Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
186/21.0T8MTR.G1
Relator: RAQUEL BATISTA TAVARES
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CAUSA DE PEDIR
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil, exigindo o artigo 3º n.º 3 do Código de Processo Civil que o juiz observe e cumpra ao longo do processo este principio, salvo os casos em que ressalte uma manifesta desnecessidade.
II - Tendo a Autora formulado a sua pretensão com base no instituto do enriquecimento sem causa, pretendendo o Tribunal a quo apreciar da responsabilidade civil extracontratual cabia-lhe dar a conhecer às partes que entendia ser essa a solução jurídica, de forma a observar o princípio do contraditório e a respeitar o preceituado no referido artigo 3º n.º 3, evitando a prolação de uma decisão-surpresa.
III - Para delimitar a causa de pedir “não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, antes devendo considerar-se a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida” pelo autor.
IV - Ainda que a factualidade alegada pela Autora possa também enquadrar uma situação de responsabilidade civil por factos ilícitos, não é indiferente para a decisão a proferir que a Autora tenha configurado a ação e fundado a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa, pois que num e noutro caso (responsabilidade civil por factos ilícitos e enriquecimento sem causa) estamos perante quadros normativos qualitativamente distintos.
V - Neste caso, ao enquadrar os factos na perspetiva da responsabilidade civil o Tribunal a quo “operou convolação que extravasa o âmbito daquela tal como o definiu a Autora, acabando por conhecer de questão de que não podia tomar conhecimento”, o que determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia nos termos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
VI - O princípio dispositivo, impõe que se respeite a definição do litígio feita pelas partes.
VII - O instituto do enriquecimento sem causa caracteriza-se pela sua natureza subsidiária, só sendo de aplicar quando a lei não faculte ao empobrecido qualquer meio legal de ser indemnizado ou restituído (cfr. artigo 474º do Código Civil).
VIII - Tendo a Autora à disposição outros meios de tutela jurídica da situação, designadamente ação de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, e não tendo alegado e nem provado que o dano patrimonial ressarcível em sede desta é inferior ao enriquecimento sem causa, não pode acionar a ação com base neste instituto, por força do caráter subsidiário da obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A Herança indivisa de AA, representada pelos seus herdeiros, BB, cônjuge viúva, natural da Freguesia ..., concelho ..., e os filhos CC, solteiro, maior, e DD, solteiro, maior, ambos naturais de ..., ..., todos com residência em ..., ..., ..., ..., ..., habitualmente com domicílio em ...., ..., ..., ..., EE, vieram intentar a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra FF, residente no ..., Bairro ..., ..., peticionando a condenação deste a restituir-lhes a quantia de €30.000,00, acrescida de juros vencidos e vincendos devidos pelo apresamento do referido capital, desde 16 de Abril de 2007, à taxa legal de 4%, até efetivo e integral pagamento.
Para o efeito alegaram, em suma, que AA e sua esposa BB, decidiram construir em ..., ..., uma habitação num terreno que aí possuíam, mas, porque estavam emigrados nos ..., sem possibilidades de vir a Portugal com a frequência necessária ao acompanhamento da construção, acordaram com o réu, seu familiar, para que este acompanhasse a execução da obra, verificando as fases da construção e efetuasse os correspondentes pagamentos devidos ao empreiteiro.
Mais alegaram que autorizaram o Réu a movimentar as suas contas bancárias, o que este fez, mas o Réu movimentou tais contas não só para efetuar os pagamentos atinentes aos encargos da obra, tendo utilizado quantia superior a €30.000,00 para fins e satisfação de interesses absolutamente estranhos àqueles e que, apesar de interpelado, nunca apresentou contas ao AA e sua esposa, enquanto aquele foi vivo, nem posteriormente aos seus herdeiros.
Regularmente citado, o Réu apresentou contestação.
Convidado a aperfeiçoar a contestação, juntou nova contestação.
Foi proferido despacho saneador no qual foi julgada improcedente a invocada exceção de caso julgado, e despacho que entendeu que a nova contestação não supria os vícios que haviam sido apontados, designadamente, por não serem impugnados especificadamente os factos articulados na petição inicial, limitando-se a remeter para documentos, e que se consideravam admitidos por acordo os factos constantes da petição inicial.
Foi determinada a notificação das partes nos termos e para os efeitos do artigo 567º, n.º 2, do Código de Processo Civil, concedendo o prazo de 10 dias para alegações escritas.
Considerando inexistir factualidade controvertida, o Tribunal a quo conheceu de mérito proferindo a seguinte decisão:
“Em conformidade e decorrência das razões de facto e de direito expostas, julga-se a ação totalmente procedente, por totalmente provada, e, em consequência:
a) condena-se o réu o restituir aos herdeiros de AA a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde 16 de Abril de 2007 até efetivo e integral pagamento,
b) condena-se o réu nas custas da ação.
Registe e notifique.
Inconformado, apelou o Réu da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“1-Os AA. tendo optado por intentaram ação com base no instituto do enriquecimento sem causa, que lhe estava vedada, a fim de pedir a restituição da sinalizada quantia ao R., seu mandatário, pois tinham ao seu dispor, para atingir esse desiderato, outros meios processuais, vg. ação de indemnização por responsabilidade contratual e/ou extracontratual; procedimento criminal por abuso de confiança e ainda ação especial para prestação de contas, infringiram o princípio da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa previsto no artigo 474º do Código Civil, que constitui exceção perentória e determina a improcedência da ação.
2-Não tendo absolvido o R. do pedido, pela manifesta infração do princípio da subsidiariedade, o tribunal a quo violou o disposto nesse artigo 474º.
