Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
75/22.1T8VCT.G1
Relator: JOÃO PAULO PEREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
DANO PATRIMONIAL
PERDA SALARIAL
DÉFICE FUNCIONAL TEMPORÁRIO
DANO BIOLÓGICO
DANO FUTURO
DANO DA PRIVAÇÃO DO USO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/04/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A fixação de uma indemnização a título de perdas salariais pressupõe que o lesado tenha sofrido uma efectiva perda na sua esfera patrimonial durante os períodos de défice funcional temporário, ao contrário do que sucede com a indemnização por danos futuros decorrentes da perda permanente de capacidade de ganho em que a sua quantificação pode ser feita com base num critério abstracto, mesmo não tendo ficado demonstrado um concreto dano.
II – O dano biológico tem por base a existência de uma limitação ou diminuição funcional decorrente do evento danoso, que se traduz num maior esforço para o exercício de qualquer actividade, pelo que não é de fixar indemnização a este título se o lesado não ficou afectado, em consequência do acidente, de sequelas permanentes com repercussão na sua actividade profissional e vida diária em geral.
III – A privação do uso de um veículo constitui um dano indemnizável por si só, sem necessidade de ser alegado e provado um concreto prejuízo monetário quantificado. A indemnização é devida até ao seu efectivo pagamento ou à entrega do veículo reparado, mesmo que antes a seguradora tenha concluído tratar-se de um caso de perda total.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães,

I – Relatório

AA propôs acção declarativa sob a forma de processo comum contra EMP01... – Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe:

- a quantia de € 86.679,00 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais;
- as despesas que venham a ocorrer pelos tratamentos futuros de que venha a carecer;
- a indemnização que se vier a liquidar quanto a danos futuros;
- os juros de mora a partir da citação e os que se vencerem até efectivo pagamento.
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Alegou, para tal, ter sofrido danos daquela natureza para cujo ressarcimento indicou aqueles montantes na sequência de acidente de viação cuja responsabilidade imputa a condutor de veículo automóvel seguro na ré.
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Citada, a Ré contestou, assumindo que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do seu segurado, mas impugnando a extensão dos danos e os montantes peticionados pelo Autor a este título.
Concluiu pela improcedência dos pedidos formulados pelos Autores.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador, onde foi fixado à acção o valor indicado na petição inicial (€ 86.679,00).
Após, foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova.
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Procedeu-se à audiência de julgamento e foi, de seguida, proferida sentença, na qual a Ré foi condenada no pagamento ao Autor da quantia global de € 8.545,45, sendo:

- € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados desde a prolação da decisão e até efetivo e integral pagamento;
- € 3.545.45 a título de danos patrimoniais (diferenças salariais), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento.
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Inconformada, a Ré interpôs recurso desta sentença, pugnando pela redução do montante arbitrado a título de danos não patrimoniais (pretendendo que seja fixado em € 2.000,00) e pela revogação da decisão na parte respeitante às diferenças salariais ou, subsidiariamente, a redução da indemnização para quantia não superior a € 1.000,00.

Terminou as suas alegações de recurso formulando conclusões que resumem aquela  pretensão.
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O Autor apresentou resposta às alegações de recurso do Autor, defendendo a improcedência do mesmo.
Interpôs, ainda, recurso subordinado, na parte em que a sentença não arbitrou qualquer indemnização pelo dano biológico, pela privação do uso do veículo e pelas despesas médicas, terapêuticas e de reabilitação e também no tocante ao valor atribuído a título de danos não patrimoniais, pretendendo, assim, que lhe sejam arbitrados, respectivamente, € 7.500,00, € 10.020,00 e € 814,00 e que o valor relativos aos danos não patrimoniais seja fixado em € 20.000,00.
Formulou as respectivas conclusões, resumindo a sua pretensão.
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Os recursos foram admitidos como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos com efeito meramente devolutivo.
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Nesta Relação foram considerados os recursos corretamente admitidos e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Das questões a decidir

O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).

Assim, as principais questões que importa apreciar e decidir, da conjugação de ambos os recursos (independente e subordinado), são as seguintes:
1. apurar se o valor arbitrado pela primeira instância a título de diferenças salariais se mostra correctamente fixado;
2. determinar o valor adequado a título de danos não patrimoniais;
3. apreciar se deve ser arbitrada ao Autor indemnização pelo dano biológico, pela privação do uso do veículo e por despesas médicas, terapêuticas e de reabilitação.
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III – Fundamentação

III – I. Da Fundamentação de facto
           
Na sentença sob recurso foram considerados provados os seguintes factos:

