Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2182/21.9T8BCL.G1
Relator: CARLA OLIVEIRA
Descritores: CONTRATO PROMESSA
INCUMPRIMENTO
PERDA DO INTERESSE DO CREDOR
OBRIGAÇÃO SECUNDÁRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Só o incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa, e já não a simples mora, poderá dar lugar à resolução do contrato e à aplicação do regime previsto no nº 2 do art.º 442° do CC, não havendo incumprimento enquanto a mora não for convertida em incumprimento definitivo.
II- A mora apenas se transforma em incumprimento definitivo por uma das duas vias previstas no art.º 808º do CC: perda do interesse do credor apreciada objectivamente ou decurso de um prazo adicional razoável fixado pelo credor, a denominada interpelação admonitória.
III - Esta figura jurídica da “perda objectiva do interesse na prestação em mora”, prevista no art.º 808º do CC não se confunde com o desinteresse ou desistência posterior à celebração do contrato.
IV - No contrato promessa, para além da obrigação principal de celebrar o contrato final, poderão emergir várias outras obrigações secundárias, instrumentais do cumprimento da obrigação principal, encontrando-se a ela ligados funcionalmente e que visam permitir que o negócio prometido se celebre nos exactos termos convencionados.
V – Não tendo sido convencionado prazo para o cumprimento de uma obrigação instrumental tal condiciona o momento do vencimento da obrigação principal.
VI – Só após a fixação do respectivo prazo, se o interpelado não cumprir a obrigação secundária em causa, constituir-se-á em mora quanto a ela, o que arrastará a mora em relação à obrigação principal dado o vínculo funcional que as liga e também só então tal mora poderá, posteriormente, ser convertida em incumprimento definitivo, quer pela perda de interesse do credor, quer através da competente interpelação admonitória.
VII – O incumprimento (bastando a mora) do devedor é pressuposto da execução específica do contrato-promessa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA, intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB e mulher CC, pedindo:

a) a resolução do contrato promessa de compra e venda, datado de 30.07.2009, por incumprimento definitivo dos réus;
b) a condenação dos réus a restituir-lhe o montante de € 30.000,00 (trinta mil euros), correspondente ao sinal em dobro, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação para a presente acção e até integral pagamento;
Subsidiariamente:
c) a nulidade do contrato promessa de compra e venda datado de 30.07.2009 e a consequente condenação dos réus a restituir-lhe a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), paga a título de sinal;

Subsidiariamente:
d) a restituição da quantia global de € 15.000,00, recebida pelos réus, a título de sinal, nos termos do art.º 473.º do CC, acrescida dos respetivos juros de mora à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação para a presente ação e até integral pagamento.

Alegou, para tanto e no que agora importa:
Mandatou a Drª DD para adquirir um prédio que possuísse licença para construir uma habitação e negociar em seu nome a aquisição de um “imóvel” propriedade dos réus;
A parcela de terreno objecto do contrato promessa não possuía licença de construção, tendo os réus assumido a obrigação de diligenciarem pela legalização daquela parcela para construção, com elaboração de projectos de arquitetura e especialidades, obrigação que não cumpriram até à presente data;
O autor entregou a quantia de € 15.000,00 a título de sinal;
O autor perdeu interesse na celebração do contrato prometido, dado o incumprimento da obrigação assumida pelos réus e o facto de a parcela de terreno não possuir licença para construção, pretendendo a resolução do contrato promessa por incumprimento definitivo dos réus, com a devolução do sinal prestado em dobro.
Os réus deduziram contestação, no âmbito da qual arguiram a ineptidão da petição inicial e a prescrição do direito à restituição da quantia de € 15.000,00 por enriquecimento sem justa causa, tendo no mais impugnado a matéria vertida na petição inicial, designadamente o facto de terem assumido a obrigação de legalizar a parcela para construção, com elaboração de projectos de arquitetura e especialidades, acrescentando que não receberam a quantia de € 15.000,00 a título de sinal.
Deduziram, ainda, reconvenção, pedindo a execução específica do contrato promessa, uma vez que até à presente data o autor não cumpriu a obrigação de marcar a escritura pública do contrato de compra e venda prometido, e a condenação do autor a pagar-lhes o preço estipulado no contrato nos termos da cláusula 3ª, al. b) e devido na data da realização da escritura, no montante de 60.000,00 euros (sessenta mil euros), e nos juros de mora à taxa legal a partir da citação até efectivo e integral pagamento.
Concluíram, consequentemente, pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção.
O autor apresentou réplica e respondeu às excepções invocadas pelos réus, concluindo pela sua improcedência.
Em sede de audiência prévia, o autor desistiu do pedido formulado sob a alínea c), tendo sido proferida sentença homologatória dessa desistência e julgada prejudicada a apreciação e decisão da ineptidão da petição inicial arguida pelos réus.
Foi, ainda, proferido despacho que admitiu a reconvenção deduzida e despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência final foi prolatada sentença que julgou parcialmente procedente a acção e improcedente a reconvenção, constando do respectivo dispositivo o seguinte:
“IV. Decisão
Termos em que e face ao exposto, o Tribunal julga a ação parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente, declara resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado entre o autor AA e os réus BB e CC no dia 30 de julho de 2009, cuja cópia consta a fls. 10/11 dos autos, por incumprimento definitivo, condenando-se os réus a restituírem ao autor a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) entregue a título de sinal, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença e até integral pagamento.
No mais, absolvem-se os réus dos pedidos.
O Tribunal julga, ainda, a reconvenção improcedente, por não provada, absolvendo o autor/reconvindo AA do pedido.
*
Custas da ação a cargo do autor e dos réus, na proporção do respetivo decaimento – art. 527º, nº 1, do C.P.C.
Registe e Notifique.”.

Inconformados com tal sentença, dela apelaram os réus, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

«1. Da matéria dada como provada resultam obrigações para as partes, nomeadamente para o A. a obrigação de marcar a escritura e a elaboração de legalização da parcela de terreno e elaboração de projectos de arquitectura e especialidades; e para os RR. o pagamento das despesas com a referida legalização e elaboração dos projetos.
2. Não foram fixados prazos para nenhuma das obrigações assumidas pelo A. e pelos RR.
3. Os factos dados como provados nos pontos 15 a 19 resulta no não cumprimento das obrigações assumidas pelo A. e na mora deste;
4. O Autor nunca interpelou os Réus no sentido de estes assumirem o pagamento de qualquer despesa relativas ao projeto que este tivesse elaborado ou pretendesse elaborar.