3-Os AA. radicaram o pedido de restituição no enriquecimento sem justa causa; sem que nada o fizesse prever a restituição foi decretada com fundamento na responsabilidade por factos ilícitos., decisão essa proferida na ausência de prévia notificação pelo tribunal ao R. da possibilidade da sentença ser prolatada com base em figura distinta do enriquecimento sem causa em que os AA., fundaram a sua pretensão não tendo o R. oportunidade de se pronunciar, o que constitui decisão-surpresa, por inobservância e violação do preceituado no s artigos 3º, nº 3 do CPC, cometendo o tribunal a quo, por omissão, uma nulidade processual, o qual influiu no exame e decisão da causa e produziu a referida decisão-surpresa, já que, no mínimo, é alheia ao, ou se sita fora do, módulo ou do plano jurídico perfilhado e assumido claramente e de forma indubitável vg. pelos autores.
4-E, assim, tornando a própria sentença nula – cfr. artigo 195º, nºs 1 e 2 do CPC.
5-Invocaram os AA, na pi, que o R. está obrigado a restituir à herança autora a importância de 30.000, 00 € e também a pagar os respetivos juros legais a contar da recusa da restituição… mas, a final, peticionam juros com base na sentença de 16 de Abril de 2007, que considerou haver a obrigação do R. de prestar contas, e não a contar da recusa da restituição, o que configura divergência/contradição entre a causa de pedir e o pedido de juros.
6-Pelo que neste item a petição é inepta por contradição entre a causa de pedir e o pedido (cfr. artigo 186º, nº1, alínea b)), o que conduz à nulidade parcial do processado no que tange aos juros moratórios, com a consequente absolvição do R. da instância (artigo 278º, nº 1, alínea b), todos do Código de Processo Civil).
7-Verificando-se a exceção dilatória da ineptidão parcial da petição inicial (artigo 577º do CPC).
8- Admitindo por mera hipótese e sem conceder, que a apelação não prospere quanto à recorrida restituição da quantia de 30.000,00 € só serão devidos juros de mora a partir da citação do R. para os termos da presente ação, e não a partir de 16 de Abril de 2007, pelas razões acima expostas, nomeadamente pela suposta dívida ser ilíquida, até porque não se apurou na ação de prestação de contas saldo algum, ação que aliás culminou com a absolvição do R. da instância, por sentença de 21 de Janeiro de 2014, porque os AA., notificados para o efeito, não as prestaram, pelo que de iure não podia considerar-se que o R. entrou em mora naquela data.
9-Deve dar-se como não escrito o teor do ponto 28º dos factos provados, uma vez que que a definição de mora, implica uma valoração e um juízo, tratando-se de matéria conclusiva/de direito que não de matéria de facto.
10-Devia o tribunal a quo pronunciar-se, como devia, mas não fez, sobre a não apresentação das contas pelos AA, quando lhes foi deferido pelo tribunal a faculdade de as apresentar e em decorrência ajuizar dos efeitos da sentença de 21 de janeiro de 2014, que absolveu o R. da instância no aludido processo de prestação de contas, dada a sua relevância para apurar da invocada mora do R. e até eventualmente da mora dos AA., no confronto com a alegação e condenação do R. em mora reportada a sentença proferida, com anterioridade, no mesmo processo, em 16 de Abril de 2007, que julgou que o R. tinha obrigação de prestar contas.
11-Pelo que ocorreu omissão de pronúncia o que leva à nulidade da sentença, em consonância como o prescrito na alínea d), do nº 1, do artigo 615º do CPC”.
Pugna o Recorrente pela procedência do recurso e consequentemente pela procedência da exceção perentória da violação do principio da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, sendo o Réu absolvido do pedido; caso assim no se entenda, seja decretada a nulidade da sentença final, por se tratar de decisão-surpresa, conhecendo-se, contudo, do objeto do processo por força do disposto no artigo 665º, nº 1 do Código de Processo Civil; caso assim não se considere deve ser declarada a ineptidão parcial da petição inicial, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, no que toca aos juros moratórios, revogando-se a decisão recorrida quanto à condenação do Réu no pagamento de juros moratórios, sendo este absolvido da instância e caso assim não se julgue, deve ser decretado que os juros de mora a serem devidos, apenas são devidos desde a citação do Réu. para os termos do presente processo e considerar-se que ocorreu omissão de pronúncia, no que concerne à indicada questão, declarando-se a nulidade da sentença conforme previsto na alínea d), do nº 1, do artigo 615º do Código de Processo Civil, com as consequências que dela decorram.
A Autora contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo Recorrente, são as seguintes:
1- Da nulidade da sentença;
2 - Da ineptidão parcial da petição inicial;
3 - Da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa;
4 - Dos juros de mora e da factualidade constante do ponto 28) dos factos provados.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:
1. AA, que foi casado sob o regime da comunhão geral com a autora BB, faleceu no dia .../.../... a .../.../..., em ..., nos ...,
2. Tendo-lhe sucedido a cônjuge BB e os filhos CC e DD, supra identificados.
3. A herança de AA continua indivisa.
4. Em 1990, o AA e sua esposa BB, decidiram construir em ..., ..., uma habitação num terreno que aí possuíam.
5. Porque estavam emigrados nos ..., sem possibilidades de vir a Portugal com a frequência necessária ao acompanhamento da construção, acordaram com o requerido FF, seu familiar, para que este acompanhasse a execução da obra, verificando as fases da construção e efetuasse os correspondentes pagamentos devidos ao empreiteiro.
6. Para tanto autorizaram o réu FF a movimentar as seguintes contas bancárias, tituladas pela BB e seu marido AA: (i) Conta nº ...01 do Banco 1..., agência de ...; e (ii) Conta nº ...01 do Banco 2..., agência de Chaves.
7. O réu movimentou os saldos das duas referidas contas bancárias tituladas pelo AA e mulher BB.
8. Nesses movimentos bancários ordenados pelo réu nas duas contas referidas em 6., há quantias que foram relativas aos encargos da obra dos autores, nomeadamente pagamentos ao empreiteiro e licenças administrativas.