1. No dia 14 de janeiro de 2019, por volta das 18h30, no cruzamento formado pela Avenida ... e a Rua ..., na freguesia ..., concelho ..., ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-JZ-.., conduzido pelo Autor e propriedade deste, e o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-SV, conduzido pelo seu proprietário BB.
2. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o JZ circulava pela Avenida ..., no sentido nascente poente, pela respectiva hemi-faixa direita de rodagem, a uma velocidade inferior a 50 km/hora, e o SV circulava na mesma artéria, em sentido contrário, qual seja poente-nascente, a uma velocidade superior a 60 km/hora.
3. No cruzamento onde deflagrou o embate, situada numa localidade em que a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora, a Avenida ... dispõe de uma hemi-faixa central de aproximação e mudança de direção à esquerda, atento o sentido de marcha poente-nascente, marcada no pavimento e dotada do sinal STOP ali impresso a tinta branca, destinada à circulação dos veículos que pretendam passar a circular pela Rua ....
4. À data, fazia bom tempo e o piso encontrava-se seco e limpo.
5. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, quando o JZ se encontrava em circulação pela predita Avenida ..., em progressão de marcha pela respectiva hemi-faixa direita e em direcção a poente, foi surpreendido pelo inesperado atravessamento da via pelo SV, cujo condutor se aproximou do cruzamento ali existente e iniciou a sua transposição, efectuando a respectiva manobra de mudança de direcção com vista a passar a circular pela Rua ... sem que tenha antes detido a sua marcha e respeitado o sinal de paragem obrigatória que se lhe apresentava, ou sequer diminuído a velocidade que imprimia ao respectivo veículo, tendo vindo a colidir com a respectiva parte lateral direita na frente do JZ, projectando-o para o lado oposto da via de circulação, e vindo a imobilizar-se no separador central de intercepção.
6. O Autor, condutor do JZ, não conseguiu evitar o embate, embora ainda tenha empreendido a travagem e mudança de direção do mesmo para a esquerda.
7. O acidente deu-se por culpa única e exclusiva do condutor do veículo automóvel de matrícula SV, o que é aceite pela Ré seguradora.
8. Estava transferida para a Ré, EMP01... Companhia de Seguros, S.A., a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-SV, através de contrato de seguro, válido e eficaz, titulado pela apólice nº ...68, em vigor à data da ocorrência dos factos que estão na origem da presente ação.
9. Na sequência dos danos sofridos pelo veículo JZ, este foi rebocado para a oficina do reparador autorizado e concessionário automóvel e submetido a peritagem efectuada pela Ré, nos termos da qual foi estimado um custo de reparação na ordem dos 27.716,49, com possibilidade de agravamento.
10. Na sequência da referida peritagem, a Ré remeteu comunicação escrita ao Autor, datada de 04.02.2019, informando-o de que, tendo apurado que o valor venal do JZ se cifrava, à data, em € 21.904,00, se impunha a regularização dos referidos danos como perda total, desde logo dando conta de proposta de aquisição do salvado, válida até 23.03.2019, pelo valor de € 9.000,00.
11. O Autor não aceitou a proposta da Ré, tendo diligenciado pela reparação do veículo, pelo valor de € 17.930,01, o qual foi por si levantado na oficina id. em 9. aos 13.11.2020.
12. Entretanto, a Ré veio aceitar o referido custo de reparação, liquidando ao Autor, com o adicional do custo da inspecção técnica extraordinária, o valor de € 18.039,98.
13. No próprio dia do sinistro o Autor foi encaminhado para o Serviço de Urgência do Hospital ... (...), onde foi submetido a exames complementares de diagnóstico e, não tendo evidenciado sinais de fratura já após observação pelos serviços de Cirurgia Geral e Ortopedia, foi-lhe dada pelas 00h07 do dia seguinte (15.01.2019), com indicação de realizar repouso e analgesia, assim como ser seguido no médico de família.
14. Depois de ter recorrido ao Centro de Saúde ..., onde lhe foi receitada medicação analgésica, atenta a manutenção das dores, recorreu a uma consulta particular de Fisiatria na Clínica ... (...), onde terá sido tratado durante cerca de 8 meses com fisioterapia.
15. De acordo com os registos do GML, constam em nome do ora Autor os seguintes processos por acidentes de trabalho prévios ao evento em apreço: 65/14.8T8VCT (2014/...98...-C-MLTR1), onde é atribuída uma incapacidade permanente por sequelas ao nível do ombro direito (rotura do tendão subescapular, tendo sido identificada também tendinose importante dos tendões supra e infraespinhosos), após tratamento cirúrgico do mesmo; e 2062/15.7T8VCT (2015/...45...-C-MLTR1), onde foi atribuída incapacidade permanente por ter sofrido um entorse do tornozelo esquerdo (com rotura parcial do ligamento
deltoide).
16. Como queixas, o Autor apresenta:
A nível funcional:
Postura, deslocamentos e transferências: dificuldade em permanecer durante horas em pé e ao caminhar, por sentir dor no final do dia e o joelho direito e tornozelo esquerdo inchados; dificuldade em caminhar em pisos irregulares, subir ou descer escadas, sendo mais difícil subir;
Manipulação e preensão: dificuldade em posicionar o membro superior direito no espaço; Fenómenos dolorosos: ao nível do ombro e joelho direito e tornozelo esquerdo, diárias, com os esforços físicos e as mudanças climatéricas; sendo necessária a toma de medicação analgésica (anti-inflamatório «otorox90®») diária; Outras queixas a nível funcional: sentirá o joelho direito e tornozelo esquerdo inchado no final do dia.
A nível situacional:
Atos da vida diária: sentirá dificuldade em calçar o sapato e meias no pé direito por sentir dor no joelho homolateral; terá deixado de andar de bicicleta por sentir dor no joelho "por indicação médica" (sic), seria um meio de transporte que usaria para realizar percursos curtos "moro perto do trabalho e ia de bicicleta" (sic); refere que após limpar a cozinha ou cozinhar sentirá dores no ombro direito; Vida afetiva, social e familiar: terá deixado de jogar a futebol com os sobrinhos "3 ou 4 vezes por semana" (sic); terá diminuído a frequência com a que assistia ao ginásio, realizando atividades aquáticas atualmente, por conselho médico; Vida profissional ou de formação: terá contratado um funcionário para o substituir, por sentir dor no ombro ao servir cafés e permanecer em pé a jornada laboral.
17. Como sequelas das lesões sofridas, o Autor apresenta: Membro superior direito: cicatriz cirúrgica, oblíqua ínfero-lateralmente, na face anterior do ombro com 10.5cm (resultante de acidente de trabalho há 8 anos); amiotrofia escapular, sem amiotrofia braquial, medida a 15cm do olecrano (32 cm bilateralmente); mobilidades do ombro dentro dos parâmetros da normalidade; não referidas como dolorosas durante o exame "fico com dor quando carrego peso" (sic); Membro inferior direito: cicatriz vertical no bordo interno do joelho, com 4cm (resultante de acidente de viação há mais de 20 anos); ausência de edema de
grande e moderado volume intra-articular no joelho, na altura do exame; não foi referida como doloroso à palpação da rótula; ausência de amiotrofia da coxa medida a 15 cm do polo superior da rótula (48cm bilateralmente); ausência de instabilidade ligamentar, sinais meniscais negativos, mobilidades do joelho dentro dos parâmetros da normalidade; força completa grau V.; Membro inferior esquerdo: TORNOZELO: sinais de edema e telangectasias, mais abundantes que no tornozelo contralateral; aparentes 4 cicatrizes de aspeto cirúrgico, duas no rebordo superior e anterior do maléolo interno e duas nos mesmo rebordos do maléolo externo, a maior com 2.5cm e a menor com 1cm; palpação não referida como dolorosa; mobilidades da articulação tibiotársica dentro dos parâmetros da normalidade; exame das mobilidades do tarso
prejudicado pela resistência efetuada pelo examinando.
18. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 19.03.2019.
19. O Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável num período de 1 dia e o Período de Défice Funcional Temporário Parcial é fixável num período 64 dias, sendo o Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável em 1 dia e o Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial fixável em 64 dias.
20. O Quantum Doloris é fixável no grau 2/7.
21. Não são valorizáveis parâmetros de dano no âmbito dos danos permanentes.
22. À data do sinistro, o autor tinha 52 anos de idade.
23. Na data do acidente, o Autor exercia a actividade profissional de empresário no ramo da restauração, pela qual explorava o estabelecimento de pastelaria denominado ..., na freguesia ..., concelho ....
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Foram, por sua vez, dados como não provados os seguintes factos:
a) O Autor comunicou à Ré a sua não aceitação da proposta de indemnização por perda total.
b) Durante o período em que o JZ se encontrou imobilizado na oficina (entre 14.01.2019 e 13.11.2020), o Autor viu-se privado de veículo próprio para as suas deslocações diárias, quer de trabalho quer de lazer, tendo sido obrigado a socorrer-se da ajuda de veículos de terceiros ou de transportes públicos.
c) Pelo desempenho da actividade profissional descrita em 23., o Autor auferia um salário médio mensal líquido de € 1.500,00.
d) Na sequência do acidente, o Autor esteve totalmente incapacitado para o trabalho até 05.08.2019, após o que manteve uma incapacidade de 50% até 11.11.2019.
e) O Autor obteve alta clínica em 28.11.2019, apresentando sequelas permanentes que lhe determinam uma afectação permanente da integridade físico-psíquica de 14 pontos, com repercussão na sua actividade profissional e vida diária.
f) As sequelas decorrentes do acidente de viação causam ao Autor dores físicas intensas, incómodos e mal-estar, na medida em que o mesmo deixou de poder fazer algumas tarefas do dia-a-dia e de desporto e lazer que antes fazia e outras só com maior sacrifício e dor os consegue fazer, o que afectou a sua saúde e a sua qualidade de vida.
g) Por força do sinistro em sujeito, o Autor despendeu (ainda) uma quantia global de € 814,00 referente a taxas moderadoras, consultas médicas e de avaliação corporal, deslocações a clínica de fisioterapia e aos serviços clínicos da Ré.
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III - II. Do objeto do recurso
           
