Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3835/22.0T8VNF.G1
Relator: MARIA EUGÉNIA PEDRO
Descritores: INSOLVÊNCIA PESSOA SINGULAR
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
REQUISITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. O regime legal da exoneração do passivo restante é enformado por dois interesses fundamentais e antagónicos entre si: por um lado, o interesse dos credores, que pretendem reaver os seus créditos; por outro lado, o interesse do insolvente em libertar-se do passivo que não seja integralmente liquidado no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste.
II. Procurando conciliar os apontados interesses antagónicos, o art. 238º do CIRE estabelece condições que vedam logo à partida o acesso do insolvente a tal benefício quando a sua conduta anterior não se mostre pautada pela integridade, lisura e boa-fé.
III. Na economia deste normativo as causas aí taxativamente enumeradas como fundamentos de indeferimento liminar do pedido assumem natureza de factos impeditivos do direito à exoneração do passivo restante, na justa medida em que definem, pela negativa, os requisitos de cuja verificação depende essa exoneração.
IV. Daí que, ao requerente que pretenda aceder ao procedimento bastará alegar a qualidade de insolvente e fazer constar do requerimento a declaração expressa do n.º 3 do artigo 236º do CIRE, cabendo aos credores e ao administrador da insolvência alegar e provar os factos e circunstâncias mencionadas nas várias alíneas do nº 1 do artigo 238º, enquanto factos impeditivos do direito.
V. Estando em causa uma pessoa singular não titular de uma empresa - logo não sujeita ao dever de apreciação à insolvência (artigo 18º, nº 2 do CIRE) -, o pedido de exoneração do passivo restante só pode ser objecto de indeferimento liminar com fundamento no artigo 238º, nº 1, alínea d) do CIRE, se estiverem verificados, cumulativamente, os seguintes requisitos: (i) ter o devedor deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência; (ii) ter causado, com o atraso, prejuízo aos credores; (iii) sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
VI. O “prejuízo” que a norma tem em vista na sua previsão é um dano distinto ou acrescido, que resulte precisamente da não apresentação à insolvência e se some aos danos que independentemente desta sempre ocorreriam. Um dano que sobrevenha de um comportamento censurável do devedor, traduzindo um desprezo pela posição dos credores e que dificulte mais a posição destes no que tange à obtenção do pagamento.
VII. Ao utilizar o conceito de “perspectiva séria” o legislador aponta para um juízo de verosimilhança sobre a melhoria económica da situação do devedor, alicerçada naturalmente em indícios consistentes, sendo que a inexistência de qualquer perspectiva desse tipo deve ter-se por verificada, designadamente, quando o rendimento anual do insolvente ronda os € 20.000,00 e as dívidas acumuladas ultrapassam € 1.000.000,00.
VIII. Preenche a previsão da alínea e) do artigo 238º do CIRE a conduta do devedor que cerca de um antes da declaração de insolvência e já em situação de insolvência, procede à doação da sua quota-parte num imóvel a pessoa com ele especialmente relacionada.
Decisão Texto Integral:
 Acordam os Juízes da 1ª Seccão Cível  do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

Em 17.6.2022 a  O..., S.A. requereu a insolvência de AA, alegando em suma, que  a requerida lhe era devedora da quantia de € 579.471,35,  dívida proveniente de um contrato de mútuo com hipoteca.
A requerida citada deduziu oposição,  alegando que  não se encontrava impossibilitada de satisfazer pontualmente   a generalidade  das suas obrigações, e que o valor de um dos imóveis penhorados, avaliado em mais de € 600.000,00 e  o saldo de uma conta bancária de que era titular, no valor de € 150.000,00  eram mais do que suficientes para satisfazer o crédito do requerente e da outra credora.
 Após julgamento, foi declarada a insolvência da requerida por sentença  proferida em 9.8.2022,   transitada em julgado,  cuja cópia se mostra inserta de fls 2 a 9 destes autos,  dando-se aqui o respectivo teor por integralmente reproduzido.
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Em 6 de setembro de 2022, a insolvente requereu a concessão da exoneração do passivo restante,  declarando que  preenche os requisitos  para  tal e  se dispõe a observar  as condições legais exigidas.
Mais alegou, em síntese, que é casada e tem uma filha de 18 anos a seu cargo, a qual presentemente frequenta o ensino superior;  é advogada  em prática individual e o rendimento anual  pelo exercício dessa actividade profissional, que é o único que aufere, ronda os €19.115,15 ( cfr. declaração IRS de 2021); o marido é trabalhador dependente e aufere um rendimento anual de € 13.256,33;  padece de uma doença inflamatória  crónica, a Doença de Crohn, e tem despesas  médicas e   medicamentosas  relacionadas com tal doença e outras patologias associadas  no valor médio mensal de € 636,66; as despesas com a filha  rondam os €300,00 mensais;   suporta  uma  renda mensal pelo escritório no valor de € 650,00 e  tem outra  despesas fixas relacionadas com o escritório,  no valor mensal de € 226,02; paga  € 35,00  de quota  mensal  para a Ordem dos Advogados e  € 255,18 de contribuição para a Caixa de Previdência  dos Advogados e Solicitadores, bem como  € 16,86   mensais pelo seguro de acidentes de trabalho. 
Terminou requerendo que seja proferido o despacho inicial de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante e  que ao  rendimento  disponível  sejam deduzidas as despesas mensais  fixas elencadas que   no  total  ascendem  a € 2.000,00 mensais.
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Em  23. 9. 2022, o Sr. administrador  da insolvência apresentou o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, pronunciando-se pelo indeferimento do  pedido de exoneração do passivo  restante,  nos termos das alíneas d) e e) do art. 238ºdo CIRE, ao qual a insolvente respondeu em 6.10.2022.
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Os créditos reclamados, reconhecidos e graduados no respectivo apenso ascendem a  € 1.281.771,41.
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Em 14.11.2022,  foi proferido o despacho inicial  que indeferiu  liminarmente tal pedido, com fundamento na verificação  de factos integradores das alíneas d) e e) do art. 238º do CIRE.
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A insolvente, não se conformando com o decidido, interpôs o presente recurso, terminado as suas  alegações, com as seguintes conclusões:

A) A Recorrente não se conformando com a decisão de indeferimento da exoneração do passivo restante proferida no dia 14 denovembrode2022 veio interpor  presente recurso.
B) O presente recurso tem como objeto a impugnação da matéria de facto e a errada aplicação e interpretação do artigo 238.º do CIRE.
C) Quanto à impugnação da matéria de facto, a Recorrente considera que a mesma se encontra manifestamente incompleta, deixando se fora factos relevantes para a decisão e imprecisa.
D) Em primeiro lugar, a factualidade julgada como provada no item 7.º dos factos provados não corresponde à realidade e é manifestamente incompleta.
E) Como consta do relatório elaborado pelo Exmo. Administrador de Insolvência, designadamente pela escritura pública de doação, o bem doado é uma fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente à garagem n.º 6, 3.ª a contar do Norte, parte integrante do prédio urbano sito na Avenida ..., freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...92.º, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o registo número 14 de ..., com o valor patrimonial de € 4.415,25 (quatro mil, quatrocentos e quinze euros e vinte e cinco cêntimos).
F) Ora, ao contrário do que é referido no item 7.º dos factos provados, não foi alvo de doação o prédio urbano, mas sim uma fração autónoma, mais especificamente uma garagem.
G) Sendo que, salvo melhor opinião, o valor patrimonial do bem alvo de doação é um facto extremamente relevante para determinar o grau do prejuízo dos credores.
H) Assim, o item 7.º dos Factos Provados deve ser alterado, devendo ter a seguinte formulação: “Em 2015 o único activo desonerado que ainda integrava a esfera patrimonial da devedora respeitava ao imóvel que em 2021 é doado à sua filha (fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente à garagem n.º 6, 3.ª a contar do Norte, do prédio urbano, sito na Avenida ..., freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...92, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...4 de ..., com o valor patrimonial de € 4.415,25 (quatro mil, quatrocentos e quinze euros e vinte e cinco cêntimos)”.
I) Em segundo lugar, salvo melhor opinião, a decisão recorrida omite dos factos provados factualidade relevante para decisão em apreço.
J) Desde logo, não mencionado que o Administrador de Insolvência comunicou, à insolvente e à sua filha, a resolução em benefício da massa insolvente da doação mencionada no item 7.º dos Factos Provados.
K) Mais ainda, por requerimento da Insolvente, datado de 06 de outubro de 2022, foi apresentada comunicação da filha da Insolvente ao Administrador de Insolvência manifestando a não oposição da resolução em benefício da massa insolvente da doação em apreço.
L) A factualidade acima descrita é relevante para determinar a existência de prejuízo sério para os credores, nos termos do artigo 238.º do CIRE.
M) Desta forma, salvo melhor opinião, devem ser acrescentados os seguintes factos aos factos provados:
9. O Exmo. Administrador de Insolvência comunicou aos presentes autos que irá proceder à resolução em benefício da massa insolvente, nos termos do artigo 120.º do CIRE [Relatório do Administrador de Insolvência].
10. Por requerimento datado de 06 de outubro de 2022, a insolvente juntou aos presentes autos declaração assinada pela sua filha declarando a não oposição da resolução do benefício da massa insolvente [Requerimento da Insolvência datado de 06 de outubro de 2022].
N) Constam do artigo 237.º do CIRE, os pressupostos da efetiva concessão da exoneração do passivo restante.
O) Sem esquecer que o instituto da “exoneração do passivo restante” significa a extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 3 anos posteriores ao seu encerramento.
P) Diz-se a tal propósito, no preâmbulo do CIRE, que “(…) o código conjuga de forma inovadora o principio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então,
que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica (…)”.
Q) Tem, pois, o instituto em causa como escopo a extinção das dívidas e a libertação do devedor e tem como ratio a ideia de não inibir todos aqueles – honestos, de boa fé e a quem as coisas correram mal – “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores (Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133).
R) É, assim, uma medida que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem; mas antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar; ou, ao menos, é uma medida que não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.
S) Ou seja, a exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade” (Assunção Cristas, Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264).
T) Por outro lado, constam do disposto no artigo 238.º, n.º 1, do CIRE os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
U) Como referem Carvalho Fernandes e Luís Labareda, as suas alíneas b) a g) “definem, embora pela negativa, requisitos de cuja verificação dependa a exoneração, podendo reconduzir-se a três grupos diferentes. Respeita um deles a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para  ela contribuíram dealgum modo ou a agravaram [als. b), d) e e)]; outro compreende situações ligadas ao passado do insolvente [als. c) ef)]; finalmente a al. g) configura condutas adotadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência”.
V) Ora, dispõe-se no artigo 238.º, n.º 1, do CIRE (no que ao presente recurso interessa) o seguinte:
1 O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
(…)
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica”.
W) Assim, resulta desta alínea d) que a mesma pressupõe, para a verificação da situação nela prevista, que o devedor se tenha abstido do dever de apresentação à insolvência ou a isso não estando obrigado, como se verifica in casu, não se tenha apresentado à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; com prejuízo para os credores e; bem sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
X) Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra, datado de 20 de março de 2018, processo n.º 4694/15.4T8VIS-D.C1, dada a omissão do CIRE na indicação do critério da apreciação da culpa, deverá aplicar-se, analogicamente, o critério do artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, segundoo qual a culpaéapreciada pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso.
Y) Citando Assunção Cristas (Exoneração do passivo restante, Themis, Edição Especial, 2005, pág.171) “a culpa grave corresponde à conduta do agente que seria suscetível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, atuando a maioria das pessoas de modo diverso”.
Z) Citando, ainda, no mesmo sentido, Inocêncio Galvão Teles, in Direito das Obrigações, 7.ª Edição, Reimpressão, Wolters Kluwer e Coimbra Editora, pág. 354, que ali refere que “a culpa grave apresenta-se como uma negligencia grosseira”.
AA) Como resulta da factualidade provada, designadamente do seu item 2.º e 3.º, a devedora começou a incumprir as suas obrigações em 2015.
BB) Assim, tal como referido na decisão recorrida, pode considerar-se que a devedora estava em situação de insolvência, pelo menos em 2015.
CC) No entanto, como o retardamento na apresentação à insolvência não é, ipso facto, causa deprejuízos para os credores –cf. Carvalho Fernandes eJoão Labareda e Catarina Serra – antes se exigindo um nexo de causalidade entre a não apresentação atempada à insolvência e o prejuízo para os credores e em que o conhecimento ou desconhecimento com culpa grave por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica deverá ser visto, por sua vez, como a circunstância que faz como os outros dois factos assumam relevância qualificada, importa aferir a verificação cumulativa destes três fundamentos/requisitos.
DD) A nível jurisprudencial, entre outros, no sentido de que os fundamentos constantes da alínea d) do n.º 1, do artigo 238.º do CIRE são autónomos e por isso, cumulativos, podem ver-se os Acórdãos do STJ, de 24 de janeiro de 2012, processo n.º 152/10.1TBBRG-E.G1.S.1 e de 14 de fevereiro de 2013, processo n.º 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1.
EE) Ora, assente que a devedora incumpriu o seu dever de se apresentar à insolvência, em 2010, está verificado o 1.º dos assinalados requisitos.
FF) Consideremos, assim, o requisito da existência de prejuízo para os credores.
GG) Como se escreve no Acórdão do STJ, de 24 de janeiro de 2012, acima já referido, a exoneração do passivo restante “ deve ser concedida a quem a merecer; a lei exige uma atuação anterior pautada por boa conduta do insolvente, visando evitar queo prejuízo quejá resulta da insolvência não seja incrementado por atuação culposa do devedor que sabendo-se insolvente, e, não obstante, pretende exonerar-se do passivo residual requerendo a exoneração”.
HH) Ali se acrescentando: “O conceito de prejuízo da alínea d) do artigo 238.º, n.º 1, do CIRE tem assim e de harmonia com a ratio legis de ser um prejuízo sensível que, se verificando em função da apresentação à insolvência fora do prazo, evidencie que o devedor não merece o benefício da segunda oportunidade, devendo arcar com as consequências da lei sem o benefício que a exoneração final é.
(…)
O prejuízo, entendemos, tem de ser tal que constitua patente agravamento da situação dos credores que assim ficariam mais onerados pela atitude culposa do insolvente”.
II) Ou, como se refere no Acórdão do STJ acima citado, de 14 de fevereiro de 2013: “o prejuízo a que se refere o artigo 238.º, n.º 1, alínea d), do CIRE, deve ser irreversível e grave, como aquele que resulta da contração de dívidas, estando o devedor em estado de insolvência (…) constituindo um patente agravamento da situação dos credores, de modo a onerá-los pela atitude culposa do devedor insolvente, evidenciando que este não merece o benefício da segunda oportunidade («fresh start») pressuposta pela nova conceção ideológica do CIRE”.
JJ) Como resulta da factualidade provada – e só esta releva – como resulta do item 7.º, a devedora doou o direito de ½ sobre a fração autónoma designada pelas letras ... a favor de pessoa consigo especialmente relacionada, nomeadamente a sua única filha.
KK) Como acima foi mencionado, o valor patrimonial da fração autónoma é de €4.415,25 (quatro mil, quatrocentos e quinze euros e vinte e cinco cêntimos), ou seja, o direito da insolvente é de € 2.207,63 (dois mil, duzentos e sete euros e sessenta e três cêntimos).
LL) Mais ainda, a referida doação foi alvo de resolução e, como tal, o direito de ½ sobre a fração autónoma designada pelas letras ... regressará à massa insolvente
MM) Desta forma, salvo melhor opinião, não existiu como tal comportamento qualquer prejuízo para os credores.
NN) Em primeiro lugar, o eventual prejuízo do valor de € 2.207,63 (dois mil, duzentos e sete euros e sessenta e três cêntimos), num passivo, que como é referido na decisão recorrida, é superior a um milhão de euros, não pode ser considerado um prejuízo sério e grave.
OO) Mais ainda, o direito acima identificado era, na falta de melhor expressão, insignificante no seio do passivo da devedora.
PP) Tal fica demonstrado pelo facto do referido direito nunca ter sido alvo de penhora nos processos executivos mencionados na decisão recorrida.
QQ) Desta forma, o prejuízo que resulta da doação mencionada na decisão recorrida tem uma relevância diminuta face ao valor global do passivo.
RR) Por outro lado, é inegável que o prejuízo não é irreversível.
SS) A doação em apreço foi alvo de resolução em benefício da massa insolvente.
T) Sendo que a filha da insolvente comunicou aos autos e ao Administrador de Insolvência que não se oponha à resolução da mencionada doação.
UU) Desta forma, o direito de ½ sobre a fração autónoma designada pelas letras ... regressará à esfera da massa insolvente.
VV) Como tal, pelo instrumento da resolução da massa insolvente, o alegado prejuízo é revertido.
WW) Como acima se referiu, o prejuízo a considerar deve ser “irreversível e grave”, daí devendo resultar um patente agravamento da situação dos credores.
XX) Ora, salvo o devido respeito pelo expendido na decisão recorrida, o ato em apreço não é de tal modo grave, nem irreversível, que tenha acarretado um agravamento da situação dos credores.
Y) Este ato da devedora trata-se de um ato isolado, pelo que, apenas com base nele indeferir-se liminarmente o pedido da exoneração do passivo restante, afigura-se-nos desproporcionado e desadequado aos fins tidos em vista pelo legislador, em função do que não pode subsistir a decisão recorrida.
ZZ) Por sua vez, quanto ao requisito da culpa grave deve-se referir o seguinte.
AAA) Pela análise dos presentes autos, depreende-se que a Insolvente tem apenas dois credores, e que os créditos têm natureza hipotecária.
BBB) Pela referida natureza, os créditos hipotecários são concedidos tendo por garantia do seu cumprimento um determinado bem imóvel.
CCC) A Insolvente sempre considerou que o bem imóvel que garantia o cumprimento era suficiente para liquidar o valor em dívida.
DDD) A Recorrente juntou aos presentes autos, avaliação imobiliária dobem imóvel apreendido pela massa insolvente, que determinou que o bem teria o valor de cerca de 1 milhão de euros.
EEE) Mais ainda, os créditos em apreço têm como devedores um número significativo de pessoas.
FFF) A referida factualidade justifica a razão pela qual a Recorrente não se apresentou à insolvência.
GGG) A Insolvente tinha razões para acreditar que com a venda judicial do bem penhorado, o valor em dívida seria suficientemente baixo para que os devedores conseguissem liquidar o valor em dívida.
HHH) A Recorrente desconhece a razão pela qual o bem imóvel não foi vendido.
III) Sendo que, a existência de vários devedores criou a justa convicção de que era possível cumprir a dívida em apreço.
JJJ) Por fim, tal convicção não é de todo absurda quando consideramos o valor patrimonial do bem penhorado e número de devedores.
KKK) Acresce que, a fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente à garagem n.º 6, 3.ª a contar do Norte, parte integrante do prédio urbano sito na Avenida ..., freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o registo número 14 de ..., com o valor patrimonial de € 4.415,25 (quatro mil, quatrocentos e quinze euros e vinte e cinco cêntimos), nunca foi penhorada pelos credores da Recorrente.
LLL) Provavelmente porque os mencionados credores não consideraram queo seria necessária a referida fração autónoma para o cumprimento do passivo em apreço.
MMM) Desta forma, o juízo efetuado pela Recorrente de não se apresentar à insolvência por considerar que o bem penhorado era suficiente para permitir o cumprimento das suas obrigações não supera o critério da culpa grave ou negligencia grosseira, sendo um juízo que qualquer pessoa poderia ter efetuado.
NNN) Desta forma, e tendo em conta a errada aplicação e interpretação do artigo 238.º do CIRE, deve a decisão recorrida ser alterada, sendo proferido despacho inicial de concessão de exoneração do passivo
Nestes termos e nos demais de Direito que Vossas Exas. mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência:
a) Deveo item 7.º dos Factos Provados tera seguinteredação: “Em 2015 o único activo desonerado que ainda integrava a esfera patrimonial da devedora respeitava ao imóvel que em 2021 é doado à sua filha (fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente à garagem n.º 6, 3.ª a contar
do Norte, do prédio urbano, sito na Avenida ..., freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...92, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...4 de ..., com o valor patrimonial de € 4.415,25 (quatro mil, quatrocentos e quinze euros e vinte e cinco cêntimos)”;

