oferecer ao Autor a quantia de 1.850,00 €, em 21 de Novembro de 2018, a Ré cumpriu a sua obrigação, pelo que só o Autor deu causa à acção e, portanto, tem de ser condenado nas custas do processo.
10.Ao condenar a Ré no pagamento ao Autor de quantia superior à que foi oferecida ao Autor e ainda nas custas do processo, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 41º do DL nº 291/2007, 562º e 566º do Cod. Civil e 535º do CPC.
11.Face aos factos provados e ainda aos que resultam da reclamação da Ré, não existe fundamento para a condenação no pagamento da quantia diária de 10,00 € ao Autor por paralisação do seu veículo.
12.Desde logo, porque a situação do veículo do Autor após o acidente é de perda total e, nesse caso, não há paralisação indemnizável.
13.Mesmo que assim se não entenda, sempre a indemnização por paralisação cessa com o pagamento da indemnização por perda total.
14.E “in casu” o Autor comprou um outro veículo para substituição do veículo sinistrado, pelo que a indemnização por paralisação constitui manifesto abuso de direito.
15.Foram violados os arts. 563º, 564º, 782º e 334º do Cod. Civil, pelo que, salvo melhor entendimento, deve ser revogada a douta sentença recorrida em conformidade com o exposto.
Nestes termos e nos melhores de direito, que V.Ex.ªs doutamente suprirão, deve o presente recurso ser admitido e a final deve ser julgado provado e procedente, nos termos expostos, como é de lei e de JUSTIÇA!

Em sede de contra alegações veio o recorrido formular as seguintes conclusões:

1. Percorrida a alegação apresentada pela Recorrente verifica-se que, não existe nos meios probatórios constantes do processo (registo ou gravação nele realizada) nada que imponha diferente decisão, sobre cada dos concretos pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida.
2. A alteração da decisão da matéria de facto pela Relação só deve ser usada quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
3. Deve, assim, prevalecer a decisão proferida pelo Tribunal Recorrido, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
4. A douta sentença recorrida justificou a sua motivação quanto à decisão que profere no que diz respeito à matéria de facto.
5. Não há, da alegação da Recorrente, qualquer elemento idóneo que possa abalar a livre convicção do Tribunal Recorrido quanto aos fundamentos da decisão sobre a matéria de facto, que se mostra assim inalterável, face à prova produzida.
6. E, dependendo o pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos, no que à interpretação e aplicação do Direito respeita, na sua totalidade, do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto ali consubstanciada, mas que, como se refere, deve manter-se inalterada, soçobra, também, qualquer alteração sobre a decisão de mérito proferida.
7. De qualquer forma, a douta sentença faz constar, na parte que destina à fundamentação de direito, todas as razões que conduzem, inelutavelmente, à decisão que veio a ser proferida.
8. Não ocorreu, na douta decisão recorrida, a violação de qualquer normativo legal ao caso aplicável e naquela se fez a correta e adequada aplicação do quadro legal vigente.
Nestes termos, e nos mais de direito aplicável, deve ser proferido, aliás douto, acórdão que contemple as conclusões aqui expressas, mantendo a douta decisão recorrida nos seus exatos termos, pois que assim será feita INTEIRA JUSTIÇA.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
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II – OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, impondo-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes, bem como as que sejam de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, sendo certo que o tribunal não se encontra vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e que visam sustentar os seus pontos de vista, isto atendendo à liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.
Assim considerando o teor das conclusões apresentadas pela recorrente e atrás supra transcritas, consiste o objecto do recurso saber se a matéria de facto deve ser alterada nos termos propugnados e, caso o seja, se contende com o mérito da causa e em que medida.
Em sede de direito importa aos autos apurar se, estando perante um caso de perda total do veículo, há lugar à indemnização relativa ao valor da reparação.
Importa ainda aferir do direito a indemnização pela paralisação do veículo.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

a) Factos provados.