a) Diferenças salariais:
A primeira questão a tratar consiste em apurar se o valor arbitrado pela primeira instância a título de diferenças salariais se mostra correctamente fixado.
Na sentença sob recurso escreveu-se a este propósito (apenas) o seguinte:
A título de danos patrimoniais, designadamente quanto ao peticionado prejuízo relativo a perdas salariais, afigura-se-nos apenas atribuir uma indemnização de € 3.545,45 correspondente a um Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável em 1 dia acrescido de um Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial fixável em 64 dias e a um salário médio mensal líquido de € 1.200,00.”.
Nas suas alegações de recurso a Ré Seguradora defende que que a decisão deve ser revogada ou, caso assim se não entenda, esta indemnização deve ser reduzida para montante não superior a € 1.000,00.
Por sua vez, o Autor refere que o montante arbitrado é modesto, mas conforma-se com o mesmo.
Vejamos:
Quando, na sequência de um acidente de viação, o sinistrado não responsável pelo mesmo sofre um dano decorrente de perdas salariais, por ter ficado afectado de incapacidade temporária (absoluta e/ou parcial) para o desempenho da sua profissão, pode haver lugar ao pagamento de indemnização no valor correspondente.
A obrigação de indemnizar encontra-se prevista nos art.ºs 562.º e segs. do Cód. Civil, dispondo este artigo que: “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”.
O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado (dano emergente), como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão  -  lucro cessante (art.º 564.º, n.º 1, do Cód. Civil).
No caso em apreço ficou assente que o Autor ficou afectado de défice funcional temporário total durante 1 dia e parcial de 64 dias, com iguais períodos de repercussão temporária na atividade profissional (ponto 19.º) e que, na data do acidente, exercia a actividade profissional de empresário no ramo da restauração, pela qual explorava o estabelecimento de pastelaria denominado ..., na freguesia ..., concelho ... (ponto 23.º).
No entanto, não resultou provado que o Autor auferisse um salário médio mensal líquido de € 1.500,00, nem que as sequelas do acidente o tenham efectivamente afectado [cfr. als. c) e f) dos factos não provados].
Mas será que se poderá atribuir, mesmo assim, uma indemnização a título de perdas salariais durante os referidos períodos de défice funcional temporário, com base num critério abstracto de remunerações não concretamente auferidas ou que devessem ser auferidas nesses períodos, mesmo não tendo ficado demonstrado um concreto dano?
A resposta a esta questão terá que ser negativa.
Com efeito, no caso em apreço não ficou demonstrado que o Autor tenha sofrido um efectivo dano patrimonial, ou seja, que tenha deixado de obter, por força do acidente, o benefício monetário que invocou. Em suma, que tenha, em concreto, ocorrido uma verdadeira perda salarial na sua actividade de empresário do ramo da restauração.
Ora, estando perante um alegado dano resultante de lucros cessantes, para a atribuição de qualquer indemnização a este título é necessário que o lesado tenha, de facto, sofrido uma efectiva perda na sua esfera patrimonial durante os dias de incapacidade temporária, o que não se provou ter sucedido no caso em apreciação.
Assim, ao contrário do que sucede com os danos futuros decorrentes da perda permanente de capacidade de ganho (em que se faz um juízo de previsibilidade com recurso a juízos de equidade  -  art.ºs 564.º n.º 2 e 566.º n.º 3 do Cód. Civil), não se verificando uma efectiva perda salarial, não existe obrigação de indemnizar neste particular (neste sentido e entre outros, cfr. os Acs. da R.G. de 04/10/2018, Proc.º n.º 305/16.9T8BGC.G1, Rel. Pedro Damião e Cunha e de 05/12/2024, Proc.º n.º 993/23.0T8VCT.G1, Rel. Paulo Reis, ambos in www.dgsi.pt).
Procede, por isso, o recurso deduzido pela Ré nesta parte, com a consequente revogação da sentença, no que respeita à condenação da Ré no pagamento da quantia de € 3.545.45 a título de diferenças salariais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento, não sendo de atribuir qualquer quantia a este título.
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b) Danos não patrimoniais

