Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
293/15.9T9BGC.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: PROCESSO PENAL
PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA
QUESTÃO PREJUDICIAL
FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
PEDIDO CÍVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELA ARGUIDA I. R. E PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELA DEMANDANTE CÍVEL
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A norma do art. 7º, n.º 1, do CPP, prevenindo a ocorrência de obstáculos ao exercício da acção penal, consagra o “princípio da suficiência”, segundo o qual o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à boa decisão da causa, com vista a garantir a sua concentração e continuidade.
II - Ainda que quanto a qualquer questão prejudicial não penal o tribunal penal assuma sempre a competência normal de outros tribunais, decorre do n.º 2 desse preceito que o referido princípio comporta a possibilidade de o tribunal penal suspender o processo para devolver o seu conhecimento ao tribunal competente quando conclua que uma tal questão não possa ser convenientemente resolvida no processo penal.
III - A decisão de suspensão para conhecimento de questão prejudicial, embora discricionária, terá de ser fundamentada numa relação de necessidade com o conhecimento do crime e numa relação de conveniência.
IV - Nos termos do artigo 374.º, n.º 2 do CPP, na sentença deve constar, sob pena de nulidade, a enumeração dos factos provados e não provados, de forma clara, precisa e inequívoca, enquanto tomada de posição pelo tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e em relação aos quais a decisão terá de incidir, nos termos previstos no artigo 368.º, n.º 2: relativamente ao âmbito material desse enunciado, prescreve o art. 339º, n.º 4 que a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação, os factos alegados pela defesa e os factos que resultarem da discussão da causa, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º (questão da culpabilidade) e 369.º (questão da determinação da sanção), sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos (arts. 358º e 359º).
V - Todavia, «o cumprimento do disposto no artigo. 374º, nº 2, do C. P. Penal, não impõe a enumeração dos factos não provados que sejam irrelevantes para a caracterização do crime e/ou para a medida da pena, sendo certo que essa irrelevância deve ser vista com rigor, em função do factualismo inerente às posições da acusação e da defesa e bem assim aos contornos das diversas possibilidades de aplicação do direito ao caso concreto». É o que sucede quando a versão apresentada pelo arguido na contestação constitua mera negação, embora especificada, da conduta que lhe é imputada na acusação e, por imperativo lógico, impassível de demonstração, uma vez que equivale ao oposto do que o Tribunal a quo considerou provado na sentença.
VI - Em processo penal, é legítimo o recurso a presunções simples ou naturais, na medida em que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP), o que sucede com as presunções, que o art. 349.º do CC qualifica como as ilações que a lei ou o julgador retira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º do mesmo Código).
VII - O pedido de natureza cível fundamentado na alegada responsabilidade subjectiva do demandado haverá que ser apreciado à luz do disposto na lei civil (art. 129º do C. Penal).
VIII – Daí que a simples mora no cumprimento da obrigação da reparação do dano de ‘capital’, gerado pela prática do crime de abuso de confiança, constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, cuja indemnização corresponde aos juros de mora (cf. arts. 804º a 806º do CC): na obrigação pecuniária fundada em responsabilidade por facto ilícito, essa indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora e esta ocorre desde a prática do facto se a obrigação não depender de qualquer liquidação, como sucede quando estão em causa quantias certas e líquidas.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. Por sentença proferida e depositada a 11-12-2019 no identificado processo, a arguida I. R. foi julgada e condenada, como autora de um crime de abuso de confiança, p. e p. no artigo 205.º n.º 1, do Código Penal, numa pena de 250 dias de multa, à taxa diária de € 5, perfazendo o valor de € 1.250 (mil, duzentos e cinquenta euros) e no pagamento do pedido de indemnização cível contra si também deduzido no montante de € 66.390,26, acrescido de juros desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento.

2. Inconformada, a arguida interpôs recurso, cuja motivação rematou com as seguintes conclusões (transcrição) (1):

«1- A arguida foi condenada em pena e no pedido cível, pelo que a acusação foi considerada completamente provada e o pedido cível procedente.
2- No que interessa, a arguida foi acusada de transferir para a sua conta o montante de 58 000,00€, mais 7 398,00€, de duas contas bancárias da Caixa …, cujos titulares era ela própria e o seu tio/padrinho, de nome L. R., já falecido, após a morte deste, em consequência de queixa que foi apresentada pela cabeça-de-casal, irmã do falecido.
3- Resumidamente, em contestação, alegou a arguida que tais quantias lhe tinham sido doadas pelo falecido em 2011 e após a morte da esposa, também sua tia e madrinha, que lhas entregou e ela aceitou, através de ato válido e por isso se apropriou de tais quantias de forma legítima, convencida que estava e está que o dinheiro lhe pertencia e pertence. Consequentemente, não praticando assim qualquer crime.
4- A douta sentença padece dos seguintes vícios: - O pedido cível concluiu de forma ilegal; - Nulidade por falta de fundamentação no que diz respeito à matéria de facto dada como provada;- Nulidade da sentença por a mesma não fazer qualquer referência aos factos alegados na contestação oferecida pela arguida; - Incorreta decisão sobre a matéria de facto, já que os factos dados como provados estão incorretamente julgados pois não existiu prova nesse sentido;- Violação do princípio in dubio pro reo por utilização excessiva do instituto da presunção. - Corretamente apreciada a prova, deveriam ter sido dados como provados os factos da contestação e nessa medida a arguida absolvida.
5- O recurso versa assim matéria de facto e de direito, tendo sido violado, além do mais, os artigos 374º, 375º, 379º e 127º do C.P.P., bem assim como o artigo 32º nº2 de C.R.P.
6- Consideramos que as concretas provas existentes, impõem decisão contrária.

VEJAMOS:

7- A queixosa demanda como cabeça de casal, logo é contra a lei condenar a arguida a pagar à demandante qualquer quantia. No limite, a condenação deveria ser “condenar a arguida a entregar à herança a quantia de …” através da cabeça de casal.
8- A arguida em prazo e de forma processualmente correta, apresentou contestação e rol de testemunhas, peça que ocupa 6 longas páginas, vertidas em 32 artigos em que não se limita a negar os factos da acusação e oferecer o mérito dos autos e tudo o que em julgamento se provar a seu favor, como também e principalmente;
9- Alega factos que, a comprovarem-se, afastariam por completo a tese da acusação, tese essa (da acusação) que consiste em que a arguida se apropriou ilegitimamente da totalidade das quantias depositadas em contas bancárias, em que ela própria figura como titular, apenas porque assim era para que a sua sobrinha/arguida pudesse movimentar essas contas, em proveito do falecido, caso fosse necessário.
10 - A arguida traz ao processo uma nova realidade, a sua realidade, a sua tese, a sua defesa e em abono desta alega:
11- Transferiu a totalidade do dinheiro das contas em que também era titular conjuntamente com o seu padrinho, porque este lhas doou em vida, no ano de 2011, logo após a morte da tia, através de uma doação materialmente e formalmente válida.
12- Alega a arguida que o padrinho lhe deu aqueles montantes. Sabermos se a doação é ou não válida, é assunto que deve ser discutida nos meios cíveis ou no inventário que já requeremos e cuja prova dos seus tramites já consta do presente processo. Neste momento existe inventário para partilha dos bens do falecido L. R., correndo paralelamente com este processo.
13- Por isso assim o requeremos, sendo que o tribunal, erradamente, entendeu indeferir a nossa pretensão de remeter este assunto para os meios cíveis.
14 - Nesse sentido a arguida atuou convencida que o dinheiro lhe pertencia, tendo agido assim de forma legítima e, em consequência, sem consciência da ilicitude da sua conduta e convencida que estava que não violou a lei.
15 - Que ambos, arguida e padrinho, a convite deste, se deslocaram à Caixa ..., dando o falecido ordens para abrir novas contas, cujos titulares seriam os dois e por vontade dele, transferindo para estas mesmas contas o montante de cerca de 60.000,00€ de uma outra conta só titulada pelo falecido.
16 - Esta doação foi aceite pela arguida, que aceitou nesse momento o dinheiro em causa, podendo dele dispor, pois o padrinho o pôs à sua disposição e em consequência considerando-se dona de tais montantes por lhe terem sido dados (pelo padrinho), conforme vontade prévia que manifestou.
17 -Temos assim uma doação de coisa móvel conforme a lei: vontade, manifestação e declaração de dar, declaração de aceitação, abertura de novas contas com dois titulares, colocação na disponibilidade da arguida. Tradição da coisa. Declaração de dar, declaração de aceitar e tradição. Doação válida.
18 - Tudo isto foi alegado pela arguida na contestação que apresentou, de forma objetiva, pormenorizada e até exaustiva, bem assim como também foi alegado na mesma peça os motivos pelos quais o doador tomou tal atitude:
19 - Em consequência da relação de parentesco, de especial amizade, intimidade, cumplicidade, pelo facto de a arguida ter sido a sua principal tratadora e antes também da sua esposa e madrinha, porque esta (arguida) sofre de uma doença incurável – esclerose múltipla – que lhe reduzirá os anos de trabalho e de proveito, porque o falecido L. R. quis honrar a palavra da esposa pré-falecida no sentido de que a casa de habitação de ambos ficasse para a arguida e como a casa precisasse de obras, dar-lhe-iam o dinheiro necessário para a arranjar e ainda porque, segundo as palavras de algumas testemunhas, a I. R., como era carinhosamente tratada pelos padrinhos, “era a filha que eles não tiveram”, porque de facto não tiveram filhos e com eles viveu desde criança.
20 - Arguida que optou por ficar solteira e sem filhos para poder tratar dos padrinhos, ao ponto de o falecido L. R., nos últimos tempos, como precisasse de mais cuidados em virtude da idade e doença, permanecia alguns dias e noites em casa da arguida, tendo, inclusive, falecido na residência desta na cidade de Bragança.
21 - Que o L. R. fez testamento em 2014, ano em que morreu, não tendo no mesmo contemplado a quantia em causa porque já a tinha doado em 2011 à arguida.
22 - Que o primo A. R., filho único de uma irmã do L. R., sempre se comportou no processo não como testemunha mas como parte, pois foi ele que praticou os atos mais relevantes em nome da mãe cabeça de casal, exatamente porque nisso tinha interesse direto, já que quanto maior fosse a quota que recebesse a cabeça de casal, mais beneficiado ele ficaria, logo nunca terá uma atitude de testemunha, antes terá sempre uma atitude de parte interessada e como tal o seu depoimento só poderá ser parcial.
23 - Que o L. R. várias vezes em vida declarou que os montantes em causa eram da arguida por lhos ter doado.
24 - Tudo isto foi alegado na contestação. Sobre estes factos o tribunal não se pronunciou. Nem uma palavra.
25 - Na verdade, a contestação alega factos, pormenoriza-os, descreve-os, contextualiza-os, traz uma nova realidade ao processo, confronta o julgador com essa nova realidade, as circunstâncias e o porquê.
26 - Logo, deveria o tribunal pronunciar-se quanto a estes factos até porque arrolamos 4 testemunhas que foram ouvidas durante 4 dias. Mas sobre isto o tribunal disse nada.
27 - Ao invés, se a contestação se limitasse a negar a acusação, ao dar como provados os factos desta, o contrário até poderia ficar demonstrado. Mas não foi o que aconteceu. A arguida, oferece a sua realidade, oferece factos e uma vez julgados procedentes (como na verdade aconteceu) improcederia a acusação. A sentença omite completamente a existência da contestação e quem a ler (a sentença), fica convencido que contestação não existiu.
28 - A douta decisão sofre assim de vício de nulidade, com todos os efeitos legais:
- A decisão é nula quando não enumera os factos que considera provados e os que considera não provados.
- O Juiz ao proferir sentença, tem sempre de especificar o motivo porque entende que o arguido deve ser condenado, motivação essa de facto e de direito. Que como decorre literalmente, a motivação factual reporta-se aos factos que estão em causa quer na acusação quer na contestação, pelo que tem sempre de existir um qualquer tipo de referência aos facos que não estejam provados (da contestação).
-Tem sempre de existir uma referência a factos e uma justificação dos motivos porque se entende provados e não provados, ainda que essa referência não seja completamente exaustiva.
29 - Quando assim não acontece, como é indubitavelmente o caso, estamos perante a violação do Art.º. 374º nº2 e 379º nº1 do C.P.P., o que conduz a nulidade da sentença.

FALTA DE PROVA/FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO

30 - A acusação apresenta 8 testemunhas e remete para o conjunto dos documentos e para o depoimento dessas testemunhas a sustentação da decisão.
31- Nada temos a opor à prova dos factos 2, 3, 4, 5, 7 e 8 da acusação. Já não é assim quanto aos restantes. Entendemos que a prova apresentada está longe de ser suficiente para poder resultar como provado a totalidade do facto 1, e principalmente o facto 6, este absolutamente decisivo.
32 -Tudo se resume ao seguinte confronto entre a acusação e a defesa: a acusação baseada na prova do facto 6 e a defesa baseada na prova da doação válida.
33 - Só que, na verdade, estas duas teses não chegaram sequer (erradamente), a estar em confronto, pois o Tribunal levou apenas em conta a prova direcionada para os factos da acusação. A contestação e os seus factos não existem, não contaram.
34 - Mesmo assim, no nosso modesto entendimento, os factos que na realidade estiveram controvertidos e que são apenas os constantes de acusação, foram mal decididos, foram mal apreciados, não deveria o Tribunal dá-los como provados porque de facto não houve prova nesse sentido.
35 - Olhando para o processo, nomeadamente para a douta sentença, o que resulta da mesma é que o Tribunal considera os factos como provados com base no depoimento das 8 testemunhas de acusação e nos diversos documentos existentes.
36 - No entanto, de uma análise rigorosa, resulta a conclusão que o convencimento do Tribunal assenta unicamente: - No depoimento de uma testemunha, - De nenhum documento e - Nas alegadas contradições da arguida (que na verdade não existiram).