1- No dia 21 de Setembro de 2018, pelas 21h15m, o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-JZ, tripulado pelo Autor AA, seu proprietário circulava na Rua ..., sita na União de Freguesias ... e ..., concelho ....
2- No troço da Rua ... onde o Autor circulava, na data e hora acima referidos, a mesma entronca com a Rua ....
3- Nesse lugar, a referida Rua ..., atento o sentido de marcha Norte – Sul, descreve uma curva para a esquerda.
4- Tendo tal estrada cerca de 7,00 (sete) metros de largura, com bermas.
5- Com piso em asfalto, com iluminação e fazendo tempo de chuva.
6- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, o veículo do Autor transitava no sentido Norte – Sul.
7- Ao fazer a curva para a esquerda referida em 3, tendo em conta o seu sentido de marcha, o veículo do Autor embateu com a parte inferior frontal num amontoado de lixo, composto por uma massa de detritos vários provenientes dos coletores de saneamento público, e na tampa de saneamento público que se encontrava escondida naquele amontoado de lixo.
8- O Município ... não cuidou de, atempadamente, recolocar no seu lugar a tampa de saneamento existente naquele local, a tapar a respectiva caixa de visita, e que havia saltado do seu lugar em virtude de entupimento no sistema de esgotos.
9- Nem cuidou o Município ... de limpar todo o lixo que, entretanto, havia brotado de tal caixa de visita de saneamento sem tampa.
10- O Autor, ao descrever a curva referida em 3, deparou-se com tal amontoado de lixo na metade direita da faixa de rodagem, que lhe era destinada, a cerca de 80 (oitenta) centímetros do eixo da faixa de rodagem.
11- Tal amontoado de lixo, onde se encontrava, escondida e indistinta, a tampa de saneamento, não estava, por qualquer forma, sinalizado.
12- Nem havia, quer no sentido de marcha em que seguia o Autor, quer em sentido contrário, qualquer aviso para o perigo existente no local.
13- O Autor, naquele momento e instantes antes do embate, circulava na referida Rua ..., na metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, a uma velocidade de 40 quilómetros por hora.
14- E foi nestas circunstâncias que o Autor embateu, com o veículo automóvel que conduzia, no amontoado de lixo que lhe surgiu no caminho e na tampa de saneamento escondida e indistinta nesse amontoado de lixo.
15- Do embate ocorrido resultaram danos no veículo automóvel do Autor.
16- O Autor participou ao Município ... o acidente ocorrido e formalizou o respetivo pedido de indemnização.
17- Tendo, então, obtido como resposta do Município ... que o assunto em causa havia sido remetido para a Companhia de Seguros F....
18- Entretanto, no seguimento do respectivo processo pela F..., ora Ré, foi efectuada peritagem ao veículo automóvel do Autor.
19- Na análise feita ao acidente, a Ré não colocou em causa a respectiva descrição do mesmo, os danos causados no veículo automóvel do Autor, o nexo de causalidade entre o facto gerador da responsabilidade e os danos nem a única e exclusiva responsabilidade do Município ..., seu segurado, no acidente.
20- A Ré, somente disponibilizou ao Autor a quantia de € 1.850,00, acrescido do valor do salvado, de € 1.500,00, alegando que ao veículo acidentado havia sido atribuído o valor de € 2.000,00.
21- O Autor não concordou, nem concorda, com tal proposta da Ré pois que pretende proceder à reparação do seu veículo automóvel.
22- Esta reparação, pretendida pelo Autor, é tecnicamente possível
23- Havendo um prestador de serviços que se propõe proceder a tal reparação e elaborou o respectivo orçamento, no valor de € 5.152,80.
24- O veículo sinistrado é de marca ..., modelo ..., do ano de 1998.
25- Estava, à data do acidente, estimado e conservado.
26- O Autor procedia, com regularidade, às necessárias revisões e reparações.
27- A pintura e os interiores estavam tratados e conservados.
28- A mecânica do veículo funcionava na perfeição.
29- O Autor usava tal veículo automóvel todos os dias nas suas deslocações.
30- Para se deslocar para o trabalho, médicos, bancos, mercados, lojas comerciais.
31- E usufruía ainda do mesmo ao fim de semana, em lazer, com a família.
32- O veículo acidentado encontra-se imobilizado.
33- Encontrando-se o Autor impossibilitado do seu uso quotidiano.
35- A Ré é uma companhia seguradora e para ela, mercê do contrato titulado pela apólice n.º ...90, do ramo responsabilidade civil geral, foi transferida a responsabilidade civil emergente de sinistros ocorridos na rede viária do Município ....
36- De acordo com as condições particulares da apólice, o capital seguro era de € 1.000.000,00 por sinistro e por período de vigência de um ano.
37- Foi, ainda, estabelecida uma franquia de 250,00 € por sinistro, a cargo do segurado, não oponível aos terceiros lesados, mas reembolsável pelo segurado após a satisfação da eventual indemnização aos terceiros lesados.
38- De acordo com as condições particulares da apólice, o âmbito de cobertura do contrato de seguro é “garantia da responsabilidade civil extracontratual imputável ao segurado por danos materiais e/ou corporais, directamente causados a terceiros, decorrentes da actividade autárquica”.
39- Consta do artigo 6.º, n.º 1, t) das condições gerais da apólice que “O presente contrato nunca garante os danos (…) indirectos de qualquer natureza, ou seja, os danos que não sejam consequência imediata e directa do acto ou omissão do segurado”. 40- Na sequência da participação que lhe fez o seu segurado, a Ré efectuou averiguações, que concluiu em finais de Novembro de 2018.
41- A Ré também mandou efectuar uma avaliação dos danos sofridos pelo veículo do Autor, para o que encarregou a sociedade de peritagens G..., S.A.
42- A reparação do veículo do Autor foi orçamentada, sem desmontagem, em € 5.124,79, sem IVA, por acordo entre o funcionário da G... e o dono da oficina onde o Autor colocou o seu veículo para reparar, “BB, Lda”.
43- O veículo do Autor tinha 167.992 Kms percorridos.
44- A sociedade de peritagens referida em 41 atribuiu ao veiculo do Autor um valor venal de € 1.750,00.
45- Após consulta efectuada pela Ré ao mercado de “salvados”, a melhor proposta que conseguiu para o veículo do Autor foi de € 150,00.
46- O veículo do Autor foi considerado pela Ré como perda total.
47- A Ré enviou ao Autor, em 21 de Novembro de 2018, um recibo de € 1.850,00, para que ele o cobrasse junto de qualquer Agência da Ré.

b) Factos não provados.

Artigo 27.º da Petição Inicial – “Orçamento este que, aliás, não foi posto em causa pela Ré quanto aos produtos propostos, trabalhos propostos e respectivos valores”.
Artigo 28.º da Petição Inicial – “O Autor não consegue comprar, com os propostos € 2.000,00, um veículo de características iguais àquele sinistrado”.
Artigo 13.º da Contestação – Na parte em que se diz “fabricado em 1988 (data da matrícula: 4/1988)”.
Artigo 14.º da Contestação – Na parte em que se diz “tinha”.
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A restante matéria alegada pelas partes nos articulados e não vertida nos Factos Provados ou referida nos Factos Não Provados é meramente conclusiva ou de Direito.
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IV. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

Como resulta da questão atrás identificada, no recurso impugna-se a decisão da matéria de facto, sendo que nas suas alegações a recorrente questiona a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido no que respeita aos factos provados sob os números 21, 26, 28, e 33, entendendo que deveriam os mesmos ter sido dados como não provados ou com redação distinta.

Antes de mais importa aferir, em termos gerais, os contornos em que deve ser a (re)apreciada em 2ª instância.
Estabelece o nº 1 do artº 662º, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto” que, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Daqui decorre que, os recursos da decisão da matéria de facto podem visar objetivos distintos, a saber:

a) a alteração da decisão da matéria de facto, considerando provados factos que o tribunal a quo considerou não provados, e vice-versa, com base na reapreciação dos meios de prova ou quando os elementos constantes do processo impuserem decisão diversa (no caso de ter sido apresentado documento autêntico, com força probatória plena, para prova de determinado facto ou confissão relevante) ou em resultado da apreciação de documento novo superveniente (nº 1 do artº 662º do Código de Processo Civil);
b) a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova, matéria de facto alegada pelas partes e que se mostre essencial para a boa resolução do litígio (art. al. c) do nº 2 do artº 662º, do Código de Processo Civil);
c) a apreciação de patologias que a decisão da matéria de facto enferma, que, não correspondendo verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, se traduzam em segmentos total ou parcialmente deficientes, obscuros ou contraditórios (também nos termos da al. c) do nº 2 do artº 662º, do Código de Processo Civil).
Ora, no caso sub judice, invoca a recorrente, o erro de julgamento por parte do Tribunal a quo, pretendendo a alteração da decisão da matéria de facto, a saber, devendo ser considerados como não provados, os factos dados como provados sob os nºs 21, 26, 28 e 33.