5. Além disso, os Réus dirigiram ao autor carta registada no dia 18 de julho de 2018, a questionar da disponibilidade do Autor para a marcação da escritura no mês de setembro de 2018 e, como deveria ser feita a marcação desta.
6. A esta carta, o Autor nunca respondeu.
7. Pelo que, no ano de 2019, os réus propuseram contra o autor ação especial de fixação judicial de prazo, que correu termos sob o n.º 335/19...., no juízo local cível ..., J..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., pedindo que fosse fixado o prazo de 30 dias para este proceder à marcação da escritura pública de compra e venda relativamente ao contrato promessa.
8. E, por decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datada de 17 de dezembro de 2019, foi fixado o prazo de 30 dias para a outorga da escritura pública a que se refere o contrato promessa de 30 de julho de 2009.
9. Perante o silêncio do Autor, os réus dirigiram ao autor carta registada no dia 17 de fevereiro de 2020, a dar conta que o prazo para a celebração da escritura havia terminado e, que caso não fosse marcada a referida escritura no prazo máximo de 15 dias após a receção daquela comunicação e que se considerava “que não cumpriu o contrato por culpa que lhe é exclusivamente imputável a si.”.
10. Sucede que o autor nunca marcou a escritura pública referente ao contrato prometido e nunca deu qualquer satisfação aos RR. para não o fazer.
11. O Autor constituiu-se em mora.
12. Da matéria de facto dada como provada não pode imputar-se aos RR mora no cumprimento de alguma das obrigações por eles assumidas.
13. E não A. não pode resolver o contrato promessa de compra e venda celebrado com os RR. pois tal direito apenas subsiste, nos termos do disposto no art. 798º e 801º. nº 2, quando o outro contraente deixe, definitiva e culposamente, de cumprir as obrigações a que estava adstrito.
14. E porque os RR. não incumpriram quaisquer obrigações o tribunal “a quo” não deveria concluir, como o fez, pelo direito à resolução a favor do A..
15. Resulta do ponto 8 da matéria de facto dada como provada que o Autor “contactou os réus dizendo que pretendia a parcela de terreno objeto do contrato promessa que visitou por diversas vezes”.
16. Os Réus, promitentes vendedores, interpelaram o Autor no sentido de ser marcada escritura definitiva, sob pena a mora se converter em incumprimento definitivo, mas o A. manteve-se em silêncio.
17. Por se manter o seu interesse na celebração do negócio, os Réus deduziram reconvenção, para se dar cumprimento à celebração do contrato prometido, tendo já sido fixada judicialmente uma data limite para a celebração do contrato definitivo.
18. O Autor não respeitou a data fixada e, nesta sequência os Réus, interessados na celebração, vieram uma vez mais interpelar o promitente comprador para se proceder à celebração da escritura.
19. A esta comunicação o Autor não procedeu a nenhuma diligência para a marcação a escritura, nem se pronunciou sobre a eventual renúncia ou desistência da celebração do contrato.
20. Como resulta do artigo 808º nº 1, do Cód. Civil, decisivo para a resolução do contrato é a perda do interesse do credor na prestação devida, com a demora do devedor.
21. Mas o silêncio do A. às interpelações dos Réus e o desinteresse do autor, enquanto devedor, não é causa para a resolução do negócio por perda de interesse.
22. E a perda de interesse tem de ser avaliada objectivamente e dos factos dados como provados não vem elencado qualquer facto donde aquela se pode inferir.
23. O incumprimento da obrigação do devedor por efeito da perda de interesse do credor nos termos previstos no artigo 808.º n.º 1 do Código Civil só ocorre se, estando o devedor em mora, o desinteresse do credor for consequência da mora na realização da prestação em falta.
24. Parece-nos impensável, que perante tal atitude enganadora, dissimulada e de falta correção, honestidade e lealdade impostas pela ordem jurídica, seja o Réu [autor] merecedor da restituição do sinal, que diz ter entregue à Dr.ª DD, para celebração do contrato promessa de compra e venda.
25. O Réu [autor] incumpriu com a sua obrigação e, fê-lo de forma consciente, tentando agora, de má-fé imputar responsabilidades aos Réus, a fim de recuperar o sinal que diz ter prestado.
26. A boa fé, enquanto princípio constitucional concretizador da ideia de Estado de Direito, garante às partes nas suas relações um mínimo de certeza e de segurança quanto ao exercício dos seus direitos e à salvaguarda das suas expectativas legítimas.
27. Ao Réu [autor] não deve ser restituída a quantia prestada a título de sinal, desde logo, por se verificar o seu incumprimento e, por comportar uma clara violação do princípio da boa-fé.
28. O pedido formulado pelos Réus não configura qualquer situação e abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, que não os impede de fazer valer o direito que invocam na reconvenção e que, deveria ser julgado provado e procedente.
29. Se assim não for entendido o tribunal “a quo” deu como provados factos para os quais, no entendimento dos Recorrentes, não tem suporte probatório e como tal, deverão ser considerados não provados.
30. Com efeito no ponto 20 da matéria dada como provada, nomeadamente: “20. O autor perdeu interesse na celebração do contrato de compra e venda da parcela de terreno objeto do contrato promessa, uma vez que não é possível ali construir uma habitação, na presente data, não tendo sido elaborados projetos de arquitetura e especialidades.”
31. Salvo devido e merecido respeito, entendem os Recorrentes que não foi feita prova para suportar a matéria dada como provada no ponto 20 e que tal facto deveria ser considerado não provado.
32. Das declarações de parte de AA ouvido no dia 25 de Outubro de 2023, cujo depoimento encontra-se gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 16:02 horas e o seu termo pelas termo às 16:40 horas, disse ao tribunal:
33. Aos Réus cabia a obrigação de pagar todos os atos necessários à legalização do terreno e, projetos para construção.
34. E como transcrito acima, o próprio Autor admite, que nunca diligenciou, nem junto dos Réus, nem à Dr.ª. DD, para a realização dos mesmos.
35. Mas ainda assim, como resulta das declarações do Autor, não é verdade que o mesmo tenha perdido o interesse na aquisição do terreno em causa.
