Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | PAULO CORREIA SERAFIM | ||
Descritores: | CRIME DE INJÚRIA AGRAVADA CRIME SEMI-PÚBLICO AUSÊNCIA DE QUEIXA NULIDADE INSANÁVEL | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 09/19/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I - Os crimes de injúria agravada também imputados ao arguido no libelo acusatório assumem natureza semi-pública, significando que o procedimento criminal por tais crimes depende de queixa ou participação do ofendido, a qual, ocorrendo tempestivamente e nas condições legais, legitima a eventual dedução de acusação pelo Ministério Público – cfr. disposições conjugadas dos arts. 181º, 184º, por referência ao art. 132º, nº2, al. l), 188º, nº1, al. a), e 113º, nº1, todos do CP, e art. 49º do CPP. II – O exercício do direito de queixa (ou participação) não impõe particulares formalidades e a utilização de fórmula especial, formal, sacramental, mas exige uma manifestação inequívoca, indubitável da vontade do queixoso ou participante no sentido de que pretende procedimento criminal contra o denunciado (ou contra desconhecidos, no caso de serem incertos os autores dos factos denunciados). III – No caso vertente, o procedimento criminal iniciou-se com auto de denúncia lavrado em 23.06.2022 por Guarda da GNR, ofendido nos autos, e em que surge como testemunha outra militar da GNR. Nesse auto descrevem-se os factos que conduziram à detenção em flagrante delito do aqui arguido, consubstanciados, na parte que ora releva, de índole criminal, na eventual prática de um crime de ameaça agravada, porque dirigida ao agente de autoridade AA, e de dois crimes de injúrias agravada, tendo como sujeitos passivos aquele agente e a sua colega GNR. O auto assim lavrado e dirigido ao Ministério Público termina com os dizeres: «É tudo quanto de momento me cumpre informar, deixando todo o conteúdo para melhor apreciação e parecer de V. Exa.» IV - O sobredito auto de denúncia, nos termos em que foi elaborado e submetido ao órgão titular do inquérito, não consubstancia uma verdadeira queixa para efeitos de instauração de procedimento criminal contra o arguido pela factualidade ali descrita suscetível de, em abstracto, preencher a tipicidade do crime de injúria agravada, relativamente a cada um dos potenciais ofendidos, pois que do seu teor não exsuda uma clara, óbvia, inequívoca demonstração de vontade dos seus subscritores para o efeito. V - A comunicação daqueles factos ao Ministério Público, no contexto em que foi efetuada, também não revela, só por si, tal demonstração de vontade, porquanto, atenta a qualidade de órgãos de polícia criminal dos militares da GNR que o subscrevem enquanto autor e testemunha, estamos perante uma denúncia obrigatória, nos termos dos arts. 242º e 243º, ambos do CPP, sendo certo que entre os factos narrados suscetíveis de constituírem crimes contam-se um crime de natureza pública (ameaça agravada) e dois de natureza semi-pública (injúrias agravadas), também estes últimos de denúncia obrigatória para os membros da força militar em causa (cfr. art. 242º, nº3, do CPP). VI - À data da dedução da acusação pública, que, reitera-se, inclui a imputação ao arguido de crimes de natureza semi-pública, os respetivos ofendidos não haviam deduzido nos autos a necessária queixa. VII - A mera dedução de pedidos de indemnização civil contra o arguido por banda dos “lesados” não significa uma inequívoca (nem sequer implícita) manifestação de vontade de que contra o mesmo seja deduzido procedimento criminal por factos suscetíveis de traduzirem a prática sobre aqueles de crimes de injúria agravada, quer porque a apresentação de tais pedidos nos autos foi realizada após a dedução da acusação pública e sem qualquer menção expressa a tal particular desígnio procedimental, quer porque tais atos, atenta a extemporaneidade da sua apresentação (judicialmente declarada nos autos), são absolutamente ineficazes, processualmente inexistentes. VIII – Igualmente são ineficazes as declarações proferidas pelos ofendidos e juntas aos autos já em fase de julgamento, de desejarem procedimento criminal contra o arguido pelos factos denunciados e constantes da acusação pública suscetíveis de consubstanciarem crimes de injúrias agravadas, realizadas na sequência do despacho judicial recorrido que ordenou a sua notificação para, no prazo de 5 dias, declararem nos autos, por escrito, se desejavam, ou não, tal procedimento. IX – Não obstante essas declarações dos ofendidos terem sido apresentadas dentro do prazo previsto no art. 115º, nº1, do Código Penal, tal circunstância revela-se impotente para suprir a falta da condição de procedibilidade consubstanciada na ausência de queixa dos ofendidos que se verificava no momento da prolação pelo MP da acusação pública, na parte em que imputava ao arguido o cometimento de crimes de natureza semi-pública, o que gera impreterivelmente a sua ilegitimidade para o efeito. Primeiramente, as preditas declarações não podem ser entendidas como mera ratificação de eventual queixa meramente ineficaz anteriormente apresentada, pela simples razão de que inexistiu até esse momento dedução de queixa. Ademais, a ilegitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação contra o arguido por factos integradores de crimes de natureza semi-pública sem que tivesse sido formulada por cada um dos ofendidos a respetiva queixa consubstancia uma nulidade insanável cominada no art. 119º, alínea b), do CPP. X - Cumpre, destarte, nos termos do art. 122º do CPP, declarar a nulidade da acusação pública deduzida nos autos pelo Ministério Público na parte em que se reporta à imputada prática pelo arguido de dois crimes de injúria agravada, bem assim de todo o subsequente processado, incluindo a sentença recorrida na parte em que ajuizou sobre o cometimento pelo arguido daqueles ilícitos criminais e, neste conspecto, determinar a extinção do procedimento criminal | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães: I – RELATÓRIO: I.1 No âmbito do Processo Abreviado nº 260/22...., do Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Local Criminal ..., foi proferido despacho pela Meritíssima Juíza em 03.11.2022, com o seguinte teor (referência ...72): «Considerando que em sede de alegações orais a defesa do arguido veio dizer que não se encontra junta aos autos a vontade expressa documentada dos ofendidos, no sentido de desejarem procedimento criminal contra o arguido, considerando, ainda, que dos autos consta o auto de notícia lavrado pelos ofendidos, militares da GNR, e pedidos de indemnização civil que, embora não tenham expressamente a frase “desejo procedimento criminal contra o arguido”, da conjugação de tais documentos se retira que é esta a vontade dos mesmos, e por último, que os presentes autos se tratam de processo de natureza abreviada e que os ofendidos ainda se encontram em prazo para exercer o direito de queixa, determino que se notifiquem os mesmos para, no prazo de cinco dias, virem juntar aos autos documento no qual expressamente especifiquem se desejam, ou não, procedimento criminal contra o arguido.» Ulteriormente, por sentença proferida e depositada no dia 17.11.2022 (referências ...70 e ...93, respetivamente), foi decidido: «Nos termos e pelos fundamentos expendidos, o Tribunal julga a acusação parcialmente procedente e, em consequência, decide: a) Absolver o arguido BB da prática do crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, 155º, nº 1, alínea c), por referência ao art. 132º, nº 2, alínea l), todos do CP, de que vinha acusado; b) Condenar o arguido BB pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181º, nº 1, 184 e nº 2, por referência do art. 132º, nº 2, alínea l), do Código Penal, na pena de oitenta dias de multa, cada um; c) Em cúmulo jurídico condenar o arguido na pena única de 110 (cento e dez) dias de multa à razão diária de € 6,00, perfazendo um total de € 660,00 (seiscentos e sessenta euros); d) Condenar, ainda, o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s (cfr. artigo 8.º, n.º 5 e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais e artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal).» I.2 Inconformado com o despacho judicial e decisão condenatória sobreditos proferidos em primeira instância, deles veio o arguido BB interpor o presente recurso, que, após dedução da motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...24): 1. O arguido vinha acusado, pelo Ministério Público, da prática de um crime de ameaça agravado, previsto e punido nas disposições conjugadas dos artigos 132.º. n.º 2, alínea l); 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal (doravante designado por CP), e ainda, de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelo artigo 181.º, n.º 1, e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do CP. 2. O presente recurso tem por objeto o Despacho proferido pela M.ª Juiz de Direito, datado de 03/11/2022, no qual concedeu aos ofendidos, o prazo de cinco dias, para procederem à junção aos autos de documento onde manifestem se desejam, ou não, procedimento criminal contra o arguido e a sentença proferida pelo Tribunal a quo, a qual julga a acusação parcialmente procedente e, em consequência, condenou o arguido pela prática, em autoria material e em concurso efetivo, de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do CP, na pena de oitenta (80) dias de multa cada um; e, em cúmulo jurídico condenou o arguido na pena única de cento e dez (110) dias de multa à razão diária de seis (6) euros, perfazendo um total de seiscentos e sessenta (660) euros; 3. Não se podendo conformar nem compadecer com tal Despacho e tal Sentença, é sobre estes que recai o presente Recurso, pois, com o devido respeito que é muito, entende o Arguido que, compulsados os autos, e face à análise de todos os factos constantes do mesmo, o Digníssimo Tribunal a quo não interpretou e aplicou acertadamente o direito. 4. No dia 03/11/2022, a M.ª Juiz de Direito do Tribunal a quo proferiu Despacho, com a referência na plataforma Citius n.º ...72, no qual, em virtude de adiamento da audiência designada para esse mesmo dia, indicou nova data para realização da audiência de julgamento, designando o dia 17-11-2022, pelas 9.30 horas, e, bem assim com o seguinte teor: “Considerando que, em sede de alegações orais a defesa do arguido veio dizer que não se encontra junta aos autos a vontade expressa documentada dos ofendidos, no sentido de desejarem procedimento criminal contra o arguido, considerando, ainda, que dos autos consta o auto de notícia lavrado pelos ofendidos, militares da GNR, e pedidos de indemnização civil que, embora não tenham expressamente a frase “desejo procedimento criminal contra o arguido”, da conjugação de tais documentos se retira que é esta a vontade dos mesmos, e por último, que os presentes autos se tratam de processo de natureza abreviada e que os ofendidos ainda se encontram em prazo para exercer o direito de queixa, determino que se notifiquem os mesmos para, no prazo de cinco dias, virem juntar aos autos documento no qual expressamente especifiquem se desejam, ou não, procedimento criminal contra o arguido.” 5. desta forma, a M.ª Juiz veio dar aos ofendidos uma possibilidade de estes manifestarem se desejavam, ou não, procedimento criminal contra o, aqui, recorrente, mesmo após esse direito, em momento processual apropriado, não ter sido exercido. 6. Tal despacho é ilegal, porque está em causa uma violação do Princípio da Oficialidade e do Princípio do Acusatório. 7. O Princípio da Oficialidade implica que, o impulso para investigação da prática das infrações penais e a decisão de deduzir, ou não, acusação, cabe, em regra, ao Ministério Público cfr. artigos 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 48.º do Código do Processo Penal. 8. É competência do Ministério Público dar início à ação penal logo que tenha conhecimento da prática de um crime, ou seja, dar início às investigações com a abertura de Inquérito e findo o inquérito, cabe também ao Ministério Público acusar, ou não, o infrator, consoante tenha recolhido, ou não, indícios suficientes da prática do crime e de quem foi o seu agente, submetendo assim a causa a julgamento. 9. Nos crimes públicos, o Princípio da Oficialidade opera plenamente, pois o Ministério Público promove oficiosamente o processo penal e, findo o inquérito, acusa ou não o infrator, sendo, assim a iniciativa da abertura do inquérito e a respetiva acusação competência exclusiva do Ministério Público. 10. Existem limites legais no que trata aos crimes semipúblicos e particulares, o Ministério Público só pode promover o processo penal se houver o respetivo exercício do direito de queixa pelo seu titular, conforme tipificado no artigo 49.º do Código do Processo Penal. 11. A M.ª Juiz não relevou o Princípio da Oficialidade aquando da tomada de decisão sobre proferir um Despacho para notificação dos ofendidos com vista a que os mesmos pudessem manifestar expressamente se desejavam procedimento criminal, ou não, contra o, aqui, Recorrente, sendo que, até então, os Ofendidos, quer voluntariamente quer a pedido do Ministério Público, não o haviam feito. 12. Essa decisão, não prevista na lei, vai contra os Princípios Estruturantes do Processo Penal, “tenta” retificar o inquérito e, consequentemente, a respetiva Acusação. 13. Esta “oportunidade” concedida aos ofendidos encontra-se fora dos poderes do Juiz de Julgamento, e, manifestamente fora do momento processual adequado. 14. Tratando-se os crimes de injúria agravada, de crimes de natureza semipública, o Ministério Público não tinha legitimidade para acusar o arguido sem que tivesse existido Queixa prévia por parte dos ofendidos, como, aliás, melhor explicaremos infra, quando pugnamos pela falta de legitimidade do Ministério Público para ter deduzido acusação quanto aos crimes pelos quais vem o Arguido condenado. 15. A Mmª Juiz de Julgamento não podia vir, através do referido Despacho, dar oportunidade aos ofendidos de deduzir essa mesma queixa, ou, diga-se, completar o Auto de Notícia, manifestando se desejam procedimento criminal, ou não, contra o aqui, Recorrente. 