Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
179/15.9FAF.G2
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: NOTIFICAÇÃO DA ACUSAÇÃO
DO ART.119º
AL.C) CPP
OMISSÃO
NULIDADE
PRESCRIÇÃO PROCEDIMENTO CRIMINAL
NOVAS CAUSAS SUSPENSÃO PRAZOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Carece de sentido fazer coincidir a ausência de tomada de posição expressa do Ministério Público, relativamente à acusação deduzida pelo assistente, com a falta de promoção do processo e, consequentemente, ver na mesma a nulidade insanável por falta de promoção do processo, prevista no artº 119, al. b), do CPP.
II) A partir da notificação do assistente, nos termos do artigo 285º, nº1, do C.P.P., a promoção do processo é indubitavelmente do assistente e só após a dedução por este da acusação particular o processo poderá passar à fase seguinte, e isto, independentemente do concurso do Ministério Público, ou seja, mesmo que este não tome posição.
III) Porém, comungando do entendimento de que existe a obrigatoriedade por parte do Ministério Público de tomar posição relativamente à acusação particular, a consequência decorrente da falta de pronúncia por parte do Ministério Público, nos termos do artigo 285º,nº4, é a verificação da nulidade sanável prevista no artº 120º, nº 2, al. d), do CPP.
IV) Tal obrigatoriedade evola, desde logo, do artigo 219º da CRP, ao estatuir que compete ao Ministério Público o exercício da acção penal, orientada pelo princípio da legalidade.
É ele quem recolhe os indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente e decide, findo o inquérito, notificar o assistente para, em dez dias, querendo, deduzir acusação particular.
E, assim sendo, tem claramente a obrigação de decidir, em face dos elementos que recolheu em sede de inquérito, se acompanha a acusação particular, se só a acompanha em parte ou se de todo a não acompanha, desde logo porque em face do que recolheu em inquérito não concorda com o que nela vem a ser descrito.
V) Com as medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e doença COVID-19, criou-se, para além do mais, uma nova causa de suspensão dos prazos da prescrição do procedimento criminal e de suspensão da prescrição das penas e das medidas de segurança, a par das indicadas nos artigos 120º e 125º do C.Penal, respectivamente.
VI) Em virtude de tal legislação específica, tais prazos ficaram automaticamente suspensos em 9/3/2020, retomando a sua contagem a 3/6/2020.
VII) Tendo-se alargado o prazo de prescrição em 86 dias e, desse modo, a possibilidade da sua punição, é inquestionável que tal mostra-se mais prejudicial para a situação processual dos arguidos, e dai que a sua aplicação deva reservar-se para os factos praticados na sua vigência.
VIII) Não se ignorando a discussão dogmática a respeito da natureza da prescrição do procedimento criminal - para uns de natureza substantiva, para outros de natureza adjectiva ou mista - cremos para nós que referindo-se ao exercício do direito de punir, enquanto causa de extinção da responsabilidade criminal, o seu instituto tem natureza substantiva, como vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça.
Natureza substantiva essa que determina, no domínio da sucessão de leis penais no tempo, quer a lei nova se trate de lei temporária ou não, que a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroactividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem sobrepor-se à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido.
Decisão Texto Integral:
Desembargadora Relatora: Cândida Martinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira.

Acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
Nestes autos de processo comum com o nº179/15.7T9FAF , do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Guimarães, foi proferida sentença, nos termos da qual foi decidido, para além do mais:

- Absolver os arguidos A. R. e S. G. da prática do crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º, nº 1, do Código Penal.
- Condenar o arguido A. R., pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros).
- Condenar o arguido A. R., pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº 1, do Código Penal, na pena de 160 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros).
- Em cúmulo jurídico das penas referidas em b) e c), condenar o arguido na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros).
- Condenar a arguida S. G., pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros).
- Condenar o arguido S. G., pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº 1, do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros).
- Em cúmulo jurídico das penas referidas em e) e f), condenar a arguida na pena única de 165 (cento e sessenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros).
- Condenar os arguidos/demandados A. R. e S. G., solidariamente, no pagamento à demandante T. F. da quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data desta decisão até integral pagamento, absolvendo-os do mais peticionado.

2.
Inconformados com tal decisão vieram cada um dos arguidos A. R. e S. G. recorrer da mesma, formulando, em síntese, as seguintes conclusões (transcrição):
Conclusões apresentadas pelo arguido A. R.:

«1ª Vem o recurso interposto da sentença condenou o recorrente pela prática de um crime de injúria e um crime de difamação, em cúmulo jurídico, na pena única de 200 dias de multa, à taxa diária de 7,00€ e no pedido de indemnização civil no pagamento, solidário, de 2.000€.
2ª A acusação particular acolhida pela decisão instrutória não foi alvo de pronúncia por parte do Ministério Público, não tendo este aquilatado se existiam ou não indícios suficientes da prática de crime e de quem eram os seus agentes, nem acusou pelos mesmos factos ou deixou de acusar – artºs 285º nº2 e 4 do Código de Processo Penal – pura e simplesmente porque entendeu como válida a segunda acusação deduzida.
3ª O disposto no nº4 do artº 285º do Código de Processo Penal não pode ser entendido como uma mera faculdade ao dispor do Ministério Público, uma vez que a interpretação de tal preceito tem que ser buscada nas normas constitucionais (artº 219º nº1 da CRP) e ordinárias (artº 53º nº1 e 2 al. d) do Código de Processo Penal).
4ª De facto, seguindo aqui o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/2/99, publicado in CJ XXIV, tomo I, pag. 154 “(…) há casos em que o Ministério Público tem de aguardar a iniciativa do assistente. Mas, ainda aí ele não pode alhear-se do processo (…)”, isto porque tem que estar presente e sustentar a acusação em julgamento.
5ª A interpretação que se deve extrair daquele nº4 do artº 285º do Código de Processo Penal é a de que “o MP, nestes casos e garantida que está a sua legitimidade, pela acusação particular, “pode” apenas fazer uma de duas coisas – acusar também (com as particularidades e a liberdade de acção que a norma prevê) ou não acusar. O que não “pode” é assumir uma atitude de inércia ou não intervenção.
6ª Assim, existindo omissão de pronúncia do Ministério Público que não acusou pelos factos da acusação particular de fls. 289 e seguintes ou por quaisquer outros, verifica-se a nulidade insanável prevista no artº 119º al. b) do Código de Processo Penal.
7ª A interpretação que se extraia do disposto no artº 285º nº4 do Código de Processo Penal no sentido de que não é obrigatório o despacho aí previsto relativamente a acusação deduzida pelo assistente, é inconstitucional por violação do disposto nos artºs 32º nº1 e 5 e 219º nº1 da Constituição.
8ª Tanto faz que as diferenças entre as duas acusações se centrem “em factos que melhor concretizem o contexto em que ocorre a prática dos crimes imputados aos arguidos” como em factos não instrumentais ou típicos, a menos que pretendamos meter o princípio do contraditório “na gaveta” e fazer de conta que ele não existe.
9ª Mesmo que se entendesse que a nulidade decorrente da falta de despacho do MP nos termos do artº 285º nº4 do Código de Processo Penal era sanável, o recorrente arguiu-a atempadamente.
10ª A nulidade estava arguida cautelarmente – artº 2º a 4º do requerimento de instrução -, independentemente do nomen juris da nulidade – e sendo nulidade sanável nos termos do artº 120º nº2 al. d) do Código de Processo Penal foi atempadamente arguida no requerimento de abertura da instrução, uma vez que poderia ser arguida até ao encerramento do debate instrutório – artº 120º nº3 al. c) do Código de Processo Penal.
11ª Mas, independentemente de a nulidade ser sanável ou não sanável, verdade é que a acusação sufragada pela pronúncia não foi acompanhada pelo Ministério Público e foi substituída pela assistente que, com o acto de apresentação da segunda acusação, desistiu expressamente do julgamento da primeira acusação.
12ª Mesmo que se entenda que a nulidade é sanável, então o recorrente não foi notificado da acusação para requerer a abertura da instrução, nem tinha que o ser, porque a assistente desistiu do conhecimento da primeira acusação, substituindo-a por uma segunda!!!
13ª Mas, se se entender que tinha que o ser, então a falta de notificação da acusação e a impossibilidade de relativamente a esta ser requerida condignamente a abertura da instrução, constitui nulidade insanável prevista no artº 119º al. c) do Código de Processo Penal (neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/9/06, relatado por Anselmo Lopes, publicado in www.dgsi.pt).
14ª Por outro lado, aplicando-se tout court o princípio da irretractabilidade da acusação ao assistente, a segunda acusação deduzida é inexistente, porque estava precludido o direito de acusar por banda da assistente (neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 1573/16.1PIPRT-B.P1, datado de 15-02-2019, relatado por Paulo Costa, disponível em www.dgsi.pt e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 189/07.4JABRG.G1, de 24-04-2017, relatado por Fátima Furtado, disponível em www.dgsi.pt e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães , processo n.º 1958/15.0T9BRG.G1, datado de 22-10-2018, relatado por Clarisse Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt todos supra citados).
15ª A acusação particular coonestada pela pronúncia, como resulta do douto acórdão da Relação da Relação de Guimarães, proferido a 11/09/2018, não se encontra acompanhada pelo Ministério Público.
16ª Considerando que a prática dos factos ocorreu nos dias 24/12/2014 e 27/05/2015, o procedimento criminal prescreveu quanto ao crime de injúria no dia 24/12/2016 e quanto ao crime de difamação no dia 27/05/2017. Isto porque, não se aplicam causa de suspensão ou interrupção do prazo de prescrição, uma vez que inexistiu qualquer pretensão do Estado em condenar pela acusação sufragada pela pronúncia (neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 2748/05.4TASNT-3, em que foi Relator Carlos Almeida, de 06/02/2009 e o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 445/2012, publicado no DR, II de 16/11/2012).
17ª Na sentença sob sindicância, apesar de se ter feito uma descrição do depoimento das testemunhas, inexiste qualquer exame crítico da prova, de forma que, através da leitura da sentença não se consegue alcançar qual o raciocínio lógico-dedutivo que o Tribunal empreendeu para atingir a decisão final.
18ª Com efeito, no que toca ao exame crítico da prova o Tribunal ficou-se por curtas expressões, como a de que o depoimento da assistente e das testemunhas M. M. e O. M. foram “sinceros e objectivos”, mas que são manifestamente insuficientes para se concluir qual o raciocínio que se empreendeu para se chegar à decisão final, ou seja, o Tribunal faz uma avaliação da prova produzida apresentando as suas conclusões, mas sem que dê ao seu leitor a conhecer quais os pressupostos de que parte para chegar a tais conclusões.
19ª Relativamente às restantes testemunhas e arguidos nada se diz em termos de exame crítico da prova.
20ª Assim, a sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação, por não conter o exame crítico da prova tida por relevante para a decisão a proferir, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, conjugado com os arts. 379.º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma, violando os arts. 32.º, n.º 1 e 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
21ª O crime de difamação eo crime de injúria estão inseridos no capítulo VI do Código Penal com a epígrafe – Dos crimes contra a honra.
22ª “A honra quer na perspectiva subjectiva ou interior – o juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma – quer na objectiva – o valor dado pelos outros, reflectido na consideração, bom nome, reputação; mas ainda tendo em conta que para a norma a honra é um conceito ideal que, partindo da realidade fáctica subjectiva e objectiva se concebe como um atributo inato, comum a todas as pessoas, sendo que a comunidade onde cada pessoa se insere não constitui a fonte da honra mas apenas o lugar onde ela se revela e actualiza a consideração entende-se da estima que cada um pode ter adquirido no estado ou estatuto que detém.” – cfr. acórdão da Relação de Coimbra de 13/02/2002, em www.dgsi.pt.
23ª A honra e a consideração social baseiam-se no valor pessoal e qualidades morais, radicadas na dignidade, quer a própria reputação ou consideração públicas.
24ª Coisa bem diferente é a ofensa ao crédito da pessoa passível de fazer o lesante responder por responsabilidade civil extra-contratual – artº 484 do Código Civil.
25ª Assim, Por bom nome poder-se-á entender o prestígio, a reputação, o bom conceito associado (…) Já no tocante à caracterização do crédito enquanto bem jurídico tutelado no âmbito do art. 484º, impõe-se uma particular ligação da ideia de prestígio ao universo dos negócios e da actividade empresarial. O prestígio tem como ponto de referência as relações entabuladas entre quem desenvolve uma actividade económica e os respectivos fornecedores, credores, clientes e outros terceiros. Pensamos que o legislador terá requerido reportar-se basicamente à capacidade e à vontade do indivíduo para cumprir os seus compromissos obrigacionais.
26ª Ora, o “crédito constitui uma forma de reputação não susceptível de ser vivenciada pela generalidade das pessoas. Estamos, com efeito, a reportar-nos a um tipo de prestígio ligado a uma determinada actividade económico-empresarial, ou até mais amplamente um certo contexto socioprofissional, sendo que A concreta mobilização do critério normativo contido no artº 484º implica pois uma concreta ligação entre os factos divulgados e a actividade negocial, os métodos de trabalho, a situação financeira, a qualidade dos produtos, ou outros aspectos específicos do status socioprofissional das pessoas visadas pelas afirmações”
27ª A única norma penal vigente que pune a divulgação de factos – não juízos de valor - que prejudiquem e atinjam a reputação económica ou crédito de uma qualquer pessoa é o artigo 41.º, n.º 1 do Decreto-Lei 28/84, de 20 de janeiro, e ainda assim, tem que se demonstrar a falsidade de tais factos.
28ª Repare-se que na fundamentação da sentença em nenhum momento se diz o porquê de o recorrente pretender atingir a honra da assistente e não se diz porque efectivamente este não quis atingi-la.
29ª Deu-se como provado no ponto 1. da sentença recorrida que os arguidos estão desavindos com a assistente por causa de dívidas (…)”.
30ª Quer isto dizer que o recorrente quando muito pretenderia afectar o crédito da pessoa e não o bom nome, a honra ou a consideração social, mas nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 41.º do DL 28/84 tal crime depende de queixa e é um crime semipúblico, pelo que não tendo o MP deduzido acusação por tal crime, o recorrente pelo mesmo não podia responder.
31ª A expressão “caloteiro” de acordo com o Dicionário Priberam, significa “1. aquele que caloteia, que não paga o que deve; 2. Mau pagador.” e segundo o Dicionário Básico da Língua Portuguesa da Porto Editora, designa “aquele que não paga as suas dívidas.”
32ª Ora, provou-se que a assistente tem uma dívida para com o recorrente; que foi declarada insolvente e que não a pagou – pontos 19 a 23 da matéria de facto.
33ª “Chamar “caloteiro/a a alguém é dizer, em linguagem pouco polida, que não paga o que deve. É uma expressão de uso popular claramente ofensiva quando dirigida a quem não deva dinheiro e aja com honestidade. Isto é, quem adote um comportamento financeiramente irrepreensível e verdadeiro, não pode deixar de sentir-se ofendido com tal expressão. Já o mesmo não se pode dizer de quem deva e não pague.” – cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10-07-2019, em que foi relator Teresa Coimbra, disponível em www.dgsi.pt.
34ª Assim, os factos constantes da sentença são criminalmente atípicos ou pelo menos não estão abrangidos pela constelação típica dos artºs 180º e 181º do Código Penal.
35ª Para que os factos relativos ao alegado crime de injúria referentes ao dia 24/12 constituíssem o crime de injúria, necessário se tornava que fosse alegado que o arguido se dirigiu à ofendida, proferindo as expressões constantes da acusação, o que não aconteceu.
36ª Não se tendo alegado que o arguido se tenha dirigido à ofendida, o arguido deveria ser absolvido da prática de tal crime.
37ª Por outro lado, o ponto 10. da matéria de facto não se dirige ao crime de difamação decorrente da alegada colocação dos cartazes, sendo certo que não foi dado como provado na sentença recorrida que tenha sido o recorrente que escreveu as palavras aí constantes ou sequer a arguida.
38ª Assim sendo não se pode afirmar que os recorrentes tenham imputado um juízo de valor à assistente, uma vez que apenas se deu como provado que estes “colocaram os cartazes”.
39ª Na sentença para que o recorrente fosse condenado pelos crimes pelos quais vinha pronunciado, relativamente ao tipo subjectivo de ilícito, necessário se tornava que a acusação descrevesse os factos que levassem a concluir que o agente tinha agido com dolo ou com negligência, sendo certo que quer o dolo, quer a negligência hão-de ser anteriores à conduta ilícita, permanecendo o agente animado do dolo ou da negligência até à consumação do resultado.
40ª Mas, a sentença recorrida abstém-se de fazer qualquer menção à intenção prévia do agente subjacente à conduta ilícita, isto é, aos “motivos, fins específicos, impulsos afectivos e outros elementos da atitude interna que são levados ao tipo penal com vista a caracterizar o bem jurídico ou o modo específico da sua lesão” – cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE in “Comentário do Código Penal”, pág. 107.
41ª Na verdade, não se alega que em momento anterior à sua conduta, o arguido sabia que os juízos de valor que tecia sobre a assistente ofendiam a sua honra e consideração.
42ª Pelo que os factos expostos na acusação e que foram dados como provados na sentença se revelam manifestamente insuficientes para aferir também do tipo subjectivo da conduta ilícita que ora se imputa ao arguido, a título de dolo pelo que o arguido deveria ser absolvido dos crimes de injúrias e difamação.
43ª A sentença recorrida violou ou fez errada aplicação das normas constantes da motivação que aqui se dão por integralmente reproduzidas breviatis causa, não podendo, pois, manter-se.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, o recorrente ser absolvido dos crimes pelos quais foi condenado, por só assim se fazer JUSTIÇA!»