36. O Autor diz que interesse se mantém, só que está dependente da possibilidade de lá poder construir.
37. Ainda que o prédio não seja apto para construção, é possível legalizá-lo para que o seja, nos termos do artigo 22º do DL n.º 73/2009, de 31 de Março.
38. Razão pela qual o Tribunal a quo, não deveria ter dado como provado o facto no ponto 20, pelo mesmo não resultar das declarações/depoimento do Autor.
39. E jamais, por essa via, poderia o A. resolver o contrato promessa de compra e venda por falta de interesse.
40. O A. tem conhecimento de que os réus, embora tenham assinado o contrato de promessa junto aos autos em que constava a quitação daquele valor, não receberam efectivamente aquele valor e pretende apoderar-se daquele valor que sabe não ter pago aos réus deixando de cumprir o contrato promessa.
41. Das declarações por si prestadas e atrás transcritas (e que por economia se reproduzem para este efeito) não sabe quanto entregou à Drª DD, se num cheque, se dois cheques ou em dinheiro.
42. Os RR. sempre alegaram não ter recebido da Drª DD qualquer quantia e que assinaram o contrato antes dela o ter assinado (que era para dar prévio conhecimento do A.).
43. Ao longo do julgamento o tribunal “a quo” foi dando nota que conhecia a Drª DD e a sua forma de actuação e que tinha conhecimento de factos por ela praticados, que não vem ponderados na fundamentação da matéria de facto.
44. O próprio A. referiu conhecer, e reconheceu, que a Drª DD esteve envolvida e praticou factos que não quis explicitar.
45. O A. não juntou, como requerido pelos RR., cópia do cheque e do extrato de conta bancário para prova da entrega dos 15.000 euros.
46. O que pode traduzir um juízo de que o A. efectivamente nunca entregou qualquer quantia à Drª DD para entregar aos Réus, lançando suspeita sobre aquela por factos que dela conhecia.
47. Pelo que o tribunal, deveria dar tal facto como não provado considerando, além do mais, o impedimento do A. na prova do referido facto pelo A. ao não juntar cópia do cheque ou do extrato bancário que espelhasse o referido pagamento.
48. Como se referiu o A. está em mora e estando em mora é lícito aos RR. lançarem mão da execução específica.
49. Pelo que o tribunal “a quo” deveria julgar a reconvenção procedente por provada.
50. O tribunal violou, além do mais, o disposto nos arts. 798º, 801º, 808º e 830º do CC.».
Foram apresentadas contra-alegações, pugnando o autor pela improcedência do recurso e manutenção do decidido na sentença recorrida.
Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as seguintes:

a) do erro na subsunção jurídica dos factos dados como provados ao direito, nomeadamente:
i. por não estarem reunidos os pressupostos para a declaração da resolução do contrato promessa por incumprimento definitivo (com fundamento na perda de interesse de ambas as partes); e
ii. por se verificarem os pressupostos da execução específica peticionada pelos recorrentes e tal pedido não configurar abuso de direito;
b) assim não se entendendo, da reapreciação da decisão da matéria de facto quanto aos pontos 7 e 20 do elenco dos factos provados e consequente alteração da decisão de direito.
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III. Fundamentação

3.1. Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos:

«a. Factos Provados.
1. No decurso do ano de 2009, o autor solicitou à Dr.ª DD, advogada que à data exercia advocacia num escritório sito no concelho ..., que diligenciasse no sentido de lhe adquirir um prédio que possuísse licença para construir uma habitação.
2. A Dr.ª DD informou o autor que os réus eram proprietários de um prédio, que pretendiam vender, e no qual era possível construir.
3. O autor mandatou a Dr.ª DD para que negociasse em seu nome a compra daquele prédio propriedade dos réus.
4. E entregou-lhe um cheque com o valor inscrito de € 15.000,00 para sinalizar o negócio.
5. No dia 30 de julho de 2009, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda, no qual constam como primeiros outorgantes os réus e segundo outorgante o autor, representado pela sua procuradora com poderes para o ato, Dr.ª DD, com as seguintes cláusulas:
Um – Os primeiros outorgantes são donos e legítimos possuidores de uma parcela de terreno com área de 1.500 m2 a qual é parte sobrante do artigo rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...20º sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição nº ...28.
Dois – Pelo presente contrato os primeiros outorgantes prometem vender ao segundo outorgante, livre de qualquer hipoteca, ónus ou encargos, a parcela supra indicada na cláusula um.
Três – O preço da referida parcela é de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), a ser pago da seguinte forma:
a) - a quantia de € 15.00,00 (quinze mil euros) a titulo de sinal e princípio de pagamento, entregue na presente data de celebração do contrato-promessa, dando os promitentes-vendedores, desde já, a competente quitação;
b) – A restante quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros) será paga na data da celebração da escritura de compra e venda.
Quatro – Ambos os outorgantes estabelecem entre si e de comum acordo que a presente venda não foi objeto de mediação imobiliária.
Cinco – São da responsabilidade do segundo outorgante e por este serão pagas as despesas inerentes à aquisição do imóvel, bem como todas despesas que sejam realizadas com a regularização da redução da área do logradouro dos prédios urbanos pertencentes aos promitentes – vendedores.
Seis – São da responsabilidade dos primeiros outorgantes e por este serão pagas, as despesas inerentes à respetiva legalização da parcela de terreno para construção e ainda as despesas dos projetos de arquitetura e especialidades. São da responsabilidade do segundo outorgante as despesas referentes a liquidação do IMT, escritura e registo.
Sete – É da responsabilidade do segundo outorgante a marcação da escritura de compra e venda avisando os primeiros outorgantes com quinze dias de antecedência.
Oito – Ao presente contrato é, por acordo das partes, atribuída a faculdade da execução específica nos termos do disposto no artigo 830º, do Código Civil.
Nove – Ambos os outorgantes prescindem do reconhecimento presencial das assinaturas no presente contrato, para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 410º do Código Civil, não podendo invocar a nulidade do mesmo por esse motivo.
Pelo segundo outorgante foi dito: Que aceita a prometida venda nos termos exarados.
(…).”
6. O contrato promessa de compra e venda foi assinado pelos réus e por DD.
7. Os réus receberam a quantia de € 15.000,00 a título de sinal.
8. Posteriormente, o autor contactou os réus dizendo que pretendia a parcela de terreno objeto do contrato promessa que visitou por diversas vezes.