Conforme refere o D. Acordão desta Relação de Guimarães, de 7 de abril de 2016, in www.dgsi.pt, “Incumbe à Relação, enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”.
Ora, sem prejuízo de uma valoração autónoma dos meios de prova, não pode em tal operação esquecer a Relação os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.
Como refere o Dr Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª ed ,pág. 245, “(…) ao nível da reapreciação dos meios de prova produzidos em 1ª instância e formação da sua própria e autónoma convicção, a alteração da decisão de facto deve ser efectuada com segurança e rodeada da imprescindível prudência e cautela, centrando-se nas desconformidades encontradas entre a prova produzida em audiência, após a efectiva audição dos respectivos depoimentos, e os fundamentos indicados pelo julgador da 1ª instância e nos quais baseou as suas respostas, e que habilitem a Relação, em conjunto com outros elementos probatórios disponíveis, a concluir em sentido diverso, quanto aos concretos pontos de facto impugnados especificadamente pelo recorrente; Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida - que há de ser reanalisada pela Relação mediante a audição dos respetivos registos fonográficos -, deverá prevalecer a decisão proferida em 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso, nessa parte.”
Ou seja, a reapreciação da prova pela 2ª instância, não visa obter uma nova e diferente convicção, mas antes apreciar se a convicção do Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência comum e da lógica, atendendo aos elementos de prova que constam dos autos, aferindo-se, assim, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto.
De todo o modo, necessário se torna que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, conforme a parte final da al. a) do nº 1 do artº 640º, do Código de Processo Civil.
Competirá assim, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, atendendo ao conteúdo das alegações do recorrente, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Em suma, a este tribunal da Relação caberá apurar da razoabilidade da convicção probatória do tribunal de primeira instância, face aos elementos de prova considerados, sem prejuízo de, como supra referido, com base neles, formar a sua própria convicção.

Aqui chegados importa aos autos referir que o recorrente que veio impugnar a decisão da matéria de facto, quanto a determinados pontos da matéria de facto provada e não provada, cumpriu os requisitos de ordem formal que permitem a este Tribunal apreciar a impugnação que faz da matéria de facto, respeitando o ónus previsto na alínea b) do nº 1 e na alínea a) do nº 2 do artº 640º do Código de Processo Civil, especificando, como a lei impõe, os concretos pontos da matéria de facto que entende erradamente decidida, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa de cada um dos pontos da matéria de facto impugnada, indicando com exatidão as concretas passagens da gravação dos depoimentos em que se funda o recurso e indicando ainda qual a redação a dar aqueles factos.
Acresce que, a apreciação de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.

Vejamos.

Antes de mais, importa ter presente que, essencialmente, o cerne da questão da impugnação da decisão da matéria de facto tem por base saber se o Autor pretendia proceder à reparação do veículo, veículo que era sujeito a revisões e reparações regulares e funcionando na perfeição e se aquele ficou impossibilitado de usar o mesmo no seu quotidiano.

Efetivamente, veio a recorrente impugnar os factos dados como provados sob os nºs 21, 26, 28 e 33, a saber:

21- O Autor (…) pretende proceder à reparação do seu veículo automóvel.
26- O Autor procedia, com regularidade, às necessárias revisões e reparações.
28- A mecânica do veículo funcionava na perfeição.
33- Encontrando-se o Autor impossibilitado do seu uso quotidiano.

Pretende a recorrente que:
a) do facto dado como provado sob o nº 21 - se dê como não provado que o Autor pretende proceder à reparação do seu veículo automóvel.
b) que os factos dados como provados sob os nºs 26 e 28 se deem como não provados.
c) que se dê como provado sob o nº 33 que “encontrando-se o autor impossibilitado do uso do veículo automóvel até setembro de 2019, pois que, nessa data, adquiriu um veículo Citroen C4.
 
Neste particular, a sentença motiva de modo extenso e fundamentado as respostas dadas àquela matéria de facto nos seguintes termos:

“A matéria vertida nos pontos 1 a 20 dos Factos Provados foi alegada pelo Autor na Petição Inicial e não foi impugnada pela Ré na Contestação, razão pela qual a mesma foi considerada admitida por acordo, nos termos do art. 574.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, tendo apenas sido expurgada de algumas expressões de conteúdo conclusivo ou valorativo.
No que concerne à matéria de facto controvertida, o Tribunal teve em consideração, para formar a sua convicção, os documentos juntos a fls. 7v.º, 8, 20 a 32 e 44v.º a 46, os depoimentos das testemunhas BB, CC e DD, bem como as declarações de parte do Autor.
*
Assim, no que se refere à prova documental, cabe dizer que:

- O documento junto a fls. 7v.º consiste em cópia do orçamento referido no ponto 23 dos Factos Provados;
- O documento junto a fls. 8 consiste em cópia de missiva enviada pela Ré ao Autor, conforme referido nos pontos 20 dos Factos Provados;
- O documento junto a fls. 20 a 30 consiste em cópia das condições particulares, especiais e gerais do contrato referido nos pontos 35 a 39 dos Factos Provados, que resultaram demonstrados em face do seu teor;
- O documento junto a fls. 31 consiste em cópia do relatório de peritagem referido nos pontos 42 e 44 dos Factos Provados;
- O documento junto a fls. 31v.º e 32 consiste em cópia de um anúncio de venda de um veículo da marca ..., modelo ..., de 1998, colocado no site “...”;
- O documento junto a fls. 32 vº consiste em cópia do recibo referido no ponto 47 dos Factos Provados;
- O documento junto a fls. 44v.º e 45 consiste em cópia do certificado de matrícula relativo ao veículo do Autor, do qual resultou a demonstração da matéria vertida no ponto 24 dos Factos Provados;
- O documento junto a fls. 45v.º consiste em relatório de inspecção técnica obrigatória, datado de 2.04.2018;
- O documento junto a fls. consiste em cópia de um anúncio de venda de um veículo da marca ..., modelo ..., de 1998, colocado no site “...”.
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Relativamente à prova testemunhal, importa salientar, em breve síntese, que a testemunha BB é chapeiro de profissão e refere ser o Autor seu cliente há vários anos e, antes disso, seu vizinho, conhecendo-o há 30 ou 40 anos.
Refere que o veículo em causa nos autos ainda se encontra nas suas instalações por reparar e que o custo da reparação orça em cerca de € 5.000,00, reconhecendo o documento junto a fls. 7v.º como sendo da sua autoria. Esclarece que, com o referido valor, consegue reparar o veículo, correspondendo o mesmo ao custo necessário para o “pôr em condições”.
Segundo diz, trabalha no ramo há 58 anos e conhece o veículo do Autor porque lhe prestava assistência, mais dizendo que os mesmo estava “impecável”, pois o Autor levava-o sempre à sua oficina para tudo o que fosse preciso, encontrando-se cuidado.
Todavia, explica que a sua oficina apenas faz intervenções de chaparia e de pintura e não de mecânica.
Diz ter conhecimento de que o Autor, pelo menos, utilizava o veículo para se deslocar para o trabalho, na freguesia .... Questionado quanto ao valor do veículo responde que os valores variam de stand para stand.
Instado, esclarece que o Autor tem um Citroen C4 que também leva á sua oficina e que adquiriu depois do acidente. Explica que o ... se encontra aparcado no exterior da oficina, debaixo de uma árvore.
Refere que o perito da seguradora considerou que o veículo sofreu perda total, mas não lhe falou no valor do mesmo. Diz que o carro era de 1998, desconhecendo quantos quilómetros marcava ou qual o estado dos pneus.
Mais esclarece que o modelo em questão tinha bastante procura no mercado, mas que a assistência de veículos da marca ... é muito cara.
Por sua vez, a testemunha CC é profissional de seguros, prestando serviços à Ré, apesar de já se encontrar aposentado.
Refere que a Ré propôs ao Autor a indemnização de € 1.850,00, emitindo o recibo para que o mesmo pudesse cobrar esse valor em qualquer agência. Esclarece que carta que propõe a indemnização é datada de 21.11.2018 e que o recibo acompanha essa carta.
Segundo diz, tal proposta teve em consideração o valor venal de € 2.000,0, deduzido do salvado, no valor de € 150,00, não tendo o Autor cobrado o recibo relativo à indemnização.
Diz que a avaliação não faz parte das suas funções, referindo que são seguidos os valores anunciados na internet e também a tabela “Eurotax”, mais dizendo que o valor apurado por esses meios até era inferior ao que foi tido em consideração pela Ré. Na determinação desse valor, é tido em consideração o ano e a quilometragem do veículo.
Mais refere que a apólice de seguro exclui danos indiretos, entre os quais se incluem os danos resultantes da paralisação do veículo. A apólice prevê uma franquia, mas esta não é oponível ao terceiro lesado.
Por fim, a testemunha DD exerce as funções de perito avaliador, trabalhando para um gabinete de avaliações que presta serviços à Ré.
Refere ter visto o veículo em causa nos autos em 2018, veículo que diz ser um ..., de 1998, ostentando nados na frente inferior. Estimou a reparação, sem desmontagem, em € 5.124,79, referindo que, para reparar, seria necessário desmontar e que o mais certo era que aparecessem mais danos.
Explica que o valor da estimativa era muito superior ao valor venal do veículo, que diz ser de € 1500,00 ou € 1.750,00. Para apurar esse valor venal, foram feitas consultas na internet e junto de stands, mormente, do stand “...”, mencionado no documento de fls. 31.
Diz que o ... tem um equipamento muito caro e que o motor gasta muito combustível, mas admite que, com recurso a material usado, a reparação possa ser efectuada por € 3.000,00. Instado, esclarece que a reparação era tecnicamente possível.
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O Autor prestou declarações de parte, referindo que, quando ocorreu o acidente, tinha o veículo havia três anos, tendo comprado a um particular. Refere que, quando soube que o veículo estava à venda, foi “amor à primeira vista”, pois gostou das linhas e era confortável,
Diz que zelava pelo veículo, pois nunca teve nada na vida, exercendo a profissão de treinador de guarda-redes de futsal. Deslocava-se nesse veículo para ir para o seu trabalho.
Atualmente tem um Citroen C4, mas esteve muito tempo sem carro, tendo adquirido aquele veículo um ano após o acidente, com recurso a empréstimo bancário, pagando uma prestação de € 111,00 por mês.
Mais esclarece que comprou o veículo sinistrado com dinheiro que recebeu de uma empresa para a qual trabalhava, em virtude da cessação do contrato de trabalho.
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Apreciando criticamente o conjunto da prova, cumpre dizer que o depoimento da testemunha BB, conjugado com as declarações de parte do Autor e com os documentos juntos a fls. 7v.º, 31 e 45v.º, permitiu a demonstração da matéria vertida nos pontos 21, 23 e 25 a 33 dos Factos Provados.
A testemunha acima referida descreveu o estado do veículo antes do acidente e os cuidados que o Autor tinha com o mesmo, baseando-se para tal no seu conhecimento directo e depondo em termos que são coerentes com o que resulta do documento junto a fls. 45v.º e que também são corroborados pelas declarações de parte do Autor.
Foi esta testemunha que elaborou o orçamento junto a fls. 7v.º, referindo ainda que é na sua oficina que o mesmo se encontra imobilizado, conforme consta dos pontos 32 e 33 dos Factos Provados, o que é coerente com o que consta do documento junto a fls. 31, do qual resulta a identificação da oficina onde o mesmo se encontrava à data da peritagem e, ainda, a menção de que o veículo não circula.
O depoimento da referida testemunha e, bem assim, o da testemunha DD, permitiram, por outro lado, a demonstração da matéria vertida no ponto 22, já que ambos referem que o veículo é tecnicamente reparável.
Por sua vez, o depoimento desta última testemunha e, ainda, da testemunha CC, conjugados com os documentos juntos a fls. 8, 31 e 32v.º, permitiram a demonstração da matéria vertida nos pontos 40 a 47, que ambas as testemunhas relataram com base no conhecimento que lhes advém do exercício das respectivas funções, de forma coerente entre si e com a referida prova documental.
Refira-se, quanto à matéria alegada nos artigos 28.º da Petição Inicial e 14.º da Contestação, que os documentos juntos a fls. 31 a 32, por um lado, e 46, por outro, apontam para valores díspares para veículos da mesma marca e modelo, assinalando-se, contudo, que o de fls. 46 se refere a um veículo de 1999, sem menção do número de quilómetros percorridos.
De todo modo, não é possível concluir, em face da prova produzida, pelo carácter exaustivo da base empírica utilizada para a atribuição do valor venal ao veículo, não constando, por outro lado, quer do documento de fls. 31, quer do anúncio de fls. 31 a 32 a descrição de todo um conjunto de características relevantes para a comparação entre os veículos e atribuição do respectivo valor de mercado – v.g., se se trata de veículos importados, se possuem livro de revisões na marca.
Ainda assim, o documento junto a fls. 31v.º a 32, sem permitir uma conclusão segura quanto ao valor venal do veículo, é suficiente para criar a dúvida quanto ao alegado no art.º 28.º da Petição Inicial, razão pela qual o aí alegado não se provou”.