9. Porém, outros há, de quantias elevadas, que nada tiveram a ver com o acordado pelos titulares das contas e pelo réu,
10. E que este utilizou para fins e satisfação de interesses absolutamente estranhos àqueles (AA e BB).
11. Apesar de interpelado, o réu nunca apresentou contas ao AA e sua esposa, enquanto aquele foi vivo, nem posteriormente aos seus herdeiros.
12. O réu nunca entregou ao AA e ou aos seus herdeiros, aqui autores, os comprovativos das despesas que realizou no âmbito do cumprimento do referido contrato de empreitada.
13. As suprarreferidas contas bancárias que o réu movimentou, tinham saldos muito superiores ao valor da empreitada – sete milhões e seiscentos mil escudos (7.600.000$00) -, sendo certo que as deixou com saldo negativo.
14. O réu abusou da confiança que os seus familiares (AA e esposa) nele depositavam e fez uso parcialmente indevido dos valores por eles depositados nas supraditas contas bancárias.
15. O réu fez movimentos nas duas contas bancárias, no montante global de 17.061.708$00 (dezassete milhões e sessenta e um mil setecentos e oito escudos) ou seja 85.103,44 € (oitenta e cinco mil cento e três euros e quarenta e quatro cêntimos).
16. Entre 1990 e 1994 o réu FF movimentou das ditas contas tituladas pelo autor da herança autora e sua esposa os seguintes montantes:
a. Da conta do Banco 1...: 6.181.550$00 (30.833,44 €), e b. Da conta do Totta & Açores 10.880.158$00 (54.270,00 €).
17. O custo da empreitada contratada pelo AA e esposa foi de 7.600.000$00.
18. Ao montante referido em 17. acresceu o valor dos “trabalhos a mais” que efetivamente foram incorporados na obra, os quais foram avaliados pelo empreiteiro que a concluiu em 2.000.000$00 (10.000,00 €).
19. O réu locupletou-se, injustificadamente, à custa dos autores, com a diferença entre aqueles valores, ou seja, com 37.103,44 €.
20. Até hoje, o réu sempre se recusou a prestar contas e a pagar ao AA e aos seus herdeiros o montante aludido em 19.
21. Por isso, o AA e a esposa instauraram neste Tribunal, contra o réu, a ação especial de prestação de contas que correu termos sob o n.º 164/04.....
22. Na qual foi proferida sentença no dia 16 de abril de 2007, que declarou “a obrigação do Réu prestar contas aos autores”, e que lhe foi fixado “o prazo de 20 dias após o trânsito da presente decisão”, obrigação que até hoje não cumpriu.
23. A ação identificada em 21. foi intentada pelo AA e esposa contra o réu depois de o terem interpelado pessoalmente e por escrito, através de três cartas,
24. Uma delas entregue em mão por uma amiga comum a autores e réu – GG, quando esta veio de férias a ....
25. Numa vinda de AA a Portugal, em agosto de 1995, ocorreu um encontro com o réu, que foi confrontado com os movimentos por ele operados nas contas bancárias, no montante global de 17.061.708$00 (85.103,44 €) e lhe foi pedido que justificasse o diferencial entre este valor e o custo da empreitada.
26. O réu não foi capaz de explicar o destino nem a causa de tão elevado valor dos injustificados movimentos por si promovidos nas ditas contas,
27. O réu utilizou parte dos saldos das identificadas contas bancárias para proveito próprio.
28. O réu está em mora, pelo menos desde o dia .../.../... a .../.../..., data em que foi condenado a prestar contas aos autores, no processo n.º 164/04.....
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3.2. DA NULIDADE DA SENTENÇA

O Recorrente vem invocar a nulidade da sentença recorrida por omissão de pronuncia, por entender que o Tribunal a quo se devia ter pronunciado sobre a não apresentação de contas pelos Autores e ajuizar dos efeitos da sentença proferida em 21 de janeiro de 2014 que absolveu o Réu da instância.
Sustenta ainda a nulidade da sentença por ter violado o principio do contraditório e constituir uma decisão surpresa ao condenar o Réu com base na responsabilidade civil por factos ilícitos quando a Autora apenas fundou o seu pedido no instituto do enriquecimento sem causa.

Vejamos.
O artigo 615º do Código de Processo Civil prevê de forma taxativa as causas de nulidade da sentença.

Assim, dispõe o n.º 1 deste preceito que:
“1- É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.

As causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas neste preceito, conforme se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2017 (Processo n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1, Relator Conselheiro Alexandre Reis, disponível em www.dgsi.pt), “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei”.
As decisões judiciais podem efetivamente encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respetiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e/ou do direito, a respetiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido artigo 615º.
As nulidades da sentença não se confundem, por isso, com o chamado erro de julgamento.
Ora, o Recorrente, não obstante arguir a nulidade da sentença por omissão de pronuncia, alega apenas que o Tribunal a quo se devia ter pronunciado sobre a não apresentação de contas pelos Autores quando lhes foi deferida a faculdade de as apresentar e ajuizar das consequências da sentença de 21 de janeiro de 2014, que absolveu o recorrente da instância no processo de prestação de contas, dada a sua relevância para indagar da mora do Recorrente e até da Autora.
Conforme resulta dos autos, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre a ação de prestação de contas no despacho saneador a propósito da exceção de caso julgado invocada pelo Réu, que julgou improcedente.
