Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
352/22.1T8VVD.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA
ACTIVIDADES PERIGOSAS
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
SOBRETENSÃO TRANSITÓRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A distribuição de energia eléctrica é uma actividade perigosa por natureza, e, como tal, sujeita ao regime previsto no art. 493º, n.º 2 do CC, que estabelece uma presunção de culpa por danos causados no exercício de uma actividade perigosa por sua própria natureza ou pelos meios utilizados.
II - Mas essa presunção só funciona após a prova de que o evento se ficou a dever a razões relacionadas com aquela actividade perigosa, cabendo ao lesado esse ónus de prova.
III – Aquela actividade encontra-se, ainda, sujeita ao regime de responsabilidade objectiva previsto no art. 509º do CC pelos danos causados pela condução ou entrega da electricidade ou do gás.
II- Estamos aqui perante uma responsabilidade (extracontratual) objectiva ou pelo risco que radica no entendimento de que as empresas que exploram a produção, o transporte e a distribuição/entrega de energia eléctrica, auferindo o principal proveito da sua utilização é justo que suportem os respectivos riscos.
III- Ademais, nos termos do nº 2, do art. 493º, do Código Civil, a distribuição de energia eléctrica, é uma actividade perigosa. E porque assim é, a lei impõe a quem beneficia dessa mesma actividade, que suporte – objectivamente - os riscos inerentes a essa actividade.
IV- Considera a doutrina consagrar esta norma um caso de responsabilidade objectiva ou pelo risco – os danos causados pela instalação (produção e armazenamento), condução (transporte) ou entrega (distribuição) dessas fontes de energia correm por conta das empresas que as exploram (como proprietárias, concessionárias, arrendatárias, etc.), pelo que assim como auferem o principal proveito da sua utilização, é justo que elas suportem os riscos correspondentes.
V- A “sobretensão transitória” é qualificada como uma “sobretensão, oscilatória ou não, de curta duração, em geral fortemente amortecida e com uma duração máxima de alguns milissegundos”, em geral devidas “a descargas atmosféricas, a manobras ou à fusão de fusíveis” - cfr. ponto 1.3.20 da referida norma EN 50 160.
VI- A sobretensões transitórias correspondem, assim, a variações extremamente rápidas do valor da tensão, com durações entre os microssegundos e os segundos, podendo atingir valores de pico bastante elevados.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrente: EMP01..., S.A.
Recorrida: EMP02... - INSPEÇÕES A VEÍCULOS, S.A.

Tribunal Judicial da Comarca ..., V.Verde - JL C...

Autora: EMP02... - INSPEÇÕES A VEÍCULOS, S.A.., sociedade comercial com sede na Avenida ..., ... e 11, União de freguesias ... e ..., ... ..., NIPC e matriculada no Registo Nacional de Pessoas Colectivas sob o nº ...72.

Ré: EMP01..., S.A. sociedade comercial com sede na Rua ..., freguesia ... ..., NIPC ...29.

Causa de Pedir:

1. A Autora é uma sociedade comercial, legalmente constituída, anteriormente com sede no Loteamento ... ..., que se dedica a inspecções técnicas a veículos automóveis, para efeitos da (IPO) inspecção periódica obrigatória.
2. No âmbito e por conta do desenvolvimento da atividade a que se dedica, a Autora é detentora/proprietária de diversos centros de inspeção técnica de veículos, de entre os quais, o centro sito na Avenida ... ....
3. Por sua vez, a Ré, anteriormente denominada de EMP03..., S.A., é a operadora das redes de distribuição de energia elétrica em alta tensão, média tensão e/ou baixa tensão, por contrato de concessão do Estado ou das autarquias, e tem o papel de aplicar, gerir e implementar os processos de acesso às redes, nomeadamente a ligação, manutenção/intervenção e desligação, bem como conduzir e entregar/distribuir a energia, nos termos do Decreto-Lei nº 29/2006, de 15 de fevereiro e, a partir de 15.01.2022, nos Decreto-Lei nº 15/2022, de 14 de janeiro, tendo este revogado aquele por via do seu art. 305º.
Em conformidade, a Ré tem por objeto/atividade a distribuição de energia elétrica, bem como a prestação de outros serviços acessórios ou complementares, estando obrigada, por isso, a assegurar a exploração e manutenção da rede de distribuição em condições de segurança, fiabilidade e qualidade de serviço.
4. Para efeitos da exploração do centro de inspeções técnicas de veículos automóveis de que é proprietária, sito na Avenida ... ..., a Autora é titular de contrato de fornecimento de energia elétrica (baixa tensão), a que corresponde CPE (código do ponto de entrega) ....

Isto posto,

5. Em data que não possível precisar com exactidão, mas que se situa em meados do mês de novembro de 2020, foram detectadas avarias em diversas máquinas e/ou equipamentos do identificado centro de inspecções, designadamente em equipamento informático e equipamento destinado à inspeção de veículos propriamente dita, de que infra melhor se dará conta em pormenor aquando da identificação dos danos e despesas com a sua reparação e/ou obrigatória substituição.
6. Em face disso, em 28 de novembro de 2020 foi solicitada vistoria/auditoria aos equipamentos do centro de inspecções à empresa/sociedade denominada EMP04..., LDA., titular do NIPC ...63, tendo-se apurado, com certeza, que as avarias nos equipamentos tiveram a sua origem em variação da tensão, mais especificamente em recorrentes picos de corrente/tensão de alimentação de energia elétrica na entrada da instalação, vinda da rede de distribuição pela qual a Ré é responsável, na qualidade de concessionária.
7. O centro de inspecções em causa dispõe de uma estrutura de painéis solares, com analisadores de corrente, que efectuam o registo das tensões da energia eléctrica, por via do qual foi possível verificar que, em diversos dias, a tensão de entrada de corrente da electricidade provinda da rede de distribuição era superior aos 230V (230 volts) previstos para o funcionamento dos equipamentos e/ou máquinas do centro de inspecções.
8. Mais se tendo constatado, que os picos de tensão ocorriam nas 3 (três) fases existentes, sendo que os valores mais altos tinham lugar nas horas de vazio.
9. Perante essa situação, no dia 14 de dezembro de 2020, telefonicamente, através do número ...06, foi efectuada participação/registo da avaria em causa (picos de tensão) à Ré, o que resultou numa deslocação ao centro de inspecções da Autora de um piquete de técnicos da empresa EMP05..., ao serviço da Ré, que efectuaram medições verificaram valores de tensão de cerca de 246V, superiores à tensão de entrada de energia eléctrica em que funcionam os equipamentos (230V).
10. Seja como for, os valores verificados por aquela empresa (EMP05...) são já causa adequada a provocar as avarias e danos nos aparelhos/equipamentos do centro de inspecções, tanto mais que, pelos registos efectuados nos analisadores de corrente da Autora, não se tratava ou tratou de um episódio único, mas sim de uma situação de picos de tensão de energia eléctrica que ocorria recorrentemente.
11. Subsequentemente, perante a inoperância e silêncio da Ré, foi solicitado relatório à referida empresa EMP04..., LDA., o qual foi elaborado pelo Engª AA, técnico responsável por instalações eléctricas, inscrito na DGEG (Direção-Geral de Energia e Geologia