Conclusões apresentadas pela recorrente S. G.:

1.ª Vem o presente recurso interposto da douta sentença que condenou a arguida, aqui recorrente, pela prática de um crime de injúria de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), e pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº 1, do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), e que condenou ainda, solidariamente, no pagamento à demandante T. F. da quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data desta decisão até integral pagamento.
2.ª A recorrente entende ter ocorrido prescrição do procedimento criminal no que aos crimes particulares diz respeito, considerando, para o efeito, que a acusação particular em causa nos presentes autos não foi acompanhada pelo Ministério Público, não ocorrendo, portanto, qualquer interrupção ou suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, motivo pelo qual o procedimento criminal se encontra prescrito.
3.ª Para o bem ou para o mal, a acusação substituída é a única arrimada na Lei, inexistindo qualquer norma processual que permita à assistente, sua autora, a respetiva alteração pela acusação substituta que, deste modo, não tem (e nunca teve) existência jurídica com o valor e a função jurídico-penal próprios de uma verdadeira acusação.
4.ª A segunda acusação particular é absolutamente desprovida de qualquer valor ou relevância jurídica, motivo pelo qual nenhum efeito processual produziu o despacho do Ministério Público que acompanha aquela acusação, sendo, portanto, a primeira acusação que condicionará os termos ulteriores do processado e sobre ela não recaiu qualquer posição por parte do Ministério Público.
5.ª Assim, o despacho do Ministério Público que acompanhou uma acusação particular “inexistente”, não pode simplesmente ser aproveitado pelo juiz de julgamento, como se nada se tivesse passado, substituindo-se este à atividade que competia única e exclusivamente ao Ministério Público.
6.ª Não existe qualquer despacho de acompanhamento do Ministério Público quanto à acusação particular que definiu o objeto do processo e que foi levada a julgamento, não sendo legalmente admissível extrapolar sobre o que consta do processo e considerar que a acusação recebida foi efetivamente acompanhada pelo Ministério Públio. Fazê-lo seria desvirtuar todas as normas processuais penais.
7.ª Não pode o tribunal recorrido dizer que a posição do Ministério Público ao debruçar-se sobre a primeira acusação particular seria a mesma, substituindo-se à sua vontade. Baseou-se o tribunal recorrido na suposição do que teria sucedido o que nem o processo nem a lei autorizam. Por essa razão, só a declaração do Ministério Público no sentido de acompanhar a acusar particular submetida a julgamento é que confere eficácia como causa interruptiva ou suspensiva da prescrição.
8.ª Portanto, no presente caso verifica-se a prescrição do procedimento criminal, uma vez que não tendo a acusação particular sido acompanhada pelo Ministério Público, não se ocorre qualquer interrupção, ou suspensão da contagem do prazo.
9.ª Ao considerar não se encontrar prescrito o procedimento criminal, o Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 121.º, n.º 3, do Código Penal.
10.ª No presente caso, também ocorreu uma nulidade por falta de promoção do Ministério Público, sendo que contrariamente ao pugnado pelo tribunal recorrido, o Tribunal desta Relação ainda não se pronunciou quanto à questão da nulidade por falta de promoção do Ministério. O Tribunal da Relação pronunciou-se, sim, sobre a preclusão do direito da assistente deduzir a segunda acusação particular, ao entender que o JIC não estava obrigado a proferir uma concreta decisão relativamente à questão da preclusão, na medida em que ao remeter o seu despacho de pronúncia para a primeira acusação particular, a questão se mostrava ultrapassada. Foi apenas e tão só quanto a isto que o Tribunal da Relação se pronunciou e não quanto à nulidade in/sanável por falta de promoção do Ministério Público.
11.ª Pelo que, estando em causa um crime particular, se, deduzida a acusação pelo assistente, o Ministério Público não toma posição, não acusando nem dizendo que não acusa, ocorre a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea b), do Código de Processo Penal, e como tal de conhecimento oficioso em qualquer fase do processo, o que também importa declarar.
12.ª Assim, deve julgar-se verificada a nulidade insanável por falta de promoção do Ministério Público por não ter tomado posição quanto à mesma, declarando-se em consequência nula a acusação particular e todo o processado subsequente.
13.ª Ao indeferir a arguição de tal nulidade o Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 119.º, alínea b), 48.º e 50.º, 2, todos do Código de Processo Penal.
14.ª Ainda que entendesse não se tratar de uma nulidade insanável, e considerar-se que nestas circunstâncias o que ocorre é uma nulidade sanável, prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal, a verdade é que tal nulidade foi suscitada pelo coarguido nos artigos 2.º a 4.º do seu requerimento de abertura de instrução, tendo, portanto, sido arguida atempadamente em cumprimento do disposto no artigo 120.º, n.º 3, al. c), daquele diploma legal.
15.ª Assim, ainda que o Tribunal ad quem considere tratar-se de uma nulidade sanável nos termos do artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, terá de considerar-se que a mesma foi atempadamente suscitada pelo coarguido no seu requerimento de abertura de instrução, e declarar-se tal nulidade, com as consequências legais.
16.ª É, ainda, de acrescentar que, em boa verdade, apesar de o coarguido ter suscitado a nulidade no seu requerimento de abertura de instrução, socorrendo-se da jurisprudência das cautelas, a nulidade é cometida após o encerramento do debate instrutório, não sendo, portanto, obrigatória a sua arguição na fase de instrução.
17.ª A considerar-se tratar-se de uma nulidade sanável, no presente caso, ela não é efetivamente cometida no inquérito ou na instrução, porquanto ela só se materializa na decisão instrutória proferida, pelo que o n.º 3 do artigo 120.º do Código de Processo Penal não regula qual o prazo de arguição de tal nulidade sanável, porquanto ela apenas ocorre após o encerramento do debate instrutório, motivo pelo qual só restaria aos arguidos arguir tal nulidade em sede de contestação, como efetivamente fez o coarguido - não se tendo verificado in casu qualquer sanação da nulidade nos termos do artigo 121.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, uma vez que o arguido sempre defendeu quer em sede de instrução quer em sede de contestação a ocorrência de tal nulidade.
18.ª Assim, ainda que o Tribunal ad quem considere tratar-se de uma nulidade sanável nos termos do artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, sempre teria de considerar-se que a mesma foi atempadamente suscitada pelo coarguido em sede de contestação, porquanto não se verifica no presente caso a possibilidade de o fazer nos termos do artigo 120.º, n.º 3, al. c), por a mesma se ter efetivado na prolação da decisão instrutória (irrecorrível), e declarar-se tal nulidade atempadamente arguida em sede de contestação, com as consequências legais.
19.ª A acusação particular deduzida é absolutamente omissa quanto à liberdade de atuação dos arguidos e à a sua imputabilidade, pelo que tais factos não são suscetíveis de constituir crime, uma vez que, num crime doloso, da acusação terá obrigatoriamente de constar, além do mais que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), o que não se verifica.
20.ª Sendo a acusação particular absolutamente omissa quanto à liberdade de atuação dos arguidos e à a sua imputabilidade, motivo pelo qual a descrição dos factos constantes da acusação particular deduzida pela assistente não é passível de configurar a prática de um qualquer crime, pois a omissão daqueles elementos não permite a imputação de uma conduta ilícita punível.
21.ª Competia ao Tribunal recorrido absolver os arguidos do crime de difamação imputado, por os factos descritos na acusação particular não constituírem o crime imputado.
22.ª Violou, portanto, o Tribunal recorrido o disposto no artigo 311.º, n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, uma vez que a acusação é manifestamente infundada porquanto os factos nela elencados não configuram a prática de qualquer crime.
23.ª Pelo que, deverá a arguida ser absolvida dos crimes particulares pelos quais foi condenada.
24.ª Sempre competia ao tribunal recorrido absolver a arguida do crime de difamação imputado, na medida em que da acusação particular apresentada pela assistente não consta o elemento subjetivo necessário para a sua condenação.
25.ª Na sua acusação particular a assistente fez constar que “Os arguidos ao proferir tais expressões, de viva voz e audíveis pelas pessoas que ali se encontravam e ali passavam, queriam ofender, como ofenderam, a honra e consideração da assistente, tendo tido a mesma intenção quando escreveram em cartazes aquelas expressões.” Na sentença, o tribunal recorrido fez constar que “Os arguidos ao proferir tais expressões, de viva voz e audíveis pelas pessoas que ali se encontravam e ali passavam, queriam ofender, como ofenderam, a honra e consideração da assistente, tendo tido a mesma intenção com a colocação dos referidos cartazes.”
26.ª Da leitura da acusação é claro que a assistente considerou que a intenção dos arguidos em a ofender se verificou apenas e só no momento em que escreveram em cartazes aquelas expressões (conforme resulta do teor da acusação particular). No entanto, o tribunal recorrido, dá como provado que a essa mesma intenção se verificou com a colocação dos referidos cartazes.
27.ª Apesar de, a nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, se possa deduzir dos factos externos, objetivos, tal não dispensa que aquele tenha de constar da acusação, nos seus precisos termos, sendo que só a verificação dos elementos constitutivos objetivos e subjetivos é passível de integrar o preenchimento do tipo legal incriminador, sendo, portanto, imprescindível, que constem da acusação, sem os quais a mesma fundada é infundada, porque insuscetível de suportar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.
28.ª Consumando-se o crime de difamação com a afixação dos referidos cartazes, imprescindível se mostra que a assistente alegasse e provasse a intenção de ofender a honra no momento em que o crime se consuma (artigo 14.º do Código Penal), sendo que a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime não poder ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.
29.ª Assim, uma vez que nos presentes autos ocorreu a fase instrutória, não podendo, por tal facto, o tribunal recorrido rejeitar a acusação particular nos termos do artigo 311.º do Código de Processo penal, e uma vez que a acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária a verificação do crime imputado aos arguidos, e que, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento (atenta a jurisprudência acima citada), não restava outra solução ao Exmo. Juiz a quo senão absolver os arguidos do crime de difamação imputado, por os factos nela descritos não constituírem o crime imputado.
30.ª Verifica-se ainda uma clara alteração dos factos descritos na acusação particular e na sentença, na medida em que da acusação particular apresentada pela assistente consta que «No dia 24 de Dezembro de 2014, pelas 16h30, a arguida dirigiu-se à assistente e proferiu as seguintes expressões: “És uma caloteira”. Por sua vez, consta da sentença recorrida, que «Ainda nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), a arguida dirigiu-se à assistente e proferiu as seguintes expressões “és uma caloteira”.»
31.ª Comparando os factos acusados e os factos provados da sentença em crise é evidente que nestes constam circunstâncias contemporâneas, nomeadamente quanto ao local da prática dos factos e a sua motivação, que não foram levadas ao libelo acusatório. Existem, portanto, factos novos, sem que o tribunal tenha procedido à devida e legal comunicação.
32.ª Competia, pois, ao Tribunal recorrido apreciar e determinar a nulidade da acusação particular apresentada, por violação do disposto no artigo 283.º alínea b), do Código de Processo Penal, por se tratar de matéria de conhecimento oficioso.
33.ª A sua omissão determina a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), 1.ª parte, do Código de Processo Penal.
34.ª Por cautela, sempre se diga que caso se entendesse que tal circunstância configura uma alteração não substancial de factos para o tribunal deles poder conhecer, e integrá-los na sentença, sempre teria que comunicar tal alteração aos arguidos, conceder-lhes, se requerido, prazo necessário para a preparação da respetiva defesa, em cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
35.ª A não proceder desta forma, a sentença recorrida padece de nulidade, ao abrigo do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
36.ª A sentença recorrida padece, ainda, do vício decisório de insuficiência para a matéria de facto considerada provada, nomeadamente quanto ao ponto 9 dos factos provados da acusação particular/pronúncia, na medida em que o mesmo teria, necessariamente, de ser julgado não provado.
37.ª Uma sentença penal que contenha factos provados, em alternativa, com relevâncias distintas para o apuramento da responsabilidade penal e civil do arguido, padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal)”, o que desde logo se verifica no presente caso.
38.ª O Tribunal recorrido não logrou prova efetiva ou indiciária que permita imputar à arguida que, num determinado dia do mês de abril de 2015 (que não se logrou apurar) a mesma se tenha deslocado à residência da assistente (que nem se diz onde é) e tenha colocado dois cartazes em frente a uma paragem de autocarro. Havendo vários agentes, quanto à intervenção particular de cada um, sendo irrelevantes imputações genéricas ou coletivas.
39.ª Ao proceder desta forma, o Tribunal recorrido violou artigos 26.º e 27 do Código Penal, sendo inclusive impossível fazer a imputação dos factos criminosos à arguida, como autora, com a prova constante nos autos. Reconhecido o apontado erro de julgamento, deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine a absolvição da arguida do crime de difamação que lhe foi imputado.
40.ª Verifica-se, ainda, a proibição de valoração de prova, nomeadamente do exame pericial, que suportou a convicção do julgador, pois o Tribunal recorrido fundamenta a sua convicção, no que ao crime de difamação imputado diz respeito, com base nas conclusões do exame pericial, cujo resultado nunca foi notificado ou comunicado à arguida, cuja prova nunca foi elencada na acusação particular, nem no despacho de pronúncia proferido, e com a qual nunca a arguida foi confrontada em audiência de julgamento.
41.ª Ao valorar um meio de prova não indicado no despacho de pronúncia, nem tendo sido a arguida confrontada com tal elemento probatório, o tribunal recorrido violou o disposto no artigo 355.º, n.º 1, 327.º, n.º 2, e 340.º, todos do Código de Processo Penal, ao valorar os documentos omitidos para prova da factualidade típica.
42.ª Qualquer outra interpretação seria inconstitucional por violação das garantias de defesa (n.º 1 do artigo 32.º da Constituição) e o princípio do contraditório na produção de prova (n.º 5 do artigo 32.º da Constituição).
43.ª Ademais, os factos imputados não integram a prática de um crime de injúria/difamação, pois não se verificou qualquer intenção injuriosa com objetivo de ofender diretamente a ofendida, nem foi produzida qualquer prova que a intenção dos arguidos foi a de ofender a honra, bom nome e consideração da assistente.
44.ª Ademais, a palavra “caloteiro” mais não é que uma terminologia popular e não ofende o bom nome da assistente.
45.ª Tal expressão "caloteira" seguida da expressão “paga o que deves” não integra objetiva ou subjetivamente o crime de injúrias/difamação por falta de carga ofensiva.
46.ª Não se verificam, portanto, todos os elementos objetivos (por não se verificar qualquer palavra ofensiva da honra ou consideração da assistente) e subjetivo do crime de injúrias e difamação pelos quais a arguida foi condenada, devendo ser absolvida da prática desses crimes.
47.ª Os elementos considerados provados e relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta da arguida foram considerados assentes a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas, pelo que, não se verificando todos os elementos objetivos que integram o tipo dos crimes em apreço, não poderá dos mesmos retirar-se o elemento subjetivo, pelo que deverão considerar-se não provados os factos provados 10), 11) e 12), e consequentemente ser a arguida absolvida dos crimes pelos quais vem condenada.
48.ª O presente recurso versa igualmente sobre a matéria de facto que o tribunal recorrido considerou revelar-se provada, pois o Tribunal Recorrido considerou que as declarações da assistente, e depoimentos das testemunhas M. M. e O. M., se revelaram credíveis, sinceros e objetivos, merecendo por isso a total credibilidade daquele tribunal.
49.ª Não podia o tribunal recorrido valorar os depoimentos das referidas testemunhas, pois os mesmos são absolutamente parciais, afrontando claramente as regras da experiência e da vida em sociedade, nos termos acima expostos, devendo, portanto, os factos n.ºs 2), 3), 7), 8) e 9), dos factos provados, serem considerados não provados, com as devidas consequências legais.
50.ª Ao considerar provados tais factos, o tribunal recorrido violou o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
51.ª Sem prescindir, o tribunal recorrido, fez uma errada qualificação jurídica do crime de difamação que imputou aos arguidos, uma vez que a difamação é dirigida a terceiros e a injúria é dirigida exclusivamente ao ofendido (não se exigindo neste último caso que o ofendido se encontre no mesmo espaço físico, nem que a receção da comunicação tenha lugar no mesmo momento em que a comunicação é feita).
52.ª As expressões consideradas provadas no facto n.º 9 e no circunstancialismo aí referido são dirigidas diretamente, pelo que nunca estaríamos perante a prática de um crime de injúria, violando o tribunal recorrido o disposto no artigo 180.º do Código Penal.
53.ª Por fim, relativamente ao pedido de indemnização civil apresentado pela assistente/demandante cumpre referir que o tribunal recorrido procede a alterações aos factos alegados pela demandante, estando impedido de o fazer.
54.ª A demandante limitou-se a elencar danos originados pelo crime de ameaça que imputava aos arguidos, e do qual aqueles foram absolvidos.
Não alegou danos originados pelos crimes de injúria/difamação imputados.
55.ª Não podia, portanto, a sentença recorrida dar outra aparência aos factos alegados no pedido de indemnização civil apresentado pela assistente e considerar provados os factos n.ºs 13) a 18), nos termos e da forma como o fez, violando o disposto nos artigos 342.º, n.º 1, e 483.º, n.º1, ambos do Código Civil.
56ª Não existindo alegação, nem prova, de danos não patrimoniais que, pela sua gravidade merecem a tutela do direito e que foram causa adequada da ação ilícita (crime de injúria e difamação) e culposa dos arguidos, não havendo, portanto, lugar a indemnização, devendo, portanto, ser considerados não provados os factos n.ºs 13 a 18, e consequentemente, os demandados absolvidos do pedido de indemnização civil peticionado.
57.ª Se assim não se entender, sempre se dirá, que a quantia de 2.000,00 € a título de danos não patrimoniais pela prática dos crimes de injúrias e difamação se revela excessivo e desproporcional, pelo que, caso V. Exas. considerem que os arguidos devem ser condenados por tais crimes, atendendo aos critérios de equidade e proporcionalidade não deverão ser condenados, no pedido e indeminização cível, em quantia superior a 1.000,00€.
Face ao exposto, e muito que será suprido por vossas excelências, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, por via dele, e em consequência ser a arguida absolvida só assim se fazendo JUSTIÇA!