9. Passado algum tempo, o autor comprou um prédio destinado à sua habitação.
10. Os réus procederam à desanexação da parcela de terreno objeto do contrato promessa junto do Município ....
11. Mostra-se inscrita, desde ../../2019, na Conservatória do Registo Predial ..., a aquisição, por compra, a favor dos réus, do prédio rústico, situado em ..., denominado “Campo ...”, com a área de 1.500 m2, aí ... o n.º ...28/...29-freguesia ..., inscrito na matriz rústica sob o artigo ...20.
12. A parcela de terreno objeto do contrato promessa não possuía licença para construção.
13. Os réus não legalizaram a parcela de terreno objeto do contrato promessa para construção, com elaboração de projeto de construção e de especialidade.
14. A parcela de terreno objeto do contrato promessa nunca foi entregue ao autor.
15. Os réus dirigiram ao autor carta registada no dia 18 de julho de 2018, com o seguinte teor: “Tendo em conta que manifestou interesse em cumprir o contrato promessa de compra e venda solicitei-lhe que nos informasse em que prazo pretendia realizar a escritura. Pelo que lhe solicito, mais uma vez, que me informe se está disponível e reúne condições para realizar a escritura durante o próximo mês de setembro de 2018 ou se pretende outra data. Solicito ainda que me informe se está na disposição de marcar a escritura onde entender ou se pretende que seja eu a marcá-la. Pelo que aguardo me transmita brevemente essa informação de forma a ficar estabelecido entre nós a data da realização, local e obrigação dessa marcação, de forma a poder ser cumprido integralmente o contrato entre nós assinado”.
16. No ano de 2019, os réus propuseram contra o autor ação especial de fixação judicial de prazo, que correu termos sob o n.º 335/19...., no juízo local cível ..., J..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., pedindo que fosse fixado o prazo de 30 dias para este proceder à marcação da escritura pública de compra e venda relativamente ao contrato promessa identificado em 5.
17. Por decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datada de 17 de dezembro de 2019, foi fixado o prazo de 30 dias para a outorga da escritura pública a que se refere o contrato promessa de 30 de julho de 2009, identificado em 5.
18. Os réus dirigiram ao autor carta registada no dia 17 de fevereiro de 2020, com o seguinte teor: “Tendo em conta a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de dezembro de 2019 que lhe fixou o prazo de 30 dias para marcar a escritura e que tal prazo terminou venho comunicar-lhe que presumo não tem interesse na celebração do negócio.
Assim, caso não marque a referida escritura no prazo máximo de 15 dias após a receção da presente comunicação considero que não cumpriu o contrato por culpa que lhe é exclusivamente imputável a si.”.
19. Até à presente data, o autor não marcou a escritura pública referente ao contrato prometido.
20. O autor perdeu interesse na celebração do contrato de compra e venda da parcela de terreno objeto do contrato promessa, uma vez que não é possível ali construir uma habitação, na presente data, não tendo sido elaborados projetos de arquitetura e especialidades.
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b. Factos Não Provados.
21. O autor não mandatou a Dr.ª DD para assinar qualquer contrato em seu nome.
22. Os réus assumiram a obrigação de legalizar a parcela de terreno objeto do contrato promessa para construção, com elaboração de projetos de arquitetura e especialidades.
23. O autor apenas teve conhecimento da celebração do contrato promessa de compra e venda, aquando da citação em fevereiro de 2019 no âmbito da ação para fixação judicial de prazo para outorga da escritura definitiva de compra e venda.
24. O autor tomou conhecimento que os réus fizeram sua a quantia de € 15.000,00, não legalizaram a parcela de terreno para construção, com elaboração de projetos de arquitetura e especialidades, e que não era possível construir naquele prédio em data anterior a agosto de 2018.
25. O autor solicitou aos réus, por diversas vezes, a devolução da quantia entregue a título de sinal, após ter conhecimento que não era possível construir na parcela de terreno objeto do contrato promessa.
26. Passados alguns anos, o autor enviou uma carta aos réus onde lhes reclamava o valor de € 30.000,00.
27. Os réus responderam ao autor que quando ele quisesse celebrariam a escritura definitiva e que lhe venderiam o terreno pelos € 60.000,00 ainda a liquidar.
28. O autor nada disse perante a resposta referida em 27.
29. No mês de julho de 2018, o autor remeteu aos réus nova carta onde manifestava interesse no contrato e imputava a não realização a escritura pública aos réus.».
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3.2. Fundamentação de direito
3.2.1. Do erro na subsunção jurídica dos factos como provados ao direito
a. quanto à declaração da resolução do contrato promessa celebrado entre as partes por incumprimento definitivo [com fundamento na perda de interesse de ambas as partes]
Conforme decorre do acima explanado, o tribunal recorrido considerou haver fundamento para declarar a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre autor e réus, por incumprimento imputável a ambos os contraentes, - dizendo ser comum a ambas as partes a perda objectiva do interesse contratual -, tendo condenado os réus, ora recorrentes, a restituir ao autor o valor prestado a título de sinal, em singelo.
Os recorrentes insurgem-se contra o assim decidido sustentando que, da matéria de facto dada como provada, não se pode imputar aos réus qualquer incumprimento do mencionado contrato, nem se pode inferir existir perda de interesse objectiva por parte do autor no cumprimento da prestação.
Vejamos, então.
Como decorre dos art.ºs 410º e 411º do CC, entende-se por contrato-promessa, a convenção pela qual ambas as partes ou apenas uma delas se obrigam a celebrar, dentro de certo prazo e verificados certos pressupostos, determinado contrato – vide, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I., p. 264.
Com a celebração de um contrato-promessa emerge, pois, para os contraentes, a obrigação de facto positivo de contratar, de outorgar o contrato definitivo.
No caso em apreciação, não suscitam quaisquer dúvidas estarmos perante um contrato-promessa que o autor (representado por procuradora) e os réus subscreveram, em 30.07.2009, nos termos do qual os réus declararam prometer vender ao autor que, por sua vez, declarou prometer comprar, uma parcela de terreno com a área de 1.500m2, a qual constituía a parte sobrante de um prédio, pelo preço de € 75.000,00, a ser pago em duas parcelas – uma no valor de € 15.000,00, na data de celebração do aludido contrato e outra no valor de € 60.000,00, na data da celebração do contrato prometido.