Passemos, agora, aos danos não patrimoniais.
A Ré, no seu recurso independente, invoca que o montante fixado a este título em primeira instância é exagerado em face das sequelas sofridas pelo Autor, referindo que a quantia de € 5.000,00 arbitrada em primeira instância tem sido a aplicada noutros casos de gravidade substancialmente superior. Defende, por isso, como adequada a quantia de € 2.000,00.
No seu recurso subordinado, o Autor pugnou pela fixação a este título de uma indemnização no valor de € 20.000,00.
De acordo com o previsto no art. 496º do Cód. Civil devem ser ressarcidos os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
O tribunal deve fixar ao lesado uma compensação em dinheiro em termos equitativos (arts. 496º e 566º, nº 3 do Cód. Civil), atendendo ainda às circunstâncias referidas no art. 494º do Cód. Civil.
Nesta sede não está em causa uma verdadeira reparação, com a finalidade de reconstituir a anterior situação do lesado (como acontece, em regra, na obrigação de indemnizar - art. 562º do Cód. Civil), não só porque a situação anterior não pode mais ser reposta, mas também porque os danos sofridos são insusceptíveis de tradução monetária.
Antes se trata de uma compensação ou satisfação que contrabalance os sofrimentos do lesado em virtude de toda a situação resultante do acidente.
Daqui se pode, desde logo, concluir que a quantificação da justa medida da compensação pelos danos não patrimoniais encontra dificuldades inerentes à própria natureza dos mesmos (atingem valores de carácter moral ou espiritual) e afigura-se de grande complexidade, atenta a sua não mensurabilidade.
No entanto, é óbvio que estas dificuldades práticas do cálculo do quantitativo da indemnização por tais danos não podem fazer com que eles fiquem sem indemnização, sendo imprescindível o recurso a juízos de equidade e ao prudente arbítrio do julgador, por forma até a que a compensação tenha um alcance significativo e não meramente simbólico.
Deve, então, o tribunal fixar ao lesado uma compensação em dinheiro em termos equitativos (arts. 496º e 566º, nº 3 do Cód. Civil), atendendo ainda às circunstâncias referidas no art. 494º do Cód. Civil e à gravidade do dano, e tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência e bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida (neste sentido, P. Lima - A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., em anotação ao art. 496º, e Ac. do S.T.J. de 10/2/98, C.J.S.T.J., tomo 1, pág. 65).
Por fim, como tem vindo a afirmar-se na jurisprudência, o recurso à equidade não afasta, porém, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não obstante a particularidade de cada caso concreto (neste sentido, cfr. o Ac. STJ de 17/05/2012, Proc.º n.º 48/2002.L2.S2, Rel. Maria dos Prazeres Beleza, in www.dgsi.pt).
Analisando agora a situação em concreto à luz das considerações supra expostas, há que considerar os factos dados como provados na sentença de primeira instância (atendendo a que não foi impugnada a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no art.º 640.º do C.P.C.), com relevo para esta questão, que são os seguintes (pontos 13.º, 14.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º e 22.º):
- no Serviço de Urgência do Hospital ..., o Autor foi submetido a exames complementares de diagnóstico e, não tendo evidenciado sinais de fratura, foi-lhe dada pelas 00h07 do dia seguinte (15.01.2019), com indicação de realizar repouso e analgesia;
- recorreu a uma consulta particular de Fisiatria na Clínica ... (...), onde terá sido tratado durante cerca de 8 meses com fisioterapia;
 - o Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável num período de 1 dia e o Período de Défice Funcional Temporário Parcial é fixável num período 64 dias, sendo o Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável em 1 dia e o Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial fixável em 64 dias;
- o Quantum Doloris é fixável no grau 2/7;
- não são valorizáveis parâmetros de dano no âmbito dos danos permanentes;
- à data do sinistro, o autor tinha 52 anos de idade.
São estes os factos a ter em conta neste particular, salientando-se ainda que não se provou que o Autor apresente sequelas permanentes na sua integridade físico-psíquica, nem que tais sequelas tenham causado dores intensas (como vimos, o quantum doloris foi fixado apenas em 2/7), incómodos e mal-estar, ou que por via das mesmas sequelas o Autor tenha deixado de poder fazer algumas tarefas que antes fazia [als. e) e f)].
Abre-se aqui um parêntesis com vista a efectuar um esclarecimento.
Os factos elencados nos pontos 15.º, 16.º e 17.º dos factos provados podem ser susceptíveis de gerar alguma confusão relativamente ao nexo de causalidade das lesões e sequelas aí descritas.
A verdade, porém, é que se nos afigura inequívoco que respeitam a patologias anteriores de que padecia já o Autor, nomeadamente sequelas dos acidentes de trabalho indicados no ponto 15.º e, como tal, sem qualquer nexo de causalidade com o acidente dos autos, o que é claro se atentarmos a que, no que respeita a este último, foi dado como provado de forma categórica que “não são valorizáveis parâmetros de dano no âmbito dos danos permanentes”, motivo pelo qual não foi atribuído qualquer coeficiente a título de défice da integridade física e psíquica deste tipo.
A sentença de primeira instância reproduziu, assim, o que consta do relatório pericial junto aos autos a 11 de Janeiro de 2024, onde as referidas lesões e sequelas indicadas nos pontos 15.º, 16.º e 17.º dos factos provados são descritas (na parte do relatório correspondente a “Estado em 23.11.2022”, referindo-se evidentemente ao estado geral em que se encontrava o Autor à data da avaliação clínica, identificando as queixas deste e descrevendo o exame objectivo), mas onde se conclui de forma taxativa que essas lesões e sequelas não têm relação com o evento (ponto B 3. do relatório pericial), indicando-se aí claramente no ponto anterior (B 2.) que “O examinado não apresenta lesões ou sequelas” relacionáveis com o evento.
Ora, dos referidos factos provados sob os pontos 13.º, 14.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º e 22.º da matéria de facto provada não se retira, obviamente, que o Autor tenha sofrido, em consequência do acidente dos autos, as sequelas indicadas pelo mesmo nas alegações de recurso, nomeadamente nos pontos XLVII, LXXIII, CXLVIII,  CXLIX e CLIX.
A verdade é apenas esta: o Autor não ficou com sequelas permanentes das lesões sofridas com este acidente!
É o que resulta do ponto 21.º dos factos provados e, “a contrario”, das als. e) e f) das matéria de facto não provada, o que, de resto, é agora imutável, uma vez que (saliente-se de novo) não foi apresentada impugnação da matéria de facto.
Efectuado este esclarecimento, passemos agora à fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais, com base nos factos provados sob os pontos 13.º, 14.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º e 22.º supra descritos.
Como se disse, o Autor realizou repouso e analgesia, tendo sido tratado durante cerca de 8 meses com fisioterapia.
Esteve apenas um dia com défice funcional total, mas mais de dois meses (64 dias) com défice funcional parcial, não tendo, no entanto, ficado com sequelas permanentes do evento, como já vimos,
Por sua vez o “quantum doloris” foi fixado abaixo do valor médio (2 em 7) e, por fim, o Autor tinha à data do sinistro 52 anos de idade, portanto um pouco acima da idade média considerando a esperança média de vida.
De referir, ainda, que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na Ré e, quanto à situação económica do Autor, nada ficou provado, sabendo-se apenas que o mesmo, à data do acidente, exercia a actividade profissional de empresário no ramo da restauração, pela qual explorava o estabelecimento de pastelaria.
Ora, ponderados todos estes factores, desde já se adianta que o valor fixado a este título na sentença de primeira instância (€ 5.000,00) mostra-se desadequado, por exagero, atentas as referidas consequências para o Autor resultantes do acidente.