ASSIM:
37 - Lê-se na sentença “os factos provados em 1” resultam do teor dos seguintes documentos: procedimento simplificado de habilitação de herdeiros, assento de óbito e testamento.
Ora analisados aqueles três documentos, de nenhum resulta qualquer referência ao tempo em que o falecido permanecia em casa da arguida e que é a matéria do ponto 1 da acusação. Logo, ao não indicar outra prova (e que na verdade não existiu), não pode este facto ser dado como provado - pelo que está este facto erradamente julgado. Não pode o Tribunal dar como assente e provado que o falecido L. R. habitou (apenas) 2 dias antes de falecer em casa da arguida.
38 - Pelo contrário, da prova feita pela defesa e constante da contestação, resulta coisa bem diferente: que o falecido L. R., passava muitos dias, meses, semanas e fins de semana em casa da arguida – tal resulta do depoimento da arguida, da testemunha O. M., gerente de Caixa ... de Alfandega da Fé que declarou “que ele vinha muitas vezes para casa da sobrinha e por isso não o via em Alfandega”, do depoimento da testemunha M. I. e do companheiro N. P., amigos da arguida e do falecido, frequentadores da casa deles, do depoimento da testemunha A. C., funcionário bancário do banco …, onde o L. R. era cliente e seu amigo, ao ponto de lhe ter solicitado transporte para o levar a fazer o testamento e inclusive, resulta também do depoimento da “testemunha” de acusação A. R. que declarou que nos últimos tempos o tio passava alguns dias em Bragança com a arguida. Portanto temos pelo menos 6 pessoas que declaram o mesmo, contra os alegados documentos referidos pelo Tribunal, que a respeito disto nada dizem. Assim nunca deveria ter sido dado como provado que o L. R. habitou na casa da arguida nos 2 últimos dois dias de vida, antes, deveria ter sido dado como provado – o falecido passava muitos dias, meses, fins de semana na casa da arguida – tal como foi alegado na contestação.
39 - Bem assim como também está erradamente provado o facto do ponto 9 de acusação. É falso que a arguida alguma vez tenha admitido que foi confrontada pelos herdeiros para a entrega do dinheiro. Resulta das suas declarações, única pessoa ouvida sobre este assunto, “os herdeiros nunca me confrontaram sobre este assunto” e acrescenta “tive uma conversa com o meu primo A. R. e ele sabia que o dinheiro me tinha sido doado”.
40 - No julgamento, ouvidos em declaração os restantes herdeiros e por videoconferência, negaram que alguma vez tivessem confrontado a arguida com a entrega do dinheiro, bem antes pelo contrário, declaram que nunca contaram com esse dinheiro, o que vem reforçar ainda mais a ideia que o A. R. é o único interessado na condenação da arguida e dai que o seu depoimento como testemunha tem que ser valorado dessa forma.

FACTO 6 DA ACUSAÇÂO

41 - O facto mais controvertido é o constante do ponto 6 da acusação: que o dinheiro das contas da Caixa ... não eram da arguida e que o seu nome figurava como titular para as poder movimentar caso fosse necessário e em proveito do falecido L. R.. Entendemos que o Tribunal não andou bem ao dar este facto como provado. Vejamos:
42 - O tribunal escreve que fundamenta a sua convicção no seguinte: - Contradições nas declarações da arguida relativas a uma carta escrita pelo L. R. e - No depoimento da testemunha A. R..
43 - Ora, das 8 testemunhas de acusação, o Tribunal utilizou apenas o depoimento de uma testemunha, o depoimento do A. R., depoimento que sofre das vicissitudes apresentadas e por isso é parcial: não é testemunha, é parte interessada; desempenha as funções de cabeça de casal, pois tal como o próprio declarou, a sua mãe (formalmente a cabeça de casal) está muito doente.
44 - A certa altura do seu depoimento, esta testemunha declara, que quando soube do testamento em vida do tio disse-lhe “estava-me a sentir injustiçado e prejudicado porque sempre ajudei a enriquecer o património”.
45 - Ora isto tem suficiente interesse: o A. R. julga-se (mal) com direitos acrescidos em relação aos demais herdeiros e em consequência tem interesse direto, mais que todos, no resultado do presente processo.
46 - Mas mais: se quisermos ser rigorosos, em lado algum da sentença se lê que o A. R. confirmou que o tio L. R. lhe tinha dito que o dinheiro não era da arguida. Ora isto não pode significar que está provado o contrário, isto é, se o tio nunca lhe disse que o dinheiro era da arguida, é porque na verdade não era. Decidir assim é violar as mais elementares regras em matéria de prova. O tio não lhe disse uma coisa, nem lhe disse outra e isto vale o que vale.
47- É uma conclusão abusiva e despropositada. Coisa diferente seria escrever-se na sentença que o A. R. afirmou que o tio lhe disse que o dinheiro não seria para a arguida. Era esta a prova que a acusação deveria ter feito e não fez. O Tribunal foi cauteloso, exatamente porque sabe que a “parte” A. R. não disse o que a acusação pretendia que tivesse dito. Não nos esqueçamos que esta é a única testemunha que o Tribunal utiliza para prova deste facto e que disse o que disse. Rigorosamente nada com interesse.
48 - O outro meio de prova utilizado, e nas palavras do tribunal, foram as alegadas contradições da arguida sobre uma carta, contradições essas que analisadas ao pormenor e com o rigor que o caso exige, não podem ter a força probatória que o tribunal lhes atribuiu.
49 - É que o Tribunal constrói toda a decisão com base no seguinte entendimento: “presume que o dinheiro é da herança e atira para a arguida o ónus da prova do contrário, prova do contrário (doação) que só poderá ser feita através da carta que o tribunal não considera idónea”.
50 - Ora isto é errado. É errado em termos de prova e é errado em termos de construção jurídica.
51- A questão da carta é uma falsa questão e as alegadas contradições da arguida quando se refere à mesma, em consequência, são também uma falsa questão, sendo certo que a existir alguma contradição, existe apenas uma única perfeitamente atendível tendo em conta como a arguida foi “massacrada” durante vários dias de julgamento pela forma como as questões lhe eram colocadas (…) e ainda tendo em conta a sua doença (esclerose múltipla) que lhe afeta as capacidades de resistência e raciocínio.
52 - A validade da doação em causa, não depende de qualquer carta a descrever a doação ou acordo e isto, porque, tal como alega e provou a arguida, houve tradição da coisa (do dinheiro), declaração de vontade de dar e de receber. Tudo o resto, com o devido respeito, é uma perda de tempo.
53- A única contradição existente no depoimento da arguida é a seguinte: em primeira sessão do julgamento declarou que a gerente O. M. não lhe mostrou a carta que o tio escreveu e que estava na Caixa ... e no depoimento do último dia de julgamento, passado um mês, declara que a gerente O. M. lhe mostrou a carta e esta diz que não – é esta a contradição quanto à carta e que jamais poderá ter tão grande importância ao ponto de o Tribunal, isoladamente, a considerar suficiente para dar o facto 6, aliás decisivo, como provado.
54 - Da prova feita pela acusação (da única testemunha e da alegada contradição) e nos termos expostos, jamais este facto 6 da acusação poderá ser dado como provado.
55 - Ao invés, analisados os factos da contestação e a abundante prova oferecida pela arguida e tal como supra se referiu, resulta, sem margem para duvidas o contrário: que o falecido L. R., ao abrir uma conta com dois titulares, o fez porque dava o dinheiro da mesma à arguida. Resulta provada a doação e a validade da mesma.
56 - O que se alegou até agora, seria suficiente para absolver a arguida.

Princípio IN DUBIO PRO REO

Mas há mais: foi violado o princípio in dubio pro reo por utilização excessiva da prova por presunção – Art. 127º do C.P.P.

O tribunal utilizou para prova dos factos as seguintes presunções e passamos a citar parte da sentença condenatória:

1 -“Existe ainda um elemento importante que afasta a tese da doação e que é a existência de um testamento, no qual o falecido L. R. dispõe dos seus bens, sendo de questionar, se o mesmo pretendia fazer aquela doação à sua sobrinha (a arguida) porque motivo deixou fora do testamento essa disposição de vontade? - fls 672”
2 - “… o comportamento global da arguida que, horas após o falecimento do tio procede ao levantamento/transferências bancárias, …fls 673 - ora, se a mesma era proprietária de tais quantias bancárias, para que a pressa? E porque não fez os levantamentos antes do falecimento do tio, uma vez que tais quantias lhe pertenciam? Não é credível, nem com as regras da experiência comum e da lógica, que alguém, sendo beneficiário de tão generosa doação, não tenha usufruído da mesma. Por outro lado, não encontramos justificativo bastante na confessada fuga aos impostos – fls 674.
3 - “Terminamos como começamos, com o possível motivo de atuação da arguida. Como dissemos, a primeira coisa que aquela tem a preocupação em dizer é que era o pilar da família, … pois dá uma explicação porque a arguida se sentiu no direito de se apropriar de tais quantias.”
57 - Sobre a utilização deste meio de prova, diremos o seguinte: A prova indireta, onde se inclui a prova por presunção, é permitida no nosso ordenamento jurídico, a utilizar nos termos do art. 127 e ss do C.P.P. Simplesmente, existe abuso de utilização de presunção, não só quando é manifesto o desvalor construtivo da mesma, como é o caso, mas também quando são insolitamente utilizados como meio de prova. Não existindo (ou tendo sido utilizado sem sucesso) qualquer outro meio de prova, como foi o caso e dar os factos por provados exclusivamente com base em presunções, parece-nos algo a evitar e de utilização proibida.
58 - Ainda a este respeito:
. Presumir que se o falecido quisesse dar o dinheiro à arguida o teria feito em testamento, é algo que nos parece não só errado como juridicamente incorreto, já que as coisas se passam ao contrário: se alguém faz doação em vida é porque não quer dispor em testamento (do objeto doado), sendo que do testamento nunca poderá constar o que previamente foi doado, sendo certo que do supra exposto e foi o que se passou em julgamento, foram demonstradas as razões pelas quais o falecido optou por dispor dos bens daquela forma – doação e testamento. Com o devido respeito, esta presunção não faz sentido.
59 - Assim como não há qualquer motivo para nos interrogarmos do porquê de a arguida ter levantado o dinheiro após o óbito e não o ter transferido antes. Poderá haver essa estranheza, se não tivéssemos ouvido as declarações da arguida em sessão do dia 25/09/19, ao minuto 56.30 da gravação, que explica direitinho os motivos: “- Não precisava do dinheiro - Estava convencida que era meu e não tinha pressa - Disse ao padrinho que não lhe mexia em vida - Estava com boa taxa de juros que perderia se mexesse - Algum estava em aplicação pelo que não o poderia movimentar - Aconselhou-se com um senhor bancário reformado de nome A. C., que lhe disse sempre, inclusive que para não pagar impostos, deveria ser levantado após o óbito, mas antes de este ser comunicado ao banco.”
60 - Independentemente da legalidade de alguns motivos, estes foram os motivos que a arguida apresentou para não dispor do dinheiro em vida do L. R.. Declarações que foram completamente confirmadas pela testemunha A. C., ouvido no último dia do julgamento. A este propósito, tem a jurisprudência entendido, que em alguns casos como este, que por uma questão de respeito e amizade para com os parentes, os beneficiados deixam para depois da morte o levantamento de tais quantias.
61- Na douta sentença, no segundo paragrafo, o Tribunal lembra uma frase da arguida: “eu era o pilar da família”, para daí concluir que está aqui explicado o motivo da sua conduta ilícita. Não entendemos como pode o Tribunal concluir que o “motivo do crime” pode ser o facto de a arguido se considerar o “pilar da família”. Na verdade, em qualquer parte do Pais, alguém que é o pilar da família, situa-se numa posição privilegiada para poder herdar de quem não tem herdeiros diretos, relativamente a outro ou outras pessoas que não estejam naquela posição.
62 - Aqui e com o devido respeito, as coisas passam-se ao contrário do que entende o Tribunal. A este respeito, temos ainda que explicar que esta frase foi de facto proferida pela arguida, porque é de conteúdo verdadeiro, mas que deve ser contextualizada.
Na sessão do dia 25/09/19, ao m 2,25 da gravação a arguida, explicando os motivos, circunstâncias e porquê de o padrinho lhe ter feito a doação, tal como lhe competia e lhe foi perguntado, disse:“ sou sobrinha, ele era tio e padrinho, foi ele que me criou, sempre fui o pilar deles e eles o meu, tínhamos um relacionamento de filha e pais, mais do que sobrinha.”
Postas assim as coisas, devidamente contextualizadas, percebe-se que a expressão que o tribunal utiliza para não prova, deve ser utilizada para prova, pois tais motivos, para a generalidade das pessoas, são motivos mais que suficientes para alguém, sem descendentes diretos, dispor de determinadas quantias a favor de uma sobrinha/afilhada.
É caso para perguntar: então se a arguida tivesse dito que não era o pilar da família, como concluiria o Tribunal? Provavelmente diria que não é normal, nestas situações, alguém que não é herdeiro direto vir a herdar…
63 - Concluindo e a este respeito temos que as presunções terão utilidade, quando resultam de evidências naturais e atendíveis pela generalidade das pessoas e não quando são lançadas aleatoriamente, que e uma vez analisadas criticamente se apresentam desprovidos de conteúdo. Foi o que aconteceu.
As presunções nunca se poderão confundir com arbitrariedades ou opiniões pessoais. Parece-nos, humildemente, que o método decisório de “arranjar” uma sentença e depois lançar mão de “forçadas” presunções porque não se encontrou outro tipo de prova em grau suficiente, não será a maneira mais adequada de construção e apresentação da decisão. Foi violado assim o princípio in dubio pro reo

DA PROVA OFERECIDA PELA DEFESA

64 - Se, tal como expusemos, da prova da acusação, (de onde deveria resultar condenação), resultam os factos erradamente dados como provados, parece-nos que, caso tivesse sido analisada a prova oferecida pela arguida e constante da contestação, resultaria provada a tese da arguida e a mesma seria obviamente, ainda com mais certeza, absolvida.

Vejamos a veracidade da tese da doação.

