Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
218/20.0PBBGC.G1
Relator: MARIA TERESA COIMBRA
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
AMEAÇA
DESCRIÇÃO DO TIPO SUBJECTIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente em reação a decisão de arquivamento por parte do Ministério Público, reveste a natureza jurídica de uma acusação em sentido material, desempenhando uma função idêntica à da acusação formal.
II - No entanto, uma vez que a lei admite que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mesmo que nele não se perceba a forma tradicional de uma acusação, não deverá ser rejeitado se contiver a narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, sempre que possível, o lugar, o tempo, a motivação da prática, o grau de participação do agente, outras circunstâncias relevantes para a aplicação da sanção e as disposições legais aplicáveis.
III - Apesar de nos tribunais ser habitualmente usada uma fórmula tabelar para afirmar o dolo, se se constatar que se identificam nas expressões utilizadas no requerimento de abertura de instrução, a vontade e conhecimento da prática de um facto ilícito (elementos volitivo e intelectual) e, bem assim, a consciência da ilicitude (elemento emocional), tal basta para se afirmar a existência, de modo suficiente, do elemento subjetivo de um tipo de crime doloso.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.
Após despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, apresentou o assistente M. R. requerimento para abertura de instrução que foi rejeitado pelo juiz de instrução criminal.

Inconformado, recorreu o assistente para este Tribunal, concluindo o seu recurso nos seguintes termos (transcrição):


A bem dizer, o requerimento de abertura de instrução refere inequívoca e claramente a ameaça de um mal futuro, refere a sua feroz gravidade, o propósito firme de a vir a concretizar, no caso de o assistente, por mero acaso, se cruzar com o arguido, ou se aproximar da sua oficina, passando v.g naquela artéria (rua muito movimentada da cidade) limitando-lhe a liberdade, incutindo-lhe medo extremo, perturbando o seu sossego. Tratou-se de uma ameaça que qualquer ser não idiota tomaria a sério. Ora,

Sendo o crime de ameaça um crime de perigo concreto, exige-se que a ameaça seja susceptível de afectar a liberdade de determinação. Foi e é o que está sucedendo.
O assistente indica ainda novos meios probatórios. Com efeito indica mais duas testemunhas. E, claro está, narra factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena.

Narra o móbil do crime. Ou seja uma reclamação. Escreveu-se: v.g. item9 (in fine) É que os factos criminosos devem-se ao fútil motivo de não querer entregar o livro de reclamações e passar a respectiva factura com o número de contribuinte. Aliás,

O ora recorrente narra os factos concreta e, cremos que, claramente:

a) Na data, hora e local constantes do requerimento de abertura de instrução, foi ameaçado pelo mecânico, ora arguido. Tudo porque lhe pediu o livro de reclamações e a factura com o número de contribuinte do montante pago.
b) A ameaça foi séria. Foi grave e reportou-se a um mal futuro. V.g. item 4º... não te quero ver mais aqui, senão já sabes que levas nos cornos. Fodo-te de vez. Acabam as reclamações e as facturas.
c) Assim se “destapou” o comezinho móbil do crime: reclamações e facturas.
d) O assistente pediu a audição de novas testemunhas.
e) O assistente referiu a intenção do arguido na prática do crime.
f) O assistente referiu o conhecimento e consciência da ilicitude e ilegalidade por parte do arguido.
g) Referiu as normas legais aplicáveis.
Enfim, o assistente expôs todas as razões de facto e de direito. Narra circunstanciadamente o sucedido. E, sobretudo indica claramente que, ao contrário do inferido por S. Exª o Representante do M.P. o mal ameaçado é um mal futuro.

Ora bem, indicando também meios de prova não considerados no inquérito que pretende que S.Exª o meritíssimo(ª) Juiz(ª) leve a cabo.
Desta forma entendemos que o requerimento de abertura de instrução configura explicitamente uma acusação. Baliza categoricamente o T.I.C.. Muito embora se não trate – como poderia?- de uma acusação formal. Desde logo porque – e isto é suficiente – não subsiste sem acusação do M.P. Esta uma das razões, senão a principal para que contenha a descrição dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido. Numa palavra. Define o THEMA que o jurista julgador há-de apreciar.
Do que vimos de dizer se extrai que foi violado o artigo 287º nº1 al) b, nº 2 do mesmo artº C.P.P.,