No tocante à análise da jurisprudência relevante indica-se a seguinte:
- Ac. RG de 18.01.2018, processo 2272/15.7T8CHV.G1, in www.dgsi.pt, em que foi atribuída a compensação de € 4.000,00 a lesada que sofreu dores ao nível do membro superior direito e antebraço e escoriações na perna, com fratura dos 3º, 4º e 5º metacarpo da mão direita, que reclamaram tratamento com anti-inflamatório e analgésico e imobilização dos dedos e antebraço, através de gesso, durante 1 mês e 12 dias, determinando à sinistrada um défice temporário parcial e profissional durante 62 dias e um quantum doloris no grau 3 de 7 e que ficou curada sem sequelas;
- Ac. S.T.J. de 12-11-2020, processo 14697/16.6T8LSB.L1.S1, in www.dgsi, em que foi atribuída a compensação de € 5.000,00 a lesado que ficou afectado de um défice funcional temporário com repercussão temporária na actividade profissional total entre 26/06/2015 e 20/08/2015; um défice funcional temporário com repercussão temporária na actividade profissional parcial entre 21/08/2015 e 29/11/2015, um quantum doloris fixável no grau 2 /7, ficando afectado de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica em 3 pontos;
- Ac. RG de 27-05-2021, processo 5911/18.4T8BRG.G1, in www.dgsi.pt em que foi atribuído o valor de € 5.000,00 a um lesado de 53 anos que sofreu traumatismo nos membros superior e inferior esquerdos, traumatismo dentário, escoriações cutâneas, foi assistido no hospital tendo tido alta no mesmo dia, tomou medicação analgésica, efectuou fisioterapia, sofreu um quantum doloris de grau 3 numa escala de 7, apresenta reacção dolorosa moderada ao nível do membro superior esquerdo e lesão meniscal interna ao nível do membro inferior esquerdo e que devido ao défice funcional da integridade físico-psíquica de 2 pontos que passou a padecer tem de fazer esforços suplementares no exercício da sua actividade profissional;
- Ac. RP de 10/10/2024, processo 5692/21.4T8MAI.P1, in www.dgsi.pt, em que foi atribuída a compensação de € 2.250,00 a lesado que sofreu trauma crânio-encefálico, com dor moderada e cicatriz linear ténue, medindo 3 centímetros na região do vértex, sem défice funcional.
Com excepção deste último acórdão, todas as restantes situações apresentavam sequelas temporárias bem mais graves que a aqui em causa e algumas, mesmo, sequelas permanentes, o que leva à conclusão inevitável de que, efectivamente, o valor alcançado pela primeira instância é exagerado e o valor pretendido pelo Autor absolutamente descabido.
Assim, ponderando os mencionados factores e a citada jurisprudência, com base no critério da equidade e o princípio da igualdade já supra referidos, entendemos suficiente e adequada a indemnizar/compensar aqueles danos não patrimoniais a quantia de 2.500 euros.
Procede, pois, parcialmente o recurso independente interposto pela Ré e improcede o recurso subordinado deduzido pelo Autor quanto a esta questão.
*
3. Dano biológico, privação do uso do veículo e despesas médicas, terapêuticas e de reabilitação.