b) Devem ser acrescentados os seguintes itens aos Factos Provados: “9 – O Exmo. Administrador de Insolvência comunicou aos presentes autos que irá proceder à resolução em benefício da massa insolvente, nos termos do artigo 120.º do CIRE” e “10 - Por requerimento datado de 06 de outubro de 2022, a insolvente juntou aos presentes autos declaração assinada pela sua filha declarando a não oposição da resolução do benefício da massa insolvente [Requerimento da Insolvência datado de 06 de outubro de 2022]”;
c) Deve ser aplicado e interpretado o artigo 238.º do CIRE, no sentido que a factualidade julgada como provada não constituem prejuízo para os credores, devendo ser proferido despacho inicial de concessão de exoneração do passivo restante.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo, o que foi confirmado neste Tribunal.
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Foram colhidos os vistos legais.
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Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.

 II. Delimitação do objecto do  recurso

  O objeto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação do  recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a  não ser que as mesmas  sejam de conhecimento oficioso- cfr. arts 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 e 2 do CPCivil.

Assim,  no presente caso as questões a  decidir no presente  são:

-   Apurar se a matéria de facto deve ser alterada nos termos   pretendidos  pela recorrente;
-   Aferir se o Tribunal a quo fez uma correcta  interpretação e aplicação do art.238º, nº1,  alíneas d) e e) do CIRE,   ou seja, se   o  pedido de exoneração do passivo restante da insolvente  deve ou  não  ser liminarmente  indeferido, com fundamento nestes normativos.
 
III. Fundamentação

A-Fundamentos de facto

O Tribunal a quo considerou  provados os seguintes factos:

1. A   sociedade V. C... e A. R..., Lda., constituída em 10 de Dezembro de 1985, foi declarada a falência desta sociedade em  3 de Novembro de 2006 
2. Face às garantias prestadas e à posição que ocupou nesta sociedade, responde a devedora por um passivo reclamado superior a um milhão de euros; a) Junto do “Banco 1... a devedora avalizou a livrança nº ...85, vencida em Novembro de 2006, pelo valor de Euros 311.748,69, encontrando‐se actualmente em dívida o total de Euros 452.696,78; ); b) Em Dezembro de 2003 a devedora (conjuntamente com BB, CC, DD) outorgou com o “Banco 2... um contrato de empréstimo pelo valor de Euros 700.000,00 para liquidar responsabilidades da sociedade “V. C... e A. R..., Lda.”, porém, este contrato deixou de ser cumprido em Março de 2012, pelo que actualmente encontra‐se em dívida o total de Euros 579.353,40.
3. Ainda junto do “Banco 1... (conjuntamente com BB, EE, CC, DD) a devedora subscreveu a livrança nº ...45, vencida em Março de 2007, pelo valor de Euros 148.865,72, encontrando‐se actualmente em dívida o total de Euros 244.962,42;  
4. A “O... S. A.” vem ainda reclamar o valor de Euros 4.758,81 referente ao saldo devedor acumulado em conta de depósito à ordem.
5. Face ao passivo acumulado junto do “Banco 1..., S.A.”, foi a devedora demandada no âmbito do processo de execução nº 611/08.... do Tribunal Judicial da Comarca ... ‐ Juízo Execução ... ‐ Juiz .... A devedora foi citada deste processo de execução em 17 de Março de 2008; no âmbito deste processo foram penhorados os seguintes bens pertencentes à devedora: i) Direito de ½ sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...18 e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...18º da freguesia ..., concelho ...; ii) Direito de ½ sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...01 e omisso na matriz; iii) Crédito fiscal referente ao reembolso de IRS do ano de 2017 no valor de Euros 1.846,87; iv) Crédito fiscal referente ao reembolso de IRS do ano de 2018 no valor de Euros 4.650,11; v) Crédito fiscal referente ao reembolso de IRS do ano de 2019 no valor de Euros 4.387,16; vi) Crédito fiscal referente ao reembolso de IRS do ano de 2020 no valor de Euros 1.602,06;
6. Face ao passivo acumulado junto do “Banco 2..., S.A.”, foi a devedora demandada no âmbito do processo de execução nº 2685/13.... do Tribunal Judicial da Comarca ... ‐ Juízo Execução ... ‐ Juiz ...: a. A devedora foi citada deste processo de execução de editalmente, por edital afixado em 24 de Novembro de 2015; b. No âmbito deste processo foi dada ordem de penhora sobre o depósito a prazo no Banco 1..., S.A. identificado com o nº ...01, no valor de Euros 155.874,34; c. Porém, ao que tudo indica, parece que este valor não chegou a ser efectivamente penhorado à ordem deste processo por já existir ordem de penhora anterior emitida no âmbito do processo de execução nº 1846/03.... do ... Juízo Cível do Tribunal Judicial ....
7. Em 2015 o único activo desonerado que ainda integrava a esfera patrimonial da devedora respeitava ao imóvel que em 2021 é doado à sua filha (prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...02 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...92º da freguesia e concelho ...);
8. Em 2015 todos os demais activos encontravam‐se já onerados com hipotecas.
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- Da impugnação da  matéria de facto

A recorrente sustenta que a matéria de facto dada como provada  na decisão recorrida se mostra  incompleta,  pretendendo que  :

- seja  completado  o nº7 dos factos provados, com a descrição  integral do imóvel doado à sua filha.
- seja aditado  um novo facto que é relevante para a decisão da  causa,  onde conste que   em 6.10.2022  juntou aos autos uma declaração assinada pela filha, na qual esta manifesta a sua não oposição à resolução  da doação em benefício da massa insolvente que lhe foi comunicada  pelo Sr. administrador  da insolvência por carta de  27.9.2022.
A  impugnação cumpriu  as exigências  legais fixadas no art. 640º do C.P.Civil.
Tratando-se de factos que constam de documentos juntos aos autos e podem eventualmente  ter  relevância para a decisão,  defere-se a requerida alteração em conformidade com o teor dos respectivos documentos.