16. Aquando do encerramento do Inquérito não existia qualquer Queixa por parte dos Ofendidos junta aos presentes autos, mas apenas e só o mencionado Auto de Notícia que deu origem à abertura do respetivo Inquérito, o qual, analisado verifica-se que, que por si só, não cumpre os requisitos de Queixa, para que o Ministério Público pudesse promover o inquérito e, proferir a respetiva Acusação, quanto aos factos que, hipoteticamente, consubstanciam os crimes de injúria agravada pelos quais o Arguido vem condenado, uma vez que se tratam de crimes de natureza semipública. 17. O Princípio do Acusatório está consagrado nos artigos 32.º, n.º 5 da CRP, bem como no artigo 263.º do Código do Processo Penal, e do qual decorre desse princípio que a entidade que investiga e acusa não pode ser a mesma que julga, tal como a entidade que julga não pode ser a mesma que controla o inquérito e a Acusação. 18. Cada uma das fases processuais penais deve ser presidida por entidades diferentes, existindo claramente uma separação de poderes entre esses diferentes órgãos. 19. A acusação é condição e limite do julgamento, delimitando o objeto do processo, e cabendo ao Tribunal julgar os factos, e nunca conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido, sob pena de violação do Princípio do Acusatório e do extravasamento das suas funções. 20. Não cabe ao Mmº Juiz de Julgamento corrigir/retificar e/ou ordenar ratificar os atos praticados no mencionado Inquérito, e, muito menos, dessa forma, sanar vícios intrínsecos quer do Inquérito quer da Acusação Pública, quando, não são, pelo menos nesta fase, passíveis de sanação. 21. O comportamento levado a cabo pela M. ª Juiz, numa tentativa de “sanar” o vício de que padece quer a Promoção quer a Acusação quanto aos crimes de natureza semipública, extravasa, manifestamente, os poderes que a lei lhe atribui. 22. Faltando um pressuposto processual, que é a Queixa, os presentes autos, quanto aos crimes de injúria agravada diz respeito, estavam dotados ao insucesso. 23. A queixa é o ato pelo qual a pessoa com legitimidade para levar ao conhecimento das autoridades competentes a notícia dos factos ilícitos práticos, e, também a vontade de que seja instaurado o respetivo processo para averiguação da responsabilidade do agente. 24. Nem no Auto de Notícia nem em todo o inquérito até à acusação consta devidamente expressa, de forma inequívoca, a vontade dos ofendidos em desejar procedimento criminal contra o Arguido, pelo menos, quanto aos crimes de injúria agravada. 25. A Acusação delimita o objeto do processo penal que segue para julgamento, e, no caso em concreto, verifica-se a falta do exercício do direito de queixa, necessário para a promoção do Ministério Público e para a respetiva dedução de acusação. 26. Não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção, quer da queixa, quer do inquérito, quer da Acusação, formal ou substancialmente deficiente. 27. Essa decisão, a ser admitida, constitui uma ingerência judicial nos poderes atribuídos ao Ministério Público e, coloca em causa as legítimas expectativas do arguido e as garantias de defesa constitucionalmente tuteladas no artigo 32º n.º 1 da CRP. 28. Nesse sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de abril de 2006 (proc. 06P1403) e Acórdão da Relação de Lisboa, de 30-1-2007 (proc. 10221/2006-5), acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05-07-2016 (Proc. n.º 40/14.2GBLGS.E1). 29. A Acusação proferida pelo Ministério Público quanto aos crimes de injúria agravada é, inexistente, e, como alguns Autores e jurisprudência defendem, também nula, nos termos do artigo 119º b) do CPP. 30. O ato praticado pela Meritíssima Juiz, no que ao despacho em causa diz respeito, é manifestamente ilegal, por violação dos Princípios Estruturantes do Processo Penal supra melhor identificados, bem como por violação dos artigos 48º, 49º, 119º b), 263º do CPP, e artigos 32º n.º 1 e 5 e 219º n.º 1 da CRP. 31. Deve ser declarada a invocada ilegalidade do despacho, cuja consequência comportará inevitavelmente a inexistência do mesmo, ordenando o seu desentranhamento, bem como o desentranhamento das declarações juntas aos autos pelos Ofendidos, no dia 08/11/2022, conforme ofício junto com a refª CITIUS ...60. 32. O crime de injúria agravada encontra-se previsto nos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2.º, alínea l), todos do Código Penal, passando a assumir a natureza de crime semipúblico, cujo procedimento depende de queixa da pessoa com legitimidade (o ofendido ou o seu representante legal). 33. O Ministério Pública não tinha legitimidade para deduzir acusação pública relativamente aos crimes de injúria agravada pelos quais o Arguido vem condenado, porque não existe queixa dos ofendidos. 34. O Auto de Notícia que deu origem à abertura de inquérito dos presentes autos não é suficiente e bastante, para se considerar que está cumprida a promoção através de queixa que os crimes semipúblicos exigem. 35. A formalização da queixa não tem necessariamente requisitos formais, mas sim, substanciais. 36. Do Auto de Notícia não se comprova, inequivocamente, que os ofendidos desejavam que fosse instaurado procedimento criminal contra o arguido para o apuramento da sua responsabilidade penal, pelo menos, quantos aos factos que possam consubstanciar a prática de um crime de injúria agravada. 37. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 19/05/2022, no processo 4/21.0T9AGH.L1-9, em que é relator Paula Pires: “Que a PARTICIPAÇÃO/DENÚNCIA OBRIGATÓRIA ao MP não configura o exercício de um direito de Queixa, parece-nos claro. (…) O processo penal inicia-se com a aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público, cfr. artigo 241º do Código de Processo Penal). A aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público pode surgir por várias vias: por conhecimento próprio, auto de notícia do órgão de polícia criminal ou outra entidade policial, cfr. artigo 243º do CPP, denúncia, quer obrigatória (artigo 242º do CPP), quer facultativa (art. 244 do CPP).” 38. A notícia do crime chegou ao conhecimento do Ministério Público através de auto de notícia elaborado pelo OPC, o qual se encontra regulado no artigo 243º do CPP, que prevê que sempre que uma autoridade judiciária, um OPC ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia, que deve cumprir os requisitos aí previstos. 39. A notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito, ressalvadas as exceções previstas no artigo 262º n.º 2 do CPP. 40. Nos crimes semipúblicos o Ministério Público, apesar de ter conhecimento da noticia do crime, apenas pode iniciar a investigação após a apresentação da respetiva queixa pelo seu titular, como resulta melhor evidenciado no artigo 49º do CPP. 41. In casu, os titulares do direito de queixa seriam os Ofendidos AA e CC, a quem cabia o inevitável impulso processual. 42. Apesar dos Ofendidos serem órgãos de policial criminal, a denúncia obrigatória a que estavam sujeitos nos termos do artigo 242º a que daria inevitavelmente origem à elaboração do Auto de Notícia previsto no artigo 243º do mencionado diploma, não pode ser considerada como apresentação de queixa para efeitos de promoção do procedimento criminal quanto aos crimes de injúria agravada. 43. A lei não define o conteúdo e a forma da queixa, pelo que, para este efeito, se recorre à Doutrina e à Jurisprudência. 44. O Prof. Figueiredo Dias define queixa como “o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (art. 111º e 49º do CPP)” – In Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, notícias editorial, pág. 665 e “pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto (…). Tão pouco é relevante que os factos nela referidos sejam corretamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes pelo substrato fáctico que descreve ou menciona”. – sublinhado e negrito nosso. 45. Conforme se escreve no Acórdão da Relação de Coimbra de 15/03/2006, in www.dgsi.pt, “a noção de queixa não se cinge à mera transmissão do facto com eventual relevância criminal ao Ministério Público, ou seja, não releva como queixa uma simples declaração de ciência acerca do facto. A queixa exige, ainda, que se manifeste nessa declaração uma vontade de ver o agente perseguido criminalmente pelo facto. A queixa distingue-se da denúncia na medida em que enquanto esta é mera manifestação de ciência [transmissão ao MP da ocorrência do crime], na queixa além desta declaração de ciência exige-se ainda uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra o agente [cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., págs. 55 a 59.]”. 46. Não consta do Auto de Notícia, nem de qualquer outro ato posterior a este e anterior à dedução da Acusação Pública, qualquer manifestação dessa vontade, intrínseca, dos agentes, ofendidos nos presentes autos, desejarem que fosse instaurado o respetivo procedimento criminal. 47. Não existe a clara e inequívoca vontade dos Ofendidos de que haja procedimento criminal contra o arguido. 48. Os Ofendidos, no exercício das suas funções limitaram-se a comunicar ao Ministério Público os factos de que tiveram conhecimento – pois que se está perante uma situação tipificada na Lei de DENÚNCIA OBRIGATÓRIA. 49. Na esteira do que é afirmado no Ac. do Tribunal da Relação de ÉVORA (de 20-11-2012, Relator O Sr. Juiz Desembargador João Gomes de Sousa disponível in www.dgsi.pt) que: «Não será despiciendo afirmar que nos crimes semi-públicos e particulares o legislador não quer, explicitamente não quer, que o Ministério Público se comporte como se se tratasse de um comum crime público. E quer, necessariamente quer, uma expressão de vontade com algum foro de formalismo e certeza de existência por parte de pessoas certas.” 50. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora ao decidir com decidiu no Acórdão datado de 14/10/2014, no processo 203/13.8TAFAR.E1, no qual ficou expressamente consignado que: “I- O simples relato dos factos no auto elaborado pela PSP e, posteriormente, o teor dos depoimentos dos ofendidos colhidos durante o inquérito, desacompanhados de manifestação inequívoca de vontade no sentido de que o arguido fosse alvo de perseguição criminal pela prática dos factos suscetíveis de integrarem crimes de injúria agravada, que lhe vieram a ser imputados na acusação deduzida pelo MP, não são suficientes para conferir a este legitimidade para a promoção do processo relativamente àqueles ilícitos. II – Falta, assim, um pressuposto processual que obstaculiza ao conhecimento desses ilícitos.” 51. Os ofendidos dos crimes de injúria agravada de que vem condenado o arguido não declararam que pretendiam procedimento criminal contra este, pelo menos, quanto àqueles factos, mas limitaram-se a relatar os factos presenciados, sem qualquer manifestação de vontade, terminando o auto em causa com a seguinte conclusão: “É tudo quanto de momento me cumpre informar, deixando todo o conteúdo para melhor apreciação e parecer de V.Ex.a.” 52. Os Ofendidos deixaram à consideração do Ministério Público a perseguição ou não, pelos crimes que, eventualmente estariam em causa nos factos aí relatados. 53. A Digna Magistrada do Ministério Público apenas poderia ter aberto inquérito e promovido a investigação criminal, pelo crime público de ameaça agravada, e nunca, mas nunca, pelo crime de injúria agravada. 54. A Mmª Juiz do Tribunal a quo quanto a esta precisa questão invocada, entendeu que: “No que respeita aos crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181º n.º1 e 184ºº por referência ao artigo 132º n.º 2 al. l), todos do Código Penal, dos quais o arguido vem acusado, dispõe o artigo 188º do mesmo diploma legal que: “1- O procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo depende de acusação particular, ressalvados os casos: a) Do artigo 184º; e b) Do artigo 187º, sempre que o ofendido exerça autoridade pública; Em que é suficiente a queixa ou a participação. Ora, junta aos autos a fls. 4 a 6 encontra-se a participação da notícia do crime, devidamente assinada pelos ofendidos, militares da GNR. Veja-se que, de acordo com o disposto no art. 49º do CPP, “1-Quando o procedimento criminal depende de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo. 2- Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha obrigação legal de a transmitir àquele. 3- A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respetivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais. 4- O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender da participação de qualquer autoridade.”. Segundo Paulo Pinto Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 3ª Edição, UCE, Lisboa, 2009, pág. 148, “Em alguns casos, a lei substantiva prevê a existência de uma participação de autoridade pública (arts. 188º n.º 1 e 198º do CP (…)). A esta aplica-se, correspondentemente, o regime de queixa, quer no que toca às condições do seu exercício, quer no que respeita à renúncia e desistência da mesma (…)”. – sublinhado nosso. 55. A redação da norma do nº 1 do art. 188º do C. Penal, ao estabelecer, em fórmula que abrange os casos do 184º e do art. 187º (quanto a este, “sempre que o ofendido exerça autoridade pública” ), que para o procedimento criminal “é suficiente a queixa ou a participação”, pode gerar perplexidades e levar a que se conclua que o legislador quis admitir, em alternativa, duas formas diferentes de denúncia, a segunda das quais não exigindo a manifestação de vontade de perseguição criminal do agente do crime. 56. Mas o “novelo” desembaraça-se facilmente com esta explicação: Ao lado da queixa e da acusação particular a lei substantiva exige também, relativamente a alguns crimes a participação¸ cfr. artigo 188º n.º 1 al. b). 57. No Código Penal anterior, o art. 115.° previa expressamente a participação de autoridade pública [Art. 115.º do CP/82: Salvo disposição em contrário, se o procedimento criminal depender de participação de autoridade pública, a participação por ela apresentada não pode ser objecto de renúncia nem retirada.]