Como violado foi o artº 288º nº4 C.P.P., porque foram indicados factos, porque foram indicadas provas, porque se delimitou o objecto. Verifica-se, pois, um quadro factual completo no que toca aos elementos objectivos e subjectivos. Ora, o despacho recorrido, com pesar o dizemos, apenas por manifesto lapso refere pág. 5 o crime de ameaça é (actualmente) um crime de perigo concreto, isto é, exige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar a liberdade de determinação e que na situação concreta, seja...
Na Verdade o douto despacho recorrido ao referir a fls 5 apenas por lapso poderá ter
escrito: “ visto isto, o assistente não imputa ao arguido os factos relativos aos elementos subjectivos do crime em causa.”

É que, sem rodeios, como se impõe. O requerente disse: O participado sabia que com tais termos e tais actos estava crime. Queria ofender e agredir, quiçá matar o queixoso e também sabia que lhe retirava como retirou a liberdade de se movimentar e, mesmo assim, não se inibiu de tal prática, cometendo, para além dum crime de injúrias, p.p pelo artº 181º C.P. foi ainda autor material do crime público de ameaça p.p. pelo artº 153º C.P. Donde,
Não se verifica contrariamente ao douto despacho recorrido qualquer desigualdade de armas.

Porque o requerimento de abertura da instrução obedece aos requisitos legalmente impostos, indicando, sem margem para dúvida, os limites materiais da acusação, em nada prejudicando o direito de defesa do arguido.
Termos em que – atendendo às normas violadas – e nos mais de direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a decisão recorrida, sendo admitido o requerimento de abertura de instrução do recorrente e declarada esta com as demais consequências, porquanto violadas foram as supra referidas normas legais.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.
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Admitido o recurso, a ele respondeu, em primeira instância, o Ministério Público, defendendo a confirmação do despacho recorrido.
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Remetidos os autos a este Tribunal, de novo foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP).
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Após os vistos, foram os autos à conferência.

II.
Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que é pelas conclusões do recurso que se afere o seu âmbito – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – e que analisando a síntese conclusiva se impõe aferir se o requerimento de abertura de instrução é admissível nos termos em que foi formulado.

É o seguinte o teor do despacho recorrido (transcrição):

Proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público, veio o assistente apresentar requerimento para a abertura da instrução contra o arguido F. T..
Conclui pugnando pela prolação de despacho de pronúncia contra o arguido pela prática de um crime de injúria, p.e p. pelo artigo 181.º, do CP e de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º do CP.
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Cumpre apreciar e decidir:
A instrução destina-se ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação, ou a proceder ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento – cfr. artigo 286.º, nº1, do Código de Processo Penal.
Enquanto fase jurisdicional, compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento – cfr. artigo 289.º do Código de Processo Penal.
Assim, podemos concluir que a instrução tem por fim apenas a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar e, por isso, não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina, designadamente, não pode ser utilizada para repetir o que na investigação já se efectuou, para a realizar de novo, ou para ensaiar a defesa antecipando o julgamento.
Na instrução a única actividade a desenvolver é a da comprovação judicial e esta tem por objecto o inquérito lato sensu. A comprovação judicial carece de ser desencadeada, o que acontece mediante a apresentação do requerimento de abertura de instrução, onde têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio a essa actividade: as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público.
Como se diz no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/10/06, publicado em www.dgsi.pt, “O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução” – de modo a fundar a sua convicção para pronunciar ou não pronunciar o arguido –, mas tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo 287.º do CPP (cfr. artigo 288.º, n.º 4, do mesmo Código).
Essa liberdade de investigação (mesmo oficiosa), reafirmada na primeira parte do n.º 1 do artigo 289.º do CPP, não é absoluta, estando antes limitada pelo objecto da acusação.
Daí que se compreenda que o objecto da instrução tenha de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Por isso, nessa fase processual, o requerimento para abertura de instrução é uma peça essencial.
O assistente pode requerer a abertura da instrução, mas, neste caso, terá de observar os requisitos ou pressupostos legais.
Nos termos do disposto pelo artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283.º”.
Assim, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente há-de conter desde logo as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação e ainda a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada (al. b) do n.º 3 do artigo 283.º) e a indicação das disposições legais aplicáveis (al. c) do mesmo n.º 3).
Ora, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21/05/13, disponível em www.dgsi.pt., esta exigência suplementar bem se compreende na medida em que, não sendo deduzida acusação, o requerimento de abertura de instrução substitui tal peça, delimitando o thema decidendum, a actividade instrutória do juiz e, em última análise, o conteúdo de eventual despacho de pronúncia (cfr. o disposto nos artigos 303.º, 308.º e 309.º do CPP).
É em função do conteúdo dessa peça que o arguido pode praticar o contraditório e exercer, na sua plenitude, as suas garantias de defesa. Daí que o cumprimento do estatuído nas al. b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP (ex vi do artigo 287.º, n.º 2, do mesmo diploma) tenha em vista, em última instância, a tutela dessas garantias de defesa: perante um requerimento de abertura de instrução onde se não delimitem, com precisão, os factos concretos a apurar, susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, carece este de elementos suficientes em ordem a organizar a sua defesa.
Como refere Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. III, pág. 144), “o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação alternativa que, dada a divergência com a posição assumida pelo MP, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”, sendo objecto da instrução “os factos descritos na acusação formulada pelo MP ou pelo assistente e no requerimento de instrução do assistente”, concluindo o referido Autor que, “se não tiverem sido descritos os factos, a instrução não tem objecto, sendo consequentemente inexistente”.
Também no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/11/10, disponível em www.dgsi.pt, se refere que o requerimento para a abertura de instrução contém, necessariamente, a narração dos factos susceptíveis de integrar a factispecie do tipo legal de crime (no seu elemento objectivo e subjectivo), devidamente identificado pela menção das disposições legais aplicáveis, e das circunstâncias de modo, tempo e lugar e outras, com relevo para a determinação da sanção a aplicar. A lei não exige a sujeição de qualquer destas partes, em que se desdobra o requerimento, a formalidades especiais, o que, no entanto, não significa que não os sujeite a exigências de forma mínimas, adequadas à satisfação dos ónus impostos. A não sujeição a formalidades especiais não significa que se prescinda da substância – a enumeração dos factos pertinentes ao preenchimento do tipo legal de crime, e da forma minimamente adequada à sua percepção: a narração, ainda que sintética, desses factos e dos demais a que o art. 283º do C.P.P. faz referência.
Posto isto, cabe verificar se o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente nos presentes autos cumpre os requisitos enunciados no artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e, em particular, as exigências legais expressas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do legal citado mesmo diploma (por força da remissão operada pelo primeiro dispositivo).
Cremos que não.
Visto isto, o assistente não imputa ao arguido os factos relativos aos elementos subjectivos dos crimes em causa.
Com efeito, perscrutada a peça processual em causa não vislumbramos a imputação ao arguido do dolo quanto aos imputados crimes.
Quanto à dita omissão o juiz não se pode substituir ao assistente, colocando por sua iniciativa os factos em falta, que eram essenciais para a imputação de um crime.
Tal solução (além de violar o princípio da igualdade de armas e até colocar em causa a própria imparcialidade e independência do julgador) está vedada porque os poderes de cognição do Juiz estão limitados pelo que consta do requerimento de abertura de instrução (assim também se assegurando as garantias de defesa do arguido).
O juiz não pode compor uma narração de factos antes inexistente: caso viesse a acrescentar factos integradores de tipo de crime, estar-se-ia perante uma alteração substancial dos factos, o que tornaria nula a decisão instrutória (artigo 309.º, n.º 1, do CPP).
Nem pode o juiz convidar a assistente a aperfeiçoar o seu requerimento.
Ademais, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão n.º 1/2015 [in Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015], fixou jurisprudência no sentido de a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime não poder ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP.
Da fundamentação do acórdão uniformizador resulta que os factos integrantes da consciência da ilicitude, enquanto dolo da culpa, têm necessariamente de ser alegados na acusação, neste caso no requerimento para a abertura de instrução em sede de “acusação alternativa”.
Visto isto, com base nos fundamentos de facto e de direito referidos decide-se rejeitar o requerimento para a abertura da instrução deduzido pelo assistente M. R. contra o arguido F. T..
(…)
*
Apreciação do recurso.