Consta do despacho saneador que “[n]a invocada ação de prestação de contas que correu termos entre AA e mulher, BB, e FF, uma vez decidida a obrigação de prestar contas por parte do réu, a verdade é que não chegou a ter lugar a referida fase executiva, porquanto o réu, para tanto notificado, não chegou a prestar contas.  Daí que, em tal processo não tenha chegado a haver lugar à fase subsequente, na qual se definiriam os termos em que a prestação de contas se deveria processar.  Donde, nunca foi concretamente apreciado o pedido de condenação do réu no pagamento da quantia com a qual entendem os autores que o mesmo se locupletou. Afigurando-se evidente que nem a decisão proferida naquela primeira fase do processo de prestação de contas, nem a subsequente – que não versou sobre contas, porquanto as mesmas não foram prestadas - não constituem caso julgado quanto a tal materialidade. E isto porque, de acordo com o preceituado no artigo 621.º do CPC, a sentença apenas constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.  Ademais, importa ter presente que “o processo especial de prestação de contas, além de não ser o adequado com vista à indagação da má administração da pessoa obrigada à prestação de contas, também não se ajusta à condenação do réu no pagamento de determinada quantia com fundamento na sua apropriação ilícita” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.05.2022, disponível em www.dgsi.pt).”
Assim, no que respeita à questão colocada pelo Réu relativamente à ação de prestação de contas, não se suscitam dúvidas que o tribunal a quo se pronunciou sobre a mesma e decidiu-a.
Na verdade, a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do referido artigo 615º prende-se com a omissão de pronúncia (quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar) ou com o excesso de pronúncia (quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento).
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há-de resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do CPC do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas, cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Mas, a resolução das questões suscitadas pelas partes não pode confundir-se com os argumentos suscitados ou as considerações tecidas, e nem tão pouco com meios de prova, não se confundindo com o designado erro de julgamento.
Isto é, o tribunal tem de pronunciar-se sobre o pedido formulado pelas partes e sobre as questões por elas suscitadas, mas, para esse efeito, não tem necessariamente de tomar posição expressa sobre todos os argumentos apresentados; se o tribunal vier a decidir as questões sem que tal aconteça, não ocorrerá nulidade por omissão de pronúncia.
In casu, o Recorrente alega que o Tribunal a quo deveria ajuizar dos efeitos da sentença aí proferida, que absolveu o Recorrente da instância, dada a sua relevância para indagar da mora do Recorrente e até da Autora.
Mas, como já referimos, o que releva é que o tribunal se pronuncie sobre as questões suscitadas, e não sobre todos os argumentos invocados; e a questão a decidir a que se refere o Recorrente é a da existência de mora e do momento em que a mesma ocorre; a sentença proferida na ação de prestação de contas, para esse efeito, não constitui nenhuma questão submetida à apreciação do tribunal de 1ª Instância que tivesse de ser apreciada, pelo que nunca estaríamos perante uma nulidade por omissão de pronúncia.
Se, por hipótese, o Tribunal a quo devia ter considerado a data da sentença e a absolvição da instância para efeitos da verificação da mora e contagem de juros, em vez de condenar no pagamento de juros desde 16 de abril de 2007, como fez, estaríamos perante uma questão de alegado erro de julgamento (que o Recorrente também suscita no presente recurso), e não de nulidade da sentença.
Contudo, já entendemos assistir razão ao Recorrente quando invoca a nulidade da sentença e a violação do principio do contraditório, sustentando que a sentença recorrida, ao condenar o Recorrente com fundamento na responsabilidade civil por factos ilícitos, constitui uma verdadeira decisão-surpresa.
Alega o Recorrente que a Autora fundou a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa, indicando expressamente na petição inicial os artigos 473º, 479º e 480º, todos do Código Civil, sendo inequívoco que apenas fundou o seu pedido neste instituto, não podendo o recorrente prever que o julgador proferisse sentença declarando procedente a ação com base em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.
Vejamos.
Cremos ser consensual que ao tribunal se encontra vedada (salvo casos de manifesta desnecessidade) a possibilidade de conhecer de uma questão nova, não suscitada pelas partes, sem que tenha dado a possibilidade às mesmas de se pronunciarem sobre ela, o que nos remete efetivamente para a questão da decisão surpresa e suas consequências.
Decorre do artigo 3º n.º 3 do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Como é consabido, o princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil, exigindo aquele preceito do juiz que observe e cumpra ao longo do processo este principio, salvo os casos em que ressalte uma manifesta desnecessidade.
Como se consigna no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/07/2018 (Processo n.º 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, Relator Helder Roque, disponível em www.dgsi.pt“[d]o princípio do contraditório decorre a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar”.
 Porém, a decisão-surpresa respeita à a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar, e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram previsíveis, “não se confundindo a decisão-surpresa com a suposição que as partes possam ter concebido quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter realizado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta, designadamente, quando lhes foi apresentada uma versão fáctica não contrariada e que, manifestamente, não consentiria outro entendimento”, conforme se refere no citado acórdão de 12/07/2018 .
In casu, a Autora veio formular a sua pretensão com base no enriquecimento sem causa e, ainda que fosse licito ao Tribunal a quo apreciar da responsabilidade civil extracontratual (o que entendemos não ser conforme adiante iremos explanar) cabia-lhe sempre dar a conhecer às partes que entendia ser essa a solução jurídica, de forma a observar o princípio do contraditório, respeitando o preceituado no referido artigo 3º n.º 3 do CPC.
Assim sendo, deveria sempre o Tribunal a quo antes de proferir a sentença, ter notificado as partes, em obediência ao estabelecido neste preceito, advertindo-as para a intenção de vir a conhecer do pedido da Autora com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por fatos ilícitos, e não com base no instituto do enriquecimento sem causa invocado pela Autora.
No caso dos presentes autos o Recorrente não teve efetivamente a oportunidade de debater a questão da responsabilidade civil extracontratual, não se podendo afirmar que a decisão proferida pelo Tribunal a quo era ou devia ser previsível, sendo por isso de concluir que a decisão recorrida constitui uma decisão surpresa com violação do princípio do contraditório, sendo, por isso, nula.