. Este artigo não foi reproduzido no Código Penal de 1995, mas a exigência de participação como condição de procedibilidade continua a ser exigida em alguns crimes (ex.: arts. 188.°, n.° l, 198,°, 319.° e 324.°). 58. Em que consiste a participação e quem é que tem legitimidade para participar? O art. 49.°, n.° 4, do CPP equipara à queixa a participação de qualquer autoridade [Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, p. 682.]. 59. Os trâmites e efeitos da participação são os mesmos da queixa, mas falta determinar qual a autoridade que tem legitimidade para apresentar a participação. 60. A participação, de modo análogo à queixa, é a manifestação de vontade de que seja instaurado o procedimento e distingue-se da queixa simplesmente pela qualidade da entidade que condiciona o procedimento. Esta é a entidade ofendida pelo crime, o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, salvo disposição expressa em contrário. 61. A diferença entre queixa e participação é simplesmente formal, atendendo à qualidade do ofendido e que, quanto a tudo o mais, mormente à exigência de expressão de um desejo inequívoco de procedimento criminal, ela equivale à queixa. 62. “Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, página 675, § 1086).” 63. Da conclusão do Auto de Notícia, os Ofendidos “colocam” nas mãos do Ministério Público uma decisão no sentido de face àqueles factos, fazer o que bem entender, não poderá deixar de criar a dúvida se, aqueles mesmo ofendidos, signatários do mencionado Auto, tinham, inequivocamente, desejo de que fosse instaurado procedimento criminal contra o arguido. 64. A questão fulcral dos presentes autos já foi devidamente analisada, interpretada e decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente, no acórdão de 5 de dezembro de 2007, Processo n.º 07P3758, pelo Relator Pires da Graça, in, no mesmo se confirma tudo o quanto já fora sufragado supra, e, acrescenta: “Como entendeu este Supremo e Secção, no seu Ac. de 29-01-2007, in Proc. n.º 4458/06 , a queixa, exterior à acção típica, funciona nos crimes de natureza semipública (ou particular) como condição objectiva de procedibilidade, do exercício da perseguibilidade penal, de natureza processual, embora regulamentada no âmbito do direito penal substantivo, assim sendo concebida pela jurisprudência e pela doutrina mais autorizada (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, pág. 117). Não se exige que da queixa conste a fórmula sacramental de desejo de procedimento criminal; o seu conteúdo é muito menos exigente e tecnicista, situando-se ao nível da simples descrição fáctica. Não se exige, ainda, a identificação, total ou parcial, do sujeito activo do delito, que o ofendido pode ignorar, competindo a sua individualização à entidade dirigente do inquérito o MP ou à entidade em quem ele delegue os inerentes poderes de investigação. O que não se dispensa é que dos seus termos ou dos que se lhe seguirem se conclua, de modo inequívoco, a manifestação de vontade de perseguir criminalmente os autores de um facto ilícito. Por outro lado: De harmonia com o artº 242º nº 1 do CPP. a denúncia é obrigatória, ainda que os agentes do crime não sejam conhecidos: a) Para as entidades policiais, quanto a todos os crimes de que tomarem conhecimento; E, segundo o nº 2: Quando várias pessoas forem obrigadas à denúncia do mesmo crime, a sua apresentação por uma delas dispensa as restantes. Acrescenta o artigo seguinte: 1. Sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade judicial, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia, onde se mencionem: a) Os factos que constituem o crime; b) O dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido; e c) Tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos. O nº 2 do mesmo preceito diz que o auto de notícia é assinado pela entidade que o levantou e pela que o mandou levantar. Tal obrigatoriedade legal, tem apenas por objecto crimes de denúncia obrigatória. E, crimes de denúncia obrigatória são os crimes públicos. Como refere Maia Gonçalves, ibidem, p. 508, nota 3, O disposto na alínea a) do nº 1 deve interpretar-se em conjugação com o dispositivo do nº 3 e daí resulta que a obrigatoriedade de denúncia para as entidades policiais relativamente aos crimes de que tomarem conhecimento é só relativamente aos crimes públicos. Por outro lado, deve entender-se que a aludida obrigatoriedade é extensiva ao conhecimento indirecto dos crimes públicos, desde que adquirido por causa das funções: Na verdade, o nº 3 do mesmo artigo refere expressamente que o disposto nos números anteriores não prejudica o regime dos crimes cujo procedimento depende de queixa ou de acusação particular. Assim, no caso concreto, o auto de notícia por detenção era sempre legalmente obrigatório, por se referir a factos (ofensas corporais aos agentes policiais, no exercício de funções e por causa delas) integrantes de crime público, portanto de denúncia obrigatória, conforme artº 243º nº 1 do CPP e 143º nº 2 do C. Penal. Os ofendidos eram agentes da PSP, em exercício de funções, ocorrendo os factos por causa delas; bastava um agente policial levantar o auto por crime público, para que se considerasse haver denúncia - artº 242º nº 2 do CPP -, pois que o auto de notícia é obrigatoriamente remetido ao Ministério Público no mais curto prazo e vale como denúncia. Artº 243º nº 3 do CPP. Mas, para que fosse exercido o procedimento criminal por crime semi-público, o de injúria agravado, necessário se tornava que cada um dos ofendidos, explicitasse ou manifestasse de forma inequívoca a vontade de que pelos factos integrantes de tal crime desejava procedimento criminal, ou seja que não houvesse dúvidas de que a vontade de cada ofendido era a prossecução da acção penal por esses factos criminais de natureza semi pública – artº 243º nº 3 do CPP.” 65. Estando em causa factos que, hipoteticamente, consubstanciavam um crime de ameaça agravada, e, portanto, um crime público, e atenta a detenção em flagrante delito que ocorrera, sempre os Ofendidos, ou pelo menos um deles, porque presenciaram os factos, estavam legalmente obrigados a denunciar os mesmos ao Ministério Público e a elaborar o referido auto, quer pela denúncia dos factos, quer pela existência da própria detenção que tem de constar devidamente de auto, assim como a própria libertação tem de constar devidamente do respetivo auto. 66. A detenção em flagrante delito foi concretizada pelo crime de Ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, 155.º, n.º 1, alínea c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal. 67. Em nenhum momento a detenção se deveu a injúrias proferidas contra os militares da GNR, por não ser legalmente possível. 68. Mas, continua, ainda o referido acórdão: “Ora, apesar de no referido auto de notícia por detenção, assinado pelo autuante, e indicados os demais agentes policiais como testemunhas, constarem os factos vazados na matéria de facto provada referentes ao crime de injúria agravado e os referentes aos crimes de ofensas corporais aos agentes de autoridade, não consta do mesmo auto qualquer manifestação inequívoca de que os ofendidos, incluindo o autuante ou participante, subscritor do auto, desejassem procedimento criminal pelo crime de injúria agravado. Não consta que fosse feita queixa por tal crime, quer no auto de notícia (onde o próprio autuante a podia explicitar no que lhe dizia respeito, bem como receber e, assinalar a queixa dos demais colegas que lha tivessem participado), quer posteriormente, durante o inquérito, sendo certo que apesar de o auto de notícia englobar todos os factos relatados, no enquadramento da ocorrência, apenas se assinalou quanto à tipificação: resistência e coacção sobre funcionário e, no modus operandi: murros e pontapés. Aliás, a única justificação apresentada no auto para a sua elaboração, após a descrição dos factos, é simplesmente a de que: Por todo o exposto foi a suspeita detida.” 69. O Auto de Notícia por detenção, foi assinado pelo autuante, neste caso o Ofendido AA, e indicados os demais agentes policiais como testemunhas, neste caso, a Ofendida CC e, apesar do mesmo auto constar matéria de facto quanto ao crime de injúria agravado e os referentes ao crime de ameaça agravada, não consta, efetivamente do mesmo, qualquer manifestação inequívoca de que os ofendidos, autuante e testemunha, subscritores do auto, desejassem procedimento criminal pelo crime de injúria agravado. 70. O auto de noticia engloba os factos relatados mas no enquadramento da ocorrência apenas se assinalou quanto à tipificação do crime – Resistência e coação sobre funcionário e quanto ao Modus Operandi – ameaça verbal. 71. A única justificação para o mencionado expediente é, ainda, apenas e só a detenção, conforme consta do mesmo: “Atendendo aos factos acima descritos, foi dada voz de detenção ao Sr. BB por volta das 19h05. Após realização do expediente relativo à detenção, o arguido foi libertado por volta das 19h45 (…).” 72. Consigna, ainda, o referido acórdão do STJ: “A detenção no caso dos autos foi em flagrante delito. Embora o artigo 255º do CPP, estabeleça que em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão, qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção (nº 1 al a)), sendo que não há lugar a detenção em flagrante delito, mas apenas a identificação do infractor, tratando-se de crime cujo procedimento dependa de acusação particular (nº 4 do preceito), há que ter em atenção o disposto no nº 3 do mesmo preceito no que respeita aos crimes semi-públicos, que reza assim: Tratando-se de crime cujo procedimento dependa de queixa, a detenção só se mantém quando, em acto a ela seguido, o titular do direito respectivo o exercer. Neste caso, a autoridade judiciária ou a entidade policial levantam ou mandam levantar auto em que a queixa fique registada. Ora, como se referiu, do auto de notícia por detenção, não consta o registo de qualquer queixa pelo crime de injúria agravado. A detenção havida somente pode compreender-se assim no âmbito do crime público, o de ofensa à integridade física p. e p. no artº 143º nº 2 do C. Penal. (…) Inexistindo no auto de notícia, nem posteriormente, por qualquer dos agentes de autoridade ofendidos, manifestação inequívoca de vontade de procedimento criminal quanto aos crimes de injúria agravada, não pode a mesma presumir-se, e, por conseguinte, não assumindo tal crime natureza pública, não tem o Ministério Público legitimidade para acusar, por tal crime, pelo que é de manter o acórdão quanto à decisão da referida questão prévia.” 73. Não se pode presumir, porque não existem elementos suficientes para tal, a vontade dos ofendidos em desejarem procedimento criminal contra o Arguido relativamente ao crime de injúria agravada, não estando o Ministério Público dotado de legitimidade para proceder a uma acusação por esses factos. 74. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28 de abril de 2004, Processo n.º 890/04, “Legitimidade do Ministério Público”, pelo Relator Dr. João Trindade, vem corroborar o mesmo, entendendo que será sempre necessário que se especifique, inequivocamente, a vontade de procedimento criminal: “A- Legitimidade do Mº Pº em procedimento dependente de queixa. Nos termos das disposições conjugadas dos artºs 132º, nº 2 al. j), 181º, 184º e 188º, nº al. a) do CP o crime de injúria agravada reveste natureza semi-pública pelo que o procedimento criminal depende de queixa ou participação. Quando o procedimento criminal depender de queixa do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo (artº49º, nº 1 do CPP). (…) É que um auto de notícia lavrado por imposição legal e no exercício das respetivas funções só por si não revela uma manifestação inequívoca de que se deseja procedimento criminal. Não podemos esquecer que estamos perante uma denúncia obrigatória (artº 242º do CPP) na qual as entidades policiais têm a obrigação de denunciar todos os crimes de que tomaram conhecimento.” 75. O facto de o Agente se encontrar em funções torna obrigatória a denúncia de qualquer crime, no entanto, não o dispensa, nunca, de proceder a queixa quando se trate de um crime cometido contra si, sem o qual não se poderá, sequer, abrir inquérito, quanto mais deduzir Acusação Pública. 76. A falta da queixa relativamente aos factos descritos na acusação pública, enquanto pressuposto de procedibilidade, obsta ao conhecimento do mérito da causa. 77. Deduzida acusação pública por crime de natureza semi-pública, sem a formulação prévia dessa respetiva queixa, inexiste uma condição do procedimento criminal, cognoscível oficiosamente, a todo o tempo, cuja inexorável consequência é o arquivamento do processo, quanto aos crimes de injúria agravada, nos termos conjugados dos artigos 181.º, 188.º, n.º 1, do CP, e 49.º do CPP. 78. A Falta de legitimidade DO Ministério Público na promoção do procedimento criminal quanto aos crimes semipúblicos sem a existência prévia da respetiva queixa, constitui uma nulidade insanável prevista no artigo 119º b) do CPP que prevê “A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48º”. 79. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/02/2014, proc. 154/11.0GBCVL.C1, sendo dele relatora a desembargadora Maria Pilar de Oliveira, considera duas concretas hipóteses: “não só situações omissivas do despacho acusatório quando a lei confere àquele legitimidade para o efeito, mas também os casos em que o MP acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48º do compêndio legislativo referido.” 80. Este é também o entendimento de GERMANO MARQUES DA SILVA, segundo o qual o art. 119.º, al. b) do CPP refere-se «à ilegalidade da promoção do processo pelo Ministério Público, por falta de queixa, nos crimes semipúblicos e particulares (…)» - in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2009, p. 36. 81. Acórdão da Relação de Coimbra de 19/12/2014, «[o] segmento normativo da parte inicial da alínea b) do artigo 119.