A questão que o assistente traz a este tribunal resume-se a saber se é de manter a decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução.
Nos termos do nº 3 do art. 287º do CPP o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
A decisão recorrida não refere expressamente qual a causa legal de rejeição, mas excluindo as duas primeiras circunstâncias, como são obviamente de excluir, resta a última, a “inadmissibilidade legal”.
É certo que há quem defenda que se a instrução pode ser requerida pelo assistente, não é legalmente inadmissível. Antes deverá ser entendido que quando ocorre uma omissão de factos - que é o fundamento invocado pelo despacho recorrido - que a torna nula, por manifestamente infundada, se impõe a sua rejeição, analogamente ao que sucede com o artigo 311º, nº 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – analogia não vedada neste caso (como referido no Ac. FJ 7/2005, usando os ensinamentos do Professor Figueiredo Dias)- por dela não resultar qualquer diminuição dos direitos do arguido.
Mas, quer se considere que se está perante uma situação de inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287º, nº 3 do CPP), quer perante um requerimento de instrução manifestamente infundado (artigo 311, nº 2, alínea a) e 3, alínea b) aplicável por analogia não vedada neste caso), a decisão a apreciar é a de rejeição do requerimento.
Para melhor enquadrar a situação recordemos o que a este propósito dissemos no acórdão de 27.04.2020 proferido no processo 38/19.4GAAFE.G1 in www.dgsi.pt: no processo penal até à entrada em vigor da Lei 48/2007 de 29.8 a instrução estava mais próxima do inquérito, (como que o continuava), do que do julgamento. Por exemplo, nela se continuava a respeitar o segredo de justiça e não havia total contraditório nas diligências de prova. Mas a partir da lei 48/2007 de 29.08 a instrução afastou-se do inquérito para se aproximar do julgamento: acabou o segredo de justiça como regra (artigo 86º do CPP) à semelhança do que ocorre no julgamento e o contraditório nas diligências de prova passou a ser uma realidade (artigo 289º, nº 2 do CPP) também à semelhança do que ocorre no julgamento.
Esta alteração de paradigma foi merecedora de várias críticas (cfr. opiniões de Costa Andrade, Nuno Brandão e Figueiredo Dias, referidas por Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário ao CPP, 4ª edição, 779) por ter sido convertida a instrução “num simulacro de julgamento antecipado e provisório”.
Ora, assim sendo, se já antes da referida alteração legal se entendia que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deveria ser similar a uma acusação alternativa ao arquivamento (Ac. RC de 24/11/93 in CJ, XVIII, 5,61 relator Carlos Leitão e Ac. RL de 20/05/97 in CJ, XXII, 3, 143 relator Simões Ribeiro), a partir do momento em que ocorre a referida alteração de paradigma tal exigência assume contornos muito mais claros e percetíveis: o arguido que passa por uma fase processual onde já existe discussão pública (artigo 86º, nº 6 do CPP) dos indícios – ou falta deles - da eventual prática do crime, tem o direito de se defender concretamente dos factos que lhe são imputados pelo assistente.
É, portanto, assim que tem de compreender-se a exigência decorrente do nº 2 do artigo 287º do CPP ao preceituar que, não obstante o requerimento de instrução não estar sujeito a formalidades especiais, deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação (…) sendo aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º do CPP. Isto é, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, indicando, se possível o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve, quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada “e, bem assim,” “a indicação das disposições legais aplicáveis.
É evidente que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente não pode deixar de conter todas as razões de discordância relativamente à decisão de arquivamento por parte do Ministério Público que o precedeu e a referência aos atos de instrução que deverão ser praticados. Mas só isso não basta. É que, passando o assistente a assumir o papel que, no seu entender, o Ministério Público não levou cabalmente a cabo, que o mesmo é dizer, no caso, o papel de acusador, não basta, repete-se, invocar as razões da discordância, referir as diligências que não foram feitas durante o inquérito e deveriam ter sido, invocar as incongruências na apreciação dos indícios.
É necessário mais: é necessário concretizar factos, imputá-los concretamente ao arguido, como se de uma verdadeira acusação se tratasse (cfr Ac. TC 358/2004 publicado no DR 150/2004, II série, de 28.06.2004) até porque, em caso de pronúncia, de novo é aplicável o disposto no nº 3 do artigo 283º do CPP (ex vi artigo 308º, nº 2 do CPP), podendo até o juiz fundamentar a decisão por remissão para as razões de facto e de direitas enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução (artigo 307º, nº 1 do CPP), uma vez que é o requerimento para abertura de instrução que, no caso de arquivamento, passa a definir e delimitar o objeto do processo a partir da sua formulação.
Acresce que, como se diz no Ac STJ de 11.01.2017 in www.dgsi.pt, sobre o juiz de instrução não impende qualquer obrigação de perseguição da infração, mas a de fiscalização dos atos do Ministério Público no inquérito e a de direção da instrução, em que se inclui a verificação dos pressupostos da admissibilidade da mesma.
Portanto, como decorre da conjugação das normas matriciais para a situação em apreço às quais vimos fazendo referência (artigo 283º, nº 3 e 287, nº 2 do CPP), o requerimento de abertura de instrução reveste a natureza jurídica de uma autêntica acusação, uma acusação em sentido material desempenhando uma função idêntica à da acusação formal (após o inquérito): a de fixação do objeto do processo, definindo vinculativamente o âmbito dos poderes de cognição do tribunal (cfr. ac. STJ Cit).
Este enquadramento da situação é aplicável ao caso sub iudice, pelo que estamos em condições de apreciar a situação concreta.
A decisão recorrida entendeu que “o assistente não imputa ao arguido os factos relativos aos elementos subjetivos dos crimes em causa. Com efeito perlustrada a peça processual em causa não vislumbramos a imputação ao arguido do dolo quanto aos imputados crimes. Quanto à dita omissão o juiz não se pode substituir ao assistente colocando por sua iniciativa os factos em falta, que eram essenciais para a imputação de um crime (…) nem pode convidar o assistente a aperfeiçoar o seu requerimento”.
Não há dúvida de que efetivamente, nem o juiz pode convidar a aperfeiçoar a peça processual (Ac. FJ 7/2005 publicado no DR I-A de 04.11.2008) nem se pode substituir ao assistente, colocando factos em falta, sob pena de nulidade (artigo 309º, nº 1 do CPP).
No entanto, uma vez que o fundamento do recurso é o de que a peça processual não poderia ser rejeitada, porque tem os factos necessários para a sujeição do arguido a julgamento, vejamos, então, se assim é, ou se, como é dito na decisão recorrida, no RAI faltam “os factos relativos aos elementos subjetivos (…) a imputação ao arguido do dolo”.