Mas, a sentença recorrida é nula, não só por violação do principio do contraditório, mas também por ter o Tribunal a quo conhecido de causa de pedir diversa da que fora invocada pela Autora nos presentes autos, apreciando e decidindo à luz da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, quando a Autora reconduzira os factos ao instituto do enriquecimento sem causa, nele fundando a sua pretensão, conforme decorre expressamente do alegado na petição inicial:
“Como resulta do supra exposto, sem causa justificativa, o réu locupletou-se com quantia superior a 30.000,75 €, à custa do património do da herança autora e de sua esposa BB e, consequentemente, dos seus legítimos herdeiros e sucessores, que ficaram empobrecidos na medida do correspondente enriquecimento sem causa daquele.
Por isso, está o réu obrigado a restituir à herança autora a referida importância (30.000,000 €), como também a pagar os respetivos juros legais a contar da recusa da restituição, uma vez que tem e sempre teve pleno conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento (Art.s 473º, 479º e 480º do Cód. Civil)” (cfr. artigos 38º e 39º da petição inicial).
A este propósito importa ter presente o que deve entender-se por causa de pedir.
Decorre do preceituado no artigo 581º n.º 4, do CPC (relativamente aos requisitos da litispendência e do caso julgado) que há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico; nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
Contudo, como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/09/2018 (Processo n.º 21852/15.4T8PRT.S1, Relator Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt) “(…) a causa de pedir, legalmente definida (art.º 581.º, n.º 4, do CPC) como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se numa factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que não deve ser destituída de qualquer valoração jurídica, mas sim relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor (…).
Nessa conformidade, a causa de pedir pode ser, analiticamente, configurada por dois vetores complementares:
a) – o seu perfil normativo, que a doutrina designa por causa de pedir próxima (…), traçado não em função da qualificação jurídica dada pelo autor, mas à luz do quadro das soluções de direito plausíveis que ao tribunal cumpre, a final, convocar, em função do efeito prático-jurídico pretendido;
b) – o seu substrato factológico, também designado por causa de pedir remota (…), o qual é preenchido, segundo um critério empírico-normativo, em função do tipo de factualidade desenhada, em abstrato, na factis species aplicável, tendo ainda em conta os critérios de repartição do ónus da prova formulados a partir do sobredito efeito prático-jurídico”.
Assim, como aí se refere, para delimitar a causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, antes devendo considerar-se a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida (sublinhado nosso).
O referido artigo 581º n.º 4 acolhe a designada doutrina da substanciação, segundo a qual a causa de pedir deve ser preenchida com os factos essenciais causantes do efeito jurídico pretendido.
A este propósito Abrantes Geraldes (Temas da Reforma de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2.ª Edição, Coimbra, 1998, p. 192-193) considera que neste preceito o legislador fez uma opção clara ente dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir e que “a opção pela teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objeto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada”.
Sendo consabido que, em regra, a distinção de causas de pedir é feita através da conjugação da factualidade concretamente alegada com o quadro normativo aplicável, não podemos desconsiderar que em certos casos uma mesma factualidade pode configurar distintos quadros normativos, sujeitos a diversos modos de tutela jurídica e, nestes casos, a distinção terá de ser feita em função do designado “vetor normativo da causa de pedir”.
Por isso, ainda que ao tribunal incumba proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas (cfr. artigo 5º n.º 3 do CPC), essa liberdade de qualificação não pode “permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa” (v. o citado acórdão de 18/09/2018).
Neste sentido Lebre de Freitas (“Caso julgado e causa de pedir, O enriquecimento sem causa perante o artigo 1229.º do Código Civil”, Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de maio de 2006, in ROA 2006, Ano 66, Vol. III, p. 8, acessível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2006/ano-66-vol-iii-dez-2006/jurisprudencia-critica/jose-lebre-de-freitas-caso-julgado-e-causa-de-pedir-o-enriquecimento-sem-causa-perante-o-artigo-1229-do-codigo-civil/) afirma o seguinte: “Ora, embora a causa de pedir seja integrada por factos concretos, está hoje abandonada a ideia de que ela se possa delimitar segundo critérios meramente naturalísticos, o que a conduziria à impossibilidade de a circunscrever em termos jurídicos. Fora o caso de concurso de normas meramente aparente, dois complexos de factos, cada um dos quais integre a previsão duma norma jurídica constitutiva de direitos, só constituirão a mesma causa de pedir se o núcleo essencial das duas normas for o mesmo”.
Também Teixeira de Sousa (“Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil”, in Scientia Iuridica, Tomo LXII, n.º 332, 2013, p. 395 e ss., apud o citado acórdão de 18/09/2018) considera que “[a] causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico. É a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir. (…) Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais”, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica. Isto demonstra que o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstrato, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais”.
Assim, e regressando ao caso concreto, ainda que a factualidade alegada pela Autora possa enquadrar uma situação de responsabilidade civil por factos ilícitos, não é indiferente para a decisão a proferir que a Autora tenha configurado a ação e fundado a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa, pois que num e noutro caso (responsabilidade civil por factos ilícitos e enriquecimento sem causa) estamos perante quadros normativos qualitativamente distintos.
Do exposto decorre que, na sentença recorrida, ao enquadrar os factos na perspetiva da responsabilidade civil, o Tribunal a quo “operou convolação que extravasa o âmbito daquela tal como o definiu o autor, acabando por conhecer de questão de que não podia tomar conhecimento”.
É esta também a conclusão a que se chegou no acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 24/01/2019 (Processo n.º 948/14.5TVLSB.L1.S1, Relatora Rosa Ribeiro Coelho, também disponível em www.dgsi.pt), onde se tratou idêntica questão e que aqui seguimos de perto.