º do CPP - do seguinte teor: “A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º” - contempla não só situações omissivas do despacho acusatório quando a lei confere àquele legitimidade para o efeito, mas também os casos em que o MP acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48.º do compêndio legislativo referido. Consequentemente, tendo o MP deduzido acusação (…) verifica-se a nulidade insanável prevista naquele normativo (…)» - proferido no processo n.º 154/11.0GBCVL.C1, pela relatora Maria Pilar de Oliveira, in www.dgsi.pt. 82. As nulidades tornam inválido o ato em que se verificam, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar, nos termos do art. 122.º, n.º 1 do CPP. 83. O Ministério Público também deduziu acusação por crimes de natureza pública, pelo que a nulidade torna inválida a acusação na parte em que imputa ao arguido os crimes de injúria agravada. 84. Ao abrigo do disposto nos arts. 119.º, al. b), 122.º e 311.º, n.º 1 do CPP, sempre será de declarar nula a acusação deduzida pelo Ministério Público na parte em que imputa ao arguido a prática de dois crimes de injúria agravada, bem como declarar nulos e sem qualquer efeito, todos os atos praticados posteriormente à mesma quanto aos mencionados crimes, e, por consequência determinar-se a absolvição do arguido. 85. O Tribunal a quo, considerou provada, a seguinte matéria de facto: 3- Enquanto procediam, aqueles agentes de polícia, às diligências necessárias com vista à elaboração do auto de contraordenação por falta de cinto de segurança, aquele arguido, assumindo ânimo exaltado, dirigiu-se-lhes e vociferou: «vocês estão a mentir, eu trazia o cinto». 4- Os militares da GNR disseram ao arguido para moderar o comportamento, mas o mesmo continuou a expressar-se do mesmo modo, desta vez dizendo: «mentirosos», «ladrões», «vocês estão-me a roubar», «eu trazia o cinto aqui», batendo com força no seu ombro esquerdo; 5- Advertido mais uma vez pela patrulha para se posicionar de forma mais ordeira para com aqueles militares, o arguido, usando de um tom grave, ainda vociferou e dirigiu-lhes as seguintes palavras: «ide trabalhar para as obras», «seus ladrões», «mentirosos». 7- Com a conduta supra descrita em 3. a 5., o arguido BB agiu com o propósito concretizado de ofender os Militares da GNR, AA, militar n.º ... e CC, militar n.º ..., na sua honra, dignidade e consideração profissionais, o que conseguiu. 86. Para formar a sua convicção, o Tribunal a quo veio elucidar que relativamente às declarações do arguido, veio asseverar que: «” Explicou tudo o que sucedeu, a fiscalização efetuada pelos militares da GNR, o facto de trazer cinto de segurança no momento dos factos, os militares da GNR acusarem-no de circular sem cinto de segurança e terem-no autuado por causa disso, bem como o facto de ter ficado indignado com esta conduta.”»; «” Explicou, ainda, que não chamou mentirosos, nem ladrões aos referidos militares, tendo antes dito que ele próprio não era mentiroso, e que os militares “estavam a mentir, porque ele trazia cinto”, tendo-lhes dito, ainda, “o senhor devia ir trabalhar para a construção”, que era para ele saber o que custava pagar uma multa…” “…sendo inocente.”». «”Referiu, também, (…) e não lhes chamou ladrões, tendo antes dito que “o Governo não precisa que me andem a roubar dinheiro porque eu tenho uma pensão miserável e preciso dela para comprar medicamentos e para comer” (…)» «”Negou ter-se exaltado e referiu que fala alto porque tem problemas de audição.”» «”Ora, demos como provado que o arguido tem problemas de audição…”» «”Os próprios militares da GNR explicaram que, quando fiscalizaram o arguido, este já tinha o cinto colocado, motivo pelo qual entendemos que a indignação do arguido e a exaltação demonstrada, até pode ser explicada pelo facto de se sentir injustamente autuado pelos referidos militares, por entender que não praticou a contraordenação.”» «”Todavia, considerando as regras da experiência comum, o que nos foi relatado pelo próprios arguido e, considerando a prova testemunhal produzida, que infra daremos conta, cremos que o arguido efetivamente falou alto no dia dos factos, não só por ter problemas de audição, mas também porque se exaltou com os militares da GNR que o fiscalizaram”». «”Todavia, quando em julgamento referiu que não lhes chamou mentirosos, nem ladrões, diretamente, e quando mencionou ter referido “o senhor devia ir trabalhar para a construção”, cremos que tentou amenizar as palavras que efetivamente proferiu no dia dos factos, pois o normal é que as pessoas usem a expressão “ir trabalhar para a obras!” e não “para a construção”. 87. No que concerne à prova testemunhal, é entendimento do Tribunal a quo que “As testemunhas explicaram as circunstâncias de tempo, modo e lugar, bem como as expressões proferidas pelo arguido e dirigidas aos próprios, não demonstrando ter quaisquer dúvidas quanto ao facto de lhes ter chamado ladroes e mentirosos e ter dito para irem trabalhar para as obras.” 88. Quanto à parte dos depoimentos prestados a propósito das expressões que terão sido proferidas pelo arguido, o Tribunal a quo crê que as mesmas coincidem com o que o arguido assumiu em tribunal, “…assumiu ter dito “os senhores estão a mentir” e “o Governo está a roubar-me”…” 89. Não podemos concordar com a decisão quanto à matéria de facto dada como provada e supra identificada, porquanto, entendemos que, o Tribunal devia ter dado a mesma como não provada, atenta a aplicação do Princípio in dúbio pro réu. 90. Quanto à restante matéria em causa que fundamentava o crime de ameaça agravada, o Digníssimo Tribunal não teve quaisquer dúvidas que os Ofendidos/testemunhas não depuseram com a necessária certeza, e, portanto, de todas as circunstâncias conjugadas, quer as hesitações nos seus depoimentos, exaltação, falhas de memória, e portanto, aplicou o mencionado Princípio Estruturante do Processo Penal, e, em caso de dúvida, deve ser decidido a favor do Arguido, por exemplo, “… quando questionada a testemunha CC sobre tal facto, não deixamos de denotar que a mesma hesitou uns segundos na resposta. Referiu que o arguido se dirigiu ao guarda AA e lhe disse “Amanhã, quando chegares a casa, vais encontrar o teu pai morto”. Por outro lado, estranhamos que se recorde tão bem destas palavras e não se recorde de outros pormenores do dia dos factos, designadamente, que ia a conduzir, e se trouxeram o arguido de volta à viatura ou não, após ter sido libertado.” – ora, tal facto aplica-se, mutatis mutandis para o depoimento no que toca às “expressões injuriosas” que o Arguido terá mencionado. Como é que a testemunha poderá recordar-se que o Arguido referiu “mentirosos” e não “vocês estão a mentar” e “ladrões” e não “o Estado está-me a roubar”, e não se recordar de outros factos, quer os invocados na sentença, quer, nomeadamente, a mencionada ameaça de vida ao referido pai do agente AA, que, atenta a sua “suposta” gravidade, era expectável e tendo em consideração as regras da experiência comum, que “marcasse” os Ofendidos. 91. A testemunha AA também não fora conclusiva quanto à suposta ameaça à vida do pai do mesmo, deixando margem para largas e várias dúvidas: “Inquirido AA sobre estes factos, ficamos ainda com mais reservas, quer porque se denotou que adotou uma postura arrogante, defensiva e muito pouca assertiva, quer pelo acima mencionado. Primeiro disse não ter a certeza de ter sido tratado na primeira pessoa do singular, depois já disse ter a certeza, referiu ainda, que apenas prestava funções em ... desde fevereiro deste ano 2022, que é natural do concelho de ..., assim como o seu pai, e que não conhecia o arguido anteriormente.” 92. A postura desta testemunha foi equivalente em todo o seu depoimento, quer quanto aos factos que consubstanciam o crime de ameaça, quer quanto aos factos que consubstanciam o crime de injúrias agravadas. 93. Nenhuma das testemunhas se revelou clara nos seus depoimentos, deixando margem para dúvidas: “…a falta de assertividade com que depuseram, assim como as questões acima assinaladas sobre a falta de conhecimento dos intervenientes em causa, leva-nos a crer que a versão do arguido nesta matéria, não pode ser colocada de parte.” “Temos muitas dúvidas do que realmente se passou quanto à alegada ameaça.” “…entendemos que na ausência do juízo de certeza, vale o princípio de presunção de inocência do arguido (art. 32.º n.º 2CRP), de que o princípio in dubio pro reo é corolário.” 94. Existe uma real dúvida sobre a veracidade dos factos, pelo que deve pugnar-se pela inocência do arguido. 95. Quanto aos factos 3, 4 , 5 e 7 dados como provados, entendemos que tudo o supra fundamentado quanto à análise do depoimento das testemunhas se aplica de igual forma aos factos em causa, e nomeadamente, quanto à prova que se retira dos seguintes depoimentos: DEPOIMENTO DO ARGUIDO BB, dia 27-10-2022, prestado às 10h:05m:05ss até às 10h:20m:57ss - (minuto 01:53 a 15:31); DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA, CC, dia 27-11-2022, prestado às 10h:23m:34ss até às 10h:41m:33ss (minuto 00:30 a 17:33); e DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA, AA, dia 27-10-2022, prestado às 10h:49m:34ss até às 11h:12m:12ss (minuto 00:52 a 22:09). 96. Existiu uma errada valoração da prova. 97. Quanto à testemunha CC a mesma hesitou por diversas vezes quanto às resposta que daria, o que apenas é mais percetível através da audição das respetivas declarações, e, verifica-se que, conforme constata a Mmª Juiz do Tribunal a quo manifestou não se lembrar de outros factos que não se compreende, mas lembra-se, sem dúvida, das exatas expressões proferidas pelo Arguido, quanto às injúrias diz respeito, não nos parece que tenha oferecido o mínimo de certeza ao Tribunal, para cumprir o ónus da prova quanto a estes factos 98. Quanto à testemunha AA, não temos qualquer dúvida que o Tribunal a quo errou na valoração do seu depoimento quanto aos factos que motivam a condenação do crime de injúria agravada, pois, constata-se à evidência pelo seu depoimento, que o mesmo não se recorda, das palavras exatas proferidas pelo Arguido, quer quanto à ameaça, quer quanto às injúrias. 99. A testemunha AA confessa que consultou o Auto de Notícia antes de prestar o depoimento, referindo, mesmo, que se preparou, e que, para poder dizer com certeza o que foi proferido pelo Arguido, teria de consultar outra vez o Auto pois não se recordava. 100. É clara a dúvida gerada em sede de julgamento, os depoimentos das testemunhas CC e AA não se demonstraram claros e objetivos, como se pode verificar pelos exatos momentos do seu depoimento melhor identificados supra através de negrito e sublinhado. 101. Em nenhum momento se tornou claro e se provou que o arguido tenha proferido tais expressões com a exata certeza que lhe competia. 102. Existindo, dúvida em relação à prova, deverá sempre optar-se pelo entendimento mais favorável ao arguido. 103. O arguido foi coeso no seu raciocínio e descreveu detalhadamente o que sucedeu naquele dia 23 de junho, nunca se tendo contradito, devendo, por isso, fazer-se nova análise e ponderação. 104. Embora o arguido se tenha sentido injustiçado pela contraordenação que não cometeu, porque fazia uso do cinto de segurança, o mesmo acabou por ter um comportamento colaborante, pedindo-lhes, até, que o transportassem de volta. Se estivesse tão exaltado como se quer fazer crer, nunca o arguido BB teria pedido aquela boleia aos agentes, teria sido insolente, violento e desrespeitoso, mas tal nunca logrou suceder. 105. Sempre deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra, que dê como não provado todos os pontos de facto supra indicados, em virtude da dúvida criada em sede de produção de prova em audiência de julgamento, e, de acordo com o Princípio in dúbio pro réu, absolva o Arguido pelos crimes de injúria agrava de que vem acusado. 106. Os factos que fundamentam o crime de injúria agravada, ou seja, as concretas expressões dirigidas, não têm valor suficiente para que o Arguido seja por elas condenado. 107. Conforme decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no Processo n.º 294/19.8PABCL.G1, de 24 de maio de 2021, pelo relator Armando Azevedo: “I- As palavras dirigidas pelo arguido ao assistente, dizendo-lhe que “ele não prestava, que era um mau profissional e que era um arrogante”, no contexto em que estas palavras foram proferidas, relativo a um caso de estacionamento de veículo automóvel indevido na via pública, visaram direta e essencialmente a ação do assistente, enquanto agente da PSP no exercício da sua atividade de policia, e não a pessoa deste.” “II- Quem exerce funções públicas, de que é exemplo os agentes das forças de segurança, encontra-se sujeito à critica objetiva. E, neste contexto, são compreensíveis os exageros na crítica, a animosidade, os excessos de linguagem, a grosseria e a má educação, sendo exigível a quem exerce funções públicas disponha da capacidade de aceitar a crítica, ainda que injusta ou imerecida, a falta de civismo e de pacífica convivência social.” 108. O arguido BB, tendo-lhe sido imputada uma contraordenação pela falta de uso do cinto de segurança, quando, em boa verdade, conforme aquele declarou, e tudo leva a crer, que tinha o cinto colocado, levou-o a proferir palavras de indignação. 109. O arguido sentiu-se indignado pelo sucedido pois estava a cumprir as regras do código da estrada e quiseram puni-lo por algo que não fez; inclusive, os agentes da GNR nos seus depoimentos confirmaram isso mesmo, admitiram que quando se dirigiram ao veículo do arguido aquele tinha o dispositivo de segurança colocado. 110. O arguido disse que estava indignado e que, nessa senda, dissera aos agentes da GNR que ele não era mentiroso porque tinha o cinto de segurança colocado, e que o agente AA não estava a dizer a verdade, e que, por isso, ele não deveria ser condenado por um crime que não cometera. 111. Admitiu que seria possível ter falado bastante alto devido ao problema de audição de que padece, não por desrespeito, como se comprovou em sede de Julgamento. 112. Quanto à acusação de ter chamado «ladrões» aos agentes da GNR, o arguido disse aos mesmos que deviam ir trabalhar para a construção para verem o que custa pagar uma multa de cento e vinte euros de forma injusta por um crime que não cometera, não os injuriou daquela forma. 