Passemos a apreciar cada um dos pontos da matéria de facto impugnados.

a) dá a sentença como provado:

21- O Autor (…) pretende proceder à reparação do seu veículo automóvel.
Ouvidas as declarações prestadas pelo autor em sede de audiência de discussão e julgamento das mesmas resulta que comprou o veículo ..., cerca de três anos antes do acidente, com o dinheiro que obteve do fim de um contrato de trabalho, sendo o veículo de 1998 mas encontrando-se o mesmo impecável e sendo muito confortável.
Como é pessoa cuidadosa, zelava pelo veículo que para ele era motivo de orgulho.
Usava o veículo no seu dia a dia, não só para se deslocar para o trabalho habitual mas ainda para os clubes de futsal onde era treinador de guarda redes e para os jogos aos fins de semana.
Referiu o mesmo que quando sofreu o acidente dos autos pediu ao BB que o levasse para a garagem deste e fizesse um orçamento para entregar na Companhia de Seguros.
Referiu que porque não concordava com o valor que a companhia lhe adiantou e necessitava de um veículo para se deslocar, cerca de um ano depois, acabou por comprar um Citroen C4, veículo que ainda tem atualmente.
Do depoimento da testemunha BB, chapeiro de profissão e amigo e prestador de serviços da sua área profissional ao autor, resultou que este lhe levava o carro da marca ... à sua oficina, para ele lhe fazer reparações – chapa e pintura. Como referiu o mesmo ele chegava lá e dizia-lhe “quero que me faça isto, quero que me faça aquilo.
A testemunha referiu que o ..., apesar de ser de 1998, estava impecável, cuidado e em boas condições, tanto no exterior como no interior.
Referiu ainda que nas conversas que tinha com o autor aquele às vezes queixava-se de avariazinhas, que eram depois arranjadas e isto porque o seu cliente e amigo era pessoa cuidadosa com aquele veículo e com o que tem agora.
A testemunha referiu ainda que o autor usava diariamente o veículo para ir para o trabalho, para ir às compras.
Referiu a testemunha que aquando do acidente, o veículo foi levado para a sua oficina para ser reparado, encontrando-se ainda lá para esse efeito.
A pedido do autor elaborou o orçamento junto aos autos sob o documento nº ... da PI.
A testemunha frisou que quando fez o orçamento, a pedido do autor, era para reparar o veículo e este era reparável, à data, pelo valor orçamentado e desde que colocados os materiais enunciados naquele documento.
Referiu a testemunha que atualmente o autor leva lá um veículo Citroen C4 que terá adquirido porque do mesmo necessitava para se deslocar.
Diga-se que, ouvidos os depoimentos atrás referidos, não colhem os argumentos vertidos nas alegações pela recorrente.
Efetivamente, do facto de ter comprado um novo veículo automóvel não pode inferir-se, como pretende a recorrente, que o mesmo desistiu ou não pretende a reparação do veículo acidentado.
Conjugadas as declarações do autor e o depoimento da testemunha atrás referida resulta que era e é vontade daquele proceder à reparação do mesmo, tendo comprado um veículo novo pois passou, cerca de um ano, sem resolução pretendida pelo autor (que não concordava com o valor que lhe era apresentado pela Companhia) e ele necessitava de um veículo para as suas deslocações para o trabalho, para os clubes onde prestava a sua atividade de treinador de guarda redes, para os jogos e para o seu dia a dia.
Acresce que, ao contrário do alegado pela recorrente, da prova produzida, designadamente, da atrás referida não se consegue chegar à conclusão de que o autor pretendia, com a indemnização a obter da Companhia de Seguros, pagar o carro novo (este terá sido de valor superior aos € 5.152,80, orçamentados).
Assim sendo, improcede, nesta parte, a impugnação da matéria de facto.

b) dá a sentença como provado que:

26- O Autor procedia, com regularidade, às necessárias revisões e reparações.
Ouvidas as declarações prestadas pelo autor em sede de audiência de discussão e julgamento das mesmas resulta que comprou o veículo ..., cerca de três anos antes do acidente, com o dinheiro que obteve do fim de um contrato de trabalho, sendo o veículo de 1998 mas encontrando-se o mesmo impecável e sendo muito confortável.
Como é pessoa cuidadosa, zelava pelo veículo que para ele era motivo de orgulho.
Do depoimento da testemunha BB, chapeiro de profissão e amigo e prestador de serviços da sua área profissional ao autor, resultou que este lhe levava o carro da marca ... à sua oficina, para ele lhe fazer reparações – chapa e pintura. Como referiu o mesmo ele chegava lá e dizia-lhe “quero que me faça isto, quero que me faça aquilo.
A testemunha referiu que o ..., apesar de ser de 1998, estava impecável, cuidado e em boas condições, tanto no exterior como no interior.
Referiu ainda que nas conversas que tinha com o autor aquele às vezes queixava-se de avariazinhas, que eram depois arranjadas e isto porque o seu cliente e amigo era pessoa cuidadosa com aquele veículo e com o que tem agora.
Ou seja, destes depoimentos é possível aferir que, apesar do veículo de marca ... ter 20 anos à data do acidente, o mesmo encontrava-se em bom estado, cuidando o autor do mesmo e levando-o, à testemunha para pequenas reparações de chapa e tinta e cuidando de pequenos problemas de mecânica que iam surgindo.
Assim sendo, improcede, nesta parte, a impugnação da matéria de facto.