Conforme se escreve neste acórdão “[o] art. 474º, afirmando a subsidiariedade do enriquecimento sem causa face a outro instituto, nomeadamente a responsabilidade civil, ao qual possa ser reconduzido o mesmo conjunto de factos que também preencha os requisitos daquele, aponta para a impossibilidade de se recorrer ao primeiro por o segundo ser, no caso, configurável.
 Assim, em hipóteses como esta – que é a dos autos -, é de adotar, a ideia acima transcrita de Teixeira de Sousa – igualmente presente no ensinamento de Lebre de Freitas –, justificando-se, por isso, e tal como se disse no acórdão deste STJ de 18.9.2018, dar destaque, na configuração da causa de pedir concretamente invocada, ao vetor normativo seguido pelo autor, o que, no caso, aponta para a valoração dos factos enquanto integradores de um enriquecimento cuja restituição se pretende com a propositura da ação.
Assim definida a causa de pedir da presente ação, é de concluir que a sentença, ao valorar os factos na perspetiva da responsabilidade civil - e apesar de parecer ser permitida pela liberdade de qualificação jurídica consagrada no nº 3 do art. 5º do CPC -, operou convolação que extravasa o âmbito daquela tal como o definiu o autor, acabando por conhecer de questão de que não podia tomar conhecimento”.
Considerando aqui a definição de causa de pedir a que nos referimos, e sendo de dar relevo ao vetor normativo seguido pelo Autora, temos de concluir que não estamos perante uma mera qualificação jurídica distinta, tal como é permitida pelo n.º 3 do artigo 5º do CPC, mas de se decidir por uma pretensão qualitativamente distinta da formulada pela Autora, e nem sequer por esta deduzida, “quer quanto à relação jurídica material controvertida, quer quanto ao próprio efeito pretendido, e portanto fora do perímetro da vinculação temática do tribunal, nos termos decorrentes dos artigos 5.º, n.º 1, 260.º, 609.º e 611.º do CPC” (v. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/01/2017, Processo n.º 873/10.9T2AVR.P1.S1, Relator Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt).
Como se afirma neste acórdão de 19/01/2017 “a realização da justiça do caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República.
Assim, a decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo. Incumbe sim ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido. É-lhe, pois, vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, o mesmo é dizer, não comportada na órbita do efeito prático-jurídico deduzido, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada”.
 Entendemos ainda que principio do dispositivo, ao determinar o respeito pela definição do litigio feita pelas partes, impõe também esta solução, pois que traduzindo-se “na liberdade das partes de decisão sobre a propositura da ação, sobre os exatos limites do seu objeto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às exceções perentórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transacionar)”, é um princípio que, no fundo, “estabelece os limites de decisão do juiz — aquilo que, dentro do âmbito de disponibilidade das partes, estas lhe pediram que decidisse. Só dentro desta limitação se admite a decisão” (Mariana França Gouveia, “O Princípio Dispositivo e a Alegação de Factos em Processo Civil: a Incessante Procura da Flexibilidade Processual”, in Estudos em Homenagem aos Professores Palma Carlos e Castro Mendes, n.º 3, apud o citado acórdão de 24/01/2019).
É, por isso, de concluir que a sentença enferma da nulidade de excesso de pronúncia nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC ao condenar o Réu com base na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, quando a Autora configurou a ação com base no instituto do enriquecimento sem causa e, com base neste, deduziu a sua pretensão.
A nulidade da sentença, tal como afirmado pelo Recorrente, não impede que se conheça do objeto da apelação (cfr. n.º 1 do artigo 665º do CPC) pelo que iremos adiante apreciar a pretensão da Autora com base no enriquecimento sem causa, tal como por si configurado.
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3.3. DA INEPTIDÃO PARCIAL DA PETIÇÃO INICIAL

O Recorrente entende que a petição inicial é parcialmente inepta por contradição entre a causa de pedir e o pedido, o que conduz à nulidade parcial do processado no que tange aos juros moratórios.
Sustenta para esse efeito que a Autora invocou na petição inicial que o Réu está obrigado a restituir a importância de €30.000,00 e a pagar os respetivos juros a contar da recusa da restituição, mas, a final, peticionou juros com base na sentença de 16 de abril de 2007.
Vejamos se lhe assiste razão.
Dispõe o artigo 186º n.º 2 do CPC que:
“2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.
Por outro lado, se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial (n.º 3 do mesmo preceito).
Uma petição diz-se inepta quando, pura e simplesmente, faltar o pedido e a causa de pedir, mas também quando esta ou aquele forem ininteligíveis, correspondendo a ininteligibilidade à falta daqueles.
Como ensinava já o Prof. Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2º, Almedina, 1945, p. 359 e sgs.) uma petição é ininteligível quando não pode saber-se, nem depreender-se, qual o pedido ou a causa de pedir.
No que toca à causa de pedir, impõe-se que os factos essenciais sejam apresentados com clareza e concisão. A causa de pedir traduz-se no facto jurídico material, concreto, em que se baseia a pretensão deduzida em juízo (cfr. artigo 581º n.º 4 do CPC), consistindo a falta de causa de pedir na omissão dos factos essenciais que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.
Quanto ao pedido a lei processual “impõe também que o pedido seja formulado de modo claro e inteligível, que seja preciso e determinado. Compreende-se perfeitamente esta exigência legal, na medida em que se torna indispensável para assegurar à contraparte o exercício do direito de defesa e colocar o autor a coberto de decisões judiciais que, porventura, tenham um alcance ou sentido diferentes dos pretendidos. Sendo um elemento fundamental para definir o objeto do processo, deve apresentar características que o tornem inteligível, idóneo e determinado, conforme Castro Mendes refere na sua obra Direito Processual Civil, vol. II, pág. 290. A petição inicial será pois inepta, quando por meio dela não puder descobrir-se que tipo de providência o autor se propõe obter ou qual o efeito jurídico que pretende conseguir por via da ação (…)” (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 1997, p. 105).