113. Dependendo do contexto em que as palavras são proferidas, o sentido a retirar-se também será diverso. 114. As palavras proferidas visaram direta e essencialmente a ação da testemunha AA, enquanto agente da GNR e não da sua pessoa. 115. Quem exerce funções públicas está sempre sujeito à crítica objetiva, sendo compreensíveis os exageros cometidos na linguagem, exigindo-se que os funcionários públicos tenham uma ampla capacidade de aceitação, de forma a manter a paz social. 116. Quando é posta em causa a moralidade dos funcionários públicos, o Direito Penal deve reger-se pelo Princípio da Proporcionalidade. 117. Este princípio garante a defesa dos direitos individuais contra a arbitrariedade e os excessos de quem detém uma posição de poder e decisão sobre a vida de outrem, funcionando como um Estado de Direito, garantindo os direitos e liberdades individuais de cada individuo. 118. Refere o Acórdão mencionado que:“III- O direito penal tutela valores fundamentais da vida em sociedade e deverá promover a pacificação social, sendo um direito de ultima ratio, pelo que fazendo aqui apelo ao princípio da proporcionalidade e à concordância prática entre, por um lado, o direito ao bom nome e à reputação, e o direito à liberdade de expressão e ao direito de critica objetiva por outro, consideramos que as palavras dirigidas pelo arguido ao assistente não têm suficiente dignidade penal para o efeito de integrar o tipo legal de crime de injúria.” 119. As expressões proferidas pelo arguido BB num momento de indignação contra uma condenação injusta não têm suficiente dignidade penal para o efeito de integrar o tipo legal de crime de injúria. 120. É uma crítica deselegante, não sendo ofensiva da imagem ou autoestima, deve ter-se como referência o que é expectável do cidadão normal naquelas circunstâncias. 121. Mais refere o Acórdão mencionado que:“A vida em sociedade propícia o surgimento de conflitos entre os seus membros, explicáveis, por exemplo, pela existência de uma grande diversidade de opiniões e de interesses incompatíveis. É nesse contexto que surge o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de crítica, como uma das manifestações da liberdade de expressão, consagrada no artigo 37.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que preceitua o seguinte: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”. A liberdade de expressão, para além de constitucionalmente consagrada constituiu, nas palavras repetidamente utilizadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, caracterizada ainda pelo pluralismo, tolerância e espírito de abertura, e uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um.” 122. As expressões proferidas pelo arguido não foram no intuito de ofender os agentes da GNR, mas antes, de exprimir a sua indignação, não devendo ser puníveis a nível penal. 123. O arguido pretendeu criticar o comportamento dos agentes no exercício das suas funções profissionais, pois sentiu-se injustiçado, mas nunca visou atingir a dignidade e honra daqueles. 124. O arguido BB logrou expressar o seu descontentamento face a uma situação de injustiça flagrante, nunca pretendendo injuriar ou ofender a honra e bom nome dos agentes CC e DD. 125. Deverá fazer-se boa justiça, e absolver-se o arguido BB pelos crimes de injúria agravada pelos quais vem acusado. Deverá ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, ser declarada a ilegalidade do despacho proferido em 03.11.2022 pelo Digníssimo Tribunal, e ordenado o seu desentranhamento, bem como das declarações juntas pelos Ofendidos na sequência do mencionado despacho juntas aos autos em 08.11.2022, E, ainda, se declare revogar a sentença recorrida, substituindo-a por outra que conheça as exceções invocadas, de inexistência e/ou nulidade da Acusação Pública, e, consequentemente, arquive o processo quanto aos crimes de injúria, ou, no limite, absolva o Arguido dos crimes de injúria pelos quais venha acusado, pelos fundamentos supra expostos. Com a sentença proferida o Tribunal a quo violou os artigos 32º e 219º da Constituição da República Portuguesa, 181º, 184º e 188º do Código Penal, 48º, 49º, 119 b), 122º, 242º, 243, 262º, 263º e 311 do Código de Processo Penal. Ao Julgardes assim, estareis, Venerandos Desembargadores, a fazer uma vez mais a boa e aclamada, JUSTIÇA!!” Na primeira instância, a Digna Magistrada do Ministério Público, notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que defende a improcedência do recurso e respetiva manutenção da sentença recorrida (referência ...96). Formulou as seguintes conclusões: “1. O arguido foi condenado pela prática de pela prática de DOIS CRIMES DE INJÚRIA AGRAVADA, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do CP. 2. Se compulsarmos os autos na sua fase de inquérito, verificamos que os agentes militares que participam os factos assumem eles próprios – pela narrativa apresentada – a posição de ofendidos, posto que do relato não se vislumbram outros ofendidos. 3. Não vislumbramos outra razão para os militares da GNR darem conhecimento deles ao Ministério Público, a não ser para, por via da sua participação, manifestarem vontade do o Ministério Público exercer a ação penal em relação aos mesmos; vontade essa que se exaure com aquela participação. Vale por dizer que, caso não intencionassem nem quisessem esse impulso processual penal, não teriam participados os factos. 4. De resto, resulta da lei penal – do artigo 188.º, do CP – que o procedimento criminal pelo crime previsto no artigo 184.º - e que é o caso dos autos – se basta com a queixa ou com a participação. Sendo certo que a participação se distingue da queixa simplesmente pela qualidade da entidade que condiciona o procedimento. 5. A manifestação de vontade de existir procedimento criminal se retira ainda dos pedidos de indemnização civil por eles formulados. 6. O agente autuante ao elaborar o auto de notícia em função das palavras e expressões ofensivas que estes lhe dirigiram, manifestou a sua intenção inequívoca de que fosse exercida a ação penal contra os arguidos, o que equivale ao exercício do seu direito de queixa – assim concluiu o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 20 junho de 2017, no processo 1/16. 7. As expressões imputadas ao arguido a título de injúria, nas circunstâncias em que foram proferidas, merecem dignidade penal.” I.3 Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que, citando pertinente jurisprudência e doutrina, se pronunciou pela improcedência do recurso (referência ...27). Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C. P. Penal, o recorrente deduziu resposta ao sobredito parecer em que mantém, no essencial, o alegado no recurso. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir. * II – Questão prévia:Conforme mencionado em I, no âmbito do Processo Abreviado nº 260/22...., do Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Local Criminal ..., foi proferido despacho pela Meritíssima Juíza em 03.11.2022, com o seguinte teor (referência ...72): «Considerando que em sede de alegações orais a defesa do arguido veio dizer que não se encontra junta aos autos a vontade expressa documentada dos ofendidos, no sentido de desejarem procedimento criminal contra o arguido, considerando, ainda, que dos autos consta o auto de notícia lavrado pelos ofendidos, militares da GNR, e pedidos de indemnização civil que, embora não tenham expressamente a frase “desejo procedimento criminal contra o arguido”, da conjugação de tais documentos se retira que é esta a vontade dos mesmos, e por último, que os presentes autos se tratam de processo de natureza abreviada e que os ofendidos ainda se encontram em prazo para exercer o direito de queixa, determino que se notifiquem os mesmos para, no prazo de cinco dias, virem juntar aos autos documento no qual expressamente especifiquem se desejam, ou não, procedimento criminal contra o arguido.» Não se conformado com o predito despacho judicial e, bem assim com a posterior sentença, na parte condenatória, proferida em primeira instância, deles veio conjuntamente o arguido BB interpor o presente recurso (referência ...24). Sucede que aquela decisão interlocutória, proferida no âmbito de processo abreviado, é legalmente irrecorrível. Com efeito, prescreve o art. 391º, nº1, do CPP, ex vi art. 391º-G do mesmo diploma legal, que “Em processo sumário só é admissível recurso da sentença ou do despacho que puser termo ao processo.” É consabido que o despacho proferido em primeira instância que admitiu in totum o recurso deduzido pelo arguido, ou seja, incidindo sobre o sobredito despacho e sentença proferidos nos autos [referências ...81 e ...87], não vincula o Tribunal ad quem – art. 414º, nº3, do Código de Processo Penal. Por conseguinte, nos termos do art. 420º, nº1, alínea b), do Código de Processo Penal, rejeita-se o recurso formulado pelo arguido BB na parte em que incide sobre o despacho judicial proferido nos autos em 03/11/2022 [referência ...72]. * III – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR): É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.)[1]. Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir são as seguintes: A) Ilegitimidade do Ministério Público para a dedução da acusação no que concerne aos imputados crimes de injúrias agravadas; B) Erro de julgamento quanto à matéria de facto dada como provada nos pontos 3, 5, 6 e 7; C) Violação do princípio in dubio pro reo. D) Atipicidade das condutas do arguido por não assumirem desvalor objetivo suficiente para preencher a tipicidade objetiva do crime de injúria agravada. * IV – APRECIAÇÃO: IV.1 – Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão das questões suscitadas pelo ajuizado recurso, importa verter aqui a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e não provada e, bem assim, a sua fundamentação para tal decisão da matéria de facto. O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição): “1. No dia 23.06.2022, pelas 19h05, a patrulha da GNR constituída pelos agentes AA, militar n.º ... e CC, militar n.º ..., ambos do efectivo do Posto Territorial ..., devidamente uniformizados, encontravam-se na Avenida ..., via pública deste concelho, em serviço de patrulha às ocorrências, no exercício de funções que lhe haviam sido distribuídas e determinadas superiormente no interior da corporação policial de que faz parte; 2. O arguido BB circulava naquela avenida, conduzindo o veículo de matrícula ..-MR-.., e aquela patrulha seguiu no encalce do mesmo, vindo a interceptá-lo já na Rua ...; 3. Enquanto procediam, aqueles agentes de polícia, às diligências necessárias com vista à elaboração do auto de contraordenação por falta de cinto de segurança, aquele arguido, assumindo ânimo exaltado, dirigiu-se-lhes e vociferou: «vocês estão a mentir, eu trazia o cinto»; 4. Os militares da GNR disseram ao arguido para moderar o comportamento, mas o mesmo continuou a expressar-se do mesmo modo, desta vez dizendo: «mentirosos», «ladrões», «vocês estão-me a roubar», «eu trazia o cinto aqui», batendo com força no seu ombro esquerdo; 5. Advertido mais uma vez pela patrulha para se posicionar de forma mais ordeira para com aqueles militares, o arguido, usando de um tom grave, ainda vociferou e dirigiu-lhes as seguintes palavras: «ide trabalhar para as obras», «seus ladrões», «mentirosos»; 6. O arguido foi, nessas circunstâncias, e por causa delas, detido; e contra ele foi levantado o auto de contraordenação n.º ...62, por infracção à norma do artigo 82.º, n.º 1, do Código da Estrada; 7. Com a conduta supra descrita em 3. a 5., o arguido BB agiu com o propósito concretizado de ofender os Militares da GNR, AA, militar n.º ... e CC, militar n.º ..., na sua honra, dignidade e consideração profissionais, o que conseguiu; 8. O arguido sabia que os ofendidos eram militares da GNR, os quais se encontravam devidamente identificados e uniformizados, no exercício das suas funções, não se coibindo de actuar nos termos descritos; 9. O arguido agiu, em tudo, deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas, supra descritas, eram proibidas e punidas por lei; Mais se provou que: 10. O arguido é visto pelos seus familiares como uma pessoa de bem, que se relaciona bem com os demais e a quem não são conhecidos conflitos; 11. Tem problemas de audição; 12. É reformado e aufere uma pensão de reforma no valor mensal de 750 dólares canadianos; 13. Vive com uma companheira, reformada, em casa própria; 14. Não tem prestações creditícias ou outros encargos extraordinários; 15. É proprietário da casa de habitação e de dois veículos automóveis (embora um deles pertença ao seu filho, apesar de estar registado em seu nome); 16. Tem como habilitações literárias o 3º ano de escolaridade; 17. Não tem antecedentes criminais.” Por outro lado, o Tribunal recorrido considerou como não provado que: “a) Que aquando o descrito em 2), o arguido circulasse sem que fizesse uso do cinto de segurança; b) Que o arguido, dirigindo-se concretamente ao agente que procedia à autuação, AA, na senda do mesmo propósito agressivo, lhe tenha dirigido os seguintes dizeres: «amanhã vais encontrar o teu pai morto»; c) Que com a conduta supra descrita, o arguido BB, anunciando aquela ameaça contra o militar AA, tenha agido com o propósito de provocar-lhe medo e inquietação, o que conseguiu; d) Que tenha agido em a) e b) deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.” E motivou a sobredita decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos (transcrição): “A convicção do Tribunal é sempre formada, para além dos dados objectivos obtidos através dos documentos ou outras provas produzidas de carácter técnico/científico, também por declarações e depoimentos em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das suas lacunas, contradições, imparcialidades, coincidências, coerências e quaisquer mais inverosimilhanças que transpareçam em audiência de julgamento. Dito de outra forma, o Tribunal estriba-se na análise de forma