65 - Resultou provado, conforme dissemos, que o falecido L. R. tinha motivos suficientes para fazer aquela doação;
66 - Doação que ele fez (formalmente válida) e que: - a arguida e por mais que uma vez explicou de forma correta; - que a testemunha M. I. - e o seu companheiro N. P., que ouviram dizer ao L. R. que queria fazer a vontade da esposa, que queria deixar a casa e algum dinheiro à arguida para poder fazer as obras; - e principalmente a testemunha A. C., amigo, conhecido e que conversava com o falecido, que por ser bancário, a arguida lhe perguntou logo em 2011, se deveria mexer no dinheiro que o tio lhe dera e que ele a aconselhou negativamente explicando-lhe os motivos, mais referindo que o L. R. também comentou com ele na altura da doação e mais tarde do testamento e que confirmou a tese de doação válida.
67- O depoimento desta testemunha, do A. C., deve ser de primordial importância porque conheceu bem a vida do falecido em Alfandega da fé e também do interessado A. R., tendo explicado que o falecido quis fazer o testamento em Bragança, tendo-lhe pedido transporte para evitar que o sobrinho o soubesse e o pudesse vir a pressionar, facto que vai ao encontro do depoimento do A. R., tendo este dito, que declarou ao tio, que se estava a sentir injustiçado, o que em rigor e de acordo com as regras da experiência, alguém que não tem filhos e está disposto a dividir com os sobrinhos e mesmo antes de morrer é confrontado por um deles (porque se está a sentir injustiçado), não é propiamente a forma mais simpática de ser abordado, o que vai trazer reações em conformidade - esconder a verdadeira vontade por parte do falecido L. R. no que diz respeito à forma de dispor dos seus bens.
68 - Este depoimento do A. C. é tão importante, que tal como consta dos autos, requeremos ao Tribunal atempadamente que o notificasse para estar presente, pretensão que foi negada pela Meritíssima, tal como consta da ata, com o argumento de que deveria ser a apresentar porque o mesmo residiria em Alfandega. Que saibamos, Alfandega pertence à comarca de Bragança, onde decorreu o julgamento.
69 - Temos assim o depoimento da arguida, da M. I., do Dr. N. P. e do A. C., de 4 testemunhas que ouviram várias vezes e por diversas formas conversas ao falecido que provam a referida doação;
70 - Mas existe ainda uma 5ª testemunha: a D. O. M., gerente da Caixa ... de Alfandega da Fé, explica e confirma a existência da carta, carta essa que serviria apenas, nas palavras do falecido, para a arguida mostrar no caso de vir a ser incomodada (e não para prova de doação).
71- Por isso mesmo, a arguida só exibiu a carta em Tribunal, pois antes não tinha havido qualquer problema e exibiu em Tribunal no momento processual correto. Uma vez acusada apresenta a carta na instrução.
72 - Carta essa que existe: viu-a o A. R. porque lhe foi exibida pela gerente O. M. na agência da Caixa ... onde a mesma se encontrava, viu-a a arguida porque lhe foi entregue pelo tio na altura do testamento, viu-a a O. M. que a chegou a exibir ao interessado A. R. e viu-a o A. C. que lha mostrou o falecido quando conversaram sobre o assunto.
73 - O que significa que a sua existência não pode ser negada, pese embora o facto de, no nosso entendimento, não ter grande importância para o caso e tal como supra explicamos.
74 - E quanto à carta e para terminarmos este tema, o que é certo é o seguinte: ficou provado que, tal como afirmou a gerente O. M., a mesma aparece na agencia de Alfandega da Fé vinda por correio interno da agencia de Bragança, o que significa que a mesma entrou mesmo na agencia de Bragança, segue para Alfandega e misteriosamente desaparece na agencia de Alfandega da Fé;
75 - Mas atenção, também ficou provado que exatamente após a mesma carta ter sido exibida ao A. R. pela gerente O. M. e sendo este facto do conhecimento dos demais funcionários da agência, (conhecidos e amigos das gentes da terra…), e sendo este A. R. também um destacado cliente da agência, misteriosamente a carta desaparece…
76 - A testemunha O. M. foi clara ao afirmar que conferiu a assinatura do Sr. L. R., que colocou o original no cesto próprio para a correspondência para seguir para Lisboa no final do mês (que seria outro funcionário a fazer este serviço) e uma cópia no processo do cliente, mas que misteriosamente desapareceu.
77 - Apesar de (timidamente) insinuado pela acusação, não foi provado nem sequer alegado qualquer motivo ou facto para desacreditar o depoimento da Gerente O. M., aliás pessoa idónea e que não vemos qual seria o seu interesse em cometer qualquer ilegalidade ou irresponsabilidade num caso tão sério e que por certo lhe traria consequências gravíssimas em termos profissionais.
78 - Assim pergunta-se: quem tem verdadeiro interesse em que a carta desapareça? Porque motivo é que o A. R. só apresenta a queixa depois do desaparecimento da carta? Porque, e depois de já saber que a prima tinha levantado o dinheiro da Caixa ..., participa às Finanças no processo de óbito (relação de bens) o dinheiro que o falecido tinha depositado na Caixa … e Banco … e não faz constar dessa relação exatamente o dinheiro da Caixa ... já que estava convencido (e está) que o mesmo deverá ser partilhado?
79 - Parece-nos e aqui sim, não será despropositado lançar mão da prova indireta por presunção a favor da tese da existência de uma doação perfeitamente válida e que o A. R. quer evitar a todo o custo.
NA VERDADE

80 - Das 8 testemunhas oferecidas pela acusação, mais 5 oferecidas pela arguida, 13 no total, só uma é que não confirma a tese da doação e que é exatamente o A. R., mas também e tal como se expos, não a nega, por nunca ter ouvido ao tio o contrário.
81- Daí que, também deveria ter resultado como provado que a arguida agiu de forma legítima e por isso não cometeu qualquer crime.
82- O L. R. decidiu doar o dinheiro à afilhada, em vida, comunicou-lho, disponibilizou-lho, abrindo para o efeito novas contas, colocando-a como titular, comunicando-lhe estes factos que ela aceita - existe declaração de dar e de receber, com tradição do dinheiro para a total disponibilidade de quem recebe.
83- A doação está consumada validamente e afasta o crime – assim decidiu o S.T.J., proc. 865/13.6 TBDL, 2º Seção, de 13-06-2016 “DGS” e o AC. TRE de 18.06.2013.
“O elemento subjetivo deste tipo de crime consiste no facto de o agente saber que deve restituir…” “Todavia, a mera negação de restituição não significa necessariamente que a apropriação seja ilegítima.” “Tem sido defendido pela doutrina que a apropriação não é ilegítima quando ela não contraria as regras do código civil”.

PELO QUE:

Não fica assim provado que a arguida tenha cometido qualquer crime pelo que deveria ter sido absolvida e o pedido cível julgado improcedente ou e sem prescindirmos.
Tal como atempadamente se requereu, o processo deveria ter sido enviado para os meios comuns.
Sendo certo, que no limite, funcionaria sempre a presunção de que a arguida seria titular de pelo menos metade das quantias depositadas.

POIS RESULTA DE TUDO QUANTO SE EXPOS:

- Ilegalidade na condenação do pedido cível
- Nulidade da sentença por não se ter pronunciado quanto à matéria da acusação
- Falta de fundamentação da decisão
- Violação do princípio in dubio pro reo
- Da prova oferecida pela arguida relativa aos factos da contestação, os mesmos deveriam ter sido dados como provados.
O Tribunal violou, além do mais, o disposto nos artigos 374º, 375º, 379º, e 127ºdo CPP, bem assim como o artº 32º, nº 2 da CRP.».

A assistente/demandante civil M. R., também interpôs recurso, cuja motivação, rematou com as seguintes conclusões:
«1ª. Conforme resulta dos autos, em 20 de setembro de 2018 a ora recorrente (também assistente nos autos) deduziu pedido de indemnização civil, onde peticionou a final a condenação da arguida / demandada “…a pagar à demandante, na qualidade de cabeça de casal em que intervém, a quantia de 66.390,26 € a título de danos patrimoniais, acrescida de 10.170,00 € a titulo de juros de mora vencidos desde as respetivas datas de apropriação das diversas quantias, liquidados à taxa legal, e ainda nos vincendos até integral e efetivo pagamento.”
2ª. No que a tal matéria diz respeito, a douta decisão recorrida julgou tal pedido de indemnização civil parcialmente procedente, tendo condenado a demandada no pagamento à demandante da quantia de 66.390,26 €, mas acrescida de juros de mora, APENAS, desde a data da decisão até efetivo e integral pagamento, no que a demandante não se conforma. ASSIM:
3ª. No ponto 8 dos factos provados na douta sentença, deu-se como provado que a arguida / demandada se apropriou entre 5/12/2014 e 20/01/2015, de forma parcelar, de diversas quantias da propriedade da herança de seu tio, L. R., num total de 66.390,26 € - cfr. ponto 8 / factos provados.
4ª. Nos pontos 9 e 10 deu-se como provado também que, “confrontada por outros herdeiros sobre tais montantes, a demandada recusou-se a restituí-los, fazendo-os os seus”, e que esta “atuou de forma deliberada e com perfeita consciência de que ilegitimamente se apropriava das quantias em causa contra a vontade dos seus donos e apesar de saber que tal era proibido por lei.”
5ª. De forma condizente com esta factualidade dada como provada, em “F) Pedido de Indemnização Civil”, a douta sentença considerou designadamente (i) que “No caso em apreço, não existe qualquer dúvida de ter existido um facto voluntário, uma acção dominável ou controlável pela vontade humana, por parte da arguida quando, de forma ilegítima, se apropriou das quantias de dinheiro que não lhe pertenciam”; (ii) que “No que concerne aos danos, provou-se que, em consequência da conduta da arguida, os demais herdeiros ficaram privados de tais valores pecuniários que integram a herança por morte de L. R.”; e (iii) que “Estão assim verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil, previstos nos artigos 483.º, 562.º e 563.º do Código Civil: o facto voluntário, ilícito e culposo, o dano e o nexo causal.”
6ª. Todavia, de forma que, salvo o muito devido respeito, se afigura não fundamentada e contraditória com aqueles factos provados e com estes pressupostos factuais e legais aí enunciados, a douta sentença concluiu então considerando que “Por fim, tendo por base o supra exposto no que se refere ao cálculo da indemnização, no caso em apreço o dano patrimonial corresponde às quantias que a arguida ilicitamente se apropriou, no valor global de 66.390,26€, pelo que é este o valor a ressarcir aos lesados.”.
7ª. Com o que, em “B” do respetivo dispositivo, determinou a condenação da arguida / demandada no pagamento à demandante da quantia de 66.390,26€, acrescida de juros de mora, TÃO SÓ, desde a data da douta decisão e até efetivo e integral pagamento, com o que, por decorrência, a absolveu do pedido de pagamento de juros de mora desde as datas da respetiva apropriação de cada uma das quantias parcelares (dadas como provadas no ponto 8 dos factos provados).
8ª. Salvo o devido respeito, tendo em conta os factos dados como provados sob o ponto 8 e aqueles pressupostos factuais e legais enunciados na douta sentença, afigura-se inequívoco que a demandante e a herança que a mesma representa ficaram privadas de cada uma das quantias parcelares (que perfizeram o total de 66.390,26 €) desde cada uma das datas em que foram apropriadas pela demandada.
9ª. Registando na sua esfera jurídico patrimonial, por via disso, o dano patrimonial decorrente da privação de tais quantias a partir das datas em que cada apropriação se verificou.
10ª. Inexiste por isso qualquer razão legal ou factual para que a demandada não tenha de ressarcir os danos patrimoniais registados pela demandante e decorrentes da privação daquelas quantias, impondo-se a condenação daquela no pagamento dos respetivos juros de mora a contar da apropriação de cada uma delas.
11ª. Tal é o resulta do disposto nos artºs 483º, 562º, 563º, 564º, nº 1, 566º, nº 2, 805º, nº 2, al. b) (que regula expressamente a mora do devedor quando a obrigação provém de facto ilícito, que dispensa a interpelação), e 806º, nº 1 (que determina que na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora), todos do Código Civil.
12ª. O que, salvo o devido respeito, justifica o presente recurso e a revogação da douta sentença proferida, por violação dos preceitos legais enunciados.».

3. Admitidos os recursos, o Ministério Público, em 1ª instância, apenas apresentou resposta ao recurso da arguida, pugnando pela sua total improcedência, por entender que na decisão recorrida foi feita uma correcta apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, sem qualquer estado de dúvida, bem como uma adequada aplicação do direito à factualidade provada.

4. Não foram apresentadas contra-alegações.

5. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, secundando aquela resposta com uma autoridade argumentativa reforçada e estribada em apoios jurisprudenciais e doutrinais. Especificamente no capítulo da impugnação ampla, defende que é visível que o recurso, por um lado, extravasa completamente o escopo típico de remédio jurídico, almejando, notoriamente, um novo julgamento amplo da matéria de facto; e, por outro, inobserva, em termos estritos, a disciplina apertada do art.º 412.º, n.º 3, al. b), sendo facilmente perceptível que o inconformismo recursório se concentra em divergência da recorrente com aquilo que entende que se provou, no sentido de as quantias monetárias lhe pertencerem, o que propiciaria a sua retirada do cenário delitivo expresso na sentença, excluindo também a sua responsabilidade cível.
Termina dizendo que não se vislumbra qualquer incorreção de julgamento dos factos a que o recurso atribui tal defeito, não impondo esses meios de prova e o seu correlacionamento a ansiada decisão diversa.

6. Cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP, efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
*
II – Fundamentação

1. Delimitação do Objecto do Recurso

Sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente por obstarem à apreciação do mérito do recurso (2), uma vez que o âmbito do seu objecto se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), suscitam-se nestes recursos as questões de saber se:

1) devem os autos ser remetidos para os meios processuais comuns;
2) a sentença é nula (i) por ser omissa quanto aos factos constantes da contestação (ii) e por falta de fundamentação quanto à matéria de facto tida por provada;
3) a matéria de facto encontra-se incorrectamente fixada, por erro de julgamento e violação do princípio in dubio pro reo e, consequentemente, deve ser alterada e absolver-se a arguida;
4) o pedido de indemnização cível deve incluir o pagamento de juros de mora desde a data da apropriação das quantias em causa.
*
2. São os seguintes os factos considerados provados e a fundamentação que incidiu sobre os mesmos (transcrição):

Factos provados

1. A arguida é sobrinha de L. R., falecido em -/12/2014, pelas 7,45 horas, na residência da arguida, sita na Avenida ..., em Bragança, onde residiu nos últimos dois dias;
2. O falecido deixou como herdeiros, para além da arguida, os seus irmãos M. R., cabeça de casal, e J. C., a sobrinha M. S., como a arguida filha do pré falecido irmão J. P., os sobrinhos E. C., C. R. e A. L., filhos do pré falecido irmão F. E., e os sobrinhos C. S. e I. C., filhas do pré falecido irmão A. R.;
3. Por testamento lavrado em 15/4/2014 (3), o falecido legou à arguida a fracção autónoma designada por letra A, do imóvel descrito na conservatória do Registo Predial de … sob o nº ..., ao seu sobrinho A. J. a fracção designada por letra B, do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº ..., e aos sobrinhos afins A. S. e M. M., em comum e partes iguais, as fracções designadas por A e B, do imóvel descrito na Conservatória do Registo predial de … sob o nº …;
4. L. R. era titular da conta de depósitos à ordem nº .........00 e da conta nº .........78, da Caixa ..., ambas da agência de Alfandega da Fé;
5. Na conta identificada em 4., era a arguida também titular;
6. A arguida era também titular da conta mencionada em 4., para que, atenta a idade avançada do falecido, contando 84 anos de idade, quando em 2011 foi aberta tal conta, em caso de necessidade, designadamente, em caso de doença ou outra incapacidade do falecido, o auxiliasse e substituísse este último nos pagamentos que fosse necessário fazer;
7. À data do óbito de L. R., a primeira conta apresentava um saldo de 2.255,34€ e a segunda conta um saldo de 58.000€, montantes que àquele, até então, unicamente pertenciam;
8. Após o óbito do seu tio, a arguida procedeu aos seguintes levantamentos/transferências, sem autorização dos demais herdeiros:
a. No dia 05/12/2014, pelas 11 horas, arguida procedeu à liquidação do capital existente nessa data, no montante de 58.000€, na conta nº .........78, apropriando-se não só da parte que lhe respeitava, correspondente a 1/10, mas também, da parte relativa aos demais herdeiros, correspondente a 9/10, montante de 52.200€;
b. No dia 05/12/2014, pelas 11 horas da conta nº .........00, entretanto, creditada com movimentos devidos ao falecido, a arguida procedeu à transferência do montante de 2.000€ para conta de que é titular;
c. No dia 11/12/2014, procedeu ao levantamento do montante de 2.000€;
d. No dia 15/12/2014, procedeu à transferência de 4.200€ para conta de que é titular;
e. No dia 19/01/2015 procedeu ao levantamento de 170,26€;
f. No dia 20/01/2015 procedeu à liquidação dessa conta, então, com o montante de 20€, apropriando-se não só da parte que lhe respeitava, mas também, da parte relativa aos demais herdeiros, correspondente a 9/10, no montante de 7.398€;
9. Posteriormente, confrontada por outros herdeiros sobre os montantes acima indicados, a arguida recusou-se a restituí-los, fazendo-os os seus;
10. A arguida actuou de forma deliberada e com perfeita consciência de que ilegitimamente se apropriava das quantias em causa contra a vontade dos seus donos e apesar de saber que tal era proibido por lei.

Fundamentação da decisão de facto:

«O Tribunal formou a sua convicção positiva com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, globalmente considerada, e livremente apreciada pelo Tribunal, nos termos dos arts. 125.º a 127.º do CPP, designadamente os seguintes meios de prova:

i. prova testemunhal;
ii. declarações da arguida (igualmente sujeitas ao princípio da livre apreciação do Tribunal, como os restantes meios de prova, nos termos do disposto no art.127.º do CPP);
iii. prova documental:
- fls. 6 a 9 (procedimento simplificado de habilitação de herdeiros) - fls. 10 a 14 e 311 a 315 testamento; - fls. 15 (talões de liquidação das contas .........00 e da conta nº .........78 da Caixa ...); - fls. 26 a 28v (assento de óbito) - fls. 31 a 32 (relação de bens) - fls. 33 a 39, 63 a 69, 72 a 75, 93 a 103 (informações da Caixa ...) - fls. 273 a 276 e 288 a 298 (assentos de nascimento) - fls. 361 (documento junto pela Arguida em sede de instrução) - fls. 442, 462 e 467-473 (respostas da Caixa ...)
Assim, baseando-se nos meios de prova supra discriminados, isoladamente ou conjugados entre si, cumpre concretizar de que forma se formou a convicção do Tribunal.
A arguida “abriu” as suas declarações dizendo, e passo a citar: “eu era o pilar da família” - o que não é despiciendo nem tão pouco irrelevante, pois, como mais à frente se verá, acaba por dar uma pista para o estado de espírito da arguida, quando confrontada com os factos sub judice, e nessa medida apontando para um possível móbil de actuação da arguida.
Os factos provados 1 a 5, 7 e 8 resultam do teor dos seguintes documentos: procedimento simplificado de habilitação de herdeiros, assento de óbito, e testamento - não impugnados nem arguida a sua falsidade e, nessa medida, sendo documentos autênticos, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor.
Na verdade, a arguida admite a generalidade dos factos, designadamente as transferências e levantamentos mencionados em 8.e.9., bem como a recusa, quando confrontada pelos herdeiros sobre os montantes que ou levantou ou transferiu para conta de que é titular, a restituí-los, fazendo-os os seus (9.º facto provado) – nesta parte diz que além de ter sido confrontada pelo primo, a testemunha A. R., recebeu ainda a carta de um advogado em diz que “era um convite para devolver o dinheiro (…) não aceitei porque sempre considerei que o dinheiro era meu”.
A questão controvertida reconduzia-se ao 6.º facto provado, ou seja, ao motivo pelo qual a arguida passou a figurar como titular da conta bancária identificada em 4., atendendo a que a defesa da arguida consistia em apresentar uma tese nos termos da qual o dinheiro de que a mesma se apropriou lhe pertencia (por ter sido doado pelo tio, o falecido L. R.), versão esta que não logrou convencer o Tribunal pelos motivos que infra se explicitam, sendo que a resposta a este quesito afasta, inevitavelmente, a defesa da arguida por incompatíveis versões.
Ora, desde logo, e como bem chamou a atenção o Ministério Público aquando as alegações orais, as declarações da arguida apresentam contradições e desconformidades com a realidade histórica dos factos, como em seguida demonstraremos – além das contradições da própria arguida, que por mais do que uma vez “disse e desdisse”, sendo o seu depoimento merecedor de pouca credibilidade por esse motivo.
A arguida disse, em síntese, o seguinte: que L. R. a pôs como titular da conta porque lhe queria dar o dinheiro, que não esperou para o levantar “por causa dos impostos”, e fala ainda na existência de uma carta (documento de fls. 361.) que alegadamente teria sido escrita pelo falecido L. R. e entregue pelo mesmo e pela M. I. na Caixa ... de …, sendo que, na versão da arguida, era ainda um facto do conhecimento da Testemunha A. R..
Comecemos pela existência da dita carta (fls. 361) - documento que apareceu apenas em sede de requerimento de abertura de instrução, em 13-09-2018, do teor do qual resulta que todos os valores existentes nas contas da Caixa ... devem ser entregues à Arguida, após a morte de L. R..
Solicitado à Agência de Alfandega da Fé da Caixa ... o original do referido documento, a mesma veio dizer que não existe registo de qualquer documento com o teor do atrás mencionado.
Foi solicitado aos serviços centrais da Caixa ... o envio do documento em causa, tendo tal entidade vindo informar que o mesmo é desconhecido de tais serviços.
No início das suas declarações, a arguida afirma que “o tio entregou-lhe a carta no início de 2014 … depois do testamento”, e que, aquando a entrega da carta pelo tio à arguida, o primeiro terá dito a esta: “não te preocupes que vai uma igual para a Caixa ...” e “se tiveres problemas apresentas esta carta”.
Desde logo, e face aos conselhos que a arguida alega terem-lhe sido dirigidos por L. R., não faz sentido nem é credível que, se a carta em causa tivesse como finalidade assegurar a situação de dona do dinheiro, e evitar que a arguida tivesse problemas, aquela, estando na posse de tão importante documento, tivesse esperado todo este tempo até o juntar ao processo. Na verdade, a queixa foi feita em 12-03-2015, a arguida ouvida em 1.º interrogatório em 27-04-2016, e nunca, em momento algum, fez referência a este documento. Na verdade, só em 13-09-2018, como se disse, é este documento junto aos autos. Mais se refira que não logrou convencer o Tribunal quando diz ter sido o defensor inicialmente nomeado, que a aconselhou a não mostrar a dita carta. Na verdade, tal é pouco verosímil, desde logo porque tratava-se de um elemento que beneficiava a arguida, não sendo de acordo com as regras da experiência comum e da lógica que o próprio advogado, que defende os interesses da arguida, lhe tivesse dado indicações para ocultar tal documento.
Se tal não fosse suficiente, à referida inverosimilhança, junta-se a falta à verdade por parte da arguida. Na verdade, e como já se teve ocasião de mencionar, as declarações da arguia apresentaram-se confusas, contraditórias e, muitas vezes, inconcebíveis.
A título de exemplo: a dada altura das declarações a arguida contou que, cerca de uma semana após o falecimento de L. R., dirigiu-se à Caixa ... de Alfandega da Fé, “para saber como estava o dinheiro”, e que nesse contexto, nas palavras da arguida: “fui abordada pela gerente – a testemunha O. M. – para saber se queria aplicar o dinheiro” e ainda que “foi-me informado pela gerente da existência da referida carta”, a qual lhe dissera “que lhe apareceu nas mãos por correio interno”. Ora, sucede que tal versão é contraditada pela referida testemunha, O. M., que, aquando o seu depoimento, apesar de reconhecer o recebimento da carta (o que igualmente não se afigurou credível como infra se explicitará) nega ter mostrado a carta à arguida. Aliás, esta testemunha vai mais além, pois diz mesmo que “após a morte de L. R. nunca falou com a arguida”. A propósito desta desconformidade, foi realizada a acareação entre ambas, tendo a arguida alterado a sua versão, admitindo que, afinal, apenas “falou com a senhora O. M. sobre a carta depois de o processo dar entrada no Tribunal”, e já não na mencionada ida à agência uma semana depois da morte do tio, tendo ainda rectificado as suas declarações, no sentido de que, afinal, foi atendida pela funcionária de nome H..
Para espanto do Tribunal, como se não bastasse tal discrepância, a arguida, nas suas últimas declarações, já na ausência da testemunha, volta à versão inicialmente contada por si, afirmando que “quando foi à Caixa ... a gerente (referindo-se à testemunha O. M.) mostrou-lhe a carta”.
- Por outro lado, não foi demonstrada quer a autoria da carta bem como a sua entrega, uma vez que, sem qualquer justificação para isso, não existe registo oficial da sua entrega na entidade bancária para onde se alega que a mesma foi endereçada. A única testemunha que disse que a carta foi enviada (e por correio interno) foi O. M., funcionária da agência do banco em causa, do depoimento da qual resulta ter recebido uma carta (que a testemunha também apelida de informação), que segundo a mesma ocorreu no final do verão de 2018, a dizer que o dinheiro da conta bancária sub judice “era para a arguida”. Ora, o depoimento desta testemunha não se apresentou credível pois, desde logo, a testemunha admite, sem apresentar qualquer justificação, que “recebi o papel (…) não pus carimbo de entrada”, quando tal é o procedimento habitual e normal dos bancos – segundo a referida testemunha bem como a testemunha A. C.. Diz ainda, de forma contraditória, que a intenção era falar com o Sr. L. R. sobre tal carta, mas que nunca o chegou a fazer – ao mesmo tempo que diz que aquele ia, pelo menos, uma vez por semana à agência. Repare-se que esta testemunha chega mesmo a dizer “fiquei na dúvida sobre se a carta era a verdadeira intenção do Senhor R.” mas que, apesar disso, como se disse, nunca o confrontou. Não obstante, apesar de não provada a sua genuinidade, tal documento foi mostrado pela testemunha O. M. à testemunha A. – versão contada por ambos de forma coincidente.
Afastada a genuinidade do documento em causa, não ficou o Tribunal convencido de que, como alega a arguida, L. R. a tenha colocado como titular da conta porque lhe queria dar o dinheiro, tendo aliás resultado demonstrado que tal sucedeu pelo motivos referidos em 4.. Sobre tal matéria, prestou depoimento a testemunha A. R. (sobrinho do falecido L. R. e que com este convivia quase diariamente, “excepto ao domingo”, segundo disse, por serem, além da relação familiar, sócios de um estabelecimento comercial, sendo esse o local onde se encontravam), que, apesar do interesse que tem na acção – atendendo a que o mesmo é herdeiro do falecido L. R. – prestou um depoimento que se apresentou isento e objectivo e, contrariamente às declarações da arguida – lógico e sem contradições. Assim, de forma circunstanciada, referiu que a arguida apenas passou a ser co-titular da conta bancária identificada em 4., quando a esposa do falecido L. R. morreu, em meados de 2011, tendo ainda referido que a escolha da arguida foi sugestão sua (da testemunha) mas que nunca o tio (falecido L. R.) mencionou que tal dinheiro seria para a arguida.
Existe ainda um elemento importante que afasta a tese da doação, e que é a existência de um testamento, no qual o falecido L. R. dispõe dos seus bens, sendo de questionar, se o mesmo pretendia fazer aquela doação à sua sobrinha (a arguida) por que motivo deixou fora do testamento essa disposição de vontade?
Ora, a coincidência temporal com a morte da esposa, a sinceridade do depoimento da testemunha A. R., e a omissão da suposta doação no testamento, tudo conjugado contribuiu para o Tribunal dar como provado o facto descrito em 4..
As testemunhas I. C., C. S. e C. R., primos da arguida e herdeiros do falecido L. R., T. P., amiga da arguida, M. F., Maria, nada contribuíram para a decisão em apreço, por terem revelado total desconhecimento das questões que cumpria solucionar, incindindo o depoimento de algumas das mencionadas testemunhas em aspectos irrelevantes do quotidiano de L. R. (que às vezes ia ao bando, que às vezes ficava em Alfandega da Fé e outras em Bragança).
Da mesma forma as testemunhas indicadas pela arguida (M. I., N. P. e A. C.), que são amigos daquela, em nada contribuíram para a credibilidade do Tribunal sobre os factos controvertidos. As duas primeiras admitem que “não sabem nada sobre dinheiro”. Mesmo a última identificada testemunha diz, questionada sobre se sabe se o falecido L. R. deu o dinheiro depositado na conta identificada em 4 à arguida, responde “eu suponho que sim”, revelando, com a sua resposta, desconhecimento sobre o objecto dos autos. De facto, embora o mesmo afirme que “primeiro a I. R. (referindo-se à arguida) disse-lhe que o tio lhe queria dar dinheiro … depois o L. R. disse eu vou dar dinheiro à I. R.”, a convicção do mesmo de que o dinheiro depositado na conta identificada em 4. foi efectivamente dado, assenta tão só e apenas em mera suposição (como o mesmo diz, nas suas próprias palavras: “suponho que sim”).
Assim e em conclusão, nenhuma destas testemunhas indicadas – além daquelas cujo depoimento foi analisado mais pormenorizadamente – contribuiu para formar a convicção do Tribunal, quer num sentido, quer noutro.
Por fim, e não menos importante, temos a análise do comportamento global da arguida, que, horas após o falecimento do tio, procede aos levantamentos/transferências bancárias, inclusive de contas bancárias de que nem sequer era titular. Ora, se a mesma era, de facto, proprietária de tais quantias monetárias, para quê a pressa? E porque não fez levantamentos antes do falecimento do tio, uma vez que tais quantias lhe pertenciam, pois, segundo alega a arguida, a doação é de 2014? Não é credível nem de acordo com as regras da experiência comum e da lógica que alguém, sendo beneficiário de tão generosa doação, não tenha usufruído da mesma. Por outro lado, não encontramos justificativo bastante na confessada “fuga aos impostos”.
Conjugando todos os elementos mencionados, entre os quais sobressaem a falta de credibilidade que mereceu a arguida, a ausência de elementos que corroborem a sua versão, e todos os elementos de prova apontando no sentido julgado provado, conclui o Tribunal nos termos supra decididos.
Terminamos como começamos, com o possível motivo de actuação da arguida. Como dissemos, a primeira coisa que aquela tem a preocupação em dizer é que “era o pilar da família” - o que, como também se referiu, não é despiciendo, pois, dá uma explicação porque a arguida se sentiu no direito de se apropriar de tais quantias – embora tal não seja juridicamente uma causa de exclusão da ilicitude ou sequer da culpa. No entanto, tal declaração num momento de espontaneidade revela que o justificativo da arguida para a sua actuação, e de apropriação das quantias em causa não é, nem nunca foi, a dita doação, mas sim, no entendimento daquela, algo que a mesma se crê merecedora por ter sido cuidadora do falecido L. R.. Repare-se que, se a doação tivesse existido realmente (a qual não existiu pelos motivos supra referidos) a primeira coisa que a arguida teria dito não seria esta, de que era o pilar da família, afirmação que, em última análise, tem pouco (ou nada) a ver com o caso em apreço. No entanto, disse-o a arguida na sua sinceridade por uma razão: por ser esta a causa que, na convicção íntima da arguida, justifica a sua actuação.»
*
III - Apreciação do Recurso