3.
A Exma Procuradora da República na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
1. Por sentença proferida pelo Juízo Local Criminal de Guimarães – juiz 3, datada de 05/02/2020, foram os arguidos A. R. e S. G. condenados pela autoria de um crime de injúria e um crime de difamação nas penas únicas de 200 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, e 165 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, respectivamente.
2. Pugnam os arguidos pela sua absolvição invocando:
- Prescrição do procedimento criminal;
- Nulidade por falta de promoção do Ministério Público;
- Nulidade por falta de notificação da acusação particular;
- Omissão de elementos típicos dos crimes na acusação particular;
- Nulidade da sentença por alteração dos factos da acusação;
- Vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão;
- Proibição de valoração de prova;
- Nulidade da sentença por falta de fundamentação;
- Atipicidade dos factos dados como provados / não verificação dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes

- Impugnação alargada da matéria de facto
3. Do texto da sentença não resulta qualquer vício, designadamente qualquer insuficiência da prova, ou nulidade, não se vislumbrando qualquer razão fundamentada que coloque em efectiva crise a decisão tomada pelo tribunal, pelo que, carecendo absolutamente de fundamento, deverá ser negado provimento ao recurso interposto. Porquanto:
4. Existiu acompanhamento por parte do Ministério Pública da acusação particular, nos termos do disposto no artigo 285.º, n.º4 do Código de Processo Penal, resultando de forma expressa dos autos que o Ministério Público quis a prossecução do processo pelos factos constantes da acusação que veio a ser recebida para julgamento.
5. Assim, inexiste qualquer nulidade por falta de promoção dos autos pelo Ministério Público, tendo sido proferido despacho de acompanhamento da acusação particular datado de 14/03/2016, constando dos autos com referência 145817544.
6. Consequentemente, considerando o prazo normal de prescrição do procedimento criminal (artigo 118º, nº 1, alínea d), do Código Penal), a data da ocorrência dos factos imputados, a data da notificação aos arguidos da acusação particular, bem como as causas de interrupção e suspensão do referido prazo, previstas nos artigos 120º, nº 1, alínea b) e nº 3 e 121º, nº 1, alínea b), do Código Penal, é manifesto que ainda não decorreu, ressalvado o tempo de suspensão, o prazo normal de prescrição, acrescido de metade, nos termos do artigo 121º, nº 3, do Código Penal, tudo como bem considerou o Tribunal a quo.
7. Face ao exposto, não assiste razão aos recorrentes, não se verificando as invocadas nulidades, seja por falta de promoção do processo pelo Ministério Público seja por falta de notificação da acusação particular, nem a prescrição do procedimento criminal.
8. Resulta dos factos tal como descritos na acusação particular deduzida alegado de forma suficiente os elementos intelectual e volitivo do dolo do tipo.
9. Considerar necessário que se fizesse constar expressamente que os arguidos agiram de forma livre, voluntaria e consciente não mais seria do que uma redundância na medida em que a menção de que os arguidos “queriam ofender, como ofenderam, a honra e consideração da assistente” e que “sabiam que tais expressões possuem, socialmente, uma carga desvaliosa e negativa” corresponde de forma adequada e suficiente ao elemento intelectual e volitivo do dolo.
10. Assim, não assiste razão aos recorrentes na medida em que consta dos factos da acusação particular objecto de pronúncia e considerados provados uma suficiente alegação dos elementos dos tipos de crime de injúria e difamação, pelo que bem andou o tribunal a quo ao condenar os arguidos.
11. Na descrição dos factos na sentença importava conjugar aqueles que resultam da acusação pública com aqueles que resulta da acusação particular. Por tal razão, mostra-se razoável terem sido realizadas correcções dos factos que constavam descritos na acusação na sentença, sem que daí tenha resultado uma alteração dos factos para efeitos do disposto nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal.
12. Deste modo, do ponto 7 e 10 da matéria de facto provada na sentença não resulta uma alteração dos factos conforme vinham já descritos na acusação mas apenas uma correcção desta descrição e concatenação com os factos considerados provados decorrentes da acusação pública, pelo que não padece a sentença recorrida de qualquer nulidade, designadamente por força do disposto no artigo 379.º, n.º1, al.c) do Código Penal.
13. Resulta do relatório de exame junto aos autos e indicado como prova para julgamento que muito provavelmente foi a arguida S. G. a autora do cartaz, pelo que é lícito retirar-se de tal prova que tenha sido a mesma, em comunhão de esforços e intentos com o co-arguido A. R., seu marido, ou alguém a mando destes quem afixou o aludido cartaz.
14. Mais é lícito retirar-se do conjunto de toda a prova produzida, analisada de acordo com as regras da experiência comum, que a redacção e afixação de tal cartaz resulta de um plano concertado entre os arguidos tendo em vista atentar contra a honra e o bom nome devido à assistente e por tal forma a pressionar ao pagamento de dívidas existentes, como já antes o haviam feito, até porque o titular do crédito sobre a assistente não era a arguida S. G. mas do seu marido: o arguido A. R..
15. Tais circunstâncias constituem prova bastante do alegado no ponto 9 e 10 dos factos provados.
16. O relatório de exame pericial foi indicado como prova pelo Ministério Público no despacho de acompanhamento da acusação particular, constituindo assim prova arrolada a ser valorada em julgamento.
17. A sentença recorrida encontra-se bem e profusamente motivada, tendo o sido realizada uma indicação completa das provas produzidas e um completo e profundo exame crítico das mesmas, que formaram a convicção do tribunal.
18. Não foi realizada uma mera súmula das declarações e depoimentos prestados, antes estes foram referidos em conjunto com referências à credibilidade que que lhes foi atribuída pelo tribunal a quo e razões do respectivo merecimento.
19. Assim, foi realizado um exaustivo exame crítico das provas e adequada fundamentação da sentença, pelo que não padece a mesma de qualquer nulidade nos termos invocados pelo recorrente, não lhe assistindo razão.
20. Quanto à tipicidade dos factos provados, atenta toda a conjuntura dada como provada referente à anterior relação amorosa existente entre o arguido A. R. e a assistente e à forma como os factos ocorreram, sem que tenha contribuído para os mesmos ou para qualquer tipo de discussão a actuação da assistente, não poderá deixar de se considerar que a expressão “caloteira” ofende, em termos de normalidade social, a honra e consideração da destinatária.
21. Não obstante a existência da dívida por parte da assistente para com o arguido A. R., as palavras dirigidas em 24/12/2014 pelos arguidos à assistente não ocorreram no decurso de qualquer conversa ou discussão entre os mesmos relacionada com o pagamento da dívida pela assistente, antes foram dirigidas a esta de forma voluntariosa e intempestuosa pelos arguidos, sem qualquer interpelação prévia por parte da assistente e, atenta a forma e o local onde as mesmas proferidas, possuíam claramente a intenção e significado de ofender a honra e consideração da assistente.
22. Em virtude das circunstâncias relativas ao modo, tempo e local onde os factos ocorreram, impõe-se considerar que tais expressões foram proferidas em condições de atingir, de modo penalmente censurável, porque em muito desproporcional ao modo como seria adequado e razoável exigir o pagamento de uma dívida, a honra e consideração da assistente, pelo que revestem dignidade penal, integrando assim a incriminação dos arguidos 180.º e 181.º do Código Penal.
23. Quanto aos factos integrantes do crime de difamação, a afixação do cartaz em local público, junto de uma via pública, local de passagem de várias pessoas, evidencia que tais expressões não se destinavam a apenas serem conhecidas pela visada mas era antes dirigidas a todos aqueles que por ali passassem e vissem o cartaz.
24. Tanto assim é que a afixação do cartaz e o seu conteúdo acabou por chegar ao conhecimento da assistente através da intervenção de terceiros, designadamente as testemunhas R. R. e J. F..
25. Deste modo, com a redacção e afixação do aludido cartaz, os arguidos não se dirigiram directamente à assistente mas procuraram dirigir-lhe palavras atentatórias da sua honra e consideração dirigindo-se a terceiros e por intermédio destes.
26. Assim, a sentença recorrida fez, por isso, uma correcta interpretação dos factos e uma adequada aplicação do direito, bem andando ao considerar que os factos integram os crimes de injúria e difamação, respectivamente, não merecendo qualquer censura, devendo improceder o alegado pelos recorrentes.
27. Por último, quanto à impugnação alargada da matéria de facto, a decisão de facto proferida é consonante com a prova que foi produzida em audiência de julgamento, com os documentos e perícia juntos aos autos, mostrando-se fundamentada e plenamente justificada, no que às justificações legais diz respeito, o juízo de prova positivo da matéria de facto de que os arguidos A. R. e S. G. vinham acusados.
28. O tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou toda a prova de forma objectiva e motivada, e os raciocínios aí expendidos não se encontram deturpados por qualquer erro ou vício.
29. Com efeito, não podemos deixar de seguir o entendimento do Mmo. Juiz junto do Tribunal a quo no sentido de que as declarações prestadas pela assistente e pelas testemunhas M. M. e O. M. se mostram absolutamente coerentes entre si, confirmando de forma unanime as expressões que lhes foram dirigidas e que constam dos factos considerados provados.
30. Em contrapartida, inexiste qualquer prova que corrobore a versão dos factos apresentada pelos arguidos, pelo que não pode ser atendida em detrimento daquela apresentada pela assistente, corroborada pela testemunha ouvidas em julgamento, pela prova documental e pericial junta aos autos.
31. Na verdade, as transcrições de depoimentos feitas pela arguida recorrente, apenas em parte, demonstram que esta se limitou a transcrever a parte do depoimento que lhe poderia ser favorável por pôr em causa a memória das testemunhas quanto aos factos ocorridos.
32. Esquece, todavia, de transcrever o enquadramento de tais declarações, se é verdade que um cidadão médio não se recordará com precisão de todos os factos do seu quotidiano de há cinco anos atrás, é razoável e expectável que se recorde de especificas situações ocorridas pela sua singularidade, como é o caso dos factos em julgamento.
33. Em suma, a versão dos factos apresentada pelos arguidos não merece qualquer credibilidade, mostrando-se completamente desrazoável e contrária à prova produzida em julgamento.
34. A prova produzida foi cabal e suficientemente esclarecedora dos factos ocorridos, bem tendo andado o Mmo. Juiz a quo ao ter dado como provados todos os factos constantes da acusação e, em consequência, ao condenar os arguidos.
35. A decisão sobre a matéria de facto foi adequada e materialmente correta, porque resultou de uma análise crítica da prova, em obediência aos princípios de direito probatório e à luz das regras da experiência comum e de juízos de normalidade.
36. Assim, dispondo o Tribunal a quo do privilégio da imediação das provas e assentando a convicção do julgador, em larga medida, no que tal imediação lhe permite apreender, andou bem aquele Tribunal quando deu como provados os factos descritos, entre os demais, nos pontos 2, 3, 7, 8 e 9 da matéria de facto provada.
37. O Tribunal a quo fez uma correcta interpretação e aplicação do direito à factualidade provada, em estrito cumprimento das normas e dos princípios constitucionais e, bem assim, das normas e dos princípios que norteiam o Direito e o Processo Penal.
38. Pelas razões ora aduzidas, entende-se que a sentença proferida pelo Tribunal a quo não deverá merecer quaisquer reparos, devendo, pois, ser mantida, nos seus precisos termos e, por conseguinte, o presente recurso deverá soçobrar.

Nestes termos e melhores de Direito, deve ser negado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser mantida, na íntegra, a decisão recorrida, como é de Direito e Justiça».

5.
Tendo o arguido A. R. requerido a realização da audiência, o Exmo Procurador – Geral Adjunto, no que tange à arguida S. G., emitiu parecer, perfilhando a posição assumida pelo Ministério Público na instância recorrida, concluindo assim pela improcedência do recurso.

6.
Cumprido o artigo 417º, nº2, do C.P.P., a arguida respondeu ao parecer, reafirmando a sua posição já assumida no recurso, designadamente quanto à ausência de carga ofensiva das expressões proferidas que justifique a atribuição de dignidade penal.
7.
Procedeu-se à realização da audiência com observância legal de formalismo, tendo o Exmo Procurador-Geral Adjunto pugnado pela prescrição do procedimento criminal no que tange ao crime de injúria.

II. Fundamentação

A) Delimitação do Objeto do Recurso

Como é consensual, quer na doutrina quer na jurisprudência, são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, sintetizando as razões do pedido, que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando para o tribunal superior as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais.
Todavia, no caso vertente, impõe-se apreciar a questão prévia da inadmissibilidade do recurso interposto pela arguida S. G., no segmento relativo ao pedido de indemnização civil.
De acordo com o disposto no art. 402º, n.º 1, o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão, ressalvando, no entanto, o preceituado no artigo seguinte, segundo o qual o recorrente pode limitar o recurso a uma parte da decisão, desde que ela possa ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas, como sucede, nomeadamente, com a parte da decisão que se referir a matéria penal e a matéria civil.
Na presente situação, a arguida e demandada S. G. não limitou o recurso à parte criminal, insurgindo-se também contra o valor da indemnização civil – 2.000,00€ - que foi condenada a pagar, solidariamente com o arguido A. R., à demandante, considerando-o excessivo e desproporcional.
Ora, nessa matéria, o art. 400º, n.º 2, estabelece regras idênticas às do processo civil, estipulando que, sem prejuízo do disposto nos arts. 427º e 432º (inaplicáveis ao caso em análise), o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível se o valor do pedido for superior ao da alçada do tribunal recorrido e se a decisão impugnada for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
O artigo 44º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), em matéria cível, fixou a alçada dos tribunais da relação em € 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância em € 5.000,00.
Por conseguinte, a recorribilidade da decisão de primeira instância, relativa ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, depende da verificação cumulativa de duas condições: que o pedido formulado seja superior a € 5.000,00 e que o decaimento para o recorrente seja superior a € 2.500,00.
In casu, o valor global do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante é de € 5.500,00, tendo a demandada sido condenada no pagamento da quantia de € 2.000,00, sendo, pois, este o valor do respetivo decaimento.
Assim, pese embora o valor do pedido seja superior a €5.000.00, verificando-se deste modo a primeira condição, já o mesmo não ocorre com a segunda condição, porquanto o valor do decaimento não é superior a 2.500,00€.
Deste modo, não se mostrando verificada uma das condições, impõe-se concluir pela não admissibilidade do recurso sobre a decisão proferida em matéria cível.
Nos termos do art. 420º, n.º 1, al. b), o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do art. 414º, onde se inclui a irrecorribilidade da decisão.
Em conformidade com o exposto, impõe-se rejeitar o recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil, por a decisão não ser recorrível, não se conhecendo dele, sem prejuízo, naturalmente, das consequências a extrair de uma eventual absolvição da arguida dos crimes pelos quais foi condenada, em caso de eventual procedência das demais questões suscitadas.

Posto isto, atenta a conformação das conclusões formuladas pelos recorrentes, bem como a inadmissibilidade do recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil, importa conhecer das seguintes questões, algumas delas comuns a ambos os recorrentes.

Do recurso interposto pelo arguido A. R.:
- Nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea b), do C.P.P, por falta de promoção do Ministério Público relativamente à acusação particular que definiu o objecto de processo.
- Nulidade de decorrente da falta de notificação da acusação, prevista no art.119º, al.c)).
- Prescrição do procedimento criminal.
- Nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova (arts. 374º,nº2 e 379º,nº1, a)).
- Não verificação dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes em causa (artigos 180º e 181º, do Código Penal).


Do recurso interposto pela arguida S. G.:
- Prescrição do Procedimento Criminal
- Nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea b), do C.P.P, por falta de promoção do Ministério Público relativamente à acusação particular que definiu o objecto de processo.
- Falta de descrição na acusação particular dos elementos típicos subjectivos atinentes à liberdade de atuação dos arguidos e à sua imputabilidade quanto a ambos os ilícitos.
- Nulidade da sentença com fundamento na alínea b), do art.379º, do C.P.P. – ausência de comunicação nos termos do artigo 358º,nº1 do C.P.P.
-Vício decisório da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – art.410º,nº2,al.a).
-Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento (pontos 2,3,7,8 e 9 da factualidade provada).
- Proibição da valoração da prova /exame pericial – levantada também pela recorrente.
- Não verificação dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes em causa.