livre, crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, de acordo com o preceituado no art. 127º do Código de Processo Penal. Contudo, livre apreciação da prova não significa uma apreciação arbitrária porquanto tem como pressupostos valorativos, o respeito pelos critérios de experiência comum e da lógica do homem médio. De outra perspectiva, o Tribunal formou a sua convicção sobre o objecto dos presentes autos com base nos vários meios de prova produzidos e analisados em audiência de julgamento, designadamente: a) nas declarações do arguido; b) nos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento; c) no auto de notícia de fls. 4 a 6, auto de contraordenação de fls. 22, fotografia de fls. 49 e certificado do registo criminal de fls. 56. Consistindo a motivação dos factos da sentença na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal – artigo 374º, nº 2 do CPP – mostra-se necessário, para além de enunciar os meios de prova, explicitar o processo de formação da convicção do julgador. Em tribunal, o arguido prestou declarações, quer quanto aos factos, quer quanto às suas condições económicas e pessoais. Explicou tudo o que sucedeu, a fiscalização efectuada pelos militares da GNR, o facto de trazer cinto de segurança no momento dos factos, os militares da GNR acusarem-no de circular sem cinto de segurança e terem-no autuado por causa disso, bem como o facto de ter ficado indignado com esta conduta. Explicou, ainda, que não chamou mentirosos, nem ladrões ao referidos militares, tendo antes dito que ele próprio não era mentiroso, e que os militares “estavam a mentir, porque ele trazia cinto”, tendo-lhes dito, ainda, “o senhor devia ir trabalhar para a construção”, que era para ele saber o que custava pagar uma multa de € 120,00 sendo inocente. Referiu, também, que não ameaçou o pai do militar da GNR, nem o conhece, e não lhes chamou ladrões, tendo antes dito que “o Governo não precisa que me andem a roubar dinheiro porque eu tenho uma pensão miserável e preciso dela para comprar medicamentos e para comer”, e “apenas disse que preferia ver o seu pai morto que pagar aquela multa” (referindo-se ao seu próprio pai e não ao pai do militar da GNR), sendo que nessa sequência, o senhor militar deve ter compreendido mal as suas palavras e deu-lhe voz de detenção. Negou ter-se exaltado e referiu que fala alto porque tem problemas de audição. Ora, demos como provado que o arguido tem problemas de audição, quer porque o pudemos constatar em audiência de julgamento, quer porque foi inquirida a testemunha EE, filho da companheira do arguido, que de modo sincero explicou tal facto. Todavia, considerando as regras da experiência comum, o que nos foi relatado pelo próprio arguido, e considerando a prova testemunhal produzida, que infra daremos conta, cremos que o arguido efectivamente falou alto no dia dos factos, não só por ter problemas de audição, mas também porque se exaltou com os militares da GNR que o fiscalizaram. Veja-se que não está em causa nos presentes autos saber se o arguido conduzia ou não, com cinto de segurança na data dos factos. O arguido juntou aos autos a fotografia de fls. 49, na qual se apresenta com o cinto de segurança, o que não significa que a mesma tenha sido captada no acto em que os militares passaram por si na estrada. Os próprios militares da GNR explicaram que, quando fiscalizaram o arguido, este já tinha o cinto colocado, motivo pelo qual entendemos que a indignação do arguido e a exaltação demonstrada, até pode ser explicada pelo facto de se sentir injustamente autuado pelos referidos militares, por entender que não praticou a contraordenação de fls. 22 (não sabemos se a praticou, ou não, motivo pelo qual demos como não provado tal facto). Todavia, quando em julgamento referiu que não lhes chamou mentirosos, nem ladrões, directamente, e quando mencionou ter referido “o senhor devia ir trabalhar para a construção”, cremos que tentou amenizar as palavras que efectivamente proferiu no dia dos factos, pois o normal é que as pessoas usem a expressão “ir trabalhar para as obras!” e não “para a construção” (consignando-se que mandar alguém ir trabalhar para as obras não configura a prática de qualquer crime, pois a construção civil é uma profissão digna como outra qualquer, pelo que nãos e trata de um juízo ofensivo da honra e consideração). Por outro lado, em tribunal depuseram as testemunhas CC e AA, militares da GNR que fiscalizaram o arguido no dia dos factos. As testemunhas explicaram as circunstâncias de tempo, modo e lugar, bem como as expressões proferidas pelo arguido e dirigidas aos próprios, não demonstrando ter quaisquer dúvidas quanto ao facto de lhes ter chamado ladrões e mentirosos e ter dito para irem trabalhar para as obras. Ora, quanto a esta parte dos depoimentos, a mesma não nos suscitou dúvidas, quer pela forma com que as testemunhas depuseram, quer por ser, de certa forma, coincidente com as declarações do arguido (que assumiu ter dito “os senhores estão a mentir” e “o Governo está a roubar-me”, o que se trata de uma forma mais disfarçada de colocar a questão), quer pelas regras da experiência comum e pelos juízos da normalidade, que nos ditam que, quando as pessoas se encontram exaltadas, em situações semelhantes às dos autos, é normal que profiram este tipo de insultos. Acresce a isto que se os factos não tivessem ocorrido, também não faria sentido a detenção do arguido e a participação do crime por parte dos militares da GNR. Ou seja, para que tal tenha acontecido, temos por certo que a conversa entre arguido e ofendidos chegou a ultrapassar o limite, a fronteira entre a mera indignação ou falta de educação e o insulto. Todavia, já no que respeita ao facto de o arguido alegadamente ter ameaçado a vida do pai da testemunha AA, temos muitas dúvidas. Por um lado, quando questionada a testemunha CC sobre tal facto, não deixamos de denotar que a mesma hesitou uns segundos na resposta. Referiu que o arguido se dirigiu ao guarda AA e lhe disse “Amanhã, quando chegares a casa, vais encontrar o teu pai morto”. Por outro lado, estranhamos que se recorde tão bem destas palavras e não se recorde de outros pormenores do dia dos factos, designadamente quem ia a conduzir, e se trouxeram o arguido de volta à viatura ou não, após ter sido libertado. Acresce a isto que todos foram unânimes em dizer que o arguido não conhecia o referido militar, nem a sua família, e vice-versa, pelo que não se compreende que o arguido tenha proferido estas palavras, nem que tenha tratado o mencionado militar na primeira pessoa do singular. É estranho. Inquirido AA sobre estes factos, ficámos ainda com mais reservas, quer porque se denotou que adoptou uma postura arrogante, defensiva e muito pouco assertiva, quer pelo acima mencionado. Primeiro disse não ter a certeza de ter sido tratado na primeira pessoa do singular, depois já disse ter a certeza, referiu ainda, que apenas prestava funções em ... desde Fevereiro deste ano 2022, que é natural do concelho de ..., assim como o seu pai, e que não conhecia o arguido anteriormente. Tudo isto para dizer que, não cremos, de todo, que as testemunhas tenham mentido. Sucede, porém, que a falta de assertividade com que depuseram, assim como as questões acima assinaladas sobre a falta de conhecimento dos intervenientes em causa, leva-nos a crer que a versão do arguido nesta matéria, não pode ser colocada de parte. Pode ter sido o caso, tal como o arguido referiu, que tenha dito alto que preferia ver o seu pai morto, e que os militares tenham entendido isto como sendo uma frase dirigida à testemunha AA. Não sabemos… Temos muitas dúvidas do que realmente se passou quanto à alegada ameaça. Ora, em consequência da prova produzida em audiência de julgamento, entendemos que na ausência do juízo de certeza, vale o princípio de presunção de inocência do arguido (art. 32.º n.º 2 CRP), de que o princípio in dubio pro reo é corolário. Nesse plano, significa que, não existindo um verdadeiro ónus da prova que recaia em qualquer dos sujeitos processuais, nomeadamente o arguido e o Ministério Público, e devendo o tribunal investigar autonomamente toda a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre prova do facto para além de toda a dúvida razoável. Por outras palavras: na dúvida, deve julgar a favor do arguido. Assim, se, depois de reunidas as provas necessárias à decisão, o tribunal permanecer na dúvida, essa dúvida não pode desfavorecer o arguido; ou seja, o non liquet na prova da matéria de facto tem sempre de ser valorado em favor do arguido. Pressupõe a existência de um estado de dúvida no espírito do julgador, o qual tem de resultar por forma evidente do texto da decisão, permitindo concluir que o tribunal, na dúvida, optou por decidir a favor do arguido. É este o caso concreto, motivo pelo qual demos como não provados os factos que constam das alíneas a) a d). Os factos provados dos pontos 1) ao 9) assim resultaram, por formação da convicção do tribunal após conjugação da análise de toda a prova documental e testemunhal supra elencada, com as declarações do arguido e com as regras da experiência comum e com os juízos da normalidade. Os factos relativos às condições pessoais e económicas do arguido, resultam provados após valoração das suas declarações, que nesta parte resultaram verosímeis. Relativamente às suas características de personalidade, valorámos positivamente o depoimento de EE, que apesar da relação familiar e afectiva próxima, depôs de modo coerente e honesto; e a ausência de antecedentes criminais decorre da valoração do certificado de registo criminal juntos aos autos. No que concerne aos factos não provados, tal derivou da ausência de prova cabal, suficiente e para além de toda a dúvida razoável acerca dos mesmos, conforme supra já foi mencionado.” * IV.2 – Análise das concretas questões suscitadas pelo recurso do arguido: IV.2.1 – (I)legitimidade do Ministério Público para promover o procedimento criminal pelos crimes de injúrias agravados: No caso dos autos, o arguido BB, ora recorrente, foi acusado pelo Ministério Público da prática, como autor material e em concurso efetivo, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, 155º, nº 1, alínea c), por referência ao art. 132º, nº 2, alínea l), todos do CP, e de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181º, nº 1, 184 e nº 2, por referência do art. 132º, nº 2, alínea l), do aludido Código. A final, após julgamento, por sentença proferida em 17.11.2022, o arguido veio a ser absolvido da prática do crime de ameaça agravada por que vinha acusado e foi condenado pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, dos dois imputados crimes de injúria agravada, na pena de oitenta dias de multa, cada um; em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 110 (cento e dez) dias de multa à razão diária de € 6,00, perfazendo um total de € 660,00 (seiscentos e sessenta euros). O arguido/recorrente, por via do recurso deduzido, discorda da sobredita condenação, porquanto, em súmula, entende que, assumindo os crimes de injúria agravada natureza semi-pública, dependendo por isso o procedimento criminal de queixa ou participação dos ofendidos, o auto de notícia lavrado pelos agentes de autoridade que supostamente assumem tal qualidade nos autos, e que desencadeou o procedimento contra o arguido, somente consubstancia a denúncia obrigatória a que estavam sujeitos nos termos conjugados dos artigos 242º e 243º do CPP, não podendo ser considerada como apresentação de queixa para efeitos de promoção do procedimento criminal quanto aos crimes de injúria agravada, uma vez que daquele auto não decorre inequívoca tal vontade de que seja instaurado procedimento criminal contra o arguido enquanto agente dos factos ali mencionados, no que tange às expressões a si dirigidas suscetíveis de serem consideradas insultuosas. Assim, discorre o recorrente, no momento em que foi deduzida a acusação pública carecia o Ministério Público de legitimidade para acusar o arguido pelos crimes de injúria agravada, por falta do pressuposto processual referente à dedução de queixa válida e tempestiva por banda dos respetivos ofendidos. Acresce que, aduz o recorrente, tal falta de legitimidade não podia ser legalmente suprida por qualquer declaração feita pelos ofendidos em fase de julgamento de desejarem procedimento criminal contra o autor dos factos denunciados no auto de notícia, o que no caso vertente veio a suceder na sequência de um ilegal despacho da Mma. Juíza, em audiência de julgamento, que lhes concedeu tal possibilidade. Conhecendo. O crime de ameaça agravado imputado na acusação pública ao arguido assume natureza pública, competindo ao Ministério Público, em regra, após denúncia dos factos, promover o respetivo procedimento criminal e, findo o inquérito, consoante conclua pela existência ou não de indícios suficientes da prática dos factos pelo denunciado, deduzir acusação ou determinar o arquivamento dos autos – cfr. disposições conjugadas dos arts. 153º, nº1 e 155º, nº1, al. c), com referência ao art. 132º, nº2, al. l), e 113º, nº1, todos do Código Penal (CP), e art. 48º do CPP. Preceitua o artigo 181º, nº1, do CP que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.” As penas previstas nos artigos 181º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do nº2 do art. 