3.1 Dano biológico:

No seu recurso subordinado, o Autor invoca ter sofrido dano biológico funcional, não derivado de incapacidade permanente parcial (pois não foi atribuído défice permanente), mas em virtude de “limitação relevante da funcionalidade do lesado, com consequências duradouras na sua vida pessoal, social ou profissional.”.
O chamado dano biológico vem sendo caracterizado na jurisprudência como “…a diminuição somático-psíquica do lesado, com natural repercussão na sua vida, ressarcível como dano patrimonial ou compensável a título de dano moral, tudo dependendo de apreciação casuística, em termos de verificação se a lesão lhe originou, no futuro, durante o período ativo da sua vida, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz apenas numa afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.” (Cfr. Ac. STJ de 27/10/2009, processo n.º 560/09.0YFLSB, Rel.: Sebastião Póvoas, in www.dgsi.pt).
Como bem salienta o Autor nas suas alegações de recurso, mesmo que a afectação da pessoa do ponto de vista funcional não se traduza em perda efectiva do rendimento do trabalho (como acontece no presente caso), essa afectação funcional a nível da actividade geral do lesado (por exemplo, nas actividades de lazer e desportivas do lesado, etc…) é susceptível de indemnização por dano biológico – neste sentido, entre variados outros, vide os acórdãos do STJ de 4/6/2015 (proc. nº1166/10.7TBVCD.P1.S1), 20/10/2011 (proc. nº 428/07.5TBFAF.G1.S1), 31/5/2012 (proc. nº1145/07.1TVLSB.L1.S), 20/1/2010 (proc. nº 203/99.9TBVRL.P1.S1), 20/5/2010 (proc. nº 103/2002.L1.S1), 26/1/2016 (proc. nº2185/04.8TBOER.L1.S1), 12/7/2018 (proc. nº1842/15.8T8STR.E1.S1) de 29/10/2019 (proc. nº7614/15.2T8GMR.G1.S1), 10/12/2019 (proc. nº32/14.1TBMTR.G1.S1), 21/1/2021 (proc. nº6705/14.1T8LRS.L1.S1) e 12/1/2022 (proc. nº6158/18.5T8SNT.L1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Pressuposto para a atribuição de indemnização por dano biológico é, assim, a existência de uma limitação ou diminuição funcional decorrente do evento danoso, que se traduz num maior esforço para o exercício de qualquer actividade.
No caso em apreço, porém, não ficou provada a existência dessa limitação funcional no Autor como consequência do acidente sofrido.
Na verdade e ao contrário do que alega o Autor, não resulta dos factos provados a existência para o Autor de qualquer sequela do acidente, nomeadamente as indicadas nos pontos LXVII, LXVIII, LXXIII e LXXIV, sendo certo que, como já foi amplamente referido, o Autor não impugnou a decisão da matéria de facto.
Pelo contrário, foi considerado na sentença da primeira instância que “Não são valorizáveis parâmetros de dano no âmbito dos danos permanentes.” (ponto 21.º dos factos provados) e foi dado como não provado que o Autor apresente sequelas permanentes com repercussão na sua actividade profissional e vida diária em geral e que deixou de fazer tarefas do seu dia-a-dia e de desporto e lazer [als. e) e f)].
Perante esta factualidade dada como provada e não provada em primeira instância, não pode concluir-se ter resultado do acidente para o Autor qualquer afectação funcional, pelo que não é de atribuir indemnização a este título, improcedendo assim o recurso subordinado nesta parte.