B) Decisão recorrida

Com vista à resolução das questões supra enunciadas, importa ter presente o seguinte teor da sentença recorrida.
“(…)
Questões prévias
Da alegada nulidade:
Alega o arguido, em síntese, que o Ministério Público não se pronunciou, nos termos do artigo 285º, nº 4, do CPP, sobre a acusação particular que veio a ser acolhida no despacho de pronúncia, pelo que estamos perante a nulidade previstas no artigo 119º, nº 1, alínea b), do CPP.
Antes de mais, importa referir que esta questão foi suscitada no recurso do despacho de pronúncia de fls. 587, quando o arguido levanta a questão da preclusão do direito de apresentar nova acusação particular, sendo que a acusação objecto da pronúncia foi, precisamente, a primeira acusação particular apresentada pela assistente, sobre a qual o Ministério Público não se pronunciou nos termos do artigo 285º, nº 4, do CPP, tendo-o feito, outrossim, quanto à segunda acusação particular (cfr. fls. 289 – primeira acusação deduzida; fls. 296 e segs. – segunda acusação particular; fls. 305 – despacho do Ministério Público a acompanhar a acusação particular de fls. 296 e segs.; fls. 585 e segs. – despacho de pronúncia que pronuncia os arguidos pelos factos constantes da primeira acusação particular, ou seja, a constante de fls. 289).
Na verdade, sobre tal questão o Tribunal da Relação de Guimarães já se pronunciou, conforme parece-nos decorrer de fls. 183 do apenso A, quando é expressamente referido “…é inelutável que a apreciação da suscitada questão estava naturalmente ultrapassada, perante tais incidências processuais, aquando da prolação da decisão instrutória de pronúncia.”
Seja como for, sempre se dirá que a invocada nulidade inexiste.
Por um lado, porque não nos parece correcto dizer que exista falta de promoção do processo pelo Ministério Público (artigo 119º, alínea b), do CPP) na medida em que o Ministério Público promoveu efectivamente o processo, efectuando as diligências de investigação que entendeu por pertinentes tendo, inclusive, notificado a assistente para deduzir acusação particular, por estarem reunidos indícios suficientes da prática de crimes de natureza particular por parte dos arguidos. E tanto assim foi, que até acompanhou a acusação particular, a segunda, é certo. Pelo que, quando muito, estaríamos perante uma eventual nulidade dependente de arguição, nos termos do artigo 120º, nº 2, alínea d), do CPP, por o Ministério
Público não se ter pronunciado sobre a primeira acusação particular, nos termos e para os efeitos do artigo 285º, nº 4, do CPP, aquela que veio a ser objecto de pronúncia (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 12-10-2011, publicado em www.dgsi.pt).
Por outro lado, inexiste qualquer nulidade porque o Ministério Público acompanhou, efectivamente, a acusação particular, entendido esta como um conjunto de factos, com relevância criminal (a que acrescem os demais elementos exigidos pelo artigo 283º, nº 3, do CPP), que enforma o objecto do processo e que irá ser ou não comprovado em julgamento. Na nossa perspectiva, o Ministério Público não acompanha um documento/peça processual, enquanto suporte físico de um qualquer texto, mas sim um conjunto de factos, que tem por indiciados e que, provados, levarão a um juízo condenatório do agente e foi isso mesmo que o Ministério Público fez no despacho de fls. 305, de que os arguidos foram notificados juntamente com a acusação particular acompanhada.
Ora, em abono da verdade, analisando as duas acusações deduzidas pela assistente, não se descortina qualquer alteração de factos relevantes ou substanciais para a imputação penal, sendo que a segunda acusação apenas acrescentou factos que melhor concretizam o contexto em que ocorre a prática dos crimes imputados aos arguidos, sendo de notar que o Ministério Público, aquando do despacho previsto no artigo 285º, nº 4, do CPP, pode acrescentar outros factos, desde que, naturalmente, não importem alteração substancial dos factos constantes da acusação particular deduzida nos termos do artigo 285º, nº 1, do CPP.
Ademais, o facto de na segunda acusação particular, a assistente ter qualificado os factos de modo diverso do que fez na primeira acusação, apenas no seu número, é, quanto a nós, irrelevante, desde logo porque o Ministério Público, mais uma vez, nos termos do artigo 285º, nº 4, do CPP, pode acompanhar a acusação particular, qualificando os factos de modo diverso.
Face ao exposto, improcede a invocada nulidade.
Da invocada prescrição do procedimento criminal
A arguida invocou, a fls. 794 e segs., a prescrição do procedimento criminal no que aos crimes particulares diz respeito.
Estriba-se a alegação da arguida no alegado facto do Ministério Público não ter acompanhado a acusação particular e, por consequência, a notificação da acusação particular não leva à interrupção nem à suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, louvando-se, entre o mais, no Acórdão da Relação de Lisboa, de 06-02-2009 e no Acórdão nº 445/2012, do TC.
Ora, independentemente da análise que a jurisprudência tem feito da interpretação dos artigos 120º, nº 1, alínea b) e 121º, nº 1, alínea b), ambos do Código Penal, quando o Ministério público não acompanha a acusação particular, o certo é que, trazendo-se à colação o que se disse supra, temos por assente que o Ministério Público acompanhou a acusação particular, tendo a mesma sido notificada aos arguidos (fls. 306/309).
Dito isto, considerando o prazo normal de 2 anos previsto para a prescrição do procedimento criminal para os crimes particulares imputados aos arguidos (artigo 118º, nº 1, alínea d), do Código Penal), a data da ocorrência dos factos imputados (24-12-2014 e 27-04-2015), a data da notificação aos arguidos da acusação particular (Março de 2016 – fls. 306/309), bem como as causas de interrupção e suspensão do referido prazo, previstas nos artigos 120º, nº 1, alínea b) e nº 3 e 121º, nº 1, alínea b), do Código Penal, é manifesto que ainda não decorreu, ressalvado o tempo de suspensão, o prazo normal de prescrição, acrescido de metade, nos termos do artigo 121º, nº 3, do Código Penal, o que apenas ocorrerá em Abril de 2020.
Face ao exposto, julga-se improcedente a invocada prescrição do procedimento criminal.

Nada obsta ao conhecimento do mérito da causa.

II. OS FACTOS:

A. FACTOS PROVADOS:
Da acusação pública/pronúncia:

1) No dia 24-12-2014, durante a tarde, quando a assistente T. F. se encontrava a trabalhar no stand fixo “… Card”, localizado em pleno corredor do … Shopping, em …, os arguidos, que estão desavindos com a assistente por causa de dívidas relacionadas com o “Café ..”, outrora sito em Fafe, passaram pelo local.
2) Logo que avistou a assistente, a arguida S. G. dirigiu-se a esta gritando, para além do mais, “paga o que deves (…) vou dar cabo de ti (…) não descanso enquanto não der cabo de ti.”
3) Também o arguido se dirigiu à assistente dizendo: “não descanso enquanto não der cabo de ti”, o que repetiu por mais que uma vez de forma a ser ouvido pelas pessoas que passavam no local.
4) Os arguidos não se inibiram de proferir as expressões mencionadas., com o propósito de atemorizar a assistente.
5) A assistente sentiu receio, tendo ficado convencida que os arguidos têm o firme propósito de atentar contra a sua integridade física.
6) Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente.

Da acusação particular/pronúncia:
7) Ainda nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), a arguida dirigiu-se à assistente e proferiu as seguintes expressões “és uma caloteira”.
8) Sendo que de seguida o arguido proferiu em voz alta e dirigindo-se às pessoas que transitavam no local e aos colegas de trabalho da assistente, a seguintes expressão “ela é uma caloteira”.
9) Em dia não concretamente apurado do mês de Abril de 2015, os arguidos, ou alguém a seu mando, colocaram dois cartazes em frente à residência da assistente, numa paragem de autocarros, com as seguintes expressões “T. F., paga o que deves € 5.500,00, caloteira, isto é só o começo. Para a semana serão espalhados centenas de cartazes nas Taipas e Guimarães.”
10) Os arguidos ao proferir as expressões, de viva voz e audíveis pelas pessoas que ali se encontravam e ali passavam, queriam ofender, como ofenderam, a honra e consideração da assistente, tendo tido a mesma intenção com a colocação dos referidos cartazes.
11) Tanto mais que os arguidos sabiam que tais expressões possuem, socialmente, uma carga desvaliosa e negativa, e, bem assim, que, da forma como foram proferidas e afixadas, eram susceptíveis de ofender, como ofenderam, a honra e consideração de quem quer que fosse, nomeadamente da assistente.
12) Bem sabiam os arguidos que tais condutas são punidas e proibidas pela lei penal.

Do pedido de indemnização civil (para além dos factos provados da acusação pública e particular):
13) Na sequência da conduta dos arguidos, a demandante sentiu medo e inquietação, não só na altura dos factos, mas também nos dias que se seguiram.
14) A conduta dos arguidos perturbou o sentimento de segurança da demandante, bem como afectou a sua liberdade de determinação.
15) A demandante sentiu-se receosa, atemorizada e ansiosa, tendo ficado profundamente abalada e temendo no seu dia-a-dia a repetição da situação.
16) A conduta dos demandados provocou ainda na demandante uma alteração na sua personalidade e na sua rotina diária, tendo que alterar os seus hábitos diários, por achar que os demandantes poderiam atentar contra a sua integridade física.
17) A demandante, por achar que os arguidos poderiam atentar contra a sua integridade física, viu-se forçada a alterar o seu local de trabalho, e quando tinha necessidade de se deslocar ao local dos factos, passou a fazê-lo sempre acompanhada por outras pessoas, familiares e/ou amigos, por forma a sentir-se mais protegida, evitando assim que os demandados a pudessem encontrar sozinha e voltar, inclusive, a insultá-la.
18) A demandante viu-se ainda obrigada a alterar os seus hábitos diários, evitando andar sozinha, com receio de os demandados a encontrarem.

Mais se apurou:
19) A assistente foi declarada insolvente por sentença proferida em 17-11-2014, entretanto transitada em julgado.
20) A assistente e o arguido A. R. celebraram transacção no âmbito da Acção Especial para Cumprimento de Obrigações Emergentes de Contrato, que correu termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães, segunda a qual a assistente se compromete a pagar ao arguido a quantia de € 4.900,00, tendo a transacção sido homologada por sentença proferida em 30-05-2014.
21) Em 29-10-2014, o arguido intentou execução comum contra a assistente dando à execução a sentença homologatória referida em 20), tendo liquidado a quantia exequenda em € 4.453,45, sendo o capital de € 4250,00, por força de pagamentos efectuados pela assistente.
22) Na sequência da declaração de insolvência da assistente, a referida execução foi declarada extinta por sentença de 08-06-2015.
23) O arguido reclamou no referido processo de insolvência o crédito referido em 21), tendo o mesmo sido reconhecido e verificado por sentença de 12-11-2018.

Da situação pessoal e económica dos arguidos:
24) Os arguidos estão casados entre si.
25) O arguido A. R. é militar da GNR, auferindo, actualmente, por força da sua situação processual de prisão preventiva, o vencimento líquido de € 750,00.
26) Vivem em casa arrendada, sendo renda mensal de € 650,00.
27) Concluiu o 12º ano de escolaridade e encontra-se a frequentar o 2º ano de Contabilidade.
28) O arguido já sofreu as seguintes condenações:
a) Processo Comum (Tribunal Singular) nº 311/15.0T9FAF, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Fafe, pela prática, a 11-05-2015, de um crime de falsidade de testemunho, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 16-10-2016, transitada a 11-04-2018, a pena de 350 dias de multa, à taxa diária de € 7,00;
b) Processo Comum (Tribunal Singular) nº 32/14.1T9FAF, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Fafe, pela prática, a 10-07-2012, de um crime de denegação de justiça e prevaricação, tendo-lhe sido aplicada, por decisão de 04-07-2018, transitada a 31-01-2019, a pena de 9 meses de prisão, substituída por 270 dias de multa, à taxa diária de € 6,00;
29) A arguida é auditora de justiça, sendo beneficiária de uma bolsa de estudo, no montante mensal de € 1.072,00.
30) É licenciada em Direito.
31) Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida.

B. FACTOS NÃO PROVADOS:

Da acusação pública/pronúncia:
a) Os arguidos actuaram conforme referido em 2) e 3), com o propósito de fazer a assistente temer pela sua integridade física.
b) Os arguidos agiram bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida criminalmente, não se abstendo de a praticar.

Do pedido de indemnização civil:
c) Mercê da conduta dos demandados, a assistente, que era pessoa alegre, bem- disposta, extrovertida e sociável, é hoje uma pessoa desconfiada, assustada, fechada, acanhada e receosa, o que se reflectiu negativamente, não só nas suas relações sociais e familiares, mas também na sua profissão.

III MOTIVAÇÃO:

O Tribunal formou a sua convicção apreciando de forma crítica o conjunto da prova produzida em audiência, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º, do Código de Processo Penal.
O arguido A. R., no que diz respeito ao episódio ocorrido no Shopping, admitiu as circunstâncias de tempo e lugar, negando, contudo, que haja mantido qualquer tipo de conversa com a assistente, imputando a esta uma atitude agressiva para com a arguida S. G., o que o levou a afastá-la. Aludiu ao crédito que detém sobre a assistente, emergente de um empréstimo que lhe concedeu, no âmbito da exploração de um Bar, em …. Negou ter colocado quaisquer cartazes junto à residência da assistente. Refere que as desavenças que tem com a assistente, sua ex-namorada, prendem-se não com a referida dívida, mas com o facto de esta sentir-se magoada por ter sido “trocada” pela arguida S. G., com quem o arguido passou a ter uma relação amorosa.
A arguida S. G., no que diz respeito ao episódio ocorrido no Shopping, admitiu as circunstâncias de tempo e lugar. Referiu que quando a assistente os avistou, foi na sua direcção numa atitude agressiva, estando convencida que pretendia agredi-la. Negou, contudo, que haja apodado a assistente com quaisquer epítetos e nada sabe dos cartazes colocados junto à residência da assistente. Aludiu à existência da dívida da assistente de que é credor o arguido, actual marido, na ordem dos € 4.000,00.
A assistente, num registo que se nos afigurou sincero e objectivo, confirmando as circunstâncias de tempo e lugar, descreveu toda a conduta dos arguidos no Shopping. Relatou que quando os arguidos a avistaram no seu local de trabalho, começaram a provocá-la, dizendo-lhe para pagar o que devia, tendo ainda a arguida comentado, em voz alta, que não sabia como era possível uma pessoa insolvente trabalhar para um Banco. A assistente reproduziu as expressões proferidas pelos arguidos, quer a constante da acusação pública, quer a constante da acusação particular, expressões que repetiram várias vezes, em voz alta, na presença de terceiros que passavam no local. A assistente, aludiu ainda à exploração de um café juntamente com o arguido, o qual investiu € 4.000,00, quantia que agora reclama, alegando um empréstimo, sendo que o mesmo exige da assistente a quantia de € 5.500,00, exigência já manifestada aquando da realização de uma penhora efectuada em casa dos seus pais, local onde residia. Quanto aos cartazes, referiu que o seu pai contactou-a telefonicamente, dando-lhe conta que havia sido colocados cartazes com os dizeres apurados na paragem do autocarro junto à residência. A assistente relatou os sentimentos de vergonha, humilhação e receio que vivenciou aquando e após os factos, o que lhe determinou a alteração das rotinas, tudo nos termos dados como provados, sendo de salientar que tal tensão psicológica está conforme às regras da normalidade neste tipo de conflitos, sendo de salientar que parte dos factos ocorrem no próprio local de trabalho da assistente, perante terceiros.
M. M., colega de trabalho da assistente, que no local se encontrava, num registo igualmente sincero e objectivo, relatou toda a conduta dos arguidos, ocorrida no Shopping, reproduzindo as expressões que ambos proferiram, tudo nos termos dados como provados. Mais esclareceu que enquanto a arguida S. G. se dirigia à assistente, o arguido dirigia-se às pessoas que no local passavam, dizendo-lhes que a assistente era uma caloteira. Referiu que a assistente, perante o ocorrido, ficou devastada, não tendo acabado a jornada de trabalho, tendo abandonado o local. Referiu-se ainda a testemunha ao estado de ansiedade e medo que a assistente experienciou nas semanas seguintes à ocorrência dos factos, tendo-a conduzida até casa diversas vezes.
O. M., funcionária de um loja junto ao local onde a assistente se encontrava a trabalhar, num registo igualmente objectivo e sincero, referiu que os arguidos a cumprimentaram, os quais conhece por serem clientes da loja onde trabalha e que, após, dirigiram-se à assistente, tendo os mesmos proferido às expressões dadas como provadas, designadamente as da acusação pública e da acusação particular. Mais referiu que o arguido se dirigia às pessoas que passavam no local e dizia-lhes que a assistente era caloteira. Foi a testemunha que solicitou a presença do pessoal de segurança do Shopping. Referiu-se ainda a testemunha ao estado de ansiedade e medo que a assistente experienciou nas semanas seguintes à ocorrência dos factos.
V. F., não assistiu aos factos, tendo chegado pouco depois, altura em que os arguidos estavam a redigir uma reclamação no Livro de Reclamações. Descreveu o estado anímico da assistente na altura, triste, cabisbaixa, pálida.
R. F., que passou no local dos factos, não sendo capaz de reproduzir as expressões exactas que ouviu, referiu que os arguidos dirigiam à assistente palavras “inadequadas”.
R. R., ex-trabalhador do pai da assistente, num registo que se evidenciou objectivo e descomprometido, confirmou que avistou na paragem do autocarro o cartaz que consta de fls. 3, tendo sido o próprio a retirá-lo, informando o seu patrão do sucedido.
J. F., pai da assistente, confirmou que a testemunha R. R. lhe entregou em mão o cartaz que se encontrava afixado na paragem do autocarro, tendo confirmado tratar-se do que consta de fls. 3. Aludiu ainda aos sentimentos de medo, receio e humilhação que a filha evidenciou nas semanas a seguir aos factos e às alterações da rotina.
R. F., irmão da assistente, num registo igualmente sincero e objectivo, relatou que viu os cartazes em causa, confirmando que no local não existe outra T. F. e que o incidente foi comentado na comunidade. Descreveu ainda o estado de tristeza de que ficou acometida a assistente após os factos.
A testemunha de defesa, V., advogada e amiga da arguida, nada sabia dos factos, tendo apenas abonado a favor da personalidade da arguida.
Mais foi valorado o relatório de exame pericial de fls. 138/142, do qual resulta que os dizeres constante do cartaz de fls. 3, colocado junto à residência da assistente, são, muito provavelmente, da autoria da arguida S. G..
Foram igualmente valoradas as certidões judiciais de fls. 850/859, 863/865, 877/889, das quais se extrai a factualidade constante dos pontos 19) a 23).
Assim, da conjugação da prova, mormente das declarações da assistente e das testemunhas da acusação que sobre os factos se referiram expressamente, não ficou o tribunal com quaisquer dúvidas de que os arguidos, no episódio ocorrido no Shopping, proferiram as expressões nos termos dados como provados, sendo de salientar que a convicção de que os arguidos actuaram como descrito sai reforçada, quando se conclui, como se verá, que voltaram a apodar a assistente de “caloteira” através da afixação de cartazes.
Na verdade, a versão dos arguidos, segunda a qual a assistente, mal os viu, adoptou uma atitude de agressividade, procurando até agredir a arguida S. G., para além de não estar sustentada em mais nenhum meio de prova, designadamente testemunhal, não merece credibilidade, pois que não é nada crível que a assistente adoptasse tal comportamento no seu próprio local de trabalho, sujeitando-se a criar um conflito com, crê-se, inevitáveis repercussões na sua relação laboral.
Quanto à autoria dos cartazes, considerando as conclusões do exame pericial, do qual resulta que os dizeres neles constantes, são, muito provavelmente, da autoria da arguida S. G., o valor monetário nele referido, o facto do crédito em causa ser detido pelo arguido A. R., interessado directo na sua cobrança, bem como a circunstância da própria arguida arvorar-se como defensora dos interesses do arguido, como bem evidenciado no incidente ocorrido no Shopping, concatenando todo este contexto, aliado às regras da normalidade e bom senso, conclui-se que a afixação dos cartazes foi realizada pelos arguidos, de comum acordo, ou por alguém a seu mando.
No que concerne ao elemento subjectivo, ponderou-se o iter criminis dos arguidos, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, designadamente a de lesar a honra e consideração da assistente, bem sabendo ser tal comportamento proibido, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento, salientando-se que a consciência do carácter lesivo para honra e consideração da assistente é evidenciada no modo como os arguidos actuaram, ora, dirigindo-se a terceiros a quem “informavam” que a assistente era “caloteira”, ora, coagindo esta a pagar a dívida, sob pena de espalhar noutras localidades cartazes idênticos ao que foi afixado junto à residência da assistente, valendo-se, deste modo, do carácter negativo que a comunidade em geral associa às pessoas que são apodadas de “caloteiras”.
No que diz respeito aos factos atinentes ao pedido de indemnização civil, resultaram os mesmos, como já referido, das declarações da assistente e do depoimento das testemunhas da acusação e pedido de indemnização civil que sobre tal questão se pronunciaram, sendo certo que os sentimentos em causa, resultam das regras da normalidade neste tipo de situações, tanto mais que as expressões foram proferidas na presença de terceiros e no local de trabalho da assistente, o que acentua, naturalmente, o sentimento de tristeza, humilhação, vergonha, angústia e até receio de tais incidentes voltarem a repetir-se.
Os arguidos esclareceram a respectiva situação pessoal e económica, nos termos dados como provados.
A in/existência de antecedentes criminais resulta dos CRC juntos aos autos.
Quanto a factualidade não provada, ainda não mencionada, resultou da falência prova. Com efeito, em particular quanto ao alegado anúncio dos arguidos atentarem contra a integridade física da assistente, importa referir que a expressão em causa é demasiada vaga e genérica, sendo que o receio que a assistente manifestou apenas se deve à interpretação que a mesma faz da expressão em causa mas que não teve suporte probatório. Na verdade, a expressão é tão ambígua que poderemos concluir que a intenção dos arguidos seria lesar (“dar cabo”) da honra e consideração da assistente, como, de resto, acabaram por o fazer em ambos os episódios apurados.

IV. APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:

Vêm os arguidos acusados da prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º, nº 1, do Código Penal.
Dispõe o artigo 153º, nº 1, do Código Penal que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”
O bem jurídico protegido pela incriminação acabada de referir é a liberdade de decisão e de acção, na medida em que o sentimento de insegurança gerado pelas ameaças afecta necessariamente “a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade” (AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 342, §6).

São elementos constitutivos deste tipo legal de crime:
- o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;
- que esse anúncio seja feito de forma adequada a provocar no visado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação;
- a efectivação desse mal tem que estar dependente da vontade do agente; e
- que o arguido tenha actuado com dolo.
A forma pela qual pode ser praticado o crime é indiferente, podendo ser oral, escrita ou até gestual, essencial é que ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário, podendo tal conhecimento ser alcançado porque o agente faz a ameaça directa e pessoalmente ao visado ou porque se serve de interposta pessoa.
Por outro lado, é necessário que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação, ou seja, exige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar a liberdade de determinação do ameaçado, trata-se, portanto, de um crime de mera acção e de perigo (Acórdão do STJ, de 26-04-2001, processo nº 467/01-5ª, SASTJ, nº 50, 55, em Código Penal Português, Anotado e Comentado, 15ª Edição, Almedina, página 535). O critério da adequação da ameaça “é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado)” - Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, página 348; cfr. ainda, Acórdão da Relação do Porto, de 07-03-2012, publicado em www.dgsi.pt.
Conforme se refere no Acórdão da Relação de Guimarães, de 06-10-2010, publicado em www.dgsi.pt: “Ameaça adequada é aquela que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado).”
Assim, após a revisão do Código Penal de 1995, no crime de ameaça não se exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a ameaça seja susceptível de a afectar. O crime de ameaça deixou, pois, de ser um crime de resultado e de dano – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 07-03-2012 e Acórdão da Relação de Lisboa, de 17-10-2007, ambos publicados em www.dgsi.pt.
Como se deixou dito supra é elemento típico da infracção o anúncio de um mal futuro, não podendo ser iminente, porque se o for estaremos perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Exemplificando: haverá ameaça quando alguém afirma “hei-de-te matar”, mas haverá violência se for dito “vou-te matar já” (cfr. “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, página 342).
Na verdade, sendo o crime de ameaça um crime contra a liberdade pessoal (liberdade de decisão e de acção) a conduta típica deve gerar insegurança, intranquilidade ou medo no visado, de modo a condicionar as suas decisões e movimentos posteriores ao anúncio do mal e isso não acontecerá se a ameaça for de um mal a consumar no momento, porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objecto da ameaça, sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível, ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ficar o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali para a frente - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-11-2004, publicado www.dgsi.pt. Veja-se, ainda, Acórdão da Relação do Porto, de 28/11/2007, publicado in www.dgsi.pt: “Não se preenche o crime de ameaça se o mal anunciado é iminente.”
Torna-se, pois, necessário que a ameaça anuncie um mal futuro que, objectiva e subjectivamente, seja idóneo a provocar medo ou inquietação na pessoa do ameaçado e que a sua concretização apareça como apenas dependente da vontade do agente que a profere (cfr. Acórdãos da Relação do Porto, de 25-01-2006 e 21-06-2006, publicado em www.dgsi.pt.
É precisamente esta característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que serve de critério para distinguir a acção como crime de ameaça da tentativa de execução do respectivo acto violento.

In casu, a expressão proferida pelos arguidos, atento o seu carácter vago e genérico, é insuficiente para nos permitir concluir pelo preenchimento do elemento consistente no anúncio de um mal futuro que preencha a prática de um crime de contra a vida, integridade física, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, pelo que deverão os arguidos ser absolvidos.
*
Prescreve o artigo 180º, nº 1, do Código Penal, que “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.”.
Por seu turno, prescreve o artigo 181º, nº 1, do Código Penal que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhes factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhes palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”
O bem jurídico protegido com estas incriminações é a honra e consideração pessoal.
A honra reporta-se, essencialmente, ao sentimento de auto-estima, de dignidade subjectiva ou, por outras palavras, à imagem que o indivíduo tem de si mesmo; enquanto que a consideração designa a reputação, a boa fama e a estima de que o indivíduo é merecedor por parte da comunidade na qual se insere (Código Penal Anotado, Simas Santos e Leal-Henriques, 2º Volume., 2000, Lisboa, Rei dos Livros, p. 469).
Segundo ainda o ensinamento de BELEZA DOS SANTOS, Algumas considerações sobre crimes de difamação e injúria, Revista de Legislação e Jurisprudência 92º, pp. 164, “a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um individuo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale”.
Por sua vez, a consideração será o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo, nestes moles, o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que cada um de nós é tido pelos outros.
Será, então, o merecimento que a pessoa tem no meio social, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, ou seja, a forma como cada sociedade vê cada pessoa – ver, com interesse, o Acórdão da Relação de Lisboa de 6 de Fevereiro de 1996, Colectânea de Jurisprudência, tomo I, pp. 156.
Os crimes de injúria e de difamação consumam-se quando a imputação injuriosa ou difamatória é compreendida pelo destinatário (sendo através do critério do destinatário que se distingue a injúria da difamação). É nesse momento que se viola uma pretensão de respeito pela dignidade devida à pessoa humana, daí que também se exija uma avaliação casuística sobre se a imputação é adequada a diminuir socialmente o visado.
Podem ser vários os processos executivos do crime de difamação: i) a imputação de um facto ofensivo, ainda que sob a forma de suspeita; ii) a formulação de um juízo de valor; e iii) a reprodução de uma imputação ou de um juízo susceptíveis de ofender a honra de outrem (cfr. Leal Henriques  Simas Santos, Código Penal Anotado, II, 2.ª ed., Lisboa, 1997, p. 317).
Mas o que se deve entender por facto e juízo de valor? Pode dizer-se que facto é qualquer acontecimento, evento ou situação, passada ou presente, susceptível de ser objecto de prova. A sua afirmação pode estar condensada, consistindo numa simples frase do género «A. é ladrão» ou aparecer ligada a um conceito normativo (v.g., «B. roubou-me»), desde que a valoração ainda permita que se reconheça a relação com o facto (a situação, o acontecimento) afirmado (AUGUSTO SILVA DIAS, Alguns Aspectos jurídicos dos Crimes de Difamação e Injúrias, em Materiais para o Estudo da Parte Especial do Direito Penal  Estudos Monográficos: 3, Revista da AAFDUL, 1989, p. 15).
O juízo de valor, por seu turno, analisa-se numa apreciação pessoal sobre o carácter da vítima (ainda que alicerçada em determinados factos quando a vertente valorativa seja prevalente).
Por outro lado, tais crimes distinguem-se facilmente entre si.
A difamação consiste na imputação, levada a terceiros e na ausência do visado, de factos ou condutas que encerram em si reprovação ético-social, sendo ofensivos da honra e consideração do visado, enquanto pretensão de respeito que decorre da dignidade da pessoa humana e pretensão ao reconhecimento da dignidade moral da pessoa por parte dos outros. Por seu turno, o crime de injúria já pressupõe a presença do visado, consubstanciando-se num ataque directo, sem intromissão de terceiros, à pessoa do ofendido, ainda que audível por estes (cfr. neste sentido, Acórdão da Relação do Porto, de 30-09-2009, publicado em www.dgsi.pt).
Ainda a este propósito entendemos de realçar as palavras de AUGUSTO SILVA DIAS (in Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, A.A.F.D.L., 1989, pág. 34) que esclarece que «Decisiva para a qualificação como injúria ou difamação é (…) a comprovação de se a presença do ofendido é uma presença activa, susceptível de neutralizar o efeito lesivo da ofensa, ou se é, pelo contrário, uma presença passiva ou uma mera ausência que impossibilita uma resposta directa e, por isso, torna mais fácil a difusão da ofensa».
Os crimes de difamação e injúria são crimes dolosos, admitindo o dolo em qualquer das suas modalidades, afastando-se apenas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes, sendo certo bastam-se com a consciência de que o que se disse ofende a pessoa visada na sua honra e consideração (em particular para o crime de injúrias, veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra, de 17-12-2008, publicado em www.dgsi.pt).
Ora, está provado que nas circunstâncias referidas em 7) e 8), os arguidos apodaram a assistente de “caloteira”.
No crime de injúria, a análise da verificação do ilícito não se pode circunscrever ou limitar à valoração isolada e objetiva das expressões proferidas, exigindo-se que as mesmas sejam apreciadas em função do circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas.
Ora, cremos que a expressão em causa, quando conjugada com o significado que a mesma assume para a generalidade das pessoas, encerra, quanto a nós, uma reprovação ético-social da conduta da assistente, que, claramente foi visada pela conduta dos arguidos. Na verdade, é manifesto que os arguidos ao apodarem a assistente de caloteira, fazendo-o na presença de terceiros, tendo inclusive o arguido se dirigido directamente a outras pessoas que se encontravam no local, sabiam estar a formular um juízo desonroso sobre a personalidade da assistente e que, como tal, procuravam, e assim lograram, lesar a sua honra e consideração, humilhando-a e enxovalhando-a, desiderato que, de resto, é claramente pretendido ao terem, mais tarde, afixado cartazes com a mesma expressão, procurando “coagir” a assistente a pagar a invocada dívida, sob pena de espalharem e publicitar, por um maior número de pessoas, tal juízo de valor que sabiam ser negativo aos olhos da comunidade, valendo-se desta percepção geral do cidadão sobre o carácter negativo e desonroso da expressão “caloteira”.
Assente que está que a expressão em causa é não só objectiva como subjectivamente ofensiva da honra e consideração da assistente, cumpre então averiguar se a conduta dos arguidos deve ter-se por excluída, face à eventual ocorrência de causa de justificação, desde logo porque, tal como vem provado, a assistente é devedora do arguido, efectivamente, da quantia próxima de € 5.000,00.

Dispõe o nº 2, do artigo 180º, do Código Penal, aplicável por força do nº 2, do artigo 181º: “A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.”