c) dá a sentença como provado que:
28- A mecânica do veículo funcionava na perfeição.
Ouvidas as declarações prestadas pelo autor em sede de audiência de discussão e julgamento das mesmas resulta que comprou o veículo ..., cerca de três anos antes do acidente, com o dinheiro que obteve do fim de um contrato de trabalho, sendo o veículo de 1998 mas encontrando-se o mesmo impecável e sendo muito confortável.
Como é pessoa cuidadosa, zelava pelo veículo que para ele era motivo de orgulho.
Do depoimento da testemunha BB, chapeiro de profissão e amigo e prestador de serviços da sua área profissional ao autor, resultou que este lhe levava o carro da marca ... à sua oficina, para ele lhe fazer reparações – chapa e pintura. Como referiu o mesmo ele chegava lá e dizia-lhe “quero que me faça isto, quero que me faça aquilo.
A testemunha referiu que o ..., apesar de ser de 1998, estava impecável, cuidado e em boas condições, tanto no exterior como no interior.
Referiu ainda que nas conversas que tinha com o autor aquele às vezes queixava-se de avariazinhas, que eram depois arranjadas e isto porque o seu cliente e amigo era pessoa cuidadosa com aquele veículo e com o que tem agora.
Ou seja, das declarações do autor e do depoimento da referida testemunha nada é possível aferir quanto ao estado da mecânica do veículo do autor, e isto porque, este apenas referiu estar o veículo em estado impecável, zelando pelo mesmo e a testemunha apenas se pronunciou quanto a reparações de chapa e pintura e já não à mecânica, que não era a sua área.
Referir o mesmo que o autor, às vezes se queixava de problemas que iam surgindo, acresce no sentido contrário ao dado como provado.
Assim sendo, procede, nesta parte, a impugnação da matéria de facto, dando-se como não provado o facto vertido sob o nº 28 dos factos provados.

d) dá a sentença como provado que:
33- Encontrando-se o Autor impossibilitado do seu uso quotidiano.
Repete-se aqui o que a propósito do facto vertido sob o nº 21 dos factos provados se referiu.
Conjugadas as declarações do autor e o depoimento da testemunha atrás referida resulta que era e é vontade daquele proceder à reparação do mesmo, tendo comprado um veículo novo pois passou, cerca de um ano, sem resolução pretendida pelo autor (que não concordava com o valor que lhe era apresentado pela Companhia) e ele necessitava de um veículo para as suas deslocações para o trabalho, para os clubes onde prestava a sua atividade de treinador de guarda redes, para os jogos e para o seu dia a dia.
O facto de ter adquirido um novo veículo não afasta o facto de o mesmo se encontrar impossibilitado de usar o veículo acidentado no seu quotidiano.
Assim sendo, improcede, nesta parte, a impugnação da matéria de facto.

Nestes termos, no que à impugnação da matéria de facto diz respeito, julga-se a mesma parcialmente procedente e, consequentemente, dá-se como não provado o facto vertido sob o nº 26 dos factos provados.
No demais mantém-se a matéria de facto provada em sede de sentença.
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V. DA REAPRECIAÇÃO DO DIREITO:
 
Aqui chegados importa ao recurso aferir de duas questões levantadas:
Havendo perda total haverá lugar a indemnização pelo valor da reparação?
A aquisição de um veículo após o sinistro, importa a perda do direito a indemnização pela paralisação do veículo sinistrado?

No caso sub judice e uma vez que não se pôs em causa o sinistro ocorrido nem a responsabilidade emergente de sinistros transferida para a ré/recorrente, importa aos autos, aferir do limite/montante de tal responsabilidade.
Ora, tal sentença condenou a ré/recorrente a pagar ao autor/recorrido, a quantia de € 5.152,80, acrescida de juros de mora vencidos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, sobre o capital, à taxa legal de 4%, entendendo estar em causa um dano emergente, cuja quantificação, em princípio, deve corresponder ao montante efetivamente despendido ou a despender nessa reparação, sendo certo que a ré/recorrente não demonstrou a sua excessiva onerosidade e nos autos não resultou provado que, com o valor proposto por aquela, o autor/recorrido conseguisse adquirir um veículo em tudo idêntico ao seu.

Vem a ré/recorrente opor-se a tal decisão porquanto, face aos factos provados a situação do ... do autor após o acidente é de perda total, de acordo com o estabelecido na lei, tanto mais que o autor não pede a condenação da ré na reparação “in natura”, pelo que, atento o valor da estimativa de reparação e ainda o valor do veículo do autor antes do acidente, o valor do salvado e a idade do referido veículo, a indemnização devida pela ré ao autor era de € 1,600,00.
Assim, ao oferecer ao autor a quantia de € 1.850,00, em 21 de novembro de 2018, a ré cumpriu a sua obrigação, pelo que só o autor deu causa à acção e, portanto, tem de ser condenado nas custas do processo.
Ao condenar a ré no pagamento ao autor de quantia superior à que lhe foi oferecida e ainda nas custas do processo, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artºs 41º do DL nº 291/2007, 562º e 566º do Código Civil e 535º do Código de Processo Civil.

Ora, será que, como pretende a ré/recorrente nos encontramos perante uma situação de perda total, mostrando-se excessivamente onerosa a reparação do veículo sinistrado?