Mais consignaram os outorgantes do contrato em causa que seria da responsabilidade do promitente comprador a marcação da escritura pública, não tendo estabelecido qualquer prazo para tal efeito.
Por fim, declararam ainda que também seriam da responsabilidade do promitente comprador as despesas inerentes à aquisição do imóvel e com a regularização da redução da área do logradouro dos prédios urbanos pertencentes aos promitentes vendedores; e da responsabilidade dos promitentes vendedores as despesas inerentes à legalização da aludida parcela de terreno para construção e ainda as despesas dos projectos de arquitectura e especialidades.
Isto posto, passemos a averiguar se estão reunidos na situação em análise os pressupostos para a declaração de resolução de tal contrato.
O direito de resolução, como destruição da relação contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, por isso, ao exercício de um direito potestativo vinculado - art.º 432º, nº 1 do CC -, ficando a parte que invoca o direito à resolução obrigada a alegar e a demonstrar o fundamento que justifica a destruição do vínculo contratual.
Ora, como tem vindo a ser entendido, existe fundamento legal de resolução do contrato promessa no caso de incumprimento definitivo, mormente nos termos previstos no art.º 801º, nº 2, do CC.
Para se poder falar em incumprimento importa que o obrigado não cumpra a(s) prestação(ões) a que se obrigou.
O devedor cumpre a obrigação quando realiza pontualmente a prestação a que está vinculado (art.ºs 406º, nº 1 e 762º, nº 1, ambos do CC), sendo certo que nesse cumprimento, assim como no exercício do direito correspondente, deve o mesmo proceder de boa-fé (art.º 762º n.º 2 do mesmo diploma); não cumprindo a prestação incorre o devedor em incumprimento.
E em caso de incumprimento importa ainda distinguir consoante a prestação se atrasa ou se torna definitivamente impossível; isto é, os casos em que se verifica apenas mora do incumprimento definitivo.
Na primeira hipótese, chegado o vencimento o devedor não cumpre mas a prestação poderá ainda ser realizada com interesse para o credor, podendo vir a executá-la mais tarde (a prestação continua a ser materialmente possível e o credor continua a ter interesse nela); na segunda hipótese, a prestação inviabiliza-se de vez, tornando-se, em definitivo, irrealizável.
Ocorre esta última hipótese quando a prestação, sendo inicialmente realizável, se impossibilita subsequentemente, em termos definitivos, ficando o devedor impedido de cumprir a prestação, bem como nos casos em que a prestação, em consequência do retardamento, deixa de ter utilidade para o credor (neste sentido, Galvão Telles, Direito das Obrigações, p. 293 e 294 e 319).
Desta forma, e como se conclui no ac. do STJ de 2.02.2006, relatado por Araújo Barros, acessível in www.dgsi.pt: “O incumprimento definitivo, tratando-se de um negócio bilateral, confere ao outro contraente o direito de resolver o contrato, constituindo o inadimplente na obrigação de indemnização que, no âmbito do contrato-promessa, se calcula nos termos do art.º 442º, nº 2, do Código Civil, perda do sinal ou restituição do sinal em dobro.”.

Com efeito, o aludido nº 2 do art.º 442º do CC estabelece o seguinte:
“Se quem constituiu o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado ou, se houve tradição da coisa que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago”.
Acresce que, em consonância com o disposto no art.º 441º do CC, presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que como princípio de pagamento do preço, ou a título de antecipação do pagamento do preço, com sucedeu no caso que nos ocupa.
Pela letra do art.º 442º do CC se conclui que as sanções legais aplicáveis ao incumprimento, por parte de qualquer dos contraentes, pressupõem um incumprimento definitivo e não a simples mora, salvo se as partes expressamente convencionarem um regime específico de resolução.
Nestes termos, resulta da análise do citado art.º 442º, nºs 2 e 3, ao remeter para o art.º 830º, ambos do CC, que o regime do sinal previsto no nº 2 do art.º 442º do CC, não é aplicável à simples mora e só se justifica no caso de incumprimento definitivo do contrato-promessa.
Por conseguinte, nos casos em que se conclua que alguma das partes deixou de cumprir o contrato em termos definitivos, a contraparte poderá resolver o contrato e invocar a sanção específica prevista no regime dos contratos-promessa – vide, art.º 801º, nº 2 do CC.

E o incumprimento definitivo do contrato promessa, desprezando agora o caso de inobservância de prazo fixo essencial estabelecido para a prestação, pode verificar-se em consequência de uma, ou mais, das situações seguintes:
- ocorrência de um comportamento do devedor que exprima inequivocamente a vontade de não querer cumprir o contrato;
- ter o credor, em consequência da mora, perdido o interesse que tinha na prestação; e,
- encontrando-se o devedor em mora, não realizar a sua prestação dentro do prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor.
Não será demais evidenciar - salvo se da interpretação da vontade negocial resultar diversamente – que o não cumprimento da obrigação de contratar constitui o devedor em simples mora (a qual, porém, como vimos, não é fundamento bastante para a resolução do contrato, nem legitima a aplicação do regime da perda do sinal/exigência do sinal em dobro do art.º 442º, nº 2, do CC), podendo, contudo, a situação de mora ou retardamento da prestação evoluir para uma situação de incumprimento definitivo.
E tal sucede essencialmente, igualmente como vimos, por uma das duas vias previstas no art.º 808º, do CC: a perda do interesse do credor ou a interpelação admonitória.

Escreveu-se, a este propósito, no ac. do STJ de 13.10.2016 (processo nº 7185/12.1TBCSC.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt):
No direito civil português o princípio geral é o de que o prazo de cumprimento de uma obrigação não constitui termo essencial.  Tal resulta do regime – a todos os títulos relevantíssimo – da transformação da mora em incumprimento definitivo (art.º 808º do Código Civil). A falta de respeito pelo prazo de cumprimento da obrigação, que se presume estabelecido a favor do devedor (art.º 779º do CC), origina uma situação de mora (art.º 805º, nº 1, alínea a), do CC) que apenas se transforma em incumprimento definitivo por uma das duas vias previstas no art.º 808º: perda do interesse do credor apreciada objetivamente ou decurso de um prazo adicional razoável fixado pelo credor (via também denominada como interpelação admonitória, tendo como consequência a consagração daquilo que, graficamente, Pinto Oliveira – Princípios de Direito dos Contratos, 2011, p. 807 e seguintes – qualifica como princípio das duas oportunidades).”.