Assim,  o  nº7  dos factos  provados passa a ter a seguinte redacção:
7. Em 2015 o único activo desonerado que ainda integrava a esfera patrimonial da devedora respeitava  a metade  indivisa   de  uma fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente à garagem n.º 6, 3.ª a contar do Norte, do prédio urbano, sito na Avenida ..., freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...92, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...4 de ....
E aditam-se os  seguintes factos  provados :
9. Por  escritura pública  realizada em 22 de Julho de 2021, a devedora, por si e em representação da  outra comproprietária  CC, doou à sua filha  FF, menor, com dezassete anos de idade,  a  fracção autónoma identificada  em 7. ,  com  o valor patrimonial de € 4.415,25 (quatro mil, quatrocentos e quinze euros e vinte e cinco cêntimos).
10.  Em 6.10.2022, com a resposta ao relatório do administrador da insolvência,  apresentado nos termos  do art. 55º do CIRE,   no qual este informou que iria proceder   à resolução em benefício da massa insolvente da doação referida em 9. , a insolvente  juntou   uma declaração  subscrita pela filha FF, inserta a fls  58 deste apenso, na qual  esta,  face à carta  recebida   do administrador da insolvência datada de 27.9.2022 a  comunicar   aquela   resolução, declara que nada tem a opor à mesma.
Destarte, os factos a considerar na decisão do recurso são os dados como provados  pelo  Tribunal   a  quo   com  estas  alterações.
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B-Fundamentos de direito
      
Começamos por se referir, como nota prévia, que a recorrente não cumpriu  o disposto no art. 639º, nº1 do CP.Civil,  que manda concluir a alegação de forma sintética, com a indicação dos fundamentos por que pede a alteração  ou a anulação da decisão, pois as extensas e prolixas conclusões são praticamente uma reprodução  do corpo das  alegações de recurso.
Porém,  atenta a natureza urgente do processo  e porque   apesar de tudo é possível identificar as  questões a decidir, não se determinou  a respectiva  correcção, nos termos  do nº 3 do  mesmo artigo.
Posto isto, vejamos,  se  face  à factualidade apurada, a  pretensão da recorrente se mostra fundada.
Analisando as  alegações,   conclui-se que  a recorrente  reconhece que não cumpriu o dever de se apresentar  à insolvência, no entanto, defende, por um lado, que não o fez  porque acreditava que  os credores  obteriam o pagamento  dos seus créditos  através da  venda do  prédio urbano penhorado,  cujo valor de acordo com  a avaliação  que  juntou  no processo de insolvência de cerca de € 1.000.000,00,  sendo o restante pago pelos demais executados  e, por outro lado, que a doação  do seu direito sobre a   referida  fracção autónoma   à  filha  em  22.7.2021, não acarretou prejuízo para os credores,  dado o seu reduzido valor e  a não  oposição da  donatária  à resolução  operada  pelo administrador da insolvência, não se  verificando  assim os requisitos legais da  alínea d) do nº1 art. 238º do CIRE.

Foi a seguinte a fundamentação da decisão recorrida:

“Conforme se constata dos autos, não foi a insolvente quem se apresentou à insolvência, tendo a mesma sido requerida pela credora O..., SA. Apenas apos a prolação da sentença declaratória de insolvência, foi apresentando pedido de exoneração do passivo restante, em requerimento autónomo.

O indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante por violação do dever de apresentação à insolvência passará pela verificação cumulativa de três pressupostos:

A. Incumprimento do dever de apresentação à insolvência ou, não estando a devedora obrigada a se apresentar, se se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;
B. Inexistência de perspectivas sérias de melhoria da situação financeira da devedora, que a mesma conhecesse ou não pudesse ignorar sem culpa grave;
C. Existência de prejuízo para os credores, decorrente do atraso da devedora na apresentação à insolvência;

Como supra se referiu, a iniciativa na apresentação à insolvência não coube à insolvente, mas a um terceiro. E isto quando era patente que as dificuldades financeiras da devedora já existiam desde 2015, pois que desde tal data a devedora se encontra em incumprimento com a generalidade dos seus credores.
O atraso da devedora na sua apresentação à insolvência acarreta prejuízo para os respectivos credores, porquanto, verificando‐se ainda a total inexistência de sérias expectativas de melhoria da sua situação financeira e a oneração do seu património, as possibilidades de verem os seus créditos satisfeitos se tornaram cade vez mais débeis.
Por outro lado, e como defende o Sr. AI, ao longo dos últimos anos, a devedora realizou diversos actos que vieram agravar, se não mesmo criar a situação de insolvência, nomeadamente a doação do direito de ½ sobre a fracção autónoma designada pelas letras ... a favor de pessoa consigo especialmente relacionada, nomeadamente a sua única filha, quando a devedora se encontrava já em incumprimento com a generalidade dos seus credores.
Tal acção esvaziou o património da insolvente, onde apenas resta o direito de ½ sobre dois imóveis que se encontram onerados com hipotecas e um contrato de arrendamento;
Consequentemente, não se pode deixar de concluir se verificam, no caso concreto pressupostos para indeferir in limine o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 238.º do C.I.R.E.”
*
A questão que se coloca consiste é pois saber se estão, ou não, reunidos os requisitos para proferir despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, com os fundamentos  enunciados nas alíneas d) e  e)  do nº 1 do art. 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18.03, com as alterações introduzidas pelos DL nº 116/2008, de 04.07, DL nº 185/2009, de 12.08, Lei nº 16/2012, de 20.04,DL 79/2017, de 30.04 e Lei 9/2022 de 11-1, doravante CIRE, diploma a que pertencerão todas as disposições legais sem  menção de origem ).
Como é consabido, a exoneração do passivo restante constitui um benefício concedido ao devedor pessoa singular declarado insolvente, cujo regime consta dos arts. 235º a 248º.
O caráter inovador do instituto no nosso ordenamento jurídico mereceu do legislador, no preâmbulo do referido DL nº 53/2004, de 18.03 a seguinte referência: “o princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante’. O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos   designado período da cessão( reduzido para três anos pela Lei 9/2022) ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica”.
Concretizando o assinalado propósito,  o art. 235 º veio  estabelecer que “ Se  o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.
No regime criado, confrontam-se com dois interesses fundamentais e antagónicos entre si, por um lado, o interesse dos credores, que pretendem, naturalmente, reaver os seus créditos e, por outro, o interesse do insolvente  em libertar-se do passivo que não seja integralmente liquidado no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste.
Como este resultado é conseguido à custa dos credores, importa, por isso, seguir com  especial atenção a lisura do comportamento do devedor e a sua boa-fé, visto que a medida em causa, gravosa quanto àqueles, só se compreende à luz da ideia de que o insolvente deseja orientar a sua vida de modo a não se envolver de novo em situações similares.
Neste contexto e procurando conciliar os apontados interesses  antagónicos em presença  a lei estabeleceu  requisitos que passam,  ab initio, pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração  nas situações  previstas no art. 238º que, afora a apresentação do pedido fora de prazo, evidenciam  comportamentos  do devedor que o legislador considerou censuráveis e, por isso, e  retiram  o direito a tal benefício.    Portanto, a atribuição do benefício depende da verificação de um conjunto de requisitos de natureza processual e substantiva que, como refere CARVALHO FERNANDES, in A exoneração do passivo restante na insolvência  das pessoas singulares, Colectânea  de Estudos sobre a Insolvência, Quid Juiris, 2009, p.276.   são dominados pela “preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém”.
Destaca, ainda, o mesmo autor, ob. citada, p.308, o “caráter judicial da medida” e que “a exoneração efetiva não decorre imediatamente da liquidação da massa insolvente como seria próprio de um sistema de fresh start. Bem pelo contrário, implica um período subsequente ao encerramento do processo, de cinco anos ( actualmente três) durante o qual os rendimentos do devedor, com excepção de valores, não muito generosos, destinados a garantir a sua base de vida familiar e profissional, vão ficar afetados ao pagamento dos créditos não satisfeitos no processo de insolvência, mediante cessão a um fiduciário.
Este ponto é tanto mais significativo quanto é certo que na pendência do período de cessão são impostas ao devedor severas obrigações e um comportamento correto, cuja inobservância impede a efetiva exoneração (arts. 243º e 244º), sem prejuízo da afetação, já feita, dos seus rendimentos”.
Assim, o procedimento de exoneração do passivo desenvolve-se fundamentalmente em duas fases: o despacho inicial e o despacho final  no termo do período de cessão.
O pedido de exoneração do passivo restante tem que ser formulado pelo devedor, conforme decorre do art. 236º.
Segue-se a fase do contraditório, dando-se a possibilidade dos credores e administrador da insolvência se pronunciarem sobre o pedido (art. 236º, nº 4), após o que o juiz profere o despacho liminar, nos termos dos arts. 237º e 238º, designado como despacho inicial.
O segundo despacho – despacho de exoneração – determina a concessão definitiva da exoneração, decorrido o prazo de três anos, verificando-se o cumprimento das obrigações constantes do despacho inicial (art. 244º).
Feitas  estas  considerações   gerais sobre a teleologia e o desenho legal da exoneração do passivo  no CIRE , é tempo de enfrentar a questão que é trazida à apreciação deste Tribunal de recurso, que se traduz em reapreciar os fundamentos do despacho inicial, que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado no requerimento de apresentação à insolvência.
Importa  atender de modo particular à função e natureza deste despacho, bem como ao critério de avaliação das circunstâncias que podem justificar o indeferimento e que se mostram tipicamente estabelecidas no já citado art. 238º.