Ora, entendemos que encerrando a expressão “caloteira” um juízo de valor ofensivo sobre a personalidade da assistente, está afastada a possibilidade dos arguidos demonstrarem a veracidade do alegado, para efeitos de afastar a ilicitude da conduta, na medida em que a excepcio veritas se reporta apenas a factos, o que não é o caso.
Ademais, não se vê como concluir no sentido de que, atento o contexto e o modo como os arguidos actuaram, a sua conduta visiva realizar um interesse legítimo. Com efeito, não se descortina qual a vantagem (a não ser a de humilhar publicamente a assistente, desiderato alcançado) da conduta dos arguidos em apodar a assistente de “caloteira”, já que a forma de fazer valer qualquer crédito de que se seja titular, é recorrer às competente acções judiciais.
Neste sentido, veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães, publicado em www.dgsi.pt: “ I – Assente que está que as expressões produzidas pelo arguido são ofensivas da honra dos assistentes, cumpre no entanto averiguar se a antijuridicidade de tal comportamento deve ou não ter-se por excluída, face à eventual ocorrência de causa de justificação. II – A primeira observação a fazer é a de que estamos perante a formulação de juízos de valor e de atribuição de epítetos e não face a imputação de factos, pois que, na verdade, o arguido atribuiu aos assistentes não apenas factos, mas também os epítetos de “vigaristas” e “caloteiros” o que convenhamos, é uma situação muito diferente daquela em que se diz que os assistentes devem uma determinada quantia ao arguido. III – Ou seja, não é legalmente admissível que o arguido faça prova de que os assistentes são “caloteiros” ou “vigaristas” mas, é certamente possível admitir que o arguido logre demonstrar que os assistentes afinal eram devedores de uma determinada quantia, facto que, diga-se veio a acontecer. IV – E, como vem sendo defendido na doutrina e na jurisprudência (ver por significativo nesta matéria, o Ac. da RE de Outubro de 1996, BMJ, 460, 817), «a causa de justificação prevista no n° 2 do artº 180 do C. Penal apenas é aplicável à imputação de (actos ou à reprodução da correspondente imputação, pelo que não abrange a formulação de juízos ofensivos, a atribuição de epítetos ou palavras a que se alude no crime de injúrias, bem como a imputação de factos genéricos ou abstractos». V - Com efeito, nos casos de formulação de juízos ofensivos o recurso à causa de justificação prevista no citado artº 180º nº 2 do C. Penal, não é legalmente possível, dada a inadmissibilidade da “exceptio veritatis”, bem como a circunstância de o legislador entender que para a salvaguarda do interesse legítimo (requisito essencial da causa da causa de justificação em apreço), basta que se possam manifestar os factos desonrosos. VI – Daí que consideramos prejudicada a questão de saber se o arguido fez ou não prova da verdade dos factos na prossecução de um interesse legítimo.”
Veja-se, ainda, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 17-03-2010, publicado em www.dgsi.pt: “Dizer que alguém é caloteiro, por si só, não consubstancia a defesa de qualquer interesse legítimo. A forma de o arguido tutelar o seu interesse, a defesa de um eventual direito de crédito sobre o assistente, seria fazer valer esse direito em tribunal.”
Está igualmente provado que os arguidos agiram de forma consciente com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração da assistente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
De referir que, atento o supra exposto, a presença da assistente no local, aquando da prolação das expressões, apesar do facto de terceiros as terem ouvido (fim alcançado pelos arguidos) leva-nos a concluir que estamos perante um único crime de injúria.
Face ao exposto, por estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivo da infracção e por inexistirem qualquer causa da exclusão da culpa ou da licitude, os arguidos incorreram na prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal.
*
Está igualmente provado que no dia 27 de Abril de 2015, os arguidos ou alguém a seu mando colocaram dois cartazes em frente à residência da assistente, numa paragem de autocarros, com as seguintes expressões “T. F., paga o que deves € 5.500,00, caloteira, isto é só o começo. Para a semana serão espalhados centenas de cartazes nas Taipas e Guimarães.” Tal expressão encerra um juízo de valor ofensivo da honra e consideração da assistente, nos termos já referidos e que aqui se dão por reproduzidos.
Mais está provado, que nas circunstâncias em causa, os arguidos agiram de forma consciente com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração da assistente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei, não estando, mais uma vez, preenchidos requisitos previstos no nº 2 do artigo 180º, do Código Penal, pelas razões supra exposta e que aqui se dão reproduzidas.
Veja-se, numa situação similar, o Acórdão da Relação de Évora, de 19-11-2015, publicado em www.dgsi.pt: “I - Incorre na prática do crime de difamação o arguido que coloca, no interior de uma sua propriedade, mas em lugar de onde podia ser avistado da via pública, um cartaz em que apelidava o assistente de «caloteiro», como meio de induzir o visado a pagar-lhe a quantia de € 25.000, que o arguido entende ser-lhe devida, em virtude da falta de provisão de dois cheques que tem em seu poder, que o assistente emitiu e que não obtiveram provisão. II - Não se pode afirmar que o arguido, ao agir como agiu, o fez em nome da realização de um interesse legítimo.”

Face ao exposto, por estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivo da infracção e por inexistirem qualquer causa da exclusão da culpa ou da licitude, os arguidos incorreram na prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, nº 1, do Código Penal.
(…)”.

C) Apreciando

Comecemos então pelas questões colocadas no recurso interposto pelo arguido, algumas também levantadas pela arguida S. G., procedendo ao seu conhecimento pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência.

- Nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea b), do C.P.P, por falta de promoção do Ministério Público relativamente à acusação particular que definiu o objecto de processo, levantada por ambos os recorrentes.

Resulta dos autos que a assistente, na sequência da notificação que lhe foi feita para os efeitos do artigo 285,nº1, do C.P.P., veio deduzir acusação particular contra os ora arguidos, o que veio a fazer a fls. 289/290 dos autos, através de requerimento entrado em 10/3/2016.
Ainda dentro do prazo de dez dias de que dispunha para deduzir tal acusação, veio no dia seguinte apresentar uma segunda acusação particular, mais concretamente a que consta a fls. 296 a 298.

Por despacho proferido em 14/3/2016 (fls.305), o Ministério Público acompanhou a segunda acusação particular pelos factos e disposições constantes de fls. 296 a 298, por entender terem sido recolhidos indícios suficientes da prática dos crimes ai imputados, indicando ainda os respectivos meios de prova.
Tal despacho, bem como a acusação de fls. 296/298, foram notificados aos arguidos por via postal simples com prova de depósito em 16 de março de 2016 (fls.315 e 316).
Em 18/3/2016, na sequência de requerimento apresentado pela arguida, no qual alegava ter tido conhecimento de que havia sido autuada outra acusação que desconhecia, veio o Ministério Público esclarecer ter a assistente, de facto, apresentado uma primeira acusação particular a fls. 289 a 294, a qual reformulou a fls. 296/298, dentro do prazo de que dispunha para a sua dedução, tendo sido esta última que acompanhou, da qual foram os arguidos foram notificados, bem como do respectivo despacho que a acompanhou.
Por tal despacho foi ainda determinado que se desse conhecimento de tal acusação, a de fls. 289-294, aos arguidos, o que foi feito também através de via postal simples com prova de depósito, notificações que ocorreram em 23/3/2016 (fls.322 e 323).
Ora, como resulta também dos autos, a acusação tida como relevante foi a apresentada em primeiro lugar pela assistente.
E tal certamente em obediência ao princípio da preclusão.
Como foi salientado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação em 10/9/2019, a acusação particular de fls. 289 e segs. foi aquela que foi objecto de comprovação judicial, a que consta da não pronúncia proferida em 17/10/2016, a que foi objecto de impugnação pelo Ministério Público e considerada no acórdão do TRG de 20/3/2017.
E assim sucessivamente.
Vejamos então se estamos perante a nulidade invocada, a qual, segundo os recorrentes, vem consubstanciada no facto do Ministério Público não ter acompanhado, nos termos do artigo 285º,nº4, do C.P.P., a primeira acusação particular, a tida como relevante.
De acordo com a al. b) do citado artº 119º do C.P.P., constitui nulidade insanável que deve ser oficiosamente declarada, “A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artº 48º…”.
Estabelece este último preceito legal que “O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º”.
Por sua vez, evola do nº1 do artigo 50º, do mesmo diploma legal, que “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação”, acrescentando o nº 2 que “O Ministério Público procede oficiosamente a quaisquer diligências que julgue indispensáveis à descoberta da verdade (...) participa em todos os actos processuais em que intervier a acusação particular, acusa conjuntamente com esta e recorre autonomamente das decisões judiciais”.
O Ministério Público detém pois a titularidade da acção penal, com as excepções taxativamente previstas na lei, designadamente, com as previstas nos artigos 49º a 52º, preceitos nos quais se estabelecem restrições à promoção do processo penal por parte do MP, como é o caso nos crimes particulares em que a lei faz depender o procedimento criminal de acusação particular.
Com efeito, se é verdade que o Ministério Público de acordo com o seu Estatuto pode ser definido como titular exclusivo da promoção do processo, cabendo-lhe a titularidade da acção penal, no caso dos crimes particulares, a nossa lei conferiu ao assistente o direito de acusar autonomamente, ou seja, independentemente do Ministério Público, conferindo-lhe a faculdade de promover o andamento do processo ou de requerer a abertura de instrução, quando o Ministério Público arquiva o inquérito.
Deste modo, compete, em primeira linha e de forma autónoma, ao assistente a dedução de acusação nos crimes particulares e, uma vez formulada esta, a acusação que o Ministério Público vier a deduzir será sempre subordinada. Como resulta do citado artigo 285º,nº4, o Ministério Público apenas pode acusar pelos mesmos factos da acusação do assistente, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles.
Nos crimes particulares, o Ministério Público só poderá então promover o processo se for apresentada queixa, se o respectivo titular da mesma se constituir assistente e se este deduzir acusação particular para que o processo prossiga para as fases posteriores.
E, assim sendo, como é, fácil é concluir que carece de sentido fazer coincidir a ausência de tomada de posição expressa por banda do Ministério Público relativamente à acusação deduzida pelo assistente, com a falta de promoção do processo e, consequentemente, ver na mesma a nulidade insanável prevista no artº 119, al. b), do CPP.
Com efeito, findo o inquérito e notificado o assistente nos termos do artigo 285º, nº1, momento até ao qual o Ministério promoveu o processo nos termos amplos que lhe competiam enquanto titular da ação penal, temos que, a partir de tal notificação, a promoção do processo é indubitavelmente do assistente e só após a dedução por este da acusação particular o processo poderá passar à fase seguinte e isto, independentemente do concurso do Ministério Público, ou seja, mesmo que este não tome posição.
A ausência de tomada de posição por parte do Ministério Público não é susceptível de afectar a marcha do processo, a qual apenas depende do impulso do assistente.
Aqui chegados, concluindo-se que tal tomada de posição por parte do Ministério Público não é necessária ao andamento do processo, não comungamos do entendimento dos recorrentes de que a ausência da mesma consubstancie a nulidade insanável de falta de promoção do processo pelo MP, prevista no artº 119º, al. b) do mesmo diploma.
Mas será que existe a obrigatoriedade por parte do Ministério Público de tomar posição relativamente à acusação particular?
Perfilhamos do entendimento de que tal obrigatoriedade existe e que a consequência decorrente da falta de pronúncia por parte do Ministério Público, nos termos do artigo 285º,nº4, é a verificação da nulidade sanável prevista no artº 120º, nº 2, al. d), do CPP.
Tal obrigatoriedade evola, desde logo, do artigo 219º da CRP, ao estatuir que compete ao Ministério Público o exercício da acção penal, orientada pelo princípio da legalidade.
De facto, a circunstância da acusação ser particular não exonera o Ministério Público da sua função de garante da legalidade penal.
Atente-se que é o Ministério Público o responsável pelo inquérito e dai que não possa aceitar-se que nada venha a dizer, remetendo-se ao silêncio
É ele quem recolhe os indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente e decide, findo o inquérito, notificar o assistente para, em dez dias, querendo, deduzir acusação particular.
E, assim sendo, tem claramente a obrigação de decidir, em face dos elementos que recolheu em sede de inquérito, se acompanha a acusação particular, se só a acompanha em parte ou se de todo a não acompanha, desde logo porque em face do que recolheu em inquérito não concorda com o que nela vem a ser descrito.
Cremos pois estar-se perante um acto obrigatório do Ministério Público.
E dai que, não obstante o legislador, no citado artigo 285,nº4, utilize a expressão “pode”, trata-se de um poder vinculado.

Como refere Maia Costa, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág.997/998:
“O Ministério Público deverá tomar posição sobre a acusação particular, nos 5 dias subsequentes, podendo:
- aderir a essa acusação;
- acusar, em peça autónoma, pelos mesmos factos ou por parte deles;
- acusar por outros factos, desde que não constituam alteração substancial dos factos da acusação particular (podendo consequentemente alterar a qualificação jurídica dos mesmos);
- não aderir à acusação particular.

A omissão de tomada de posição do Ministério Público constitui nulidade sanável, nos termos do artigo 120º,nº2,al.d) e não nulidade insanável do art.119º,nº1,b), pois essa omissão não constitui falta de promoção do processo, uma vez que, no procedimento por crimes particulares, a promoção cabe ao assistente”.
Também Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo 285º, do CPP, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2ª ed. pág. 749, segue o entendimento de que a falta de pronúncia configura a nulidade sanável prevista no artigo 120º,nº2, b), traduzida no facto “de não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios”.

No caso vertente, os recorrentes, independentemente da sua qualificação, arguiram atempadamente a nulidade decorrente da falta de tomada de posição por parte do Ministério Público relativamente à primeira acusação apresentada pela assistente, aquela que veio a ser objecto da pronúncia e do julgamento.
Porém, cremos que não lhes assiste razão.
E isto porque, no caso vertente, não podemos concordar com o entendimento de que o Ministério Público não tomou posição sobre acusação particular deduzida pela assistente.
Tal tomada de posição existiu, ainda que implicitamente.
Com efeito, pese embora o Ministério Público, aquando do despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 285º,nº4 (fls.305) e ao acompanhar a acusação particular apresentada pela assistente, tenha expressamente remetido para a segunda acusação apresentada a fls. 296 a 298, a verdade é que o fez por entender tratar-se de uma reformulação da primeira.
Outra não pode ser a conclusão a retirar-se do que veio a referir no seu despacho proferido a fls. 314.
E, assim sendo, cremos poder admitir-se que ao proferir o despacho de fls. 305, implicitamente estava a acompanhar a acusação de fls. 289/290, que veio a ser objecto da pronúncia os arguidos.
Esta estava contida naquela outra para a qual remeteu quando proferiu o seu despacho ao abrigo do dispositivo legal citado.
Assim, praticado o mencionado ato obrigatório, improcede a nulidade a que alude o artigo 120º,nº2, b), do C.P.P., traduzida no facto “de não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios”.
Volvendo-nos agora na nulidade decorrente da falta de notificação da acusação, a qual qualificou de insanável, ao abrigo do disposto no artigo 119º, al. c), também neste segmento carece de qualquer razão o recorrente A. R..

Em matéria de nulidades processuais penais, como é sabido, vigora o princípio da legalidade, de acordo com o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei (cfr. art.°118.°, n.°1, do Código de Processo Penal), sendo que, nos casos em que a lei não comine a nulidade, o ato ilegal é irregular (cfr. art.° 118°, n° 2, do Código de Processo Penal).
Ora, decorre da conjugação destes preceitos que “o processo penal está subordinado ao princípio da legalidade dos actos, não sendo admitida a prática de actos que a lei não permita; os actos previstos devem respeitar as disposições da lei de processo que dispõem sobre os pressupostos, as condições, o prazo, a forma e os termos. Porém, a «violação ou inobservância» das «disposições da lei do processo penal» só determinará a invalidade do acto quando a consequência for expressamente cominada na lei. O princípio da legalidade do processo e dos actos desdobra-se, deste modo, em matéria de nulidade ou invalidade, na consequência que se afirma na expressão de um numerus clausus dos fundamentos da invalidade; a nulidade do acto não resulta da simples violação ou inobservância de disposições legais, mas tem que estar expressamente prevista como consequência da violação ou inobservância das condições ou pressupostos que a lei expressamente referir.
A violação ou inobservância das condições ou pressupostos do acto, que não constitua nulidade, determina apenas a «irregularidade» do acto.” (Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado (2014), anotação ao artigo 119º, pág. 383).
Percorrido o Código de Processo Penal, não descortinamos um qualquer normativo que comine com o vício da nulidade insanável, nem sequer com o vício da nulidade sanável ou dependente de arguição, a ausência de notificação da acusação, pelo que, a verificar-se tal omissão, a mesma configuraria uma irregularidade processual, nos termos do artigo 123º do C.P.P., nunca arguida pelo arguido.
Todavia, também a mesma não se mostrava verificada, porquanto ambos os arguidos tomaram conhecimento da primeira acusação apresentada pela assistente, na sequência do despacho do Ministério Público de fls. 314, proferido em 18/3/2016, o qual determinou a sua notificação, vindo aqueles a ser notificados em 23 de março de 2016 (cfr. fls. 317 a 320 e provas de depósito de fls.322 e 323).
Sem necessidade de mais considerações, improcede a nulidade invocada pelo recorrente A. R..

Prescrição do procedimento criminal, questão levantada por ambos os recorrentes.

O instituto da prescrição compreende, a prescrição do procedimento criminal e da prescrição da pena.
Em ambos os casos, está-se perante um pressuposto negativo de punibilidade: no primeiro caso, a verificação da prescrição impede o prosseguimento do processo, enquanto que no segundo caso, a prescrição obsta à execução da pena em que o agente foi condenado.
O trânsito em julgado da decisão constitui, assim, a fronteira entre aquelas duas formas de prescrição.
Deste modo, se a prescrição respeita a momento anterior ao trânsito em julgado da decisão está-se numa situação de prescrição do procedimento criminal, se for posterior àquele momento estamos perante uma situação de prescrição da pena.
Como refere Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, edição de 1993, páginas 699 e 700, «A prescrição justifica-se, desde logo, por razões de natureza jurídico-penal substantiva (…). Por um lado, a censura comunitária (…) esbate-se, se não chega mesmo a desaparecer» pelo «mero decurso do tempo». Por outro lado, as exigências de prevenção especial (…) tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objectivos (…). Finalmente, e sobretudo, o instituto da prescrição justifica-se do ponto de vista da prevenção geral positiva: o decurso de um largo período sobre a prática de um crime ou sobre o decretamento de uma sanção não executada faz com que não possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitária, já apaziguadas ou definitivamente frustradas».
«Também do ponto de vista processual (…), o instituto geral da prescrição encontra pleno fundamento. Sobretudo (…) na medida em que o decurso do tempo torna mais difícil e de resultados mais duvidosos a investigação (e a consequente prova) do facto e, em particular, da culpa do agente, elevando a cotas insuportáveis o perigo de erros judiciários».
No âmbito do instituto da prescrição do procedimento criminal, aquele que nos interessa, importa ter presente as seguintes disposições legais.

De acordo, com o disposto no art. 118.º, do C.Penal, «1 - O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:

a) 15 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for superior a 10 anos ou dos crimes previstos nos artigos 335º,372º,373º,374º,374-A, 375º,nº1,377º,nº1, 379º,nº1, 382º,383º e 384º, do Código Penal, 16º,17º,18º e 19º, da Lei nº34/87 de 16 de julho, alterada pelas Leis nºs108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, 4/2011, de 16 de fevereiro, e 4/2013, de 14 de janeiro, 7º,8º e 9º da Lei nº20/2008, de 21 de abril, 8º,9º,10º e 11º da Lei 50/2007, de 31 de agosto e ainda do crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção;
b) Dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez anos;
c) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos;
d) Dois anos, nos casos restantes.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, na determinação do máximo da pena aplicável a cada crime são tomados em conta os elementos que pertençam ao tipo de crime, mas não as circunstâncias agravantes ou atenuantes.
3. (…)
4. Quando a lei estabelecer para qualquer crime, em alternativa, pena de prisão ou multa, só a primeira é considerada para efeito do disposto neste artigo.
5. (…)
Por sua vez, estatui o art. 119.º, n.º 1, para além do mais, que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
A respeito da suspensão da prescrição, resulta do artigo 120.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma, que a prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo».