No mesmo sentido podemos ler Almeida Costa (in, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, p. 1054): “a lei encara a eventualidade de a mora ocasionar a perda do interesse do credor na prestação tardia, ou de o devedor moroso não cumprir dentro do prazo adicional e perentório que aquele lhe tenha fixado. Nos dois casos, já assinalados, a obrigação considera-se, para todos os efeitos, como não cumprida; a mora transforma-se em não cumprimento definitivo”.
Assim se tem orientado uniformemente a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça - cfr., por exemplo, os acs. de 02.06.2009, processo nº 136/09.2YFLSB e de 02.03.2011, processo nº 5193/04.5TCLRS.L1.S1, consultáveis em www.sumarios.stj.pt, bem como os acs. de 16.06.2016, processo nº 410/10.5TBABF.E1.S1 e de 25.02.2021, processo nº 854/18.4T8FNC.L1.S1, consultáveis in www.dgsi.pt.
No que aqui interessa considerar, importa salientar ainda que a aludida perda de interesse tem de ser apreciada objectivamente (art.º 808º, nº 1, 1ª parte do CC).
Quer isto dizer que a perda de interesse na prestação terá de resultar de todo um circunstancialismo fáctico, muito concreto e bem definido, que revele justificadamente tal perda de interesse segundo um critério de razoabilidade próprio do comum das pessoas.
Como ensina Antunes Varela “a lei não se contenta com a simples perda (subjectiva) do interesse do credor na prestação em mora para decretar a resolubilidade do contrato; o n.º 2 do artigo exige que a perda de interesse seja apreciada objectivamente. A perda de interesse na prestação não pode filiar-se numa simples mudança de vontade do credor desacompanhada de qualquer circunstância além da mora, como seja o facto de, por causa da mora, o negócio, já não ser do seu agrado; também não basta, para fundamentar a resolução qualquer circunstância que justifique a extinção do contrato aos olhos do credor.” (cfr. RLJ 118, p. 54).
O valor da prestação deve, pois, ser aferido pelo tribunal em função das utilidades que a prestação teria para o credor, tendo em conta, a justificá-lo, “um critério de razoabilidade própria do comum das pessoas” e a sua correspondência à “realidade das coisas” (cfr. Galvão Telles, "Obrigações", 4ª ed., p. 235).
Quando tal não ocorra, deve entender-se que o contrato continua a ter interesse para as partes - o interesse do credor mantém-se - apesar da mora, e esta só pode converter-se em incumprimento definitivo se a prestação não vier a ser realizada em “prazo razoavelmente fixado pelo credor”, sob a cominação estabelecida no preceito legal - interpelação admonitória ou cominatória (vide, Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", I, 9ª ed., p. 532 e seguintes).
O que acaba de se expor refere-se directamente ao incumprimento da obrigação principal ou típica do contrato.
No caso de contrato-promessa, como vimos, a obrigação principal traduz-se na celebração da escritura definitiva (obrigação de facere).
Acontece, porém, que muitas das vezes nos contratos-promessa de compra e venda, como é o caso, paralelamente à prestação principal, derivam deveres secundários de prestação (dos quais se distinguem os simples deveres acessórios de conduta) – cfr. quanto a esta temática o ac. do STJ de 13.10.2016, processo nº 967/14.1TBACB.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
No caso, interessa-nos apenas, entre os deveres secundários de prestação, caracterizar os denominados deveres acessórios da prestação principal, que se destinam a preparar o cumprimento ou assegurar a perfeita execução da prestação principal.
São, por conseguinte, instrumentais do cumprimento da obrigação principal, encontrando-se a ela ligados funcionalmente.
Ora, enquanto a violação de um dever secundário com prestação autónoma não fará, por regra, o violador entrar em mora quanto à obrigação principal emergente do contrato, nem justificará, por maioria de razão, a resolução do negócio (embora possa gerar obrigação de indemnizar pelos prejuízos emergentes), uma vez que o seu incumprimento, sendo independente da obrigação principal, não arrasta o incumprimento desta, já a violação de um dever acessório da prestação principal pode gerar qualquer uma das referidas situações - mora ou incumprimento definitivo - se o seu incumprimento determinar o retardamento ou o incumprimento definitivo da obrigação principal que visa preparar ou cujo cumprimento visa assegurar.
Conforme se refere no ac. da RL de 17.05.2018 (processo nº 22335/15.8T8SNT.L1-2, acessível in www.dgsi) “acontece frequentemente, designadamente nos contratos-promessa de compra e venda que, paralelamente à prestação principal, derivam deles, as denominadas obrigações de meios, acessórias ou secundárias, em relação à obrigação principal decorrente do contrato-promessa, as quais se destinam a preparar o cumprimento ou assegurar a execução da prestação principal. Com efeito, o contrato-promessa de compra e venda tem como objeto e obrigação principal a celebração da escritura de compra e venda, sendo esse o sinalagma específico do contrato.
Impende, assim, sobre o devedor/promitente, não só essa obrigação principal de celebrar o contrato prometido, mas também a obrigação instrumental dessa obrigação principal, de realizar os atos possibilitadores do cumprimento, permitindo que o negócio prometido se celebre nos exatos termos convencionados, isto é, todos os deveres secundários, acessórios ou instrumentais da obrigação principal necessários à viabilização/satisfação do interesse que levou à celebração do contrato.”.
Postas estas prévias considerações e regressando ao caso concreto, no contrato sob apreciação avulta a obrigação instrumental de legalização da parcela de terreno para construção, claramente vocacionada para a satisfação do fim da prestação principal e funcionalmente ligada à mesma.
Com efeito, da interpretação do respectivo clausulado resulta inegável que os promitentes vendedores, ora recorrentes prometeram vender ao recorrido uma parcela de terreno para construção, mas que à data da celebração de tal acordo ainda não se encontrava legalizada para tal efeito.
Todavia, apenas ficou expressamente consignado no acordo escrito outorgado entre as partes que a responsabilidade pelas despesas de tal legalização seria dos promitentes vendedores, ou seja, dos réus/recorrentes.
Ora, apesar das partes não terem consignado expressamente no contrato em causa a quem incumbia diligenciar pela obtenção da legalização da parcela para construção e ter resultado não provado que os réus assumiram tal encargo, a verdade é que também não ficou provado (nem sequer tal foi alegado) que tal incumbência tenha sido atribuída, por acordo entre as partes, ao autor (como só agora vieram defender entender os recorrentes – cfr. conclusão 1ª do presente recurso).