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas, nomeadamente, se for agente das forças de segurança ou militar – cf. arts. 184º e 132º, nº2, al. l), ambos do CP. Nos termos do art. 188º, nº1, al. a), do CP, “O procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo depende de acusação particular, ressalvados os casos (…) do artigo 184º (…) em que é suficiente a queixa ou a participação.” Assim, aos crimes de injúria agravada assacados ao arguido no libelo acusatório, por seu turno, cabe natureza semi-pública, significando que o procedimento criminal por tais crimes depende de queixa ou participação do ofendido, a qual, ocorrendo tempestivamente e nas condições legais, legitima a eventual dedução de acusação pelo Ministério Público – cfr. disposições conjugadas dos arts. 181º, 184º, por referência ao art. 132º, nº2, al. l), 188º, nº1, al. a), e 113º, nº1, todos do CP, e art. 49º do CPP. Com efeito, estatui o art. 49º do CPP: “1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo. 2 - Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele. 3 - A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais. 4 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender da participação de qualquer autoridade.” Em conformidade, temos que a titularidade da acção penal e a decorrente legitimidade para promover o processo penal que é genericamente atribuída por lei ao Ministério Público (cf. art. 48º do CPP), no caso de procedimento por crime de natureza semi-pública, depende da verificação de um pressuposto que constitui condição de integração daquela legitimidade: a dedução de queixa ou participação por parte do ofendido (titular do direito especialmente protegido pela norma incriminadora) ou de outras pessoas mandatadas para o efeito. A propósito do conceito de «queixa», menciona o Exmo. Juiz Conselheiro Henriques Gaspar, in “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, comentário 1 ao art. 49º, pág. 145: «A noção de “queixa” tem conteúdo e natureza processual específicos; não constitui, como a denúncia, a simples transmissão do facto com relevância criminal, isto é, não constitui processualmente queixa uma simples declaração de ciência feita acerca de um facto. A queixa exige que se manifeste nessa declaração uma específica de perseguição criminal pelo facto, e distingue-se nos seus elementos da denúncia; na queixa, além da declaração de ciência na transmissão da ocorrência de um facto, é exigida ainda “uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra o agente. [sublinhado nosso] A “queixa” constitui uma declaração de vontade e uma específica forma de comunicação da notícia de um crime no sentido dos artigos 241º e seguintes; para efeitos de procedimento criminal, como condição de integração e pressuposto da legitimidade do MºPº para promoção do processo, tem de ser formulada pelo “titular do respetivo direito”, que pode agir por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais.» E, como adverte Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., anot. 30 ao art. 49º, pág. 150, nos casos em que a lei substantiva prevê a existência de uma participação de uma autoridade pública (como sucede no art. 188º, nº1, do CP, em alternativa à queixa), «A esta [participação] aplica-se, correspondentemente, o regime da queixa, quer no que toca às condições do seu exercício quer no que respeita à renúncia e desistência da mesma. Foi esse o sentido da supressão do art. 115º do CP de 1982, na revisão de 1995.» Conforme tem sido entendido predominante e recorrentemente pela jurisprudência e pela doutrina, o exercício do direito de queixa (ou participação) não impõe particulares formalidades e a utilização de fórmula especial, formal, sacramental, mas exige uma manifestação inequívoca, indubitável da vontade do queixoso ou participante no sentido de que pretende procedimento criminal contra o denunciado (ou contra desconhecidos, no caso de serem incertos os autores dos factos denunciados) – neste sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.06.2012, Processo nº 218/20.0GBVCT.G1, relatado pela Exma. Desembargadora Ana Teixeira; do Tribunal da Relação de Coimbra de 06.10.2010, Processo nº 1123/08.3TAGRD.C1, relatado pela Exma. Desembargadora Brízida Martins, de 27.09.2017, Processo nº 780/16.1T9LMG-A.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Orlando Gonçalves, e de 05.12.2018, Processo nº 417/16.9PBCUL.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Luís Ramos; do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.04.2013, Processo nº 1034/10.2TAALM-5.L1, relatado pelo Exmo. Desembargador Artur Vasques, todos disponíveis em www.dgsi.pt; e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.01.2008, in CJ, 2008, TI, p. 294. Na doutrina, vide, a título exemplificativo, para além do supracitado António Henriques Gaspar, Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, págs. 665 e 675, Fernando Gama Lobo, in “Código de Processo Penal Anotado”, 3ª Edição, Almedina, pág. 65 e Germano Marques da Silva, ibidem, pág. 57. No caso vertente, temos que o procedimento criminal se iniciou com o auto de denúncia constante dos autos sob referência citius ...73, lavrado em 23.06.2022 pelo Guarda da Guarda Nacional Republicana (GNR) AA, ofendido nos autos, e em que surge como testemunha a também militar da GNR .... Nesse auto descrevem-se os factos que conduziram à detenção em flagrante delito do aqui arguido, consubstanciados, na parte que ora releva, de índole criminal, na eventual prática de um crime de ameaça agravada, porque dirigida ao agente de autoridade AA, e de dois crimes de injúrias agravada, tendo como sujeitos passivos aquele agente e a sua colega GNR. O auto assim lavrado e dirigido ao Ministério Público termina com os dizeres: «É tudo quanto de momento me cumpre informar, deixando todo o conteúdo para melhor apreciação e parecer de V. Exa.» Ora, em consonância com a posição assumida pelo recorrente, entendemos que o mencionado auto de denúncia, nos termos em que foi elaborado e submetido ao órgão titular do inquérito, não consubstancia uma verdadeira queixa para efeitos de instauração de procedimento criminal contra o arguido pela factualidade ali descrita suscetível de, em abstracto, preencher a tipicidade do crime de injúria agravada, relativamente a cada um dos potenciais ofendidos, pois que do seu teor não exsuda uma clara, óbvia, inequívoca demonstração de vontade dos seus subscritores para o efeito. Nem a comunicação daqueles factos ao conhecimento do Ministério Público, no contexto em que foi efetuada, pode revelar, só por si, tal demonstração de vontade, porquanto, atenta a qualidade de órgãos de polícia criminal dos militares da GNR que o subscrevem enquanto autor e testemunha, estamos perante uma denúncia obrigatória, nos termos dos arts. 242º e 243º, ambos do CPP, sendo certo que entre os factos narrados suscetíveis de constituírem crimes contam-se, como vimos, um crime de natureza pública (ameaça agravada) e dois de natureza semi-pública (injúrias agravadas); quanto a estes últimos, que, frisa-se, são também eles de denúncia obrigatória para os membros da força militar em causa, dispõe o nº3 do art. 242º que “quando se referir a crime cujo procedimento dependa de queixa ou de acusação particular, a denúncia só dá lugar a instauração de inquérito se a queixa for apresentada no prazo legalmente previsto.” Por conseguinte, no caso, para que o Ministério Público dispusesse de legitimidade para promover o procedimento criminal contra o arguido pelos crimes de injúrias agravadas e ulteriormente, findo o inquérito, deduzir acusação contra o mesmo englobando a imputação desses ilícitos criminais, nos termos em que procedeu, necessário seria que os ofendidos tivessem declarado naquele auto de denúncia ou, posteriormente nos autos, sem qualquer formalidade especial, dentro do prazo legal disponível para o efeito (cf. art. 115º, nºs 1 e 4, do CP), que almejavam a instauração desse procedimento contra o autor dos factos nessa parte denunciados, não bastando para o efeito a mera narração da respetiva factualidade. Conclui-se, destarte, que à data da dedução da acusação pública nos autos, que, reitera-se, inclui a imputação ao arguido de crimes de natureza semi-pública, os respetivos ofendidos não haviam deduzido nos autos a necessária queixa. Em um caso com contornos semelhantes ao ora submetido à nossa apreciação, expende-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.05.2022, Processo nº 218/20.0GCSTS.P1, relatado pelo Exmo. Desembargador Orlando Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt: «Atente-se que, sendo os referidos militares da GNR, individualmente considerados, os ofendidos no caso concreto (e não a própria GNR), em face do descrito no auto de notícia, essa queixa, nos termos enunciados, torna-se indispensável. Importa então verificar se do auto de notícia elaborado e remetido ao Ministério Público e dos elementos constantes dos autos se poderá concluir, de forma minimamente inequívoca e segura, que tais militares da GNR apresentaram participação / queixa pelo crime de injúria agravada. Respeitando a argumentação do recorrente, a resposta tem, a nosso ver, de ser negativa. Com efeito, importa levar em conta, desde logo, que os alegados ofendidos não são um cidadão comum, como ressalva a Digna Procuradora da República recorrente, mas sim Guardas da GNR, os quais sabem (têm obrigação de saber) quais os procedimentos a observar para a apresentação de uma queixa ou participação pelos crimes cujo procedimento delas depende. No caso presente consta do auto de notícia, então elaborado, que se tratou de um episódio ocorrido em 14-05-2020, pelas 23:27 horas, altura em que, tendo-se deslocado ao local, na sequência de chamada telefónica para o Posto da GNR, dando conta de um ajuntamento de pessoas junto ao Posto de Abastecimento de Combustível onde o agora arguido AA trabalhava como Operador de Caixa, os Guardas BB e CC, constatando a presença de cerca de 20 pessoas no exterior,[5] estabeleceram contacto com o dito AA, o qual referiu encontrar-se sozinho, proferindo para os militares as seguintes expressões: «“está um ajuntamento à porta do estabelecimento”, “em vez de irem passear para a concorrência, deviam passar cá mais vezes”, “aprendam a fazer o vosso trabalho”, “eu estou aqui sozinho não tenho que aturar isto, a fila já vai até à zona das lavagens”, “palhaços, só querem é passear”, “otários de merda”, “filhos da puta”.» Mais consta do auto de notícia que «face à postura agressiva e insultuosa para com a patrulha foi o agora arguido informado que estava a incorrer num crime de coacção sob funcionário e injúria à autoridade policial, tendo sido solicitado a sua identificação, tendo este referido que não se identificava, foi advertido mais do que uma vez que caso não o fizesse incorreria no crime de desobediência e seria detido.» (cfr. fls. 4 e 5 dos autos, sendo o sublinhado nosso). Mas em lado algum desse auto de notícia é mencionado que se pretende procedimento criminal pelo crime de “injúrias à autoridade policial”, através da menção da formulação de queixa ou participação ou mesmo de qualquer outra expressão similar (vide tal auto de notícia). Efetivamente, foi elaborado esse auto de notícia e remetido o mesmo ao Ministério Público, mas daí não pode concluir-se, como se faz no recurso, que do mesmo “resulta inequivocamente que a ordem da GNR para que o arguido se identificasse só surge porque os agentes de autoridade pretendem queixar-se do arguido pelo crime de injúrias” (pág. 6 da motivação). Com efeito, esta argumentação impõe duas observações: por um lado, segundo o próprio auto de notícia, o agora arguido estaria, com a sua conduta, a incorrer também no crime de “coacção sob funcionário”,[6] o qual seria (também) motivo para solicitar a sua identificação; por outro, uma coisa é a prática do crime de injúrias à autoridade e outra diferente é o agente policial visado pretender queixar-se por esse tipo de crime em concreto, sendo certo que teria o prazo de seis meses, após a sua ocorrência, para o fazer (n.º 1 do art. 115.º do C. Penal). Na verdade, poderá ocorrer a prática de factos integradores de um crime de natureza semipública ou particular, que legitime a identificação do seu autor pela autoridade policia (n.º 1 do art. 250.º do CPP), e não chegar a haver procedimento criminal relativamente ao mesmo crime, precisamente porque o ofendido não formulou, depois, a respetiva queixa, não tendo, por isso, o Ministério Público legitimidade para a promoção do processo (arts. 48.º, 49.º e 50.º do CPP). Questão diferente é a detenção do respectivo suspeito, pois que, no caso de crimes cujo procedimento criminal dependa de queixa, a mesma “só se mantém quando, em ato a ela seguido, o titular do respectivo direito, o exercer” (n.º 3 do art. 255.º do CPP). No caso sub judice é manifesto, porque isso mesmo resulta do auto, que a detenção não ocorreu em virtude do dito crime de injúrias ou mesmo de coação sobre funcionário, mas sim porque o arguido teria incorrido no crime de desobediência, por alegadamente se ter recusado a identificar-se. Daí não poder concluir-se, como faz o recorrente, que a ordem para o arguido se identificar surgiu porque os Guardas da GNR pretendiam queixar-se pelo crime de injúrias e que, se assim não fosse, não havia qualquer razão para tal identificação (pág. 6 da motivação). Nem sequer é relevante para concluir como faz o recorrente Ministério Público o facto de no auto de notícia serem mencionadas as expressões injuriosas dirigidas aos militares da GNR, pois que tal auto, como é evidente, deverá sempre descrever a ocorrência na sua globalidade, independentemente de depois vir a ter lugar ou não procedimento criminal por todos os factos noticiados. Por isso é que é designado de “auto de notícia”. Daí considerarmos que a mera descrição no auto de notícia, entre outros, de factos que poderiam integrar os crimes e natureza semi-pública, depois remetido ao Ministério Público, por imposição legal, não representa, só por si, uma queixa para que este proceda por tais factos, exigindo-se, ainda, que nesse auto, ou posteriormente, se manifeste a vontade de o agente dos mesmos ser, também por eles, perseguido criminalmente. (…) A argumentação do recorrente quanto ao relevo que atribui ao auto de notícia para concluir que do teor do mesmo se deduz que foram participados os crimes de injúrias agravadas, resultando, assim, legitimada a promoção do processo e a acusação por tais crimes, só poderia ter sustentação se tal auto de notícia tivesse sido elaborado apenas por esse tipo de ilícitos. Com efeito, como se refere no despacho recorrido, entendimento diferente poderia equacionar-se se no auto de notícia, remetido ao Ministério Público, fossem descritos apenas factos integradores desse tipo de crimes, em que eram visados os ditos Guardas da GNR, pois que, nesse caso, poderia ser feita essa leitura. Mas assim não foi, pois que foi noticiada a prática de um crime público (desobediência) e a realização de uma detenção, pelo que esse auto tinha que ser lavrado, com descrição de toda a ocorrência, e remetido ao titular da acção penal, em conformidade com o disposto nos artigos 242.