O autor deve expressar a sua vontade de forma a que a mesma possa ser facilmente apreendida por terceiros de modo a permitir a definição dos contornos do direito no caso concreto quando tiver de ser proferida a sentença; assim, será inepta uma petição que contenha um pedido vago e abstrato como quando o autor pretende proibir o réu de todo e qualquer ato ofensivo de interesses do autor, ou ainda quando pretende a condenação na entrega de um prédio rústico ou urbano, sem qualquer identificação, ou o reconhecimento da propriedade de uma parcela de terreno, sem indicar a sua área, sem delimitações ou outros elementos identificadores.
Analisemos então o caso concreto.
O Recorrente sustenta verificar-se a contradição entre o pedido e a causa de pedir no que tange aos juros moratórios alegando que a Autora invocou que o Réu está obrigado a restituir a importância de €30.000,00 e a pagar os respetivos juros a contar da recusa da restituição, mas, a final, peticionou juros com base na sentença de 16 de abril de 2007.
Porém, analisada a petição inicial constatamos que a Autora alegou que o Réu está em mora, pelo menos desde o dia .../.../... a .../.../..., data em que foi condenado a prestar contas no Processo n.º 164/04.... (artigo 37 da petição inicial) e pediu a sua condenação a pagar os juros vencidos e vincendos desde 16 de abril de 2007, data da constituição em mora, à taxa legal de 4%, contados até efetivo e integral pagamento.
Não vislumbramos, por isso, qualquer contradição entre contradição entre o pedido e a causa de pedir no que tange aos juros moratórios, não se verificando a invocada ineptidão, ainda que parcial, da petição inicial.
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3.4. DA SUBSIDIARIEDADE DO INSTITUTO DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA

A Autora enquadrou a presente ação no instituto do enriquecimento sem causa e, com base neste instituto, deduziu a sua pretensão de condenação do Réu a restituir aos herdeiros de AA a quantia de €30.000,00, acrescida de juros.
Conforme já referimos, a nulidade da sentença não impede que se conheça do objeto da apelação pelo que importa apreciar agora a pretensão da Autora com base no enriquecimento sem causa.
Sustenta o Recorrente que a restituição da quantia em causa não pode ser declarada à luz do instituto do enriquecimento sem justa causa, na medida em que a Autora dispunha de outros meios procedimentos e diversas vias processuais e substantivas de conseguir essa restituição.
Entendemos que efetivamente assiste razão ao Recorrente atenta a natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem justa causa: sendo possível, com base nos factos alegados, enquadrar a pretensão da Autora na responsabilidade civil extracontratual (conforme aliás se entendeu na sentença recorrida) a natureza subsidiária daquele instituto impede que a Autora a ele recorra desde já.
Vejamos então.
Começamos por referir que é ao autor, que pretende obter a restituição com fundamento em enriquecimento sem causa, que incumbe o ónus de alegar e provar a verificação dos seus pressupostos, como factos constitutivos que são do respetivo direito (cfr. artigo 342º, n.º 1 do Código Civil).
Dispõe o artigo 473º n.º 1 do Código Civil que “[a]quele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”; a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (nº 2).
Por outro lado, resulta do artigo 479º do mesmo diploma que “[a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente” (n.º 1) e que “[a] obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento à data da verificação de algum dos factos referidos nas duas alíneas do artigo seguinte (n.º 2).
Podemos então dizer de forma sintética que são requisitos, cumulativos, do enriquecimento sem causa:
i) a existência de um enriquecimento;
ii) obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;
iii) falta de causa justificativa para o enriquecimento
(neste sentido, entre outros, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 6ª Edição, 2004, p. 437 e seguintes; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 12ª Edição, 2014, p. 491; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Almedina, 12ª Edição, 2015, p. 404).
O enriquecimento representa uma vantagem ou benefício, de carácter patrimonial, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição, que pode traduzir-se num aumento do ativo patrimonial, numa diminuição do passivo, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, ou ainda na poupança de despesas (v. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 4ª Edição, p. 454).
A este propósito pronuncia-se Mário Júlio de Almeida Costa (ob. cit. p. 492 e 493) considerando que a vantagem em que o enriquecimento consiste pode ser “encarada sob dois ângulos: o do enriquecimento real, que corresponde ao valor objetivo e autónomo da vantagem adquirida; e o do enriquecimento patrimonial, que reflete a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efetiva (real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética).”
Por outro lado, à vantagem patrimonial obtida por alguém, corresponderá, em regra, uma perda sofrida por outrem, o que se traduz num enriquecimento à custa de um empobrecimento: a vantagem patrimonial alcançada por um resultará do sacrifício económico suportado pelo outro (v. Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit., Volume I, p. 454).
A obrigação de restituir pressupõe ainda que o enriquecimento careça de causa justificativa, ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.
A lei não define o que deve entender-se por “causa de enriquecimento”, mas estabelece um critério de orientação no n.º 2 do artigo 473º do Código Civil ao dispor que a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial, por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.
Estamos, assim, perante três situações especiais aí identificadas de enriquecimento sem causa (v. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 7ª Edição, 2010, p. 205; Mário Júlio de Almeida Costa, ob. cit. p. 505, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ob. cit., p. 413):
- A condictio in debiti (repetição do indevido);
- A condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir),
- e a condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto).
Releva determinar, em cada caso concreto, “se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve” (Galvão Telles, ob. cit. p. 199 e 200), ou se “o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, ou se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa” (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Volume I,  p. 456; neste sentido v. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de novembro de 2016, Processo n.º 390/09.0TBBAO.P1.S1, de 3 de maio de 2018, Processo n.º 175/05.2TBALR.E1.S1 e de 04 de julho de 2019, Processo n.º 2048/15.1T8STS.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Conforme refere Mário Júlio de Almeida Costa (ob. cit. p. 500) o enriquecimento diz-se sem causa quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial.