Deste modo, nada tendo sido expressamente convencionado a tal propósito, parece não restarem dúvidas que do contrato-promessa derivava para os promitentes vendedores – enquanto proprietários da parcela de terreno prometida vender - um dever secundário, acessório da prestação principal, dado o vínculo funcional que ligava a obrigação secundária à principal, segundo o plano contratual convencionado.
Com efeito, por um lado, resulta do acordado entre as partes que a celebração do contrato prometido dependia da parcela de terreno prometida vender estar legalizada para construção e que era aos promitentes vendedores que incumbia suportar os custos de tal legalização; por outro, só estes estavam habilitados a realizar os actos possibilitadores de tal legalização, pois, só eles tinham legitimidade para junto das entidades competentes promover os procedimentos necessários a tal legalização (cfr., designadamente, o regime previsto no DL 555/99, de 16.12).
Ana Prata (in, O Contrato Promessa e o seu Regime Civil, p. 658) esclarece:
O comportamento debitório do promitente comporta todas as componentes, positivas e negativas, funcionalizadas a permitir que o negócio prometido se celebre nos exactos termos convencionados, isto é, com aptidão jurídica e material para satisfazer os interesses finais dos contraentes.”.
É esta, aliás, a interpretação que se impõe a qualquer declaratário normalmente diligente (cfr. art.ºs 236º a 238º, do CC).
E, tanto assim é, que resulta demonstrado nos autos que foram os réus/recorrentes quem diligenciou e obteve junto da entidade camarária a desanexação da parcela de terreno em causa - cfr. pontos 10 e 11 do elenco dos factos provados.
Não procederam, contudo, os réus/recorrentes à legalização da parcela de terreno objecto do contrato promessa para construção, com elaboração de projecto de construção e de especialidade, conforme também ressuma do ponto 13 dos factos dados como provados.
Consequentemente, a violação de tal obrigação secundária/instrumental – legalização da parcela de terreno para construção -, tanto podia gerar uma situação de mora da própria obrigação principal, como o seu incumprimento definitivo, como acima se referiu.
E, no caso concreto, como definir juridicamente a situação criada?
Desde logo há que salientar que nenhum prazo foi estipulado para o cumprimento da propalada obrigação secundária.
As partes não fixaram um prazo para a obtenção de tal legalização da parcela de terreno para construção, apesar de a concretização do contrato prometido depender dessa legalização (certamente por entenderem não ser possível prever quanto tempo poderia demorar a apreciação e aprovação desse licenciamento).
Assim sendo, estamos perante uma obrigação instrumental pura (sem prazo) que condiciona, ela própria, o momento do vencimento da obrigação principal.
Ora, como é sabido, não há mora sem interpelação judicial ou extrajudicial (art.º 805º, nº 1 CC), razão pela qual, fosse qual fosse o motivo do atraso dos réus/recorrentes (mesmo que negligente) em obterem a referida legalização, não estavam constituídos em mora, exactamente porque não foi convencionado qualquer prazo para o cumprimento da referida obrigação secundária.
Tal não significa, evidentemente, que ficou na disponibilidade dos réus cumprirem a dita obrigação instrumental quando quisessem ou quando pudessem. Na verdade, a interpretação do contrato não aponta minimamente em tal sentido, mas antes para a obrigação secundária ou instrumental de promoverem aqueles actos dentro de um lapso de tempo que se mostre necessário e razoável com vista a permitir o cumprimento da obrigação principal.
Decorrido tal prazo razoável, de acordo com as circunstâncias de cada caso e, por isso, tendo em conta a complexidade e presumível demora dos actos preparatórios da escritura, sem que o promitente onerado com o cumprimento da obrigação secundária a concretize, parece que os princípios da boa-fé imporão que se defira à outra parte a faculdade de interpelação, fixando ela, por sua vez, um prazo razoável para o cumprimento da obrigação instrumental de que depende a obrigação principal, ou recorrendo ao tribunal para a fixação desse prazo, se a natureza da prestação ou as circunstâncias que a determinarem tornarem necessário o recurso ao processo especial previsto nos art.ºs 1026º e 1027 do NCPC, que adjectivam o disposto no art.º 777º do CC.
Neste sentido, Ana Prata refere que seo promitente não realizou os trabalhos, obra ou reparações tendentes ao aprontamento do bem nos termos convencionados (…) tem o promissário [como primeiro momento de exercício do direito ao crédito principal] direito de exigir que sejam adoptadas as medidas económicas ou materiais para que a coisa se apresente com a identidade e qualidades convencionadas” (obra e loc. citados).
Fixado o prazo nos termos referidos, se o interpelado não cumprir a obrigação secundária em causa, constituir-se-á em mora quanto a ela, o que arrastará a mora em relação à obrigação principal dado o vínculo funcional que as liga.
Só então tal mora poderá, posteriormente, ser convertida em incumprimento definitivo, quer pela perda de interesse do credor, quer através da competente interpelação admonitória.
Deste modo, perante tudo quanto deixamos exposto, no caso concreto, só se pode concluir que os réus não se encontravam em situação de mora.
Com efeito, não tendo cuidado sequer o autor/recorrido de interpelar os réus para o cumprimento de tal obrigação – e muito menos de obter previamente a fixação judicial de prazo para tal efeito – é por demais evidente que os réus não incorreram em mora, e por maioria de razão, não incorreram em incumprimento definitivo, capaz de fundamentar a peticionada e declarada resolução do contrato.
Deste modo, não podemos acompanhar o tribunal recorrido quando concluiu pela verificação de perda (objectiva) de interesse de ambas as partes na prestação em falta.
Com efeito, e muito embora, nem os réus – nem o autor - tenham realizado qualquer diligência no sentido da obtenção da legalização em falta ou sequer interpelado a outra parte para tal efeito, como salientou o tribunal a quo, decorre de tudo o que antes ficou dito, que a demonstração da perda do interesse do credor apenas releva nos casos em que se verifica mora na prestação, ou seja, mora na celebração do contrato definitivo, obviamente imputável ao devedor (o que, como vimos, não se verifica no caso).