E, em conformidade com o disposto nos artigos 120.º, n.ºs 2 e 6:
“No caso previsto na alínea b) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar três anos” (nº2).
“A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão”(nº6).
Ou seja, a prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão, não podendo, contudo, esta ultrapassar três anos quando respeitar à notificação da acusação.
No que tange a causas de interrupção da prescrição, resulta do art. 121º que tal ocorre, para além do mais, com a constituição de arguido (al.a)); com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo (al.b)).
Temos então que, na suspensão, o tempo decorrido antes da verificação da sua causa conta para a prescrição, juntando-se com o tempo decorrido após a mesma ter desaparecido, enquanto que, diversamente, na interrupção, o tempo decorrido antes da verificação da sua causa fica sem efeito, começando a correr novo prazo de prescrição depois de cada interrupção.
Porém, a prescrição do procedimento criminal terá sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvando o tempo da suspensão tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade – art121,nº3, do C.Penal.
Volvendo-nos no caso vertente, temos que em face dos ilícitos em apreço, o de difamação punido com pena de prisão até 8 meses (arts. 180º e 183º,nº1,a)) e o de injúria com pena de prisão até 3 meses (art.181º), o prazo de prescrição é de 2 anos (cfr. art. 118º,nº1,al.d)).
Prazo esse para cujo início da contagem ter-se-à de ter em conta a data da consumação dos ilícitos - 24/12/2014, no caso da injúria, e abril de 2015, no caso da difamação - considerando-se relativamente a este último, porquanto se desconhece o dia certo da sua consumação, o dia 1 de abril de 2015, por mais favorável aos arguidos.
À luz das disposições legais referidas, dúvidas não restam que o prazo de prescrição é de dois anos.
Dúvidas também não restam que mesmo tendo ocorrido diversas causas de interrupção, cuja apreciação concreta é despiciendo referir e apreciar, a prescrição terá sempre lugar quando desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão (3 anos), tiver decorrido o prazo de prescrição acrescido de metade.
E assim sendo, correspondendo o prazo de prescrição máximo a 6 anos (2 anos+1 ano+3 anos), o procedimento criminal no que tange ao crime de injúria terá de considerar-se prescrito em 24/12/2020, o mesmo já não se passando com o crime de difamação, porquanto consumado em abril de 2021, cujo procedimento criminal apenas prescreverá em abril de 2021, mais concretamente, em 1 de abril desse mesmo ano.
Mas será que a Lei nº1-A/2020, de 19 de março, que veio aprovar medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e doença COVID-19, é susceptível de alterar a conclusão a que chegámos?
Entre tais medidas, constam as atinentes aos prazos processuais e diligências que devam ou não ser praticadas no âmbito dos processos e procedimentos, que correm termos, para além do mais, nos tribunais judiciais e no Ministério Público, e as referentes aos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos – art. 7ºda referida Lei.
Esta Lei que entrou em vigor no dia seguinte (artº 11º), devendo produzir efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março (artº 10º), ou seja, desde 09/03/2020, veio depois a ser alterada pela Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril.

Com efeito, esta última, através do seu artº 2º, alterou o artº 7º da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, em diversos pontos, contendo um novo conjunto de normas aplicáveis aos prazos processuais e actos processuais, tendo o mencionado artº 7º passado a ter a seguinte redacção, na parte que ora interessa considerar:
“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de actos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.
2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excepcional.
3 - A situação excepcional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional.
(...)” .
Cria-se assim uma nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e de suspensão da prescrição das penas e das medidas de segurança, a par das indicadas nos artigos 120º e 125º do C.Penal, respectivamente.
Da conjugação das normas acabadas de transcrever resulta de forma clara que os prazos de prescrição e de caducidade ficam automaticamente suspensos em 09/03/2020, só voltando a correr após o termo da situação excepcional causada pela COVID-19.
Do mesmo modo, ficou igualmente claro que essa situação prevaleceria “sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade”, designadamente sobre o regime a que alude o citado artigo 120º,nº2, do C.Penal, segundo o qual, a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade, “sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional”.
Ou seja, dito de outro modo, por virtude daquela legislação específica, os prazos de prescrição e de caducidade ficaram automaticamente suspensos em 09/03/2020, só tendo voltado a correr após o termo da situação excepcional causada pela COVID-19, termo este que veio a ser fixado pela Lei nº 16/2020, de 29 de Maio, em cujo artº 8º se revogaram o artº 7º e os nºs. 1 e 2 do Artº7º-A, da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, tendo entrado em vigor no 5º dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, no dia 03/06/2020.
Mas será a nova causa de suspensão da prescrição (temporária) aplicável ao caso vertente?
A ser aplicável, temos que o procedimento criminal relativamente ao crime de injúria apenas prescreveria em 20/3/2021, porquanto se impunha acrescentar ao mencionado prazo máximo de prescrição de 6 anos (2 anos+1 ano+ 3anos), mais 86 dias, correspondente ao período que mediou entre o dia 9/3/2020 até 2/6/2020.
Ora, não se ignorando a discussão dogmática a respeito da natureza da prescrição do procedimento criminal - para uns de natureza substantiva, para outros de natureza adjectiva ou mista - cremos para nós que referindo-se ao exercício do direito de punir, enquanto causa de extinção da responsabilidade criminal, o seu instituto tem natureza substantiva, como vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça.
Natureza substantiva essa que determina, no domínio da sucessão de leis penais no tempo, quer a lei nova se trate de lei temporária ou não, que a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroactividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem sobrepor-se à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido.
Resultado que, no entanto, acaba por ser semelhante para quem segue o entendimento que a prescrição tem natureza adjectiva ou mista, porquanto as normas atinentes aos seus prazos e causas de suspensão e interrupção inserem-se nas denominadas normas processuais materiais vinculadas ao princípio da legalidade, na medida em que comportam elementos atinentes à punibilidade do agente, normas essas que não são alheias à questão da retroactividade da lei penal, matéria a que não é alheio o artigo 5º,nº2,al.a), do C.P.P (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol.I, Lisboa, Verbo Editora, pág.272, «há algumas leis que disciplinando o processo têm natureza mista, processual e substantiva, e a essas leis deve aplicar-se o regime substantivo, enquanto concretamente for mais favorável ao arguido. É o que se passa com as leis sobre prescrição do procedimento criminal e sobre condições de procedibilidade». Também para Taipa de Carvalho, in Sucessão de leis penais, Coimbra: Coimbra Editora, p. 238, « o instituto da prescrição é integrado por normas processuais matérias e por normas exclusivamente processuais. À primeira categoria pertencem as normas sobre os termos, os prazos, as causas de interrupção e de suspensão, os efeitos e a legitimidade para a invocar; à segunda pertencem as possíveis normas sobre a forma de a invocar e de a declarar»).
A respeito da natureza substantiva do instituto da prescrição, refere-se no Ac. do STJ de 12/11/2008, proferido no âmbito do processo 08P2868, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, o seguinte:
“A prescrição do procedimento criminal constitui uma categoria que, exclusiva ou ao menos predominantemente, se situa na dimensão material e não processual.
Procedimento criminal – o modo de afirmação instrumental do jus puniendi do Estado – significa, em geral, tudo quanto cabe nas condições de início e de desencadeamento da acção penal, enquanto modo de realização, afirmação e concretização do direito penal.
O Estado, porém, não guarda para si, ilimitadamente no tempo, a actuação do seu direito de punir. Decorrido que seja certo lapso de tempo sobre o facto criminoso, maior ou menor consoante as situações previamente definidas na lei, não poderá ser desencadeada ou prosseguir a acção penal por esses factos passados porque o procedimento criminal prescreve.
A prescrição do procedimento criminal está disciplinada nos artigos 117° e segs. do Código Penal.
Este instituto (prescrição do procedimento criminal) tem vindo a ser historicamente justificado, nos sistemas onde é acolhido por razões, umas processuais, outras de natureza substancial e material e ainda outras – sem grande relevância – de carácter empírico.
(…)
Entre nós, hoje, pode considerar-se aceite a teoria jurídico-material da prescrição.
Enquanto referida a procedimento, tem natureza processual. «Mas em matéria penal não há punibilidade sem procedibilidade, porque só a jurisdição tem o poder de punir. A prescrição do procedimento criminal é a extinção do poder judicial quanto à injunção da responsabilidade penal e por isso tem sempre por efeito a extinção da própria responsabilidade penal»- cfr. MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, “Curso de Processo Penal”, vol. II, p. 51-52.
Por seu lado, o Supremo Tribunal, no assento de 19 de Novembro de 1975, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, N° 251, pp. 75 e segs. considerou já que «a lei sobre a prescrição é de natureza substantiva (…)» e «que se traduz na renúncia do Estado a um direito, ao jus puniendi, condicionada ao decurso de um certo lapso de tempo.
Por isso, o reconhecimento da natureza substantiva da prescrição do procedimento criminal terá por efeito determinar a aplicação do princípio da lei penal mais favorável, mesmo no caso de uma lei nova alongar os prazos de prescrição. cfr. EDUARDO CORREIA, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 108°, pp. 361 e seg.
Aceita-se, assim, que a prescrição do procedimento criminal, quer seja de natureza substantiva, quer se considere de natureza mista (substantiva e processual), sempre se há-de considerar ligada ao facto penal – independentemente ao autor do facto ou da pessoa do ofendido - e á valoração da relação da vida que a norma incriminadora disciplina isto é, à dignidade punitiva do facto, de tal modo que se justifica inteiramente que valham para os seus momentos decisivos de aplicação os mesmos princípios que valem para aplicação das leis substancialmente tipificadoras penais.
Nomeadamente, quando se sucedam normas, aplicar aquela (ou aquele regime) que concretamente se revelar mais favorável ao arguido.
A prescrição do procedimento criminal, revertendo, todavia, ao decurso do tempo, está dependente da consideração e dos efeitos de momentos e actos processuais determinantes. É nesta dimensão que a prescrição do procedimento criminal, não na substância do decurso do tempo, mas nos tempos processuais relevantes, depende do processo e dos seus actos.
Nesta medida, embora na substância não seja mutável, a conexão intrínseca processo-conteúdo material é, por natureza, contingente, dependendo da dinâmica dos actos do processo e dos efeitos induzidos que cada acto (dies a quo; dies ad quem; tempos de suspensão) produza em determinada situação concreta.
Na correlação processo-tempo, a prescrição, com tempo material definido e fixado na lei, depende de pressupostos processualmente dinâmicos.
E, acrescidamente, quando na complexa apreciação de pressupostos vários e respectivos efeitos se intrometam diversos regimes quanto à aplicação no tempo da lei penal.
Sobre a aplicação da lei penal no tempo dispõe o n.° 4, parte final, do artigo 29° da Constituição: «aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido o que foi retomado no n° 4 do artigo 2° do Código Penal, que prescreve: «Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limita máximo da pena prevista na lei posterior».
Traduzindo-se a prescrição do procedimento criminal na renúncia do Estado ao direito de punir, condicionada pelo decurso de um determinado lapso temporal, tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça, como se referiu, que as normas sobre prescrição do procedimento criminal têm natureza substantiva.
Tal natureza determina, no domínio da aplicação da lei no tempo, a sujeição das respectivas normas ao princípio da aplicação retroactiva do regime jurídico mais favorável ao agente de uma infracção.
O princípio da aplicação do regime mais favorável no tocante às normas sobre prescrição, significa que nenhuma lei sobre prescrição mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos pode ser aplicada, bem como deve ser aplicado sempre, mesmo retroactivamente, o regime da prescrição que eventualmente se mostre mais favorável ao agente da infracção.
O regime jurídico aplicável a uma qualquer infracção penal é constituído por um complexo de normas jurídicas em que se inscrevem, entre outras, normas legais que se referem à qualificação jurídica, à determinação da sanção e seus efeitos, à extinção do procedimento, às causas de justificação, a prescrição do procedimento.
Deste modo, tendo-se sucedido regimes penais diversos, haverá sempre que ponderar até à decisão que, segundo as possibilidades processuais, possa constituir a decisão final, qual dos regimes sucessivos é mais favorável ao agente.
Mas, estando em causa a prescrição do procedimento criminal, a determinação do regime mais favorável constitui um procedimento metodológico complexo, dependendo da consideração de vários pressupostos, quer directamente materiais (o prazo da prescrição), como da conjugação do tempo com os actos processuais relevantes e de cujos efeitos depende a contagem do prazo da prescrição.
Por isso, a apreciação é dinâmica e tem de ser efectuada em cada momento em que a questão possa ser suscitada – e depende da relevância dos factos determinantes em cada momento em que processualmente seja possível e admitida uma decisão em que um dos pressupostos seja precisamente a inexistência de prescrição do procedimento criminal.
Só nessa medida será dado cumprimento à determinação constitucional de aplicação do regime concretamente mais favorável.
Aplicação que, no que respeita aos elementos de substância e não de forma (definição da tipicidade de crimes; molduras penais; e, pela essencialidade da sua natureza (também) material, a prescrição do procedimento criminal) foi mesmo reforçada com a nova redacção do artigo 2º, nº 4 do CP, após a Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro”.
Feitas estas considerações e volvendo-nos no caso vertente, temos então, na senda do que já adiantámos, que a aplicação da nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal mostra-se prejudicial aos arguidos, na medida em que alargando necessariamente o prazo da prescrição, o procedimento criminal pelo crime de injúria deixaria de estar prescrito.
Com efeito, a admitir-se a aplicação da nova causa de suspensão do procedimento criminal ao prazo de prescrição em curso, tal mais não era do que atribuir-lhe um efeito retroactivo proibido por lei, porquanto em violação com o preceituado no artigo 29º,nº4, da C.R.P., proibição essa que nem em situação de Estado de Emergência pode ser afectada – cfr. artigos 19º,nº6 da C.R.P e 2º,nº1 da Lei 44/86, de 30/9 que define o Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência, dispondo este último, para além do mais, que “A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar (…), a não retroactividade da lei criminal, (…)”.
Ora, alargando a nova lei o prazo de prescrição em 86 dias e desse modo a possibilidade da sua punição, é inquestionável que tal mostra-se mais prejudicial para a situação processual dos arguidos, e dai que a sua aplicação deva reservar-se para os factos praticados na sua vigência.
Deste modo, resta pois concluir pela prescrição do procedimento criminal prosseguido contra ambos os arguidos relativamente ao crime de injúria.

- Nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova (arts. 374º,nº2 e 379º,nº1, a)).

O artigo 379º estabelece um regime específico das nulidades da sentença.
Assim, de acordo com as três alíneas do seu nº 1, é nula a sentença penal quando, não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º, quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos arts. 358º e 359º, e quando o tribunal omita pronúncia ou exceda pronúncia.
O recorrente A. R., na invocação que faz da nulidade, traz à liça o disposto nos artigos 379º,nº1,al.a) e 374º,nº2, do C.P.P..

Sendo a sentença/acórdão o ato decisório do juiz por excelência, este último dispositivo legal enuncia os seus requisitos, dispondo o seguinte:
Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
O dever de fundamentação das decisões judiciais é hoje um imperativo constitucional, dispondo o art. 205º, nº 1, da Lei Fundamental que, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
A fundamentação deve conter as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha, dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência já que através dela se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador.
Para além disso, é ainda através da fundamentação da sentença que é viabilizado o controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto.
Na lei ordinária o dever de fundamentação encontra-se genericamente consagrado no art. 97º, nº 5, do C. Processo Penal – os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
A fundamentação da sentença penal, como decorre desta norma, é composta por duas vertentes: uma delas consiste na enumeração dos factos provados e não provados e outra consiste na exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
Consiste pois, tal fundamentação, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.
As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz.
O objectivo dessa fundamentação é, no dizer de Germano Marques da Silva (In “Curso de Processo Penal”, 2ª ed., 2000, vol. III. pág. 294), o de permitir "a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina".
No que tange à enumeração dos factos provados e dos factos não provados, mais não é do que a narração de forma metódica, dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, com referência aos que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda dos factos provados que, com relevo para a decisão, e não constando de nenhuma daquelas peças processuais, resultaram da discussão da causa.
É esta enumeração de factos que permite concluir se o tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo.
Já relativamente à exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, trata-se de enunciar de forma concisa as provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo tribunal – sem que tal tenha de passar no que tange à prova por declarações pela assentada dos depoimentos produzidos em audiência – bem como de proceder a uma análise crítica de tais provas.
Esta análise crítica deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram, ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e, ainda, na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada (neste sentido, Ac. da Relação de Lisboa, de 18/1/2011, em que foi Relator o Juiz Desembargador Vasques Osório).
Como se extrai das conclusões, mais concretamente das enunciadas nos pontos 17ª a 20ª, o recorrente A. R. fez assentar a nulidade da sentença na circunstância de não conseguir alcançar-se da mesma o raciocínio lógico-dedutivo que o Tribunal empreendeu para atingir a decisão final.
Salvo o devido respeito, carece de qualquer fundamento a nulidade arguida.
Na verdade, evola da motivação da decisão de facto, de forma clara, o raciocínio que levou o Mmo Juiz a dar como provada e não provada a factualidade supra elencada.
Com efeito, «não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo» (Ac. do STJ de 12/4/2000, processo nº 141/2000-3ª) e concorde-se, ou não, com as razões aduzidas, a motivação da decisão de facto em apreço permite perceber, de forma clara, qual o raciocínio que levou o Mmo Juiz a concluir no sentido apontado.
Ora, lida a motivação, a mesma permite uma avaliação segura do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório.
O tribunal a quo indicou os meios probatórios de que se serviu para formar a sua convicção no que que tange à factualidade em apreço, tendo também dado a saber o porquê da sua convicção quanto à valoração de certos meios probatórios em detrimento de outros.
Explicou em que medida foram sopesados os respectivos meios probatórios, designadamente as declarações prestadas pelos arguidos, no confronto com as prestadas pela assistente e com as testemunhas inquiridas, procedeu a uma pequena súmula do que adiantaram ao tribunal, fez menção à razão de ciência de cada uma delas, a forma como prestaram os seus depoimentos e a credibilidade que lhes mereceram.
Concorde-se ou não, o tribunal a quo seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação dos meios probatórios que o levaram a concluir no sentido apontado.
Por tudo o exposto e sem necessidade de mais considerações, improcede a invocada nulidade da sentença recorrida.