Estabelece o nº 1 do artº 41º, n.º 1 do Decreto Lei nº 291/2007 de 21 de agosto (Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), sob a epígrafe “perda total” que:

“1 - Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total;
b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou t, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança;
c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100% ou 120% do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
2 -O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.
3 - O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.
Ora, a recorrente concluiu que, ao ser condenada no pagamento ao autor de quantia superior à que lhe foi oferecida e ainda nas custas do processo, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artºs 41º do DL nº 291/2007, 562º e 566º do Código Civil e 535º do Código de Processo Civil.
Diga-se, antes de mais, que quanto à aplicabilidade do artº 41º do DL nº 291/2007, na fase judicial, a jurisprudência tem vindo, de forma unânime, a responder negativamente, sendo que a orientação jurisprudencial consolidada nesta matéria é no sentido de que o mencionado diploma, fora do seu âmbito de aplicação, não substitui o princípio indemnizatório da reconstituição da situação anterior ao dano, do statuo quo ante, decorrente dos artºs 562º e 566º do Código Civil (vejam-se a título de exemplos, os Acordãos da Relação de Guimarães de 1 de julho de 2021, relatado pela Srª Desemb. Rosália Cunha; Relação do Porto de 17 de fevereiro de 2014 e 8 de fevereiro de 2018, relatados, respetivamente, pelos Srs Desemb. Rui Moreira e Madeira Pinto e Relação de Lisboa de 9 de junho de 2022, relatado pela Srª Desembar. Maria das Dores Correia).
Como refere o Acordão da Relação de Guimarães de 26 de outubro de 2017, relatado pela Srª Desembarg. Anabela Andrade Miranda Tenreiro “Decorre do artigo 31.º do referido diploma legal, que o legislador teve em vista facilitar e agilizar a resolução extrajudicial dos litígios consequentes aos acidentes de viação, estabelecendo regras e procedimentos para a seguradora a apresentar uma proposta que contemple um valor razoável, obtido através de critérios objectivos.
Por conseguinte, na linha da orientação jurisprudencial sobre esta questão e de acordo com os elementos interpretativos nomeadamente literal e teleológico do diploma legal em causa, conclui-se pela sua inaplicabilidade na fase litigiosa.
Cabe ao lesante, responsável pelo embate, indemnizar o lesado dos danos decorrentes do mesmo, por forma a reconstituir a situação que existiria se o evento não se tivesse verificado-- v. artigos 483.º e 562.º do C.Civil”.
Assim, de parte, se coloca, a aplicação do preceito referido e, como tal, entende-se que a sentença não é violadora do mesmo.
Ora, de acordo com o disposto no artº 562º do Código Civil, estando a recorrente, por efeito, do contrato de seguro celebrado com o Município ..., obrigada a reparar os danos decorrentes do sinistro em causa, deve reconstituir a situação que existiria, se aquele não se tivesse verificado, ou seja, deve colocar o lesado na situação patrimonial que teria caso o facto que causou o dano não tivesse ocorrido.
Estabelecem os nºs 1 e 2 do artº 564º do Código Civil que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado (dano emergente), como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante), sendo que, na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros desde que sejam previsíveis mas se não forem determináveis, essa fixação será remetida para decisão ulterior.
Por seu lado, conforme resulta do nº 1 do artº 566º do Código Civil, a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Destes preceitos resulta ter dado o legislador primazia à reconstituição natural, a qual no caso sub judice, se traduziria na reparação do veículo acidentado ou na entrega de outro idêntico.
Vem a recorrente concluir que face aos factos provados a situação do ... do autor após o acidente é de perda total, de acordo com o estabelecido na lei, tanto mais que o autor não pede a condenação da ré na reparação “in natura”, pelo que, atento o valor da estimativa de reparação e ainda o valor do veículo do autor antes do acidente, o valor do salvado e a idade do referido veículo, a indemnização devida pela ré ao autor era de 1,600,00 €.
Antes de mais se diga que, sendo o bem danificado um veículo automóvel cabe ao lesado a opção entre mandar reparar o veículo ou optar por uma indemnização em dinheiro.
No caso sub judice, optou o autor/recorrido pela indemnização em dinheiro, cabendo-lhe pois demonstrar o valor da reparação, o que fez, uma vez que resulta provado que a reparação do veículo em causa, tinha o valor de € 5.152,80.

A ré/recorrente sustenta que o valor da indemnização é de € 1.600,00, calculada pelo valor da estimativa de reparação e ainda o valor do veículo do autor antes do acidente, o valor do salvado e a idade do referido veículo.
Ora, sendo o bem danificado um veículo automóvel, não sendo o autor vendedor de automóveis e o veículo não ser comercial, aquele não tem para o seu dono apenas um valor comercial, ou de troca, pretendendo este ser indemnizado relativamente ao valor dos danos e não em relação ao valor de mercado do veículo sinistrado antes do embate.
Conforme refere o atrás citado Acordão da Relação do Porto de 17 de fevereiro de 2014, “A equiparação do valor do dano e da correspondente indemnização, ao valor de mercado do veículo, pressupõe que para o lesado seja indiferente ter o veículo ou o seu valor.
Este pressuposto não se verifica.
O valor a ter em conta não é o valor da venda, o valor venal do veículo, mas o valor que o veículo representa dentro do património do lesado, para se deslocar, passear com a família, normalmente um conjunto de utilidades que correspondem a necessidades que a utilização do veículo satisfaz. Este conceito de valor integra a marca, o modelo, e demais aptidões que satisfazem as necessidades do lesado. O valor venal do veículo é diferente deste, normalmente apenas tendo em consideração a marca, o modelo, o ano da matrícula e tabelas de desvalorização. Porém os donos dos veículos não trocam de carro todos os anos, o que torna este valor venal muito inferior ao valor real do veículo como bem integrado no património do lesado. Portanto, a reparação, com vista à reconstituição natural, considerando a teoria da diferença, tem sempre em vista a reconstituição da situação anterior, seja através do valor da reparação do veículo sinistrado, seja através de valor da substituição do veículo sinistrado por outro que satisfaça as mesmas necessidades do sinistrado, no caso de perda total. Este valor é de considerar em relação ao valor do dano, representado pelo custo da reparação, e não por referência ao valor venal do veículo, sem qualquer redução, designadamente do valor dos salvados. Neste sentido os Ac. do TRC de 17 de Junho de 2008, Col. Jur., 2008, 3º-33 e Ac. TRE de 18-9-2008, Col. Jur., 2008, 4º-249”.
Demonstrado ficou nos autos o veículo sinistrado é de marca ..., modelo ..., do ano de 1998, encontrando-se, à data do acidente, estimado e conservado, a pintura e os interiores estavam tratados e conservados, procedendo o autor, com regularidade, às necessárias revisões e reparações.
O Autor usava tal veículo automóvel todos os dias nas suas deslocações, para se deslocar para o trabalho, médicos, bancos, mercados, lojas comerciais e usufruindo ainda do mesmo ao fim de semana, em lazer, com a família.
Apurado ficou ainda que a ré, somente disponibilizou ao autor a quantia de € 1.850,00, acrescido do valor do salvado, de € 1.500,00, alegando que ao veículo acidentado havia sido atribuído o valor de € 2.000,00, sendo que o autor não concordou, nem concorda, com tal proposta da ré pois que pretende proceder à reparação do seu veículo automóvel, reparação que é tecnicamente possível, pelo valor de € 5.152,80.
Ora, face ao uso do veículo em causa pelo autor, resulta destes factos que o valor deste para o autor, necessariamente se mostra superior ao seu valor venal, a saber, o valor atribuído de € 2.000,00.
Acresce que, a ré não conseguiu demonstrar que o autor conseguiria adquirir, pelo valor venal que atribuiu ao veículo, um veículo nas iguais condições em que o ... se encontrava antes do acidente.
Assim tendo o autor optado pela indemnização e sendo necessário para proceder à mesma e colocar o veículo no estado em que se encontrava, o valor atrás citado, é naquele, como decidiu a sentença em crise, que a ré terá de ser condenada, julgando-se, nesta parte improcedente o recurso.