Da exegese deste normativo emerge que os fundamentos de indeferimento assumem natureza processual (alínea a)) ou natureza substantiva (alíneas b) a g)), podendo estes últimos, segundo CARVALHO  FERNANDES/ JOÃO LABAREDA, in Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed. , Quid Juris, p. 854 e segs, ser  agrupados em três categorias:

- comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram – alíneas b), d) e e);
- situações ligadas ao passado do insolvente – alíneas c) e f);
- condutas adotadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência - alínea g).

A respeito da natureza e função deste despacho a doutrina ( cfr. por todos, Assunção Cristas, in Exoneração do passivo restante, in Themis, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, p. 169 e segs] tem defendido e a jurisprudência acolhido que “ os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz, o despacho  inicial  visa aferir o preenchimento de requisitos substantivos, que se destinam a perceber, se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado das dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável. Sendo certo que esse desfecho favorável depende totalmente da sua atuação.”
   Assim, com esse escopo, numa fase inicial do procedimento cumprirá ao juiz aferir se o comportamento anterior ou atual do devedor foi pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência (als. b), d), f) e g) do nº1 do art. 238º); não tenha um passado recente (nos 10 anos anteriores) de insolvência e correspondente exoneração do passivo restante (al. c) do nº1 do art. 238º); e não tenha tido culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência (al. e) do nº1 do art. 238º).
Na economia deste normativo as causas aí taxativamente enumeradas como fundamentos de indeferimento assumem, pois, a natureza de factos impeditivos do direito à exoneração do passivo restante, na justa medida em que definem, pela negativa, os requisitos de cuja verificação depende essa exoneração. Daí que, conforme vem sendo sustentado pela jurisprudência maioritária– que igualmente acolhemos –, ao requerente que pretenda aceder ao procedimento bastará alegar a qualidade de insolvente e fazer constar do requerimento a declaração expressa do n.º 3 do art. 236º, cabendo aos credores e ao administrador da insolvência alegar e provar os factos e circunstâncias mencionadas nas aludidas alíneas, enquanto factos impeditivos do direito (art. 342.º, n.º 2 do Cód. Civil), sem prejuízo do princípio do inquisitório (art. 11º). A título exemplificativo, vidé os Acs. do STJ de 14/02/2013, proc. 3327/10.0TBSTS-D.P1-S1 e de 21/01/2014, proc. 497/13.9TBSTR.E.E1.S1,  da RE de 11/06/2015, proc. 45/13TBCDV.E1, e desta RG de 03/12/2020, proc. 1851/20.5T8VNF.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Como  vimos, no  presente caso, nessa apreciação liminar o tribunal recorrido  considerou existir fundamento para o indeferimento liminar com base nas   alíneas  d) e e) do nº1 do art. 238º, onde se  lê:

1-O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
d) O devedor tiver  incumprido o dever  de apresentação à insolvência  ou, não estando obrigado a se apresentar , se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes  à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar  sem culpa grave , não existir qualquer  perspetiva  séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem  já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão pelos  credores ou pelo administrador da insolvência , elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de  insolvência, nos termos do art. 186º;

No que concerne ao fundamento de indeferimento  da alínea d)  é  entendimento unânime que a sua verificação  exige a verificação cumulativa dos  seguintes requisitos:

- que o devedor tenha incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tenha abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;
-  que a tardia apresentação cause prejuízo em qualquer dos casos para os credores;
- sabendo o devedor, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.

Na  falta de algum destes requisitos o pedido de exoneração não pode ser liminarmente  indeferido.
E se inicialmente se verificou alguma divergência na jurisprudência a respeito do ónus da prova de tais requisitos, presentemente, vem-se decidindo   de modo praticamente uniforme que recai sobre os credores e o administrador da insolvência o ónus da prova dos prejuízos sofridos com o atraso na apresentação do devedor à insolvência, por  constituir um facto impeditivo ou extintivo do direito do devedor- cfr., por todos, acórdãos do STJ de 21.10.2010 (processo nº 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1), de 6.07.2011 (processo nº 7295/08.0TBBRG.G1.S1) e de 27.03.2014 (processo nº 331/13.0T2STC.E1.S1), e acórdãos da  R.P de 3.06.2014 (processo nº 212/14.0TJVNF.P1) e de 7.12.2017 (processo nº 195/12.0TBSJM.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.
Analisando os referidos requisitos, verificamos que no preceito em questão se distinguem duas situações: a do devedor ter incumprido o dever de apresentação à insolvência e a de, não estando obrigado a tal apresentação  se ter abstido  da mesma  nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.
No presente caso,   desconhece-se em concreto qual  a  posição   societária  da insolvente  na V. C... e A. R..., Lda. Dos factos provados apenas decorre  que   foram  as   garantias  pessoais prestadas  a esta sociedade que  estiveram na origem do seu avultado passivo, superior a um milhão de euros.  Mas  os titulares de participações societárias  e os  gerentes ou administradores das sociedades comerciais  não podem, em virtude  de  tais posições societárias, ser considerados titulares de  uma empresa,  pois,  nesses casos,  a titularidade da empresa pertence às respectivas sociedades e é o património destas que, em regra, responde pelas próprias dívidas, sendo sobre elas que recai o dever de apresentação  à insolvência.
Assim,  considerando-se que a aqui insolvente não é titular de empresa, não tinha  o dever de apresentação  à insolvência nos termos  do art. 18º, nº1 do CIRE.  No entanto,   para efeitos    de exoneração do passivo   tinha o ónus de  requerer a  declaração  de insolvência  mediante o competente processo  nos seis meses seguintes  à verificação  da sua   situação de insolvência .
Ora, como a própria insolvente/recorrente  reconhece nas conclusões BB) e EE),   encontrava- se em situação de insolvência  desde  pelo menos 2015 e  nunca se apresentou  à insolvência, verificando-se assim o  primeiro dos referidos requisitos do normativo em análise.
Defende, porém, que não  se verifica o requisito da existência de prejuízo  para os credores, porquanto, a doação que  fez  à sua  filha  foi de reduzido valor( € 2.207,63, dado que  a fracção autónoma doada  de que  era  comproprietária tinha o valor patrimonial de € 4.415,25)  e  face à resolução operada pelo  administrador da insolvência  tal valor regressará à massa insolvente, sendo insignificante face ao valor do passivo e  que só um prejuízo grave e irreversível que tivesse agravado a situação dos credores  seria relevante.   Além disso,   acrescentou que  se tratou  de um acto isolado e não agiu com culpa grave, sendo desproporcionado e desadequado face aos fins tidos em conta pelo legislador indeferir-lhe o pedido de exoneração.
Por outro lado,  sustenta ainda que  não se apresentou  à insolvência  porque   estava convicta de que os credores obteriam a satisfação dos seus créditos, através da venda  judicial do imóveis hipotecados, pois,  segundo a avaliação que juntou ao processo de insolvência o prédio urbano vale cerca de um milhão de euros, e  que   não sendo tal valor suficiente  os demais  executados  liquidariam o   remanescente.