1. A existência de questão prejudicial.

A recorrente vem solicitar a remessa dos autos para os meios processuais comuns, sem explicitar os fundamentos de tal pedido.
Todavia, se bem entendemos, almejaria enunciar que existe uma causa prejudicial que importava ser dirimida noutra sede.
Esta pretensão remete-nos para o “princípio da suficiência”, consagrado no art. 7º, n.º 1, do CPP, segundo o qual o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à boa decisão da causa.
Com refere Germano Marques da Silva (4), «segundo este princípio, no processo penal podem resolver-se, em regra, todas as questões, seja qual for a sua natureza, que importem para a decisão da causa crime. Assim, se para decidir a questão crime for necessário decidir previamente outra (civil, laboral, fiscal, etc.) de que aquela dependa, o tribunal penal decide-a incidenter tantum, i.e., só para efeitos da decisão penal».
É um princípio que visa garantir a concentração e a continuidade do processo penal, prevenindo a ocorrência de obstáculos ao exercício da acção penal.
Contudo o referido princípio comporta excepções conforme decorre do n.º 2 do mesmo preceito que dispõe “quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer outra questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente”.
Assim sendo, a suspensão do processo penal é uma possibilidade que o tribunal penal tem para devolver o conhecimento da questão prejudicial ao tribunal competente quando conclua que a questão não penal não pode ser convenientemente resolvida no processo penal, sendo certo que quanto a estas questões é sempre possível ao tribunal penal assumir a competência normal de outros tribunais (art. 7º, nº. 1).
Conforme, uma vez mais, elucida Germano Marques da Silva (5) «o art.7.º do Código de Processo Penal parece considerar que todas as questões prejudiciais podem ser julgadas no próprio processo penal e só facultativamente serão objecto de processo próprio no tribunal normalmente competente; isto é, a prejudicialidade processual parece nunca ser obrigatória»
Embora discricionária a decisão de suspensão do processo penal, o certo é que a mesma está vinculada aos critérios da necessidade e da conveniência. Exige-se que a decisão da questão prejudicial esteja numa relação de necessidade com o conhecimento do crime e haja uma relação de conveniência.
Dito de outro modo, a decisão de suspensão é uma decisão discricionária, mas vinculada aos critérios da necessidade e a conveniência, sendo crucial, para aferir da bondade da mesma, avaliar em que fundamentos é que ela se baseou para concluir pela necessidade/desnecessidade de suspensão do processo penal, na medida em que esses fundamentos terão que conter esse juízo e a conclusão terá que ser o resultado lógico deste.
No caso concreto, conquanto a recorrente não tenha fundamentado o pedido, o certo é que também não se vislumbra a existência de qualquer questão prejudicial que importe o seu conhecimento por outro tribunal e que imponha a necessidade de suspensão deste processo até que se mostrasse decidida.
Realmente, o que está em causa é apurar da eventual prática pela arguida de um crime de abuso de confiança, em face dos factos por que vem pronunciada, sendo este tribunal o materialmente competente para o efeito.
Nesta conformidade e sem necessidade de maiores desenvolvimentos, improcede a pretensão da recorrente.

2. As nulidades.
2.1. A nulidade da sentença por não contemplar a matéria da contestação.

A arguida entende que a decisão recorrida se encontra ferida de nulidade nos termos do disposto nos artigos 379º, n.º 1, al. a), e 374º, n.º 2, 1ª parte, por não conter nos factos provados e não provados a matéria por si alegada em sede de contestação.
De harmonia com o art. 379º, n.º 1, al. a), do CPP, “é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 do art. 374º”. Acrescentando o seu n.º 2 que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso. Por sua vez, o art. 374º, sobre a epígrafe “Requisitos da sentença”, estabelece a estrutura a que deve obedecer a sentença proferida em processo criminal – dispondo, “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, (…)”.
Em conformidade com este normativo, a fundamentação da sentença consiste na enumeração dos factos provados e não provados, bem como na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Consagrada no artigo 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, a fundamentação constitui uma garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, funcionando como condição de legitimação externa das decisões dos tribunais, ao permitir a verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que as determinaram (6).
Para além da sua proeminência enquanto garantia integrante do Estado de direito democrático, no domínio do processo penal, a fundamentação assume uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos. Uma fundamentação cuidada é, pois, absolutamente essencial, desde logo, para garantir a possibilidade do exercício eficaz do direito ao recurso.
Aliás, todas as decisões proferidas no processo – que não sejam de mero expediente, isto é, que decidam qualquer questão que se suscite ou seja controvertida – devem ser sempre fundamentadas (7) e o seu alcance deve ser perceptível para os respectivos destinatários e demais cidadãos (8). E é compreensível que a lei determine, taxativamente, os requisitos gerais a que, especialmente, a sentença se encontra sujeita, por ser o acto decisório por excelência, o que conhece, a final, do objecto do processo e, por isso, se reveste de crucial importância porque é através dele que, particularmente, o arguido mas também os demais sujeitos processuais ficam a saber o que se decidiu e porque desse modo se decidiu.
O desiderato do mencionado dever de fundamentação é permitir “(..) a sindicância da legalidade do ato, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, atuando por isso como meio de autodisciplina.” (9).
A lei processual penal exige, assim, que o juiz enumere os factos que julga provados e não provados, sob pena de a sentença ser nula. Na verdade, a enumeração dos factos provados e não provados, que deve constar na sentença, nos termos previstos no artigo 374.º, n.º 2 do CPP, é essencial porque é ela que traduz a tomada de posição, por parte do tribunal, sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e em relação aos quais a decisão terá de incidir, nos termos previstos no artigo 368.º, n.º 2 do CPP.
E conforme tem sido afirmado pela jurisprudência enumerar os factos é especificá-los ou contá-los um a um, de forma perfeitamente clara, precisa e inequívoca, como partes de um todo, quer os que o tribunal considerou provados, quer os que teve como não provados.
Relativamente ao âmbito material desse enunciado, prescreve o art. 339º, n.º 4 do CPP que a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação, os factos alegados pela defesa e os factos que resultarem da discussão da causa, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º (questão da culpabilidade) e 369.º (questão da determinação da sanção), sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos (arts. 358º e 359º).
Todavia, conforme também vem sendo reiterado pela jurisprudência (10), «o cumprimento do disposto no artigo. 374º, nº 2, do C. P. Penal, não impõe a enumeração dos factos não provados que sejam irrelevantes para a caracterização do crime e/ou para a medida da pena, sendo certo que essa irrelevância deve ser vista com rigor, em função do factualismo inerente às posições da acusação e da defesa e bem assim aos contornos das diversas possibilidades de aplicação do direito ao caso concreto - seja quanto à imputabilidade, seja relativamente à qualificação jurídico-criminal dos factos, seja quanto às consequências jurídicas do crime, designadamente quanto à espécie e medida da pena -, tendo em conta os termos das referidas posições assumidas pela acusação e pela defesa e os poderes de cognição oficiosa de direito que cabem ao tribunal.».

No caso vertente, a sentença deu como provados os pontos 1 a 10, os quais correspondem à integralidade da acusação deduzida contra a arguida (ora recorrente) e nada fez constar quanto a factos não provados, nomeadamente quanto à sua inexistência e/ou com relevo para a decisão da causa.
Dito de outro modo, no elenco factual provado e não provado não consta nenhum dos factos alegados na contestação que a recorrente apresentou a fls.º 523 a 525, na qual veio responder à matéria da acusação pública, apresentando a sua versão dos factos, sustentando que não cometeu o crime que lhe é imputado, na medida em que procedeu ao levantamento das quantias monetárias depositadas nas contas bancárias, porque as mesmas lhe pertenciam, uma vez que lhe haviam sido doadas pelo seu tio e padrinho L. R., que por si nutria grande afinidade e carinho, circunstancialismo, que a apurar-se, conduziria, no seu entendimento, à absolvição da prática do imputado crime.
Ou seja, a arguida limita-se a negar os factos por que estava pronunciada (consubstanciadores da prática de um crime de abuso de confiança), argumentado e sustentando tal negação, mas, em boa verdade, não trazendo aos autos qualquer facto novo.
Efectivamente, percorrendo a contestação, constata-se que a arguida, para além, de negar peremptoriamente a prática dos factos, ofereceu o merecimento dos autos e invocou tudo o que em audiência resultar a seu favor (pontos 1 e 2).
De seguida, argumentou que a questão fulcral em discussão nos autos - saber se lhe pertenciam ou não as quantias em causa - é uma questão meramente cível, devendo, por isso, as partes ser remetidas para os meios comuns, objectando em defesa da sua tese que o dinheiro lhe foi doado por escrito particular (carta) e que tal doação é válida porque a aceitou, tendo havido tradição da coisa doada (pontos 3 a 11).
Nos demais pontos a arguida manifesta a sua estranheza pelo facto de o Sr. Juiz de instrução ter atribuído credibilidade à tese da acusação, que, segundo também invoca, se baseia no depoimento interessado do filho da denunciante (cabeça de casal) e a descredibilizar os demais depoimentos (pontos 12, 19 e 25).
Nos restantes pontos (13, 14, 15, 16, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 27) extrai conclusões diferentes às vertidas na acusação, reiterando que o dinheiro lhe foi dado pelo tio e nos pontos 29 a 32, enumera as razões por que, em seu entender, a cabeça e casal não tem condições para exercer o cargo.
Que dizer?
Estamos perante duas versões completamente opostas: enquanto a acusação assaca à arguida a apropriação (ilícita e culposa) de quantias monetárias que não lhe pertenciam, a acusada, simplesmente, negou tal comportamento, afirmando que o aludido dinheiro lhe tinha sido doado pelo seu tio/padrinho.
Assim, a versão apresentada pela arguida na contestação constitui mera negação, embora especificada, da conduta que lhe é imputada na acusação e, por imperativo lógico, impassível de demonstração, uma vez que equivale ao oposto do que o Tribunal a quo considerou provado na sentença recorrida.
Por isso, não careceria o Tribunal a quo de enunciar explicitamente os correspondentes segmentos factuais de tal versão, porque necessariamente não demonstrados, ainda que se repute de tecnicamente preferível uma posição expressa sobre a factualidade constante da contestação, mediante uma menção na sentença recorrida sobre a irrelevância de quaisquer outros factos para a decisão da causa.
Para além da mencionada negação (especificada) dos factos imputados na acusação, também não poderiam ser elencados como factos no verdadeiro sentido do termo as conclusões e considerações técnico-jurídicas contidas na contestação e que apenas seriam de ponderar para caracterizar e definir os contornos das diversas possibilidades de aplicação do direito, quer quanto ao enquadramento jurídico, quer quanto às consequências jurídicas do crime, uma vez que se tivesse demonstrado a versão fáctica da arguida.
Pelo exposto, não se verifica a nulidade do acórdão, que a recorrente invoca, por falta de enumeração autónoma dos factos provados e não provados, assim improcedendo o segmento em apreço do respectivo recurso.