Nos crimes dolosos - como é o crime de ameaça p.p. artigo 153º do Código Penal referido no RAI do assistente - o dolo é constituído por três elementos que doutrinariamente se designam por intelectual, volitivo e emocional.
Assim, quando a alguém é imputada a prática de um crime doloso tem de ficar claro que agiu a perceber o que fez (elemento intelectual), a querer fazer o que fez (elemento volitivo) e com a consciência de que praticava um crime (elemento emocional).
Só perante esta tríplice realidade se pode fazer a afirmação de que alguém agiu dolosamente e se assegura que o arguido se pode defender cabalmente da acusação, também sob o ponto de vista subjetivo.
Nos tribunais é comum resumir o proceder doloso na fórmula “agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a conduta era ilícita e criminalmente punida”.
Esta fórmula não consta do requerimento de abertura de instrução. Mas dizia a lei (artigo 287º, nº 2 do CPP), na redação anterior à da Lei 94/2021 de 21.12, em vigor ao tempo da prolação da decisão recorrida, que o requerimento de abertura de instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação (…) sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º do CPP”. (A alínea b) do nº 3 do artigo 283º refere “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; a alínea c) “a indicação das disposições legais aplicáveis”).

Ora, o artigo 3º do RAI é do seguinte teor:

No dia 18 de junho de 2020, por volta das 18 horas, conforme dos autos constará, o participado disse muito alto, alterado e altercado, na Rua …, na cidade de Bragança “Então espera aí, que não perdes pela demora, vou à loja buscar um ferro e levas com ele nos cornos”.
Ato contínuo, em passado apressado, dirigiu-se para a dita loja e, não fora a rápida intervenção de um funcionário do participado e a fuga do queixoso, estar-se-ia mais provavelmente a tratar de um homicídio”.

Do artigo 4º consta:
Só que, ao ver-se agarrado e impedido de ir buscar o ferro, continuou com impropérios maléficos e criminosos:não te quero ver mais aqui, se não já sabes levas nos cornos. Fodo-te de vez. Acabaram as reclamações e as faturas. E disse-o, gritando porque o queixoso ia fugindo”.