Passemos agora a apreciar a questão relativa à indemnização por privação de uso.
Entendeu o tribunal condenar a ré, “F..., S.A.”, a pagar ao autor, AA, a quantia diária de € 10,00, desde a data do acidente e até 21 de maio de 2020, bem como desde a data da propositura da acção até ao efectivo e integral pagamento da quantia referida na alínea anterior e isto porque considerou que, em termos de normalidade e razoabilidade, aceitável, no máximo, um prazo que, incluindo o tempo decorrido até à decisão de não proceder á reparação, não excedesse metade do prazo disponível para o exercício do direito de instauração do pleito destinado a pôr fim à situação litigiosa, prazo esse ultrapassado em outro tanto.
Por seu lado, entende a recorrente que uma vez que o autor comprou um outro veículo para substituição do sinistrado e porque se verificou uma perda total, não existe fundamento para a condenação no pagamento da quantia diária de € 10,00 ao autor por paralisação do seu veículo.
E, mesmo que assim se não entenda, sempre a indemnização por paralisação cessa com o pagamento da indemnização por perda total.
Entende ainda que, tendo o autor comprado um outro veículo para substituição do veículo sinistrado, pelo que a indemnização por paralisação constitui manifesto abuso de direito.
Vejamos.
Atento o valor proposto pela ré/recorrente para indemnização dos danos causados no veículo em causa não reparar na integra o dano sofrido, não ter havido pagamento do valor devido/necessário à reparação e não se ter procedido a esta, entendemos ter o autor direito à indemnização pela paralisação do veículo.
 Diga-se ainda, que ao contrário do pretendido pela ré/recorrente, o facto do autor ter adquirido um outro veículo não lhe retira tal direito.
Efetivamente, entendemos que a privação do uso, constitui, por si só, um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa durante o período da privação, ou seja, basta a própria privação para haver indemnização, pois o facto de não ter aquele veículo à disposição já é por si um dano (neste sentido Acordãos da Relação de Guimarães, 11 de julho de 2017, relatado pela Srª Desembar Elisabete Valente, 15 de junho de 2021, relatado pelo Sr Desembar Jorge Teixeira, 15 de junho de 2021 e 27 de abril de 2023, ambos relatados pela Srª Desembar Lígia Venade e de 18 de maio de 2023, relatado pelo Sr Desembar José Cravo, todos em www.dgsi.pt).
Como refere o último dos acórdãos citados “(…) nos nossos dias e na nossa realidade social, o veículo é um instrumento de uso normal para todas as actividades, sejam elas profissionais, de lazer, de organização do lar e da família, de tal forma que a simples privação do seu uso causa uma alteração negativa, que, só por si, é passível de afectar moralmente o lesado, justificando, sem dúvida, uma compensação monetária.
(…) a privação do uso de um bem é susceptível de constituir, por si, um dano patrimonial, visto que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que, de acordo com o preceituado no artigo 1305º do Código Civil, é lícito ao proprietário gozar, i.e., o uso e fruição da coisa. A supressão dessa faculdade, impedindo o proprietário de extrair do bem, todas as suas utilidades, constitui, juridicamente, um dano que tem uma expressão pecuniária e que, como tal, deverá ser passível de reparação. A privação do uso de um veículo automóvel, desde que resulte provado que era efectivamente utilizado, constitui só por si, um dano patrimonial indemnizável, devendo recorrer-se à equidade, nos termos do disposto no art. 566º, nº 3 do C.Civil para fixar o valor da respectiva indemnização.
O dano ressarcível é precisamente a indisponibilidade do bem, qualquer que fosse a actividade (lucrativa, benemérita ou de simples lazer) a que o veículo estava afecto e o mesmo não se anula pela utilização de um outro veículo, o qual apenas proporciona a utilidade inerente à deslocação que, nele, é correspondentemente efectuada”.
Ora, uma vez que o sinistro em causa causou no veículo do autor/recorrido, danos que impossibilitaram o mesmo de do mesmo fazer o seu uso habitual, é este um dano ressarcível, dano esse que não deixa de se verificar pelo facto do autor/recorrido, ter feito uso de um outro veículo, a saber, o veículo que se viu na necessidade de adquirir, e também não o afasta o facto de o mesmo sofrer perda total.
Assim sendo, afastado está também o invocado abuso de direito.
E, será que a indemnização por paralisação cessa com o pagamento da indemnização por perda total?
Ora, quanto a esta questão, aderimos à profusa e bem fundamentada sentença recorrida que, decidiu que o período de privação do uso a considerar será, apenas, o que decorre desde o acidente até à comunicação datada de 21 de novembro de 2018 (data em que a ré enviou ao autor, um recibo de € 1.850,00, para que ele o cobrasse junto de qualquer das suas agências), bem como o decorrente desde a propositura da acção até ao efectivo e integral pagamento do custo da reparação do veículo do Autor.
Efetivamente, não concordando com a indemnização oferecida e não a tendo recebido, o dano da privação do uso do veículo mantém-se, tendo-se reduzido o valor da mesma para limites razoáveis por referência ao desnecessário e inadequado protelamento da instauração da acção, por parte do autor.
Assim, improcede, também aqui o recurso.
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VI. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.
Guimarães, 10 de julho de 2023

Relatora: Margarida Gomes
Adjuntas: Maria da Conceição Bucho
Raquel Rego.