2.2. A omissão de fundamentação quanto à matéria de facto tida por provada.

Sustenta ainda a recorrente que a sentença é nula por padecer de falta de fundamentação e um insuficiente exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal a quo na medida em que se limita a transcrever os factos constantes da acusação pública, sem fazer qualquer exame crítico das provas que serviram de base à formação da sua convicção, ficando sem se saber qual o raciocínio subjacente à convicção.
Vejamos.
Como se disse no ponto 1.1. a fundamentação da sentença, traduz-se na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão, cominando a lei a sua omissão ou grave deficiência com a nulidade.
A fundamentação adequada da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.
Assim é que o art. 374º, no seu n.º 2, quanto à respectiva fundamentação, especifica o seu concreto conteúdo, impondo que dele conste «uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Esta norma corporiza a exigência consagrada no artigo 205.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa - dever de fundamentação das decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente.
O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (11).
Estes motivos de facto não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência (12). O Tribunal Constitucional que tem também insistido em que «esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis)» (13).
É ponto assente que na fundamentação da matéria de facto se hão-de indicar as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões porque se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP), é necessário que o processo de formação dessa convicção, porque assente, necessariamente, numa racionalidade prática, seja explicado com suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos, esclarecendo-se, nomeadamente, porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos, é credível porque foi prestado com uma “postura calma” ou com “um raciocínio coerente” e “está de acordo com as regras da experiência”; é preciso, dar o passo seguinte que consiste exactamente em esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência. Tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras (14).
«A fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” facto envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.» (15).
«A operação de fundamentação decisória é complexa, já que, nos termos do n.º 2 do art. 374.º do CPP, não prescinde da enumeração dos factos provados e não provados, constando, ainda, de uma exposição tanto possível completa, mas concisa dos motivos de facto e de direito que legitimam a decisão, com a indicação e o exame crítico das provas. É imperativo, em exame crítico das provas, que o tribunal explicite os motivos determinantes da credibilidade dos depoimentos, do valor dos documentos e exames, por que as privilegiou em detrimento de outras, em ordem a que os destinatários e um homem médio fique ciente de que as razões de convicção procedem da lógica de raciocínio, da transparência e do bem senso. Se não é necessário explicitar facto a facto as razões que levaram ao rumo decisório, o que se tornaria uma tarefa quase ciclópica, sem utilidade e mais propiciadora de reparos, não se dispensa que da fundamentação figure, de forma simples, clara e suficiente, o processo encadeado que, em resultado da lógica e da razão nela impressas, levou a tomar-se o sentido decisório expresso, enquanto sua consequência inelutável, à margem da dúvida.» (16).
Também como se anota no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 573/98 (17) a decisão, sobre a matéria de facto tem de «estar substancialmente fundamentada ou motivada – não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios, mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado».
Temos assim como certo que a não enumeração na sentença das provas produzidas e a consequente falta de exame crítico de todas ou de cada uma delas, explicitando as razões que levaram o Tribunal a dar crédito a umas e a descredibilizar outras, gera a nulidade da sentença, por insuficiente fundamentação da mesma (18).
Na situação em apreço, o que resulta da concreta argumentação da recorrente é que esta não se conforma com o facto de o Tribunal se ter socorrido de prova indirecta/indiciária para alcançar a sua convicção, desvalorizando as suas próprias declarações e os depoimentos das testemunhas que indica.
Em suma, evidencia a falta de prova para considerar como provados determinados factos e não propriamente a omissão de exame crítico da prova, olvidando que se está perante uma matéria muito específica.
Efectivamente, o teor da decisão criticada permite inferir, à luz do acima exposto, que a Senhora Juíza ficou convencida da realidade dos factos que arrolou como assentes e indicou o percurso ou o raciocínio lógico que a conduziu a essa convicção, de modo bastante a este Tribunal de recurso poder aferir da sua adequação (substancial), possibilidade que se estende, inevitavelmente, a qualquer destinatário directo e aos demais cidadãos: a Senhora Juíza esclareceu, no essencial, as razões do seu convencimento para dar como provado que a arguida procedeu ilicitamente ao levantamento das quantias monetárias depositadas nas contas bancárias que identifica, sabendo que as mesmas pertenciam à herança aberta por óbito do seu tio e padrinho L. R.. Esse arrazoado abarca elementos colhidos com recurso à prova indiciária, a que dedicaremos maiores desenvolvimentos, noutra sede.
Em suma, a Julgadora fez uma explicitação detalhada do percurso mental que efectuou, ou seja, do processo lógico e racional que seguiu na apreciação e valoração das provas, podendo-se constar que não se tratou de uma ponderação arbitrária, na medida em que expôs, justificou e analisou criticamente as razões ou motivos que a levaram a considerar como demonstrado ou não cada um dos factos submetidos à sua apreciação.
Tudo isto para concluir que estamos perante uma “motivação” apta [à excepção do segmento final constante do ponto um] ao fim a que se destina, porquanto a expressão nela contida do exame crítico das provas indicadas permite alcançar o processo formativo da convicção do Tribunal, e que, por isso, a discordância da recorrente relaciona-se com razões de diferente índole, conexas com a impugnação ampla da matéria de facto por erro de julgamento deduzida pela mesma e que, nessa sede, serão ponderadas.
Efectivamente, como referimos, somente carece de fundamentação o segmento final do ponto 1. Este ponto tem a seguinte redacção: «A arguida é sobrinha de L. R., falecido em -/12/2014, pelas 7,45 horas, na residência da arguida, sita na Avenida ..., em Bragança, onde residiu nos últimos dois dias». E a fundamentação referente ao mesmo apenas teve por base o teor da certidão de óbito do falecido L. R..
Na decisão, afirmou-se: «Os factos provados 1 a 5, 7 e 8 resultam do teor dos seguintes documentos: procedimento simplificado de habilitação de herdeiros, assento de óbito, e testamento - não impugnados nem arguida a sua falsidade e, nessa medida, sendo documentos autênticos, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor.».
Ora, do teor do assento de óbito apenas se extrai o dia e hora do falecimento e o local da última residência, sem quantificar o período temporal da mesma.
Assim, dúvidas não restam, que o segmento final deste ponto não encontra qualquer sustento na fundamentação da decisão. Contudo, como linearmente se extrai do conjunto dos factos, o mesmo, sendo meramente acessório ou instrumental da matéria factual, apenas seria convocável para a problemática da prova se assumisse relevo para a decisão da causa, o que não se verifica. Nesse sentido, é irrelevante ou inócuo.
Com efeito, a questão fulcral em investigação prende-se com a alegada ilegitimidade da arguida para proceder ao levantamento das quantias monetárias que estavam depositadas nas duas contas bancárias de que era cotitular, conjuntamente com o seu falecido tio, sendo despiciendo apurar se este permaneceu na casa da arguida apenas nos seus dois últimos dias de vida.
Realmente, todos os aspectos cruciais suscitados pela decisão deverão ser abordados na fundamentação, não devendo faltar nenhum elemento que esta deva conter, mas apenas em relação a esses é exigível uma argumentação detalhada, minuciosa e analítica, para que o seu objectivo primário possa ser efectivamente alcançado. Nisto se traduz o princípio da suficiência que também deve presidir à motivação da decisão de facto.
Não se desconhece que a arguida, para procurar convencer de que o dinheiro lhe havia sido doado pelo falecido, sustentou que era o seu principal apoio e que o mesmo, inclusive, passava longos períodos na sua residência. Porém, não logrou convencer o tribunal como se retira do teor da fundamentação, embora reportado e devidamente explicitado quanto a outro ponto da matéria de facto.
Assim, têm-se como não escrito o segmento em causa, por ser inócuo ou não assumir qualquer relevo para a decisão da causa.
Portanto, improcede, nesta vertente, o recurso interposto pela arguida.

3. O erro de julgamento e a violação do princípio in dubio pro reo.

A recorrente, preenche o cardápio recursivo também com a imputação de erro de julgamento à sentença recorrida, sustentando que o conteúdo dos itens 6, 9 e 10 dos factos provados (19), deve transitar para os não provados, por erro de julgamento e violação do princípio in dubio pro reo, na medida em que encontram o seu fundamento no depoimento prestado pela testemunha A. R., o único verdadeiramente interessado com o desfecho do processo, e nas suas declarações contraditórias.
Vejamos, então.
A par dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP, o regime processual penal consagra a chamada impugnação ampla da matéria de facto, através da invocação de erro de julgamento, nos termos previstos no art. 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), do mesmo código.
Para correctamente se impugnar a decisão com fundamento em erro de julgamento, é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.
É certo que a possibilidade de a Relação modificar a decisão da 1ª instância, sem que se imponha qualquer limitação relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada – ainda que, quanto à prova gravada, com a consciência dos condicionamentos postos pela limitação da acção do princípio da imediação –, é inteiramente congruente com o objectivo de garantir um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, claramente prosseguido pela lei de processo (20). Todavia, uma vez invocado o erro de julgamento, embora a sua apreciação se alargue à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, a mesma é balizada pelos concretos pontos impugnados e meios de prova indicados, ou seja pelos limites fornecidos pelo recorrente, a quem se impõe o estrito cumprimento dos ónus de especificação previstos no art. 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP (21). É esta a doutrina recomendada pelo STJ, p. ex., nos sumários dos seus Acórdãos de 10-01-2007 e 15-10-2008 (22).
O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorrectamente julgados, na sua perspectiva, a fim de poder obviar a eventuais erros ou incorrecções na forma como foi apreciada a prova.
Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objecto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo que sobre eles foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do n.º 3 do citado art. 412º. A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. E a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado.
Note-se que o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afecta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.
Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3).
Face ao nosso regime processual quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, actualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do n.º 4 do citado art. 412º.
É também por isso que se reconhece não existir fundamento bastante para rejeitar a impugnação da decisão numa situação em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso, tenha sido devidamente cumprido o ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados e as propostas de decisão alternativa sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal alternativa, já podendo – e até devendo – o cumprimento do ónus secundário ser satisfeito na motivação (corpo das alegações), para aí sendo relegadas a valoração dos concretos meios de prova indicados nas conclusões e a determinação da sua relevância para a distinta decisão proposta, bem como a indicação concreta das passagens da gravação (23).
E, nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada.
Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
Acresce que não podemos olvidar que, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta. Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos (24).
Realmente, como se sabe, os meios de prova nem sempre reproduzem por si directamente a imagem da verdade. Conforme refere G. Marques da Silva (25), é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
O indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos, e, por isso, o seu valor probatório é extremamente variável.
Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica da entidade que a afere. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos.
Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos a inferência feita maior ou menor eficácia probatória.
Segundo expõe André Marieta (26), a prova indiciária realizar-se-á para tanto através de três operações: «Em primeiro lugar a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento. A lógica tratará de explicar o correcto da inferência e será a mesma que irá outorgar à prova capacidade de convicção.».
A associação que a prova indiciária proporciona entre elementos objectivos e regras objectivas até leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente a testemunhal, pois que nesta também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade, sendo, por isso, muito mais difícil de determinar a respectiva credibilidade (27).
Na ausência de referência na nossa lei a quaisquer requisitos especiais da prova indiciária, dependem da convicção do julgador os respectivos funcionamento e creditação, a qual, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.
Conforme menciona G. Marques da Silva, o juízo sobre a valoração da prova suscita, num primeiro nível, a credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova, depende substancialmente da imediação e nele intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível, inerente à valoração da prova, intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora, já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência (28).
Nada impedirá, pois, que devidamente valorada, a prova indiciária, por si, na conjunção dos indícios, permita fundamentar a condenação.
Contudo, no âmbito penal, o princípio in dubio pro reo – a que a recorrente também aludiu – estabelece a imposição de que, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido, perante a persistência de uma dúvida razoável: exige-se uma pronúncia favorável ao arguido quando o tribunal não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Neste conspecto, esse princípio constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos. Ora, como resulta do exposto, a violação desse princípio só se pode verificar quando o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Normalmente, a imputação de uma alegada violação desse princípio suscita a necessidade de ser demonstrado o erro na apreciação da prova produzida, com vista a evidenciar no recurso a carência de prova de que os factos imputados ao arguido foram por este protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância que a lei faz depender a punibilidade do mesmo.
É certo que a prova não pressupõe uma certeza absoluta, mas, por outro lado, também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (29). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (30).
É por isso que nos casos em que o julgador não logra decidir com segurança com base nas mesmas e permanecendo uma dúvida consistente e razoável não pode desfavorecer a posição do arguido, só lhe restando concluir pela absolvição do mesmo por apelo do princípio in dubio pro reo (31), pois convém não esquecer que «o arguido beneficia da presunção de inocência: a prova para condenação tem de ser plena (...). Desde que a prova suscite (…) a possibilidade de diferente hipótese que não pode ser afastada, prevalece, por força da lei, a presunção de inocência».
Assim é, porque «a condenação de um inocente afecta muito mais gravemente a justiça, e por isso também o próprio interesse social, do que a não punição de um culpado» (32).
E, como é evidente, é na audiência de discussão e julgamento que tais princípios assumem especial relevo, tendo, porém, que ser sempre motivada e fundamentada a forma como foi adquirida certa convicção, impondo-se ao julgador o dever de dar a conhecer o seu suporte racional, o que resulta do art. 374º, n.º 2, do CPP.
É segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos provados e não provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles, i. é, o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma apreciação arbitrária, caprichosa ou discricionária da prova produzida.