Do artigo 5º consta:
Tanto medo apanhou que ainda hoje não é capaz de passar na rua, nem tampouco de ir ao seu barbeiro favorito, Sr. A., sito na mesma rua do …. De resto,”

Do artigo 6º consta:
O medo é de tal ordem que ainda hoje a motorizada continua na oficina solicitando a V. Exa que ordene às forças da Ordem acompanhar o participante para poder levantar o veículo com tanta falta que está fazendo, nomeadamente para se deslocar para o trabalho”.

Depois de dizer por que razão entende que um crime de ameaça foi praticado e de solicitar a realização de diligências de prova, no final do requerimento o assistente faz ainda as seguintes afirmações:

O participado, sabia que com tais termos e com tais atos estava a praticar um crime. Queria ofender e agredir, quiçá matar o queixoso e também sabia que lhe retirava como retirou a liberdade de se movimentar e, mesmo assim, não se inibiu de tal prática, cometendo, para além do crime de crime de injúria p.p. artigo 181º do CP foi ainda autor material do crime público de ameaça p.p. artigo 153º do CP. Requerendo, desde já, a respetiva condenação. Cometeu, tais crimes, já o dissemos, pelo fútil motivo de não querer entregar o livro de reclamações e passar a respetiva fatura”.
Perante a factualidade exposta é evidente que desde já se pode afirmar que tal factualidade não está descrita de forma exemplar. No entanto, não pode esquecer-se que o RAI não está sujeito a formalidades especiais – e se as palavras importam, as da lei merecem respeito – e é a essa luz que há que decidir se se pode afirmar que o requerimento é omisso quanto ao elemento subjetivo do crime de ameaça (ou outro, porque o juiz de instrução é livre na qualificação jurídica dos factos (artigo 303º, nºs 1 e 5 do CPP), na medida em que foi essa a causa de rejeição identificada no despacho recorrido.
Ora, como se diz no acórdão desta relação de 11/07/2017 proferido no processo 649/16.0T9BRG.G1 (Desembargador Jorge Bispo) in www.dgsi.pt: ainda que a matéria alegada no RAI possa não ter sido descrita de forma exemplar, se tal peça permitir aferir da verificação dos elementos objetivos e subjetivos do crime, o RAI não deverá ser rejeitado.
É evidente que assim sendo, não poderá/deverá o juiz de instrução vir a proferir um eventual despacho de pronúncia por remissão para o RAI (artigo 307º, nº 1 do CPP), cabendo-lhe proferir decisão elaborada por si mesmo, mas tal não consente, sem mais, a rejeição.
Ora, já vimos que a afirmação de uma atitude dolosa implica a afirmação de que o arguido sabia o que fazia, queria fazê-lo e que agiu com a consciência de que praticou um crime.
No RAI e no que ao elemento subjetivo concerne – na medida em que o despacho recorrido não se refere a qualquer omissão sob o ponto de vista objetivo, seja em relação ao crime de ameaça, seja a qualquer outro – consta que o arguido “sabia que com tais termos e com tais atos estava a praticar um crime”. Mais consta que “queria ofender e agredir, quiçá matar o queixoso e também sabia que lhe retirava como retirou a liberdade de se movimentar”.
Apesar da forma não tabelar de afirmar o dolo, pode constatar-se que se identificam nas expressões utilizadas a vontade e conhecimento da prática de um facto ilícito (elementos volitivo e intelectual) e, bem assim, a consciência da ilicitude (elemento emocional), o que basta para afirmar a existência de modo suficiente da totalidade dos elementos subjetivos do tipo de crime em causa, com a qualificação jurídica atribuída pelo arguido, ou outra que venha a ser julgada adequada à totalidade da factualidade.
Finalmente terá ainda de reconhecer-se que apesar da peça processual em análise não ser modelar, o arguido ao ser com ela confrontado percebe do que está a ser acusado, não se vislumbrando que resultem coartados quaisquer direitos de defesa.
Tanto basta para que o recurso tenha de ser julgado procedente.
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III. DECISÃO.

Em face do exposto decidem os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente M. R. e, consequentemente, revogam o despacho recorrido e determinam que seja substituído por outro que, na ausência de qualquer outro motivo impeditivo, admita a instrução requerida, seguindo-se os ulteriores termos processuais
Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 9 de maio de 2022

Maria Teresa Coimbra
António Teixeira
Fernando Chaves