Vejamos:
A respeito da interpretação  do requisito do prejuízo,   Letícia Marques Costa , in  A Insolvência das Pessoas Singulares, Almedina 2021, p.126/127, escreve :” Cremos,  assim, que o prejuízo a que esta alínea respeita não se traduz no simples e normal aumento do passivo, porque , se assim fosse, bastaria ao legislador  entender que seria indeferido o pedido   de exoneração quando o devedor  se abstivesse  de se apresentar  à insolvência, nos trinta dias  seguintes  ao conhecimento da sua situação de insolvência( no caso de ser titular de empresa) ou nos seis meses posteriores ( caso contrário). A lei  visa, portanto castigar comportamentos que façam  diminuir o acervo patrimonial do devedor , que oneram o seu património ou que gerem novos débitos, ou seja, comportamentos  desconformes à boa fé,  à  transparência  e  à honestidade. (…)
Assim, sancionam-se atitudes que impossibilitam ou diminuam a  hipótese de os credores verem os seus créditos satisfeitos, na medida em que essa satisfação  seria conseguida se esses  se esses comportamentos não se verificassem. Com isto queremos significar   atitudes que  inviabilizam ou dificultam a  satisfação dos créditos que existiam  à data  em que se verificou a insolvência, tendo originado um aumento do passivo( porque o devedor contraiu novas dívidas após a verificação da sua situação de insolvência e o momento  em que veio a apresentar-se  tardiamente).
Só nestas situações  é que, caso os devedores se tivessem apresentado tempestivamente à insolvência( e esta sido declarada), poderemos afirmar que os  credores possuíam mais chances  de conseguir  a satisfação dos seus créditos, uma vez que  teriam um passivo menor (porque não o teriam delapidado) e /ou um património mais vasto( pois não o teriam dissipado). Nestes casos. O atraso na apresentação à insolvência acarreta indubitavelmente  um prejuízo efetivo  para os credores prejuízo esse que não se descortinaria se os devedores se tivessem apresentado  à insolvência no tempo oportuno.”
E é esta a linha interpretativa presentemente seguida pela  jurisprudência dominante.  Veja-se,  o Ac. desta Relação de 30-03-2023, relatado  por José Carlos Pereira Duarte, aqui  2º Adjunto, disponível  in www. dgsi.pt., que  analisou detalhadamente o normativo em análise e a propósito deste  requisito, refere : “ Relativamente  à  questão do “mero decurso do tempo“, os tribunais foram confrontados com a questão de saber se a não apresentação tempestiva do devedor à insolvência e, portanto, o mero decurso do tempo, torna evidente / automático o prejuízo para os credores, nomeadamente pelo avolumar dos créditos com os juros que se vão vencendo e, estando em causa créditos de instituições de crédito, isso ter repercussão na necessidade das mesmas provisionarem o incumprimento junto do Banco de Portugal, ficando cativas verbas que, se não fosse esse provisionamento, poderiam utilizar na sua actividade.
A resposta que tem sido dada - cfr. os Ac.’s do STJ de 22/03/2011, processo 570/10.5TBMGR-B.C1.S1, de 24/01/2012, processo 152/10.1TBBRG-E.G1.S1, de 14/02/2013, processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, de 21/03/2013, processo 1728/11.5TJLSB-B.L1.S1 e de 21/01/2014, processo 497/13.9TBSTR-E.E1.S1 - é que o mero retardamento da apresentação da pessoa singular à insolvência não determina automaticamente um prejuízo para os credores.
Desde logo, á luz das regras da interpretação (cfr. art.º 9º n.º 3 do CC, que manda considerar que o legislador não só consagrou as soluções mais acertadas mas também sabe exprimir-se por forma correcta), tal entendimento é incompatível com o facto de o legislador ter previsto como elemento do indeferimento liminar o prejuízo para os credores.
Destarte, não basta o mero decurso do tempo. O prejuízo tem de ser alegado e provado. E como já referido supra, tal tarefa cabe aos credores ou ao administrador da insolvência.
Por outro lado, quanto ao avolumar dos juros, não há dúvidas que com o decurso do tempo, se vão vencendo e o seu montante vai aumentando.
Mas tal é apenas uma consequência legal da mora no cumprimento das obrigações pecuniárias (art.º 806º n.º 1 do CC), sendo certo que tais juros constituem um crédito da insolvência (art.º 48º n.º 1 alínea b) do CIRE). (…)
 Neste contexto importa precisar que o prejuízo para efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE tem o sentido de, no período que decorreu desde a data em que devia ter ocorrido a apresentação à insolvência e a data em que ela foi declarada, o devedor ter praticado ou omitido actos dos quais resulte, objectivamente, para os credores, uma maior dificuldade ou até impossibilidade de obter o pagamento dos seus créditos (para uma recensão de jurisprudência contemplando várias situações, o Ac. deste RG de 28/03/2019, proc. 3616/18.5T8VNF-D.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg).
 Integra-se em tal hipótese a constituição de novas dívidas e o seu vencimento, determinando um aumento do passivo de capital (que não o mero vencimento dos juros) ou a dissipação ou oneração, dolosa, do património que constitui a garantia dos credores.”
  E também o Ac.  da R.P. de 12.11.2019, proc. 1662/18.8t8AMT-E.P1, assim sumariado:
I – Existe fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo quando existir um grau de certeza elevado da culpa do devedor, designadamente no agravamento da situação de insolvência.
II – Tal ocorre quando o devedor dispôs dos bens que possuía a favor de terceiros, antes de se apresentar à insolvência, quando sabia que tinha o dever de se apresentar à insolvência e permitir que tais bens fossem apreendidos para aqui serem vendidos e pelo respetivo produto serem todos os seus credores pagos, ainda que parcialmente, dos seus créditos.”
  Ora,  à luz deste  entendimento, que acompanhamos,  no presente caso,  é forçoso concluir  que a  não apresentação  tempestiva da recorrente  à insolvência  acarretou prejuízo para os seus  credores.   Com efeito,  encontrando-se  a recorrente  insolvente desde,  pelo menos,  em 2015,  tinha   o   ónus de se apresentar à insolvência durante o  primeiro semestre de 2016  e nunca o fez,  vindo a insolvência a ser decretada apenas em agosto de 2022 a requerimento de um credor. E  em 22  julho de 2021 doou à sua filha metade de uma fracção autónoma de um prédio urbano,  correspondente a uma garagem,  único bem não onerado de que era titular- cfr. factos nºs 7 e 9.
Tal  negócio gratuito a favor de uma pessoa consigo especialmente relacionada   acarretou    necessariamente uma diminuição do seu património e, consequentemente,  um prejuízo para os credores que  viram diminuir o activo patrimonial  que garantia  o pagamento dos seus créditos, aumentando a  dificuldade de satisfação  dos mesmos, o que não sucederia se a insolvente se tivesse apresentado  à insolvência em 2016.
Argumenta   a recorrente que sendo  o valor patrimonial da fracção objecto de doação  € 4.415,25,   à sua  quota-parte correspondia o montante  de  € 2.207,63, valor insignificante  face ao valor do passivo e que será recuperado  mercê da resolução do negócio operada pelo administrador da insolvência  aceite pela donatária, pelo que não tendo os credores sofrido prejuízo grave e irreversível e  tratando-se de um acto isolado  seria desproporcional  apenas com base nele  indeferir-se  liminarmente o pedido de   exoneração do passivo.
Com  o devido respeito,  desde já adiantamos, que   dissentimos de tal argumentação.
Como é  consabido, muitas vezes o valor patrimonial  dos imóveis  não corresponde seu  valor  real, sendo  este último, por regra superior.  Admite-se que  sendo a fracção autónoma doada uma garagem  o seu valor  real  ainda que superior ao valor patrimonial   não será muito  significativo  face ao valor dos créditos reconhecidos ( €1.282.771, 41).   Sucede que,  estamos perante  um acto de transmissão  a título gratuito de  um  bem imóvel,  cujo valor  não sendo elevado, não  se pode considerar insignificante e,  além disso,  era o  único activo não onerado da devedora, ora recorrente, que esta retirou  do seu património,  sabendo que se encontrava insolvente e que desse modo dificultaria  aos credores a satisfação dos seus créditos. 
E  o facto de,  em virtude  da resolução  do negócio  operada  pelo administrador da insolvência e não impugnada pela donatária,  o direito da recorrente  sobre tal  imóvel reverter para a  massa insolvente não  anula   totalmente o  prejuízo dos credores,  pois,  durante o período  em   que  esteve   “fora” do património  da devedora  estes   ficaram  impedidos  de  proceder à penhora do mesmo   para   satisfação  ainda que reduzida dos seus créditos. Além disso,  não  diminui a censurabilidade da  conduta da recorrente que  quis  subtrai-lo   deliberadamente  e definitivamente  à  acção dos credores.
E os  acórdãos  do STJ  de 24-01-2012, proc. 152/10.1TBBRG-E.G1.S1, e de  14-02-2013, proc. 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt, citados pela recorrente em abono da sua tese, em nosso entender, não lhe  conferem respaldo. Com efeito, o que tais  arestos sublinham é  que  o prejuízo previsto no art. 238º, nº1, al. d)  do CIRE tem de ser um prejuízo efectivo, que não se presume, nem decorre, sem mais,  da apresentação tardia do devedor à insolvência, pelo facto de se irem acumulando  juros de mora.