De todo o modo, não se pode confundir esta figura jurídica da “perda objectiva do interesse na prestação em mora”, prevista no art.º 808º do CC com o desinteresse ou desistência posterior à celebração do contrato (cfr. a propósito desta questão o ac. da RL de 17.05.2028, já supra citado).
Como já explicamos, essa perda de interesse deve ser avaliada “em termos objectivos e não na perspectiva dos interesses subjectivos do credor em causa” – cfr. ac. da RP de 5.05.2016, processo nº 4291/13.9TBVFR.P1, disponível in jurisprudência.pt.
Analisada a factualidade coligida nos autos e ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, afigura-se-nos ter ocorrido apenas um desinteresse - de ambas as partes e até certo momento – quer no cumprimento da obrigação secundária, quer no cumprimento da obrigação principal, mas que não releva para efeitos do disposto no aludido normativo legal.
Ante todo o exposto, não pode, pois, subsistir a declaração de resolução do contrato promessa ora em causa e subsequentemente, a condenação dos réus na restituição ao autor do sinal em singelo, revogando-se a sentença recorrida nessa parte.
Procede, pois, a pretensão recursória dos réus neste segmento.
*
b. quanto à verificação dos pressupostos da execução específica peticionada pelos recorrentes e (sendo o caso, da existência de abuso de direito)
Vieram ainda defender os réus/reconvintes que foi o autor/reconvindo quem incorreu em mora por ter incumprido a obrigação de marcar a escritura pública referente ao contrato prometido, apesar de ter sido fixado judicialmente prazo para tal efeito e os promitentes vendedores terem interpelado o autor no sentido de ser marcada escritura definitiva, sob pena de considerarem o contrato incumprido por culpa exclusivamente imputável a este, o que lhes confere o direito à execução específica do contrato.

Apreciemos, então.     
A execução específica encontra-se prevista no art.º 830º do CC que dispõe no seu nº 1 que Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”.
Deste modo, através da execução específica o tribunal emite uma sentença que supre a declaração negocial do faltoso, assim vendo o credor, que não viu cumprida a prestação a que tinha direito por incumprimento do devedor, satisfeito o seu interesse.
Como se diz no ac. do STJ de 30.05.2023, processo nº 9367/22.9T8PRT-A.S1, acessível in www.dgsi.pt: “A ação de execução específica de uma obrigação de contratar é uma ação declarativa de natureza constitutiva, através da qual se opera uma modificação jurídica consistente no suprimento do instrumento contratual omitido, ou seja, ela não substitui apenas a declaração negocial do faltoso, mas o próprio contrato que entre as partes não foi celebrado.”.
Ora, “[p]ara se obter uma sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, é necessária a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: que não seja incompatível com a substituição da declaração negocial a natureza da obrigação assumida pela promessa, que inexista convenção em contrário e o incumprimento do contrato.
A execução específica, (…), tem pois de ter como fundamento o incumprimento, bastando-se com a mora do devedor.
Na verdade, não pode haver lugar à execução específica se inexistir incumprimento do devedor; daí que, desde logo, tenha que existir incumprimento do devedor, ainda que exprima mora.” (vide, ac. desta Relação de Guimarães de 17.12.2020, relatado pela aqui 1ª adjunta Raquel Baptista Tavares no processo nº 760/13.9TBPTL.G1 e disponível in www.dgsi.pt).
No caso dos autos, decorre do que já deixamos acima explanado que a marcação da escritura pública – obrigação a cargo do autor/recorrido – estava dependente do cumprimento da obrigação secundária de legalização da parcela de terreno prometida vender para construção.
Ou seja, só se tivessem sido realizados os actos necessários para a concretização do negócio prometido nos exactos termos convencionados, é que o autor estava obrigado a cumprir a obrigação de marcar a escritura pública.
Isto independentemente de ter sido fixado judicialmente o prazo de 30 dias para a marcação da escritura pública. Na verdade, e conforme resulta expresso no acórdão proferido por esta Relação na respectiva acção de fixação judicial de prazo: “atenta a natureza e processamento desta acção (de jurisdição voluntária - art. 986º e ss. do C.P.C.- cuja tramitação é simples e célere), cai fora do seu objecto quaisquer questões de carácter contencioso como a existência, validade ou eficácia do direito que está na génese de tal pedido, pois não se visa aqui exigir o cumprimento da obrigação. Estas questões ficam relegadas para a eventual acção em que se peça este cumprimento.” (cfr. documentos ... a ... juntos com a petição inicial).
Por conseguinte, é por demais manifesto que, não estando o autor obrigado a marcar a escritura pública enquanto não estivesse legalizada a parcela de terreno para construção, não pode se considerar estar este constituído em mora, sendo a interpelação que lhe foi dirigida pelos réus ineficaz para tal efeito.
Ou seja, do prévio cumprimento da obrigação secundária dependia a definição da data para o autor cumprir a prestação por ele contratualmente assumida. Só com o dito cumprimento e subsequente decurso dessa data, sem satisfação da prestação devida, o constituiria em mora.
Uma vez que ainda se mantém incerto o prazo de cumprimento do contrato-promessa, o autor não se constituiu em mora e nenhuma das partes incumpriu o referido contrato, que, assim, se mantém em vigor.
Inexiste assim o necessário incumprimento para proceder a execução especifica.
Não assiste, por isso, razão aos réus/recorrentes quando sustentam que, no caso, têm o direito a recorrer ao regime da execução específica.
E fica, assim também por isso, naturalmente prejudicada a apreciação da questão do abuso de direito, bem como a reapreciação da decisão da matéria de facto, dado que nenhuma alteração traria ao ora decidido (cfr. art.º 608º, nº 2, do NCPC).
Improcede, pois, neste segmento o recurso interposto.
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Conclui-se desta forma pela procedência parcial do recurso interposto pelos réus, revogando-se a sentença recorrida na parte em que declara a resolução do contrato promessa e condena os réus a restituir ao autor o sinal prestado, mantendo-se o decidido na mesma quanto ao demais.
As custas do presente recurso são, pois, da responsabilidade dos recorrentes e do recorrido, que se fixa na proporção de metade (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida na parte em que declara a resolução do contrato por incumprimento definitivo e condena os réus a restituir ao autor a quantia de € 15.000,00, mantendo-se o ali decidido quanto ao demais.
Custas do recurso a cargo dos recorrentes e do recorrido, na proporção de metade.
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Guimarães, 7.03.2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Raquel Baptista Tavares
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. José Cravo