º, n.º 1, alínea a), 243.º, n.ºs 1 e 3, e 259.º, alínea b), do CPP. Sendo assim, em face do teor do auto de notícia elaborado, de onde não se extrai, muito menos de forma clara e inequívoca, que tenha sido formulada queixa, e da posição depois manifestada pelo militares visados nos autos, aquando da sua inquirição como testemunhas, somos levados a concluir em sentido contrário ao pugnado no recurso, pois que, além de resultar que tal auto foi elaborado pelo crime de “desobediência”, os mesmos militares, não formulando qualquer queixa ou participação, disseram nessa segunda intervenção “não” serem lesados / ofendidos pelos factos denunciados». [sublinhado nosso] No mesmo sentido, se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.09.2012, Processo nº 1445/10.3PBFAR-A.E1, relatado pelo Exmo. Desembargador João Amaro, disponível em www.dgsi.pt: «Um auto de notícia por detenção, lavrado por imposição legal e no exercício das respetivas funções, por agentes da autoridade, narrando factos reportados a crimes de natureza semi-pública, em que sejam ofendidos, não revela, só por si, uma manifestação (expressa ou implícita) inequívoca de desejo de procedimento criminal por parte desses agentes, que se configure, para os legais efeitos, como queixa.» Diga-se ainda que, diferentemente do que se intui do despacho recorrido, proferido em 03.11.2022, a mera dedução de pedidos de indemnização civil contra o arguido por banda dos “lesados” não significa uma inequívoca (nem sequer implícita) manifestação de vontade de que contra o mesmo seja deduzido procedimento criminal por factos suscetíveis de traduzirem a prática sobre aqueles de crimes de injúria agravada, quer porque a apresentação de tais pedidos nos autos foi realizada após a dedução da acusação pública e sem qualquer menção expressa a tal particular desígnio procedimental, quer porque tais atos, atenta a extemporaneidade da sua apresentação, conforme decidido no despacho judicial de 16.11.2022 [referência citius ...60], são absolutamente ineficazes, processualmente inexistentes. Dito isto, e sempre salvaguardando o devido respeito pelo entendimento assumido pela Meritíssima Juíza que proferiu as decisões recorridas - acolhido pelo Ministério Público respondente em ambas as instâncias -, cumpre ainda conceder razão ao arguido/recorrente no que tange à apontada ineficácia das declarações proferidas pelos ofendidos e juntas aos autos já em fase de julgamento, no dia 08/11/2022 (cf. ofício junto com a referência CITIUS ...60), de desejarem procedimento criminal contra o arguido pelos factos denunciados e constantes da acusação pública suscetíveis de consubstanciarem crimes de injúrias agravadas, realizadas na sequência do despacho judicial recorrido proferido no dia 03/11/2022 que ordenou a sua notificação para, no prazo de 5 dias, declararem nos autos, por escrito, se desejavam, ou não, tal procedimento. Não se olvida que estas declarações dos ofendidos foram realizadas e apresentadas nos autos dentro do prazo de seis meses após o conhecimento da ocorrência dos respectivos factos com relevância criminal (em 23.06.2022), como prescreve o art. 115º, nºs 1 e 4, do Código Penal. Todavia, tal circunstância revela-se impotente para suprir a falta da condição de procedibilidade consubstanciada na ausência de queixa dos ofendidos que se verificava no momento da prolação pelo Ministério Público da acusação pública, na parte em que imputava ao arguido o cometimento de crimes de natureza semi-pública, o que gera a sua ilegitimidade para o efeito - cfr. art. 49º do CP. Com efeito, como proficientemente defende o recorrente, a falta daquele pressuposto processual não pode ser sanada em fase posterior à do inquérito (ainda que sumário, por se tratar de Processo Abreviado), nomeadamente em fase de julgamento. Primeiramente, as declarações de pretensão de procedimento criminal contra o arguido realizadas pelos ofendidos em 08.11.2022, após a dedução da acusação, não podem ser entendidas como mera ratificação de eventual queixa meramente ineficaz anteriormente apresentada, pela simples razão de que, como acima se expôs, inexistiu até esse momento dedução de queixa. E, decisivamente, porque a ilegitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação contra o arguido por factos integradores de crimes de natureza semi-pública sem que tivesse sido formulada por cada um dos ofendidos a respetiva queixa consubstancia uma nulidade insanável cominada no art. 119º, alínea b), do CPP, como melhor se verá infra. No que tange à consequência jurídico-processual da falta do pressuposto processual de legitimidade do Ministério Público para deduzir a acusação pública na parte em que imputa ao arguido crimes de natureza semi-pública sem que existisse prévia queixa dos ofendidos, questão que é oficiosamente cognoscível, a todo o tempo (até ao trânsito em julgado da decisão final), consideramos que a mesma obsta ao conhecimento sobre o mérito da causa e conduz à extinção do procedimento criminal, com o seu consequente arquivamento.[2] Como refere Germano Marques da Silva, «pressupostos processuais são, na perspetiva funcional, requisitos de admissibilidade, condições prévias para a tramitação de uma relação processual, e, na estrutural, são elementos constitutivos da relação jurídica processual que devem verificar-se para que possa proferir-se no processo uma decisão sobre o seu objeto. […] Os pressupostos processuais constituem questões prévias, respeitam à existência do processo ou de uma fase do processo, condicionando, por isso, o conhecimento do mérito […] A falta de um pressuposto processual dá sempre lugar a uma decisão de cariz meramente processual, consistente na declaração de inexistência jurídica do processo ou de uma ou mais fases do processo.»[3] A decisão de jaez processual que, conhecendo da falta de um pressuposto processual, determine a extinção do procedimento criminal e o arquivamento dos autos (inviabilizando o conhecimento sobre o mérito da causa) somente gera caso julgado formal, vinculando definitivamente dentro do processo, mas não caso julgado material, não obstando, por isso, a novo julgamento sobre a mesma questão (o denominado non bis in idem - cfr. art. 29º, nº5, da Constituição da República Portuguesa). Tal sucederá, nomeadamente, quando se verifique, como sucede in casu, inexistência de queixa prévia do ofendido em crime de natureza semi-pública aquando da respetiva acusação pelo Ministério Público. Na verdade, nesta situação, detetada a carência de um pressuposto processual, falta essa que já não pode ser tempestivamente suprida, é óbvio que o procedimento criminal não pode prosseguir para conhecimento do mérito da causa e, como tal, deve ser declarado extinto com o inerente arquivamento dos autos. Dispõe o art. 119º, alínea b), do CPP: “Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: […] b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48º, bem como a sua ausência a atos relativamente aos quais a lei exigir a respetiva comparência.” Cremos, pois, que a verificada situação, em que o Ministério Público deduziu acusação também relativa a procedimento por crimes para os quais não possuía legitimidade, por ausência de queixas prévias dos ofendidos, corresponde a uma promoção processual fora das condições e limites legais previstos conjugadamente nos arts. 48º, 49º e 50º do mesmo diploma legal, e, assim sendo, cabendo tal interpretação na letra e espírito da lei, equipara-se e merece o mesmo tratamento jurídico da literalmente prevista falta de promoção do processo pelo Ministério Público em caso de crime público. Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.02.2014, Processo nº 154/11.0GBCVL.C1, relatado pela Exma. Desembargadora Maria Pilar de Oliveira, disponível em www.dgsi.pt, «Incontornável é que quando o Ministério Público deduziu acusação não tinha sido apresentada queixa e nos termos das disposições legais citadas carecia de legitimidade para acusar. A queixa foi apresentada posteriormente. Temos por líquido e incontestável que a falta desse pressuposto processual não é sanável por apresentação de queixa posterior ainda em tempo e mesmo que fora aplicável o regime de ratificação à queixa, apenas legitimaria o Ministério Público a deduzir acusação posteriormente à verificação desse pressuposto de procedibilidade. Ou seja, a falta de legitimidade do Ministério Público não é passível de ratificação por acto posterior à acusação porque assim se não encontra legalmente previsto. O recorrente respaldando-se no ensinamento de Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 34, invoca que a falta de legitimidade do Ministério Público para acusar se reconduz à nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea b) do Código de Processo Penal. O citado normativo preceitua que "constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48º (…)". Numa primeira análise do preceito seríamos tentados a interpretá-lo no sentido de que apenas contempla situações omissivas do despacho acusatório por parte do Ministério Público quando é este que tem legitimidade para o efeito. Mas melhor analisado esse conteúdo normativo que se refere a “falta de promoção nos termos do artigo 48º” verificamos que igualmente cabe na letra do preceito a situação em que o Ministério Público acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48º que remete por sua vez para os artigos 49º a 52º, definindo o artigo 49º a legitimidade em crime dependente de queixa. Em suma, tendo o Ministério Público deduzido acusação antes de apresentada queixa, verifica-se a referida nulidade insanável que contamina tudo o que foi processado posteriormente à exceção da queixa posteriormente apresentada, como decorre do disposto no artigo 122º do Código de Processo Penal.» Cumpre, destarte, nos termos do art. 122º do CPP, declarar a nulidade da acusação pública deduzida nos autos pelo Ministério Público na parte em que se reporta à imputada prática pelo arguido de dois crimes de injúria agravada, bem assim de todo o subsequente processado, incluindo a sentença recorrida na parte em que ajuizou sobre o cometimento pelo arguido daqueles ilícitos criminais. No sentido por nós defendido, vejam-se ainda os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 23.04.2018, Processo nº 41/14.0TAMLG.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Pedro Cunha Lopes, e de 12.07.2016, Processo nº 679/14.6GCBRG-B.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador João Lee Ferreira; do Tribunal da Relação do Porto de 03.05.2006, Processo nº 0546518, relatado pelo Exmo. Desembargador António Gama, e de 10.05.2006, Processo nº 0516510, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge França; e do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.06.2018, Processo nº 5659/17.7T8VIS.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Fernando Ventura, e de 22.04.2015, Processo nº 43/13.4TASBG-B.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Luís Teixeira; todos disponíveis em www.dgsi.pt. Em conformidade, nos preditos termos, procede parcialmente o douto recurso do arguido, impondo-se, por via da supra declarada nulidade insanável, determinar a extinção do procedimento criminal instaurado nos autos contra o arguido pela prática, como autor material e em concurso efetivo, de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181º, nº 1, 184 e nº 2, por referência do art. 132º, nº 2, alínea l), do Código Penal. Consequentemente, cumpre declarar prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente no recurso em apreço, incidente na parte condenatória da sentença proferida nos autos. * V - DISPOSITIVO: Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em: V.1 – Por irrecorribilidade legal dessa decisão, nos termos conjugados dos artigos 391º, nº1, ex vi art. 391º-G, e 420º, nº1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, rejeitar o recurso formulado pelo arguido BB na parte em que incide sobre o despacho judicial proferido nos autos em 03/11/2022. V.2 - Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido BB referente à sentença proferida nos autos e, em conformidade, nos termos conjugados dos artigos 49º e 119º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, declarar a nulidade insanável decorrente da ilegitimidade do Ministério Público para a promoção do procedimento criminal e dedução da acusação pública na parte em que imputa ao recorrente a prática de dois crimes de injúrias agravadas, sem que exista prévia queixa dos alegados ofendidos. V.3 – Em conformidade com o decidido em V.2 e ao abrigo do disposto no art. 122º do Código de Processo Penal, atenta a declaração de nulidade da acusação pública deduzida nos autos pelo Ministério Público na parte em que se reporta à imputada prática pelo arguido de dois crimes de injúria agravada, declarar a invalidade de todo o subsequente processado, incluindo a sentença recorrida na sua vertente condenatória, isto é, na parte em que ajuizou e decidiu sobre o cometimento pelo arguido daqueles ilícitos criminais, determinando-se a extinção do procedimento criminal e o oportuno arquivamento dos autos na parte afetada pela predita invalidade. * Sem tributação (arts. 513º e 514º, a contrario, ambos do Código de Processo Penal). * Guimarães, 19 de setembro de 2023, Paulo Correia Serafim (Relator) [assinatura eletrónica] Pedro Freitas Pinto (1º Adjunto) [assinatura eletrónica] Anabela Varizo Martins (2ª Adjunta) [assinatura eletrónica] (Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP) [1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que mantém atualidade. [2] Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., anotação 16 ao art. 277º, págs. 716-717. [3] Ibidem, págs. 31 e 32. |