3.2 Privação do uso do veículo:

Pretende o Autor a atribuição de uma indemnização que vise compensá-lo pelo período em que o seu veículo esteve paralisado (entre 04/01/2019, data do acidente e 13/11/2020, data em que aquele lhe foi entregue reparado), num total de 668 dias.
Apesar de não ter sido alegada a verificação de um concreto prejuízo monetário quantificado, não se encontra vedada a possibilidade de atribuição de uma indemnização, com recurso à equidade, para a privação do uso de um veículo, pois, como tem vindo a ser entendido na doutrina e na jurisprudência, esta situação configura um dano que é só por si indemnizável (mesmo na vertente de dano não patrimonial, respeitante aos incómodos e transtornos causados pela não disponibilidade do veículo, os quais merecem a tutela do direito nos termos do disposto no art. 496º, nº 1 do Cód. Civil).
Na verdade, a possibilidade de utilização de um veículo, o facto de ter o veículo disponível para dele se socorrer sempre que for necessário, faz parte do que “vulgarmente se chama qualidade de vida” e constitui uma das manifestações do direito de propriedade, pelo que a privação do seu uso e fruição constitui uma restrição a tal direito, a qual, quando ilícita e culposa, se enquadra na previsão geral do art. 483º do Cód. Civi (cfr. Ac. da RL, de 04/06/1998, in C.J., tomo 3, pág. 123).
Efectivamente, com tal privação “o veículo deixa de proporcionar ao lesado o proveito consequente da sua utilização”, o que constitui dano tutelado pelo direito, designadamente quando “a vida pessoal, familiar ou profissional deste justificam ou mesmo exigem” que tenha “ao seu dispor um veículo” (cfr. Ac. da R.P. de 02/05/2002, in www.dgsi.pt/jtrp).
Desta forma, discordando da posição assumida na decisão de primeira instância, terão que ser indemnizados os prejuízos resultantes para o lesado pelo facto de não poder socorrer-se do seu veículo, os quais serão tanto mais sensíveis quanto maior for o período de privação de tal uso (neste sentido veja-se também os Acs. da R.P. de 17/6/77, B.M.J. 271, pág. 281, e da R.E. de 26/3/80, C.J., tomo 2, pág. 96; cfr. ainda, relativamente a um caso de privação do uso de uma piscina de um aldeamento, o Ac. da R.E. de 2/7/98, C.J., tomo 4, pág. 255).
Sendo assim, o facto de o A. não poder dispor do seu automóvel, que usava nos termos referidos, configura um dano, o qual é consequência do acidente e, portanto, indemnizável, nos termos gerais dos arts. 562º, 563º e 564º, nº 1 do C.C..
Apesar de estarmos perante uma situação equiparável a perda total do veículo, a verdade é que o direito de indemnização pela privação do uso do mesmo se mantém.
Com efeito, a falta de viabilidade da reparação não retira ao lesado o prejuízo que sofreu pela privação do veículo, pelo menos até à data em que receba da seguradora a indemnização correspondente (neste sentido, entre muitos outros, cfr. os Acs. da R.P., de 05-02-2004, in CJ, Tomo I, pág. 179 e da R.G., de 11-11-2009, Proc. nº 8860/06.5TBBRG.G1, in www.dgsi.pt/jtrg). É que a perda do veículo implica um dano concomitante, que é o da privação do uso do veículo e de todas as utilidades que este poderia proporcionar.
Como defende Abrantes Geraldes (in “Indemnização do Dano da Privação do Uso”, pág. 39], a privação do uso, desacompanhada da sua substituição por um outro ou do pagamento de uma quantia bastante para alcançar o mesmo efeito, reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma "fatia" dos poderes inerentes ao proprietário. Deste modo, a simples privação do uso é causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que pode servir de base à determinação da indemnização. Alias, o simples uso do veículo constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano.
E o dano imediatamente ressarcível é precisamente a indisponibilidade do bem, qualquer que fosse a actividade (lucrativa, benemérita ou de simples lazer) a que o veículo estava afecto, pelo que deve, por si só, ser indemnizado com recurso critérios de equidade, tendo em conta a mera indisponibilidade do bem, mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexista prova de qualquer utilização lucrativa (neste sentido, cfr. o Ac. da R.C., de 26-11-2002, in C.J., Tomo V, pág. 19).
Na fixação da indemnização em apreço há que recorrer à equidade, nos termos do art. 566º, nº 3 do C.C..
Assim, considerando que estamos perante um veículo automóvel, entendemos adequada e proporcional a este título a quantia diária de € 15,00, como alias foi reclamado pelo Autor, a qual é devida (como já acima referimos) até à data do pagamento da indemnização respectiva.
No caso em apreço, porém, existe uma particularidade.
É que a Ré Seguradora, na sequência da peritagem que efectuou ao veículo, informou o Autor, por comunicação escrita datada de 04.02.2019, informando-o de que, tendo apurado que o valor venal do JZ se cifrava, à data, em € 21.904,00, se impunha a regularização dos referidos danos como perda total, desde logo dando conta de proposta de aquisição do salvado, válida até 23.03.2019, pelo valor de € 9.000,00.
Porém, o pagamento da indemnização em causa não ocorreu nesse momento, porque o Autor não aceitou a proposta da Ré, tendo diligenciado pela reparação do veículo, pelo valor de € 17.930,01, o qual foi por si levantado na oficina em 13.11.2020.
Entretanto, a Ré veio aceitar o referido custo de reparação, que liquidou ao Autor.
Ora, em face do exposto, considerando que não existia qualquer obrigação do Autor aceitar a proposta de regularização apresentada pela Ré (que veio a verificar-se na prática não ser a mais adequada a compensar os danos), a demora na reparação não pode ser imputada ao Autor, pelo que se terá que manter o critério acima utilizado de que a indemnização é devida até ao seu efectivo pagamento ou à entrega do veículo reparado, como sucedeu, pois tal corresponde ao efectivo período de privação do mesmo.
Assim, considerando que estamos perante um total de 668 dias de paralisação, é devida a este título a importância de € 10.020,00.
Procede assim o recurso subordinado nesta parte.
*
3.3 Despesas médicas, terapêuticas e de reabilitação:

Na petição inicial, o Autor formula um pedido de ressarcimento de alegadas despesas no valor de € 814,00 referente a taxas moderadoras, consultas médicas e de avaliação corporal, deslocações a clínica de fisioterapia e aos serviços clínicos da Ré.
Formula, ainda, um pedido de pagamento de despesas e tratamentos médicos futuros.
Relativamente às despesas alegadamente efectuadas, as mesmas não resultaram provadas, sendo certo (reafirma-se) que não foi impugnada a decisão sobre a matéria de facto.
Quanto às despesas a efectuar, atendendo a que o Autor não ficou com sequeles permanentes do acidente, por maioria de razão não terá que suportar despesas futuramente a este título.
Não estamos aqui perante uma omissão de pronúncia que determine a nulidade prevista no art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C. como invoca, erradamente, o Autor, mas antes uma posição assumida de ausência de prova.
Pelo que nada há a ressarcir o Autor a este título, improcedendo o recurso subordinado nesta parte.
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Nesta conformidade, são devidas pela Ré ao Autores as seguintes quantias:

- € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais; e
- € 10.020 a título de dano de privação do veículo.

A estas quantias acrescem juros de mora nos termos fixados na sentença de primeira, uma vez que, nesta parte, não foi interposto recurso:
- os montantes fixados a título de danos patrimoniais serão acrescidos de juros de mora, à taxa legal e da que subsequentemente vier a ser legalmente fixada, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento [art.ºs 805.º, n.º 3 2.ª parte, 806.º, n.ºs 1 e 2, 804.º, n.º 1 e 559.º do CC].
Os fixados a título de danos não patrimoniais apenas serão contabilizados, à taxa legal e à que subsequentemente vier a ser legalmente fixada, contados da data da prolação da presente sentença até efetivo e integral pagamento.
*
As custas do presente recurso ficam a cargo do Autor e da Ré, na proporção do respectivo vencimento (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).
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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em revogar parcialmente a decisão recorrida e:

a) julgar parcialmente procedente o recurso independente interposto pela Ré e, em consequência, condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal e à que subsequentemente vier a ser legalmente fixada, contados da data da prolação da presente decisão até efetivo e integral pagamento;

b) julgar parcialmente procedente o recurso subordinado interposto pelo Autor e, em consequência, condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de 10.020,00 a título de dano pela privação do veículo, acrescida de juros de mora, à taxa legal e da que subsequentemente vier a ser legalmente fixada, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.

c) absolver a Ré do restante pedido
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Custas da acção e de cada um dos recursos por Autor e Ré, na proporção do respectivo vencimento.
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Notifique.
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04/11/2025

Relator: João Paulo Pereira
1.º Adjunto: Luís Miguel Martins
2.ª Adjunta: Conceição Sampaio
(assinado eletronicamente)