Porém, conforme já adiantamos, o instituto do enriquecimento sem causa caracteriza-se pela sua natureza subsidiária, só sendo de aplicar quando a lei não faculte ao empobrecido qualquer meio legal de ser indemnizado ou restituído (cfr. artigo 474º do Código Civil); aliás, Mário Júlio de Almeida Costa (ob. cit. p. 499) refere a “ausência de outro meio jurídico” também como um dos requisitos, que designa de negativos, do enriquecimento sem causa.
O artigo 474º do Código Civil, estabelecendo que não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento, confere ao enriquecimento sem causa natureza subsidiária ou residual, consagrando assim o chamado princípio da subsidiariedade daquele instituto em relação a outros meios específicos de tutela (neste sentido, entre vários outros, v. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22/10/2015, Processo n.º 6553/12.3TBCSC.L1.S1, Relator Pires da Rosa, e de 28/06/2018, Processo n.º 1567/11.3TVLSB.S2, Relator Tomé Gomes, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Daqui se conclui que o empobrecido apenas pode recorrer à ação de enriquecimento quando a lei lhe não faculte outro meio, e só apurando que “essas normas diretamente predispostas não esgotam, a tutela jurídica da situação é que se justifica o recurso complementar ao instituto do enriquecimento sem causa” (Mário Júlio de Almeida Costa, ob. cit. p. 502).
Como salienta Antunes Varela (ob. cit. p. 470 a 472), a propósito do caráter subsidiário da obrigação de restituir, na mesma situação podem concorrer os institutos da responsabilidade civil (entre outros) e do enriquecimento sem causa, o que pressupõe que a intromissão nos bens ou direitos alheios, levada a cabo, culposamente, pelo intrometido gere para este um enriquecimento e, simultaneamente, cause um dano ao lesado. E, nesse caso, a natureza subsidiária da obrigação de restituir leva a que se deva “conceder primazia à obrigação de indemnizar”.
In casu, a Autora poderia lançar mão, como lançou, da ação de prestação de contas na qual foi proferida sentença no dia 16 de abril de 2007, que declarou “a obrigação do Réu prestar contas aos autores” (sendo certo que na ação de prestação de contas veio a ser proferida decisão a absolver o Réu da instância uma vez que os Autores não apresentaram as contas), ou de ação de indemnização por responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, conforme decorre da própria sentença recorrida.
Assim, se tinha a Autora essa possibilidade e estava protegida pela ação de responsabilidade civil, se a não usou e preferiu lançar mão da presente ação com base no enriquecimento sem causa, sibi imputat.
A violação do princípio da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, previsto no referido artigo 474º, conduz necessariamente à improcedência da presente ação.
É certo que poderíamos conceber, em abstrato, a possibilidade de aplicação conjugada do instituto do enriquecimento sem causa com o regime da responsabilidade contratual: a possibilidade de, na resolução da mesma situação fáctico-jurídica, ser convocado tanto o regime da responsabilidade civil como o do enriquecimento sem causa; o que poderá suceder “em razão da diferente natureza do conteúdo e finalidade de cada uma das fontes das obrigações: na responsabilidade civil, a reparação de um dano; no enriquecimento sem causa, a restituição de um enriquecimento injustificado” [v. o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/09/2023, Processo n.º 16093/18.1T8LSB.L1.S1, Relatora Maria da Graça Trigo, disponível em www.dgsi.pt; neste acórdão cita-se ainda Júlio Gomes (Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 255-256): “[A] interpretação do artigo 474.º deve ter presente que nem sempre a responsabilidade civil (...) representa um meio adequado para obter o mesmo resultado que a restituição do enriquecimento proporcionaria. Pense-se, por exemplo, na hipótese de o enriquecimento obtido pela ingerência ou intromissão na esfera jurídica alheia ser superior ao dano patrimonial (ou, em todo o caso, e como refere Sirena (...), o dano que é possível provar ficar aquém do enriquecimento), que pode até não existir (o interveniente usou, por ex., a imagem de outrem para fins publicitários, sem o consentimento do seu titular, o qual, não só não era um modelo, como nunca aceitaria a comercialização desse bem”].
Porém, o “princípio da subsidiariedade do enriquecimento sem causa deve ser interpretado na linha da sua articulação com um concorrente meio de tutela específico visto na sua funcionalidade em relação aos contornos do litígio em causa e não de forma absoluta ou meramente genérica” (v. o citado acórdão de 28/06/2018) e no caso dos autos, de acordo com o alegado e peticionado, o dano e o enriquecimento apresentam-se como coincidentes; nada resulta alegado (nem provado) pela Autora que permita concluir que o dano patrimonial ressarcível em sede de responsabilidade extracontratual é inferior ao enriquecimento sem causa invocado.
Em face do exposto, procede, por isso, o recurso, e, consequentemente, impõe-se revogar a sentença recorrida, julgando-se a ação improcedente e absolvendo-se o Réu dos pedidos, ficando prejudicado o conhecimento da questão suscitada pelo Recorrente relativa aos juros de mora e factualidade constante do ponto 28) dos factos provados.
As custas do recurso, bem como as custas da ação, são da responsabilidade da Autora/Recorrida atento o seu integral decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogando a sentença recorrida, decidem julgar procedente a ação e absolver o Réu dos pedidos formulados pela Autora.
Custas do recurso e da ação pela Autora/Recorrida.
Guimarães, 02 de novembro de 2023
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Maria dos Anjos Nogueira (1ª Adjunta)
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira (2ª Adjunta)