Concordamos inteiramente com as conclusões do primeiro dos referidos arestos, vertidas no respectivo sumário que se transcreve:

I) - A exoneração do passivo restante, inovadoramente introduzida no direito insolvencial português pelo CIRE, regulada nos arts. 235º a 248º daquele diploma, apenas é conferida a insolventes que sejam pessoas singulares.
II) Como resulta do Preâmbulo do diploma legal – “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante”.
III) Resulta do art. 1º do CIRE  que o processo de insolvência é um processo de “execução universal” que visa acautelar os interesses dos credores, da economia e não despreza, a título excepcional, os interesses do insolvente pessoa singular.
IV) Na lógica de que  a exoneração é “uma segunda oportunidade” (fresh start), só deve ser concedida a quem a merecer; a lei exige uma actuação anterior pautada por boa conduta do insolvente, visando evitar que o prejuízo, que já resulta da insolvência, não seja incrementado por actuação culposa do devedor que, sabendo-se insolvente, permanece impassível, avolumando as suas dívidas em prejuízo dos seus credores e, não obstante, pretende exonerar-se do passivo residual requerendo a exoneração.
V) - Essa exigência ética, assente numa actuação de transparência e consideração pelos interesses dos credores, está claramente prevista na al. b) do art. 238º do CIRE, cujo objectivo é obstar que a medida excepcional da exoneração do passivo não beneficie o infractor.
VI) - São fundamentos autónomos de indeferimento liminar, a apresentação do pedido fora de prazo – al. a) do mencionado normativo – e que a não apresentação atempada cause prejuízo para os credores – al. d).
VII) – Os requisitos tempestividade e prejuízo para os credores são autónomos, já que a apresentação do insolvente pode não causar prejuízos sensíveis aos credores, como está implícito na al. d), mal se compreendendo que prejuízos insignificantes fossem motivo suficiente para a recusa liminar do pedido, por esse prejuízo ser de presumir em virtude da pretensão do insolvente ser requerida fora do prazo legal.
VIII) - A ratio legis do instituto da exoneração é  evitar o colapso financeiro do insolvente pessoa singular, implicitando uma moderada transigência com a apresentação intempestiva, ligando-a, apenas reflexamente, ao facto dessa omissão poder ser causadora de prejuízo para os credores.
IX) O conceito de prejuízo, deve ser interpretado como patente agravamento da situação dos credores que assim ficariam mais onerados pela atitude culposa do insolvente.
X) A apresentação tardia do insolvente/requerente da exoneração do passivo restante, não constitui, por si só, presunção de prejuízo para os credores – nos termos do art. 238º, nº1, d) do CIRE – pelo facto de, entretanto, se terem acumulado juros de mora – competindo aos credores do insolvente e ao administrador da insolvência o ónus de prova desse efectivo prejuízo, que se não presume. E como consta no sumário do primeiro   requisito do prejuízo para os credores .”
Em suma, revertendo para o presente caso,  exigindo a lei do devedor insolvente  uma conduta pautada pela lisura e boa fé para lhe conceder o benefício da  exoneração do passivo e não  fixando    nenhum valor  mínimo para  o prejuízo  causado aos  credores, consubstanciando a doação efectuada  pela insolvente   uma   dissipação do seu  património  e  desconsideração pelos  interesses dos credores  contrária  aqueles princípios,  entendemos que o facto de o bem doado  não ter um valor  elevado,  não   exclui a verificação deste  requisito.
Importa ainda  apurar se se verifica o último dos requisitos do indeferimento do pedido de exoneração que, como  já se assinalou,  é  o insolvente saber, ou não poder  ignorar, sem culpa grave, que não existia  qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Com efeito, nalgumas situações podem existir razões sérias, justificadas, fundadas, que levem o devedor a crer que, com o decurso do tempo, a sua situação económica irá melhorar e, assim será possível passar a satisfazer a generalidade das suas obrigações ou pelo menos reduzir o seu incumprimento de forma substancial e não será necessária a apresentação e declaração de insolvência.
No  caso em  em apreço,   nada  se  apurou  que possa configurar   objectiva ou subjectivamente uma perspectiva  de melhoria da sua situação económica da insolvente. Aliás, é de tal ordem a disparidade entre o montante dos créditos reconhecidos, que ascende a mais de um milhão de euros,  e o rendimento anual  alegado pela insolvente, cerca de €19.000,00 anuais ( valor que  nem as despesas pela mesma  invocadas  permite custear) que  seria  de todo irrealista  crer  na  existência  de uma  possibilidade  séria   de  melhoria  da  sua situação  económica que lhe  permitisse cumprir as  obrigações vencidas  num prazo razoável.   
Porém,  como vimos,  a insolvente   em ordem a   justificar  a não  apresentação à insolvência   afirma   que  não o  fez  porque estava convicta  que  os credores  obteriam o pagamento  dos seus créditos  através da  venda do  prédio urbano  hipotecado e penhorado,  cujo valor, segundo a avaliação por si  junta aos autos  é de cerca de € 1.000.000,00,  sendo o restante pago pelos demais executados.   Mas tal convicção carece,  em nosso modesto ver, de qualquer fundamento válido.
Como podia a devedora, que é advogada,  estar convicta de que os credores obteriam o pagamento dos seus créditos pela venda do imóvel  hipotecado e penhorado se,  como consta na sentença  declaratória da insolvência, se encontra penhorado desde 22 de outubro de 2008 e não foi vendido  por falta de propostas, tendo já sido tentada  sem êxito a venda por carta fechada e por negociação particular?  A avaliação por si apresentada não dita o valor do bem.  E  com que  meios  pagariam os demais executados o remanescente da dívida? Os seus bens livres e desonerados  a existirem  já  terão sido penhorados,  pois que à  recorrente até o crédito fiscal por reembolso do IRS dos  anos  de 2017 a 2020 foi penhorado, o que nos leva a  inferir  que se os credores não penhoraram a fracção autónoma que veio a ser objecto de doação não  foi  por considerarem que não seria necessária para o pagamento das  dívidas, como alega a recorrente, mas  eventualmente por  desconhecimento da  sua existência.
Neste contexto,  concluímos  que, a recorrente que como reconhece se encontrava insolvente desde 2015,  estava  ciente  da  impossibilidade  de  melhoria   da sua situação económica  num prazo razoável  e,  além de se ter abstido de  se  apresentar à insolvência,  efectuou  a doação do seu único activo patrimonial desonerado, sabendo que  tal acto  causava  prejuízo aos credores,  verificando-se   assim todos os requisitos  exigidos pela alínea d)  do nº1 do art 238º  do CIRE para o indeferimento liminar  da exoneração do passivo.