Analisemos, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada e nas conclusões do recurso sobre os pontos factuais da impugnação deduzida.
À luz do que acima expendemos, a recorrente cumpriu formalmente o apontado ónus de especificação, identificando os concretos pontos da matéria de facto que entende encontrar-se incorrectamente fixada, bem como a sua divergência probatória, fazendo-o por reporte aos suportes do registo da prova, remetendo para os concretos locais da gravação que amparam a sua tese e transcrevendo alguns excertos, assim como ofereceu proposta alternativa sobre os mesmos.
Sendo de verificação praticamente impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não pode impedir o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo, como se disse, com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
Foi este exercício que procurámos fazer, ainda que dentro dos limites traçados pelo objecto do recurso e não olvidando que, em sede de avaliação da credibilidade dos depoimentos, o Tribunal de 1ª instância tem a seu favor a relação de imediação que se traduz no contacto pessoal e directo entre o julgador e os diversos meios de prova.
Por essa razão e também pelos específicos fundamentos de discordância invocados na impugnação da matéria de facto, umbilicalmente ligados à credibilidade que o Tribunal recorrido atribuiu aos diversos meios de prova, procedemos à audição do registo de toda a prova produzida em audiência, podendo, desde já, adiantar-se que acompanhamos a leitura feita pelo Tribunal a quo sobre tais meios de prova, por entendermos que a decisão sobre a matéria de facto reflecte inteiramente o resultado da globalidade dos meios de prova produzidos em audiência de julgamento.
Na verdade, consideramos ter sido feita prova segura que aponta, sem margem para qualquer dúvida, para a realidade inserta nos itens 6º, 9º e 10º, entre si conjugada e defrontada globalmente. Ou seja, e em suma, que nas duas contas em causa, da Caixa ... da agência de Alfandega da Fé, se encontravam depositadas quantias apenas pertencentes ao falecido, que este designara a recorrente como co-titular dessas contas somente para que, atenta a sua idade avançada e caso fosse necessário, ela o auxiliasse e substituísse na sua movimentação e que a mesma se apropriou de tais quantias, recusando-se a devolvê-las, quando confrontada para efeito, apesar de saber que não lhe pertenciam.
É certo que, nas suas declarações, a recorrente argumentou que o dinheiro constante das duas contas lhe havia sido doado pelo falecido logo após a morte da esposa e para também satisfazer a vontade desta, levantando-o no dia da sua morte porque foi assim aconselhada e para fugir ao pagamento dos impostos. Aludiu a uma carta, através da qual o padrinho teria declarado que o dinheiro era dela, do momento em que soube da existência da mesma e a razão pela qual, em seu entender, o falecido não fez a mesma declaração no testamento em que atribuiu os legados a todos os sobrinhos, dizendo que foi para fugir aos impostos e para que o seu primo A. R. não tivesse conhecimento. Apesar de ter negado, num primeiro momento, que foi confrontada pelos herdeiros para devolver o dinheiro, acabou por admitir que teve uma conversa com o primo A. R. e que recebeu uma carta de um advogado para restituir os montantes em causa, entendendo que se tratava de um simples convite. Descreveu ainda, o relacionamento que mantinha com o falecido e com a esposa, asseverando que foi o pilar deles e eles o seu, procurando convencer que o falecido passava largos períodos de tempo em sua casa em Bragança, e que, por via disso, e também devido ao seu problema de saúde, foi intenção dos falecidos beneficiá-la em termos monetários.
Confrontada com a carta e os motivos que a levaram a não falar dela no inquérito, em sede em que se remeteu sempre ao silêncio, disse que foi uma opção do defensor que assegurava a sua defesa na altura. No apontado contexto, também não conseguiu explicar quais terão sidos os motivos que levaram o tio a entregar a suposta carta em mão numa agência em Bragança, quando as contas tinham sido abertas em Alfandega da Fé e era este o local onde o mesmo residia e se deslocava diariamente à instituição bancária em causa.
Acrescentou ter sido abordada pela gerente da altura da agência da Caixa ... de Alfandega da Fé que lhe falou na carta, facto que foi desmentido por essa gerente, tendo ambas sido objecto de acareação em sede de audiência, vindo a arguida a alterar as suas declarações nesta parte, para, depois, no final da audiência, ter retornado à versão inicial.
Ora, as declarações da arguida/recorrente, na sua globalidade, foram tergiversantes, atribuladas e, em grande medida, titubeantes, tendo-nos suscitando perplexidade idêntica à que vem referida na fundamentação da decisão de 1ª instância e não logrando, por isso, convencer.
Em primeiro lugar, porque, se o falecido tio da arguida, efectivamente, lhe tivesse doado o dinheiro depositado em tais contas, para mais, logo após o falecimento da sua esposa (2011), é estranho que, tendo aquele tido a preocupação de efectuar testamento em 15/4/2014, não tenha aproveitado esse mesmo meio para, a par dos demais bens que legou, manifestar a sua vontade de dispor do dinheiro a favor da recorrente, se fosse essa a sua intenção.
Depois, e decisivamente, porque a carta, alegadamente da autoria do falecido, em que a recorrente se focou e de que se serviu para justificar o seu comportamento nunca foi por ela mencionada/exibida em sede de inquérito nas três vezes que foi convocada para ser ouvida, tendo-se sempre remetido ao silêncio, como se disse. A carta apenas surgiu aquando do requerimento de abertura de instrução (13/9/2018), passados mais de dois anos após a denúncia que deu origem aos autos.
Por outro lado, se, porventura, a arguida tivesse em seu poder um documento que, supostamente, lhe atribuía a propriedade do dinheiro, a justificação que apresentou no sentido de não pagar impostos não colhe, sobretudo, para que somente tenha movimentado as contas após o falecimento do tio, mas também não constitui razão suficientemente credível para que apenas no mesmo dia de tal decesso, logo pelas 11 horas, tenha procedido ao levantamento de dinheiro (€ 60.000).
Para adensar mais a inconsistência das declarações da arguida, registamos que a Caixa ..., notificada para apresentar a mencionada carta, informou que não existia qualquer registo da mesma, quer nos serviços centrais, quer na própria agência. Não se olvida, que a testemunha O. M., então gerente da agência da Caixa ... de Alfandega de Fé, mencionou ter recebido uma carta por correio interno, vindo de uma agência de Bragança, da qual se limitou a tirar uma cópia que colocou num cesto para ser remetida para os serviços centrais e a colocar o original na conta do falecido, mas sem lhe apor qualquer carimbo ou rubrica, tendo reconhecido a anormalidade de tal procedimento e dito que ficou desconfiada quanto ao modo como a carta foi enviada, pelo que formulou a intenção de confrontar o falecido, mas que acabou por não o fazer.
A anormalidade de tais procedimentos e, em particular, da alusão a uma carta entregue numa agência da Caixa ... de Bragança e não naquela onde se encontravam sedeadas as contas em questão, a da localidade (Alfandega da Fé,) em que, então, residia o dono do dinheiro, constitui uma razão complementar para não atribuir credibilidade à invocação feita pela arguida.
Por sua vez, a testemunha A. R., sobrinho do falecido e primo da arguida, informou que foi por sua sugestão que, devido à idade avançada do seu tio, a arguida, a partir de 2011, logo após a morte da sua tia, passou a ser cotitular das contas e que aquele sempre viveu na casa que possuía em Alfandega da Fé, onde tinha uma funcionária, deslocando-se a Bragança apenas para ir a consultas médicas. Mais esclareceu que as mencionadas contas, à excepção do dia da sua abertura, nunca tiveram qualquer assinatura da arguida até ao dia dos levantamentos e que nunca ouviu o seu tio dizer que o dinheiro era para a arguida. Apenas em Março de 2015 ouviu da boca desta que o dinheiro lhe pertencia, altura em que ela também lhe falou na suposta carta, vindo a ter conhecimento do levantamento do dinheiro aquando da participação às finanças.
No confronto com as declarações prestadas pela arguida e contrariamente às mesmas, o depoimento desta testemunha fluiu firme, seguro, sem contradições e congruente com os demais elementos colhidos dos autos, razão pela qual não nos mereceu qualquer reserva, não obstante o seu óbvio interesse económico na herança do tio de ambos, tal como sucede, aliás, com a própria arguida.
Também os depoimentos prestados pelas testemunhas M. I., N. P. e A. C., amigos da arguida, não ofereceram a segurança necessária, para se ter por adquirida uma realidade contrária à que ficou a constar dos factos, pois, de concreto, nada sabiam sobre a questão central debatida nos autos, limitando-se a aludir ao relacionamento gratificante mantido entre o falecido e a arguida, cuja existência parece inegável, uma vez que aquele legou a esta a que foi a sua casa de habitação (e todo o seu recheio).
Assim, quanto aos pontos especificamente adversados no recurso, o Tribunal a quo extraiu todas as ilações consentidas pelos elementos probatórios enunciados na sua própria análise e, por consequência, concordamos inteiramente com a afirmação que dela adveio quanto à realidade dos factos: da conjugação de tais elementos, particularmente do que se extrai do depoimento da testemunha A. R., complementado com o que consta dos documentos mencionados na decisão recorrida, adquire-se a convicção, sem réstia de dúvida, de que a arguida/recorrente procedeu ao levantamento das quantias monetárias, sabendo que as mesmas não lhe pertenciam. Na verdade, ressalta da decisão recorrida uma imagem lógica sobre o comportamento da arguida.
Particularmente em relação ao elemento subjectivo da infracção, tem de se fazer uso das regras da experiência comum. Na verdade, a sua demonstração probatória – não existindo confissão – não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal. Tratando-se de um elemento da vida interior – ou, dito de outro modo, de factos do foro psicológico – do agente, por isso, impossíveis de apreender directamente, só podem deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelem.
A prova dos factos que integram o dolo terá então de ser feita por inferência: sendo factos indemonstráveis de forma naturalística, o tribunal pode considerá-los provados, através da conjugação da prova de outros factos objectivos que com eles normalmente se ligam, designadamente, através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos objectivos integrantes do ilícito, com as regras de normalidade e da experiência comum (33).
No demais, segundo pensamos, pese embora a inexorável privação de imediação, reafirmamos que também aderimos ao exame da Sra. Juíza sobre a credibilidade dos elementos probatórios em que se suportou e que se mostram suficientes, na sua conjugação, para alcançar a convicção formada quanto ao desenvolvimento dos factos.
Da motivação, acima transcrita, da decisão sobre os factos constantes da sentença recorrida resulta que a Sra. Juíza indica cabalmente os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção e as razões pelas quais relevaram os meios de prova de que se socorreu e obtiveram credibilidade no seu espírito. Para tanto, não se limitando a indicar os concretos meios de prova geradores do seu convencimento, revelou as razões pelas quais, apoiando-se nas regras de experiência comum, adquiriu, com apoio na imediação e na oralidade da produção de tais meios, a convicção sobre a realidade dos factos tidos por provados.
Dito por outras palavras, a Sra. Juíza fez um exame cuidado, efectuando de modo crítico um juízo sobre a prova produzida, que permite compreender a opção pelos meios probatórios e os motivos pelos quais os elegeu em detrimento de outros.
Donde, entendemos que a decisão impugnada não merece censura, pois procedeu a uma correcta e devida ponderação de todos os meios de prova produzidos.
À recorrente assistia, evidentemente, o direito de apresentar a versão que lhes aprouvesse e que tivessem por mais adequada à sua defesa. Porém, o mesmo limitou-se a alegar a credibilidade ou falta dela dos depoimentos a que se refere, sem apontar argumentos ou provas impositivas de uma decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal.
De facto, não é suficiente pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de 1ª instância apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção, antes é necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, é indispensável a demonstração de que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais.
Como tem vindo a referir o T. Constitucional (34), «a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão».
Por fim, dir-se-á que é certo que, se existisse a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente, dever-se-ia assentar a decisão na que se mostrasse mais favorável à arguida, de acordo com o aludido princípio in dubio pro reo. Contudo, o apelo a este princípio, fundamentalmente como corolário da apreciação que a recorrente fez da prova, com a argumentação de utilização abusiva de presunções, não colhe no caso em apreço, porquanto para além de não se ter demonstrado que o Tribunal a quo se tivesse defrontado com qualquer dúvida na formação da convicção, contra ela resolvida, também retirou as ilações que são consentidas de acordo com os artigos 349º e 350º do C. Civil.

De facto, pese embora o Código de Processo Penal não faça qualquer menção à utilização de presunções judiciais, a ela se refere, p. ex., o acórdão do STJ de 27-05-2010 (35), nos seguintes termos:

«I- Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser direta e imediatamente percecionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. II - Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adoção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não foram proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC). III - As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indireta, mediante o qual o julgador adquire a perceção de um facto diverso daquele que é objeto direto imediato de prova, sendo exatamente através deste que, uma vez determinado, usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objeto de prova).»

No mesmo sentido, esse Supremo Tribunal escreveu no seu Acórdão de 10/1/2008:

«São admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova direta» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (Art.º 127.º do CPPenal). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extração - por presunção judicial - de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».
E a conformidade constitucional de tal interpretação também vem sendo reiteradamente afirmada na jurisprudência do Tribunal Constitucional – Órgão a que, entre nós, incumbe, especificamente, administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional (art. 30º da LOSJ) –, como asseverou no seu Acórdão n.º 391/2015, de 12/8, publicado no DR Série II de 16/11/2015 (36), ou no mais recente Acórdão n.º 521/2018 de 17-10-2018 (p. 321/2018) (37), com a seguinte síntese: «Não é julgada inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo penal, consagrados nos n.ºs 2 e 5 do artigo 32.º da Constituição, o artigo 125.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal».
Assim, em processo penal, é legítimo o recurso a presunções simples ou naturais, na medida em que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP), que é o que sucede com as presunções, que o art. 349.º do CC qualifica como as ilações que a lei ou o julgador retira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º do mesmo Código).
Efectivamente, atentando na motivação da decisão de facto, logo se constata que a Sra. Juíza não ficou em estado de dúvida: fica-se a conhecer, cristalinamente, o processo de formação da sua convicção, através do enunciado sobre o exame crítico da prova, com a justificação das razões pelas quais foram valorados e tidos em consideração o depoimento da testemunha A. R., em conjugação com os demais meios de prova produzidos, como acima se deixou explicito em detrimento da defesa apresentada pela arguida.
E, conforme já exposto, a este Tribunal também não restaram dúvidas sobre os factos dados como assentes, pelo que, também nós concluímos que foi acertada a avaliação feita em 1ª instância da prova produzida em audiência. Na verdade, todos os aduzidos elementos, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente, facultam as expostas ilações quanto à matéria em apreço, incompatíveis com o acolhimento do sentido por que pugnou o recorrente quanto aos pontos referidos no recurso. Assim, perante a prova produzida, não se detecta qualquer pontual e concreto erro de julgamento ou patente irrazoabilidade na convicção probatória formada pela Julgadora (com imediação (38)).
Por conseguinte, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não se vislumbrando a violação de qualquer norma ou princípio jurídico.
E não se suscitando dúvidas da prática de tais factos pela recorrente, esta, tendo-se constituído autora do crime de abuso de confiança que lhe foi assacado, como se demonstra na decisão recorrida, não pode obter a absolvição por ela almejada.