- Não verificação dos elementos objectivos e subjectivos dos ilícitos imputados aos arguidos, questão levantada também pela recorrente S. G., mas que em face do já decidido relativamente à questão anterior, apenas incidirá sobre o crime de difamação.

De acordo com o art.º 180º, n.º 1, do Código Penal, comete o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.”
Por seu lado, de acordo com o artigo 183º,nº1,al.a), se no caso dos crimes previstos nos artigos 180º,181º e 182º, a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação, as penas são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
Situações há que afastam a punibilidade da conduta. Estão previstas no n° 2 do artigo 180º do CP.

Estabelece, esta norma, expressamente, que a conduta não será punível quando:

a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos
e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento para, em boa fé, a reputar verdadeira.

Tais requisitos, como resulta do texto legal, são cumulativos e embora a lei não diga o que são interesses legítimos, terão os mesmos, certamente, de ser conformes à ordem jurídica; já no que concerne ao segundo requisito exige ele a prova da verdade da imputação (exceptio veritatis).

No caso vertente, cremos que factualidade provada, no seguimento de que já resultava da acusação particular, não preenche, desde logo, o elemento objectivo do ilícito em apreço, razão pela qual nunca os arguidos poderiam ser condenados pelo crime de difamação.

Ora, a nível do elemento objectivo, o crime de difamação exige a imputação de um facto ou a formulação de um juízo, perante uma terceira pessoa, que sejam desonrosos, desonestos ou vergonhosos do visado, ou ainda a reprodução de tal imputação ou juízo.
A difamação consiste, assim, na imputação a alguém, levada a terceiros e na ausência do visado, de facto ou de juízo que encerre em si uma reprovação ético-social, por serem ofensivos da honra e consideração do ofendido, enquanto pretensão de respeito que decorre da dignidade da pessoa humana e pretensão ao reconhecimento dessa dignidade por parte dos outros, quer no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político.
Quanto ao elemento subjectivo, vem sendo entendido na doutrina e na jurisprudência que o mesmo consiste na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal ato é proibido por lei. Deste modo, não é elemento do tipo a efetiva lesão do sentimento de honra ou da consideração, bastando, para se verificar a consumação do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se, segundo parâmetros de normalidade, de homem médio, que a ação fosse potencialmente adequada a lesar o sentimento de honra ou consideração. O dolo específico, ou seja a intenção concreta de ofender determinada pessoa, não integra o tipo subjectivo, enquanto parte do tipo de ilícito.
Com esta incriminação, a nossa lei procura tutelar o bem jurídico honra, entendido como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior (neste sentido, José Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal. Tomo I, pág. 607).
Protege-se não só a própria dignidade pessoal mas também o sentimento daquilo que "os outros pensam e vêem em si, independentemente de corresponder à verdade, dando, assim, cumprimento ao estipulado na nossa Lei Fundamental que tutela autonomamente a inviolabilidade da integridade moral das pessoas e a sua consideração social, mediante o reconhecimento a todos do direito ao bom nome e reputação” (António Joaquim de Oliveira Mendes, in O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, pág. 20 e ss.).
Tal crime pode ser concretizado por ofensas a duas ordens de interesses humanos, que se traduzem pelas expressões honra e consideração.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques, a honra pode ser entendida como «a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter:..» enquanto que a consideração é o «património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros» (Código Penal Anotado, 3ª Edição, p. 469).
Das considerações supra tecidas temos então que a lesão do direito à honra e consideração ocorre quando alguém imputa a outrem um facto, ou formula um juízo, objectivamente adequado a depreciar ou desacreditar, quer individual, quer socialmente a vítima.
Nem sempre é fácil a distinção entre aquilo que deve ou não caber na previsão do citado artigo 180º, ou seja, entre aquilo que objectivamente é adequado a depreciar ou desacreditar a vítima e que, de modo algum, pode ser ultrapassado numa vida em sociedade e aquilo que embora constitua uma desconsideração ou perturbação para alguém não poderá obter enquadramento legal ao abrigo do citado preceito.
Como escreveu Beleza dos Santos, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92º, pág. 167 «nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível (…).”
Na verdade, aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não pode considerar difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena - págs 165 e 166.
Em tal tarefa, com vista a determinar se uma expressão é, ou não, ofensiva da honra e consideração, importa, previamente, enquadrá-la no contexto em que foi proferida, ter em conta o meio a que pertencem ofendido e arguido, as relações entre eles, entre outros aspetos (cfr. Ac. da RE de 13/07/2017 in www.dgsi.pt).
De facto, como refere também Oliveira Mendes, in obra já citada, pág.38, existe “.. em todas as comunidades um sentido comum, aceite por todos ou, pelo menos, pela maioria, sobre o comportamento que deve nortear cada um na convivência com os outros, em ordem a que a vida em sociedade se processe com um mínimo de normalidade. Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros. (…) Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte “regras” que estabelecem a “obrigação e o dever” de cada cidadão se comportar relativamente aos demais como um mínimo de respeito moral, cívico e social. É evidente que esse mínimo de respeito não se confunde com educação ou cortesia. Assim, os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito”.
Ainda a este propósito, o Ac. da Rel. de Évora, de 02/07/96, in CJ ano 1996, Tomo IV, pág.295, «Um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético-necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração».
Ou seja, em sede de interpretação, o critério subjectivo da lesão deve ser temperado com um parâmetro objectivo, reconduzível ao sentimento médio de honra da comunidade.
«Temos, assim, um critério que apela a um tipo de sentimento médio de honra e consideração da comunidade, atenuando a arbitrariedade do critério subjectivo de cada indivíduo singular, mas também assente na concepção de que nenhum bem jurídico pode beneficiar de protecção plena do Direito Penal: A nossa Constituição proclama a inviolabilidade da integridade moral e física dos cidadãos e reconhece os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à reserva da intimidade da vida privada e familiar (cfr. art.º 25º e 26º da C.R.P.), mas a Constituição também garante, nos seus artºs 37º e 38º, o direito de qualquer pessoa de exprimir e divulgar livremente o pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, sem impedimento, nem discriminação, não podendo ser impedido ou limitado o exercício desse direito, por qualquer tipo ou forma de censura.
Na realidade, perante direitos ou garantias de igual dignidade e hierarquia constitucional, sem linhas de fronteira predefinidas e estáticas, um eventual conflito entre o direito de liberdade de expressão e o direito à honra terá de ser resolvido com base nas circunstâncias concretas do caso sub judicie, estabelecendo limites a ambos os direitos, por forma a alcançar-se o saldo mais favorável, segundo o princípio da concordância prática dos bens em colisão - Herdegen, cit. por Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, p.153. , “traduzido numa mútua compressão, por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível”» (Ac. da Rel. de Guimarães de 17/12/2013, proferido no processo 635/10.3GEGMR).
Como ensina Figueiredo Dias, para assegurar a legitimidade da intervenção do Direito Penal não basta comprovar a violação de um bem jurídico-penal, sendo necessário ainda que essa mesma intervenção se revele imprescindível para a “livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta precisa acepção, o direito penal constitui na verdade a ultima ratio da politica social e a sua intervenção é definitivamente subsidiária” - Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª, Coimbra, p. 128.
Vem-se sedimentando na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que o respeito pelo princípio constitucional do art. 18.º, n.º 2 da CRP e do princípio do mínimo de intervenção penal, estabelecem um efectivo critério limitador, por forma a restringir a protecção penal na injúria e difamação “àquelas situações em que é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros”.
Segundo Faria e Costa, in obra citada , p. 630, o carácter ofensivo de certas palavras tem de ser visto à luz do concreto contexto situacional de vivência humana em que as mesmas foram proferidas e, se o significante das palavras permanece intocado, o seu significado poderá variar consoante os contextos.
Temos, assim, que nem todo o comportamento incorrecto de um indivíduo merece tutela penal, impondo-se distinguir as situações que traduzem, de facto, uma ofensa da honra e consideração de terceiros com dignidade penal, daquelas que revelam tão só indelicadeza, grosseirismo ou má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado. E isto porque a riqueza da vida ensina-nos que é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre membros de uma comunidade, podendo ocorrer situações em que alguns deles podem expressar-se, ao nível da linguagem, de forma excessiva, deselegante ou indelicada. Não obstante, o direito penal, como última ratio não pode intervir sempre que a linguagem ou as expressões incomodam o visado, mas antes e apenas quando é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.
Como bem se salientou no acórdão da Relação de Évora de 24/1/2017, proferido no processo 642/15.0T9STR, “(…)começa a configurar-se uma tendência para deixar à lei civil o papel de acautelar a protecção da dignidade das pessoas afectadas pela ofensa à honra em razoável número de casos, no essencial uma concretização da ideia de ultima ratio da intervenção penal, pela constatação de que a lei civil melhor acautelará os interesses ou parte dos interesses hoje abarcados pelo tipo penal”.
Há assim um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo do qual não se justifica a tutela penal (neste sentido, acórdão do TRG de 23/2/2015, proferido no processo 218/12.3TAPRG.G1).
Impõe-se pois, com vista a concluir-se num ou noutro sentido, ponderar se no circunstancialismo em que as expressões foram proferidas o seu teor é de molde a afetar o respeito e valor da assistente aos olhos da comunidade.
O apuramento da verificação do ilícito não pode pois circunscrever-se a uma valoração isolada e objectiva das expressões, impondo-se que as mesmas sejam analisadas em função do circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas, tendo ainda em conta realidades relacionadas com o contexto sociocultural e a maior ou menor adequação social do comportamento.
Como também se fez constar no acórdão desta Relação de Guimarães de 22/1/2018, proferido no âmbito do processo 154/15.1GAPCR.G1, in www.dgsi.pt «O tipo legal previsto no art. 181º do C. Penal (crime de injúria), assegura o direito ao “bom-nome” e a “reputação”, constitucionalmente garantidos (art. 26º, nº 1 da CRP), sendo indispensável à formulação do juízo sobre a tipicidade a contextualização das expressões proferidas, de modo apreciar se, nas circunstâncias em que o foram, atingiram a pessoa visada, quer no valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer na própria reputação ou consideração exterior, no patamar mínimo exigível de carga ofensiva abaixo do qual não se justifica a tutela penal, segundo os princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade, imanentes ao estado de direito».
Menciona-se ainda na fundamentação do acórdão trazido à liça que “(…) no que respeita à “injúria”, nem tudo o que causa contrariedade e se apresenta como desagradável, grosseiro e pouco educado, mesmo até quando formalmente pareça integrar o tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. A lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua suscetibilidade ou melindre. A valoração deve fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. (…) Impõe-se, assim, olhar a expressão em apreciação, não isoladamente, mas no contexto e circunstâncias em que foi proferida, e apreciar se, nesse contexto, atingiu a visada num quadro merecedor de tutela penal. (…) Todavia, existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que, objetivamente, atingem a honra do visado, a não ser que se demonstre que este as emprega usualmente e aceita sempre receber a carga de ofensividade que é inerente a elas». (…) É certo que o atentado à honra não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez ou mesmo com a grosseria (…) é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente incomodada por outra “pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função».
Ora, tendo para nós como certo, na senda das considerações tecidas, que a relevância penal das ofensas cometidas ao bem jurídico da honra e consideração deverá ser aferida em função do contexto em que as mesmas ocorram, bem como que há um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo do qual não se justifica a tutela penal, no caso vertente afigura-se-nos que a expressão “Caloteira” não deve ser considerada objetivamente ofensiva da honra e consideração da assistente, razão pela qual assiste razão aos recorrentes quanto à alegada atipicidade da conduta que lhes vem imputada.

Compulsada a sentença recorrida, resulta da factualidade provada atinente à imputação do crime de difamação, que:

“Em dia não concretamente apurado do mês de Abril de 2015, os arguidos, ou alguém a seu mando, colocaram dois cartazes em frente à residência da assistente, numa paragem de autocarros, com as seguintes expressões “T. F., paga o que deves € 5.500,00, caloteira, isto é só o começo. Para a semana serão espalhados centenas de cartazes nas Taipas e Guimarães.”

Em causa está assim a expressão “Caloteira”.
Como se fez constar no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 10/7/2019, no qual interviemos como juiz adjunta, proferido no âmbito do processo nº520/17.8GBPVL.G1 “Chamar “caloteiro” a alguém é dizer em linguagem pouco polida que não paga o que deve. É uma expressão de uso popular claramente ofensiva quando dirigida a quem não deva dinheiro e aja com honestidade. Isto é, quem adote um comportamento financeiramente irrepreensível e verdadeiro, não pode deixar de sentir-se ofendido com tal expressão. Já o mesmo não se pode dizer de quem deva e não pague”.
No caso vertente, resulta da factualidade provada que a relação entre os arguidos e a assistente é de conflito e animosidade.
Com efeito, dela resulta que se encontram desavindos por causa de dívidas relacionadas com o “Café ..”, existindo efectivamente uma dívida por parte da assistente para com o arguido marido, a qual, não obstante a instauração de acções judiciais com vista ao seu pagamento, encontra-se por liquidar.
Ora, é neste circunstancialismo, do não pagamento por parte da assistente da quantia de que é devedora, que surge a atuação dos arguidos, traduzida na colocação dos cartazes em apreço, nos quais, ao mesmo tempo que reclamam da assistente o pagamento da quantia em dívida, lhe imputam o epíteto de “Caloteira”.
E será que tal comportamento dos arguidos traduzido na imputação de uma dívida à assistente - que esta sabe que existe - rotulando-a simultaneamente de “Caloteira” encerra um juízo de valor ético-social susceptível de atingir a sua honra e consideração?
Será que atinge o núcleo essencial das qualidades morais e a reputação da assistente?
Salvo o devido respeito por entendimento contrário, cremos seguramente que não.
É certo que a expressão “Caloteira”, escrita nos dois cartazes colocados em frente à residência da assistente, numa paragem de autocarros, visando a pessoa da assistente, não consubstancia a conduta mais correta ou o comportamento mais civilizado.
E tanto assim é que a assistente sentiu-se pessoalmente atingida pela mesma, o que a levou a apresentar a respectiva queixa.
Porém, não obstante se reconhecer que se trata de um vocábulo pouco cortês, desagradável e indelicado e que, noutras circunstâncias, pode ter subjacente uma carga ofensiva, podendo até configurar a prática de um crime, o certo é que no concreto contexto de conflito decorrente da existência da dívida da assistente para com o arguido e que aquela não liquidou, tal expressão não tem a virtualidade de alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhe confira dignidade penal.
Em face de tudo no exposto, constituindo o direito penal a última ratio da politica social e sendo a sua intervenção definitivamente subsidiária, temos pois que o comportamento dos arguidos não pode ser considerado difamatório e, consequentemente, susceptível de censura penal.
E assim sendo, concluindo-se que a factualidade apurada é insusceptível de preencher o elemento objectivo do ilícito em apreço e, consequentemente, o seu elemento subjectivo, outra solução não resta que absolver os arguidos do crime de difamação que lhes vinha imputado, ficando prejudicada a apreciação das demais questões levantadas pela recorrente S. G..
Também no que respeita à sua responsabilidade civil, encontrando-se a mesma assente na responsabilidade criminal dos arguidos, a qual inexiste, quer por força da prescrição do procedimento criminal do crime de injúria, quer por força da atipicidade da conduta imputada a título de crime de difamação, impõe-se ademais revogar a decisão recorrida na parte atinente ao pedido de indemnização civil, com a consequente absolvição dos demandados/arguidos.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso, e, em consequência, decidem:

- Rejeitar o recurso interposto pela arguida S. G. no que tange ao pedido de indemnização civil.
- Declarar prescrito o procedimento criminal no que respeita ao crime de injúria.
- Absolver os arguidos A. R. e S. G. do crime de difamação que lhes vinha imputado, bem como do pedido de indemnização civil contra ambos formulado.

Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigo 515.º, n.º 1, alínea b) do Código do Processo Penal ).
Guimarães, 25 de janeiro de 2021