Resta, por último, dilucidar se, in casu,  também ocorre o fundamento de indeferimento liminar previsto na al. e) do nº 1 do art. 238º, ou sejam “constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º”.
A remissão  desta  alínea e)  para o art. 186º  não contém qualquer restrição, por isso, tem de entender-se como  feita para  todo  o normativo,  nos seus diversos números. Assim considerou o STJ  no Ac. de 18/01/2018, proc. 955/13.5TBVFR.P1.S2, disponível in www.dgsi.pt, decidindo que os actos a considerar  para efeitos de apreciação   liminar  do pedido de exoneração do passivo são os ocorridos nos três anos anteriores ao início  do processo de insolvência, prazo fixado no  nº1 do  art. 186º.
E  sendo a remissão  para os termos do art. 186º,  tal  implica  que na interpretação e aplicação da  al. e), do n.º 1 do art. 238º,  há que considerar o regime jurídico enunciado no citado art. 186º, no qual se fixam os requisitos para a qualificação da insolvência como culposa.   O n.º 1 do art. 186º, contém a noção geral de insolvência culposa, estabelecendo que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
Segundo  esta noção geral de insolvência culposa, para que a insolvência possa ser qualificada como “culposa” é necessário que  os interessados  nessa qualificação aleguem e provem os seguintes requisitos legais cumulativos: a) que o devedor/insolvente ou os seus administradores, de direito ou de facto, tiveram uma conduta ativa ou omissiva nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; b) que essa conduta ativa ou omissiva lhes é imputável a título de dolo ou de culpa grave;  c) e que em consequência direta e necessária dessa conduta foi criado ou agravado o estado de insolvência em que, respetivamente, se encontra ou já se encontrava o devedor/insolvente (nexo causal).
Porém, as várias alíneas do n.º 2 desse art. 186º contêm  presunções juris et de jure de insolvência culposa e, portanto, inilidíveis mediante prova em contrário (“considera-se sempre culposa a insolvência”).  Ou seja, mostrando-se provados os factos base da presunção enunciados nas diversas alíneas desse n.º 2, a insolvência presume-se sempre como culposa,  sem possibilidade do devedor/insolvente ilidir tal presunção legal, presumindo-se sem admissão de prova em contrário, não só o dolo ou a culpa grave do devedor/insolvente, na adopção dos comportamentos que se encontram tipificados nas diversas alíneas desse n.º 2, como o nexo causal entre esses comportamentos e a criação ou o agravamento da situação de insolvência  do devedor/insolvente.
Por sua vez,  as diversas alíneas do n.º 3 do art. 186º contemplam presunções juris tantum,  isto é, ilidíveis mediante prova em contrário,  unicamente da  culpa grave do devedor,  o que foi clarificado pela redacção introduzida  pela Lei 9/2022, mas era  essa já  a interpretação  jurisprudencial dominante.
Assim,  provados que sejam os factos  tipificados  nas diversas alíneas do referido n.º3, os interessados na qualificação da insolvência como culposa ficam desonerados do ónus da alegação e da prova de factos  demonstrativos da culpa grave do devedor (bastando-lhes a alegação e a prova dos factos base da presunção), mas , ao invés do que sucede  nas situações previstas nas  alíneas do nº2,  não ficam dispensados do ónus de alegar e  provar que foi em consequência  dos  factos base da presunção previstos nas diversas alíneas do n.º 3 que adveio a situação de insolvência  do devedor ou o agravamento da mesma (nexo causal).
E de acordo com o preceituado no nº4 do art. 186º  as presunções contidas nos seus n.ºs 2 e 3  que  estão concebidas para as  pessoas colectivas,  aplicam-se  à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores “com as necessárias adaptações, onde a isso não se opuser a diversidade das situações”.
Carvalho  Fernandes e João Labareda, in ob.cit, p. 720 e segs, entendem que  as alíneas do  nº2  envolvem, directa ou indirectamente, efeitos negativos para o património do insolvente, geradores ou agravantes da situação insolvencial, pugnando pela taxatividade do  respectivo elenco,  porquanto as situações aí contempladas determinam a atribuição de carácter culposo à insolvência e consideram que  todas as alíneas são de aplicar ao devedor pessoa singular, com excepção da alínea e).
Destarte, remetendo a al. e), do n.º 1 do art. 238º do CIRE para o regime do art. 186º as presunções que se encontram contempladas nos n.ºs 2 e 3 deste normativo são igualmente aplicáveis  em sede  de indeferimento liminar do pedido de exoneração  do passivo, com as necessárias adaptações. Isto é, verificando-se alguma das situações elencadas no n.º 2 do art.º 186º do CIRE, que, como vimos, contemplam presunções inilidíveis quer de culpa, quer de causalidade, há-de  ter-se necessariamente  como verificada a causa de indeferimento liminar prevista na alínea e) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE. Neste sentido,   o  Ac. desta RG de 21.10.2021, proc. 1809/19.7T8VNF.G.C1, in www dgsi.pt.  em cujo sumário consta:
“1.O fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previsto na al. e), do n.º 1 do art. 238º do CIRE, carece de ser conjugado com o art. 186º do mesmo Código, resultando dessa conjugação que quando, no momento da prolação do despacho de (in)deferimento liminar do pedido de exoneração, o processo de insolvência já contenha factos e elementos probatórios desses mesmos factos, ou o administrador de insolvência e/ou os credores tenham alegado e provado factos dos quais decorrem encontrar-se preenchida uma das presunções inilidíveis de insolvência culposa previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 186º, se tem como preenchido (de forma inilidível) o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração previsto na al. e), do n.º 1 do art. 238º)”
Posto isto,  analisemos  a situação dos autos.
Como vimos, a decisão recorrida indeferiu  liminarmente a exoneração do passivo restante  requerida pela insolvente também com  fundamento  na al.e) o art. 238º, nº1, do CIRE,  mas não fez qualquer enquadramento da  sua conduta  no art. 186º, seja  na cláusula geral do nº1, seja em qualquer das alíneas dos nºs 2 e 3.
Ora, resulta dos autos que o processo de insolvência  deu entrada  em 17.6.2022.
E por  escritura pública  realizada em 22 de Julho de 2021, a devedora, por si e em representação da  outra comproprietária  CC, doou à sua filha  FF, menor, com dezassete anos de idade,  a  fracção autónoma designada pelas letras ..., correspondente à garagem n.º 6, 3.ª a contar do Norte, do prédio urbano, sito na Avenida ..., freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...92, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...4 de ..., com o valor patrimonial de  € 4.415,25.
Destarte,  estando  assente  que a recorrente transmitiu a sua quota-parte  na referida fracção autónoma  à filha, a título gratuito, e  tal transmissão ocorreu   cerca de um  ano antes do  início do processo de insolvência, tal factualidade é  objectivamente  subsumível na al.d) do nº2 do art. 186º que se reporta  à disposição  de bens do devedor  em proveito pessoal ou de terceiros.
E  tal é suficiente para  se concluir  pela verificação  da causa de indeferimento liminar prevista na al.e) do nº1 do art. 238º,  sem necessidade  de quaisquer outros factos demonstrativos do nexo de causalidade entre  tal acto e a criação ou agravamento da situação  de insolvência da recorrente,  pois, como vimos,  as situações elencadas no n.º 2 do art.º 186º do CIRE contemplam presunções inilidíveis, quer de culpa, quer de causalidade relativamente a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor.
Como já dissemos, o  facto de  o valor do bem subtraído  pela  recorrente  do seu  património em  benefício da filha não ser elevado não  exclui  ilicitude do acto, pois as normas em apreço  não estabelecem qualquer valor mínimo  para o prejuízo  causado aos credores.
Não se pode olvidar, que como tem sido recorrentemente sublinhado ( cfr. por todos Ac. do STJ de 24.1.2012; proc. 152/10.1TBBRG.E.G1.S1 e  Ac. RC de 25.5.2023, proc.13/13.2TBCLB-C.C1, in www.dgsi.pt) ” a exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de excepção, pois que, por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa dos credores. E a excepcionalidade do instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e protecção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excepcional.”
Ora, reitera-se,  a actuação da recorrente ao  transmitir o referido bem  a título gratuito para a sua filha  não se pautou pela  lisura  e boa fé e  traduziu-se   numa  efectiva diminuição do respectivo património, com prejuízo para os credores,  que  veio a ser revertida  após a declaração de insolvência devido à resolução   do  negócio operada pela administrador da insolvência,  mas  a restituição  do direito da insolvente sobre o imóvel doado à massa insolvente não apaga a  ilicitude e a censurabilidade da  sua conduta .
Em suma, os factos apurados preenchem  as  causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo  previstas nas alíneas d) e  e) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE, esta última por referência à alínea d) do nº2 do art.186º do mesmo diploma legal.
Assim sendo,    improcede  a   argumentação  do recurso,   impondo-se  a confirmação integral  da decisão  recorrida.
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IV. Decisão

Pelo exposto, os Juízes da 1ª Secção Cível desta Relação acordam em julgar a apelação improcedente,  mantendo inalterada a decisão recorrida.
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Custas pela massa insolvente – art.ºs 303º e 304º do CIRE
Notifique
*
Guimarães, 10 de Julho de 2023

Os Juízes Desembargadores           
Relatora: Maria Eugénia Pedro
1º Adjunto: Pedro Maurício
2º Adjunto: José Carlos Duarte