4. A medida da responsabilidade cível da recorrente.

Visando, em primeira linha, a sua absolvição, a recorrente também se insurgiu, subsidiariamente, contra a decisão recorrida, sustentando que não deveria ter sido condenada na indemnização correspondente ao valor total das quantias monetárias de que se apropriou (€ 66.390,26), acrescida de juros de mora desde a data da decisão até efectivo e integral pagamento, invocando ainda que tal condenação é ilegal pois a demandante cível age na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de L. R..
Por sua vez, a demandante cível, mostrando-se de igual forma insatisfeita com a decisão, pugnou pela revogação da sentença recorrida, no segmento em que condena apenas a arguida/demandada no pagamento de juros de mora, desde a data da prolação da decisão.
Vejamos.
O pedido de natureza cível nos autos formulado, fundamentado na alegada responsabilidade subjectiva da demandada, haverá que ser apreciado à luz do disposto na lei civil (art. 129º do C. Penal).
Dispõe o art. 483º do CC que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação” (nos termos dos arts. 562º e ss do mesmo código, ou seja, a “reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação). A obrigação de indemnizar, nesses termos, pressupõe: o dano, o facto causador do dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano, a ilicitude desse facto e o nexo de imputação do facto ao lesante (“dolo ou mera culpa”).
No caso, a recorrente apropriou-se ilegitimamente de quantias monetárias no valor total de € 66.390,26, através de levantamentos fraccionados, nas datas identificadas no ponto 8 dos factos provados, causando desta forma o correspondente prejuízo patrimonial à herança aberta por óbito de L. R.. Realmente, a apropriação pela arguida das quantias em causa integra a prática de crime de abuso de confiança p. e p. pelo art. 205º do C. Penal.
Como corolário do assim ajuizado, o apuramento feito sobre o valor integral da vantagem ilícita alcançada repercute-se no objecto da responsabilidade penal e, por isso, necessariamente, deve ser considerado também na medida da responsabilidade cível da demandada.
Quanto à objecção formulada pela arguida/recorrente, dir-se-á que a condenação contemplada na sentença recorrida tem como pressuposto o disposto no art. 2088º do CC, com a inerente restituição à posse da cabeça de casal de bens cuja administração lhe cabe e que abarcam os respectivos frutos civis, correspondentes aos rendimentos proporcionados pelas quantias depositadas pelo autor da herança até ao seu indevido levantamento por aquela, nos termos dos arts. 212º/2, 1271º e 2069º/d) do mesmo Código.
Ora, a demandante fundou o pedido de indemnização que deduziu contra a arguida na sua qualidade de cabeça de casal dessa herança e no acto ilícito e doloso por aquela praticado – com que preencheu o aludido tipo do crime – e pediu a reparação do dano por este causado, consistente no não recebimento pela sua titular (a herança indivisa) das quantias apropriadas, bem como os juros de mora calculados à taxa legal desde as respectivas apropriações até efectivo pagamento.
A simples mora no cumprimento da obrigação da reparação do dano de ‘capital’, gerado pela prática do mencionado crime, constitui a devedora na obrigação de reparar os danos causados à credora, a herança indivisa, cuja indemnização, como se sabe, corresponde aos juros de mora (cf. arts. 804º a 806º do CC).
E na obrigação pecuniária fundada em responsabilidade por facto ilícito essa indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora, ocorrendo esta desde a prática de tal facto se a obrigação não depender de qualquer liquidação, como no caso dos autos sucede porque estão em causa quantias certas e líquidas.
Em conclusão, sobre o montante da indemnização de € 66.390,26 acrescem juros de mora contados à taxa legal sobre cada uma de tais quantias e a partir de cada uma das datas das respectivas apropriações até efectivo e integral pagamento.
Procede, pois, a pretensão da assistente.
*
IV. Decisão:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela arguida I. R. e julgar procedente o recurso interposto pela demandante cível e, por consequência, em decidir:

a) condenar a arguida e demandada civil a pagar à herança aberta por óbito de L. R., representada pela respectiva cabeça de casal, a quantia de € 66.390,26, acrescida dos juros de mora contados à taxa legal sobre cada um dos montantes e a partir de cada uma das datas enunciadas no ponto 8 dos factos assentes até efectivo e integral pagamento;
b) manter no demais a sentença recorrida;
c) condenar a arguida e demandada civil nas custas da parte penal, fixando-se a respectiva taxa de justiça em quatro UC´s, e da parte cível.
Guimarães, 12/10/2020

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado

1 Corrigidas dos lapsos de escrita.
2 Como sucede, nomeadamente, nos casos previstos nos art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do C. Processo Penal, e resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I -A, de 28-12-1995
3 É fruto de lapso manifesto a alusão ao ano de 2005 na decisão recorrida.
4 Direito Processual Penal Português, 2º edição, p. 128.
5 Obra citada p. 132.
6 Segundo o Ac. do STJ de 17-09-2014 (1015/07.3PULSB.L4.S1 - Armindo Monteiro), a «A fundamentação das sentenças judiciais é a forma que o legislador se serve para a sua explicação aos sujeitos processuais e aos cidadãos: através dela o julgador presta conta a ambos, proclama as razões de facto e de direito, por que optou por certa solução, ao fixar os factos e ao assentar neles o direito».
7 O art. 97º, nº 5, do CPPenal, consagra o princípio geral sobre a fundamentação dos actos decisórios, estatuindo que estes são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. Este princípio geral é reiterado relativamente a alguns particulares e específicos actos que afectam ou podem afectar os direitos dos arguidos.
8 Perfecto Ibañez, no estudo “Sobre a formação racional da convicção judicial”, publicado na Revista do CEJ, 1.º semestre, 2008, p. 167, citado no Ac. do STJ de 8-01-2014 (7/10.0TELSB.L1.S1 - Armindo Monteiro), considera que «motivar uma decisão é justificar a decisão por que se optou para que possa ser controlada tanto pelos seus destinatários directos como pelos demais cidadãos, apresentar de forma inteligível, lógica, coerente e racional, o “iter“ seguido no tratamento valorativo da prova».
9 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol III, 2ª edição, revista e actualizada, pag. 294.
10 Ver entre outros, Acórdão da RE de 24/01/2017, proc. 218/12.3TAFAR.E1, relatado pelo Desembargador João Amaro.
11 Cfr. acórdãos do STJ de 11-07-2007 (07P1416) e 29-03-2006 (06P478), ambos relatados por Armindo Monteiro) e de 16-03-2005 (05P662) relatado por Henriques Gaspar.
12 Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, 229/30.
13 Acórdão TC n.º 198/2004.
14 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e, portanto, arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
15 Sumário do Ac. do STJ de 3-10-2007 (07P1779 - Henriques Gaspar).
16 Sumário do já citado Ac. do STJ de 8-01-2014, em cujo texto se acrescenta: «(…) a exigência de um exame crítico, não definido por lei, das provas que serviram para formar a convicção probatória, de valoração livre, porém racional, à margem do capricho do julgador, mas objectivada e apoiada num processo lógico que inteligência o material recolhido, atentando nas regras da lógica, da experiência comum, ou seja daquilo que comummente sucede, e que, como ser socialmente integrado, aquele deve ter presente, sopesando a valia das provas e opondo – lhe o seu desvalor, face ao que fará a opção final, (…), para não se quedar a um estádio puramente subjectivo, pessoal, emocional, imotivável, tutelado pelo arbítrio, mas antes evidencie o processo lógico-racional proporcionando fácil compreensão aos destinatários directos e à comunidade de cidadãos, que espera dos tribunais decisões credíveis, desde que justas, concorrendo ainda para a celeridade processual na decisão, desse modo fornecida aos tribunais de recurso. E nesse sentido se pronunciam, além do mais, Rosa Vieira Neves, in Livre Apreciação da Prova e Obrigação de Fundamentação, Coimbra Ed., 2011, 151 e segs, elucidativos, entre tantos, os Acs deste STJ, 23.2.2011 e de 7.4.2010, P.º n.º 3621.7.6TBLRA. O exame crítico funciona como limite ao princípio da livre convicção probatória que emerge da oralidade e acautela a discricionariedade do julgador, legitimando o poder judicial, acautelando os interesses a prosseguir em processo penal, tão indispensável como ar que se respira, na expressão do Prof. Alberto dos Reis; IV, 566 e segs, na esteira de Chiovenda.».
17 Publicado no DR. 2ª Série de 13 de Novembro de 1998.
18 Neste sentido, Ac. da R.L. de 18/01/2011, proc. 1670/07.4TAFUN-A.L1-5, Ac. da R.E. de 06/11/2012, proc. 220/09.2GAGLG.E1, Ac. da R.G. de 08/02/2016, proc. 285/13.2TAMDL.G1.
19 A recorrente impugnava igualmente o ponto 1, todavia, em face do já decidido, mostra-se prejudicado o seu conhecimento nesta sede.
20 O legislador pretendeu um grau de recurso que atentasse e procedesse – dentro dos limites que uma gravação, despida dos factores possibilitados pela imediação consentisse – uma verdadeira e conscienciosa reapreciação da decisão de facto.
21 Como se expendeu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/2012, relatado pelo conselheiro Cura Mariano «…o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, face às provas produzidas, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando conforme já se decidiu no Acórdão n.º 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu: “Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…».
22 Processos nºs 06P3518 e 08P2894, respectivamente, ambos relatados pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
23 É, aliás, no cumprimento deste último requisito que, segundo parece ser consensual, se deve estabelecer alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão, uma vez que se considere que a insuficiência de tal indicação não dificulta de forma substancial e relevante o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal.
24 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ (S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e, portanto, arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
25 Curso de Processo Penal, p. 82.
26 La Prueba em Processo Penal, p. 59.
27 Cfr. Mittermaier, Tratado de la Prueba em Matéria Criminal.
28 Ainda sobre o recurso a tal espécie de prova, o STJ em Ac. de 8/11/95 (BMJ 451/86) refere que «Um juízo de acertamento da matéria de facto pertinente para a decisão releva de um conjunto de meios de prova, que pode inclusivamente ser indiciária, contanto que os indícios sejam graves, precisos e concordantes» e acrescenta que as regras da experiência a que alude o art. 127º, têm um importante papel na convicção do Tribunal. E o Ac. da RC de 6/3/96, in CJ 2º/44, que: «A prova pode ser directa ou indiciária; A prova indiciária assenta em dois elementos: a) - o indício que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele estará relacionado; b) - a existência de presunção que é a inferência que, obtida do indício, permite demonstrar um facto distinto; Nada impede que, devidamente valorada a prova indiciária, a mesma por si, na conjugação dos indícios permita fundamentar uma condenação» – doutrina reafirmada no Ac. do mesmo Tribunal de 9/2/2000, também in CJ, 1º/51. Também sobre prova directa, prova indiciária e regras da experiência, os Acs. Do STJ de 25/2/99 (BMJ 484/288) e de 3/3/99 (BMJ 485/248).
29 Como dizia Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 191.
30 Rev. Min. Pub. 19º, 40.
31 Com efeito, como ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. I, Verbo, 1993, p. 41, «a dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado». Neste sentido se pronuncia, também, a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o Ac. da RP, de 21/04/2004, in www.dgsi.pt, no qual se refere: «O princípio “in dubio pro reo” é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Ou seja, e dito de outro modo, quando o juiz não consiga ultrapassar a dúvida razoável de modo a considerar o facto como provado, com a certeza que se exige para tal, e porque não pode haver um “non liquet”, tem de valorar o facto a favor do arguido. a favor do arguido é consequente do princípio da presunção de inocência».
32 Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. 2º, 1986, Editora Danúbio, p. 259.
33 Cfr. Maia Gonçalves, in “Código Penal Português”, 15ª ed,, em anotação ao art. 14º.
34 Designadamente no acórdão n.º 198/2004, de 24-03-2004, in DR, II Série, n.º 129, de 02-06-2004.
35 Proc. nº 86/08.0GBPRD.P1.S1.
36 Tendo concluído por não julgar inconstitucional a «norma constante do artigo 127.º, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal».
37 Este aresto, contendo profusas referências à doutrina e à precedente jurisprudência sobre a temática, também dá conta de que o «Tribunal Constitucional já se debruçou sobre problemas de constitucionalidade de normas que estabelecem presunções legais em matéria penal, tendo concluído pela sua admissibilidade, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustenta e que baste para tal a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário».
38 Devendo anotar-se que a falta dessa imediação, sempre impõe a este Tribunal de recurso alguma cautela na afirmação de tal irrazoabilidade. Como se sabe, apesar de as palavras serem importantes, só uma percentagem da nossa comunicação é feita verbalmente. Ora o simples registo audiofónico da prova não permite interpretar, na sua plenitude, as emoções reflectidas nos sinais não-verbais (movimentos corporais ou expressões faciais), designadamente os involuntários e inconscientes, dos depoentes e demais intervenientes. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Princípios Gerais do Processo Penal”, p. 160, só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por um lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada deverá ter como pressuposto a existência de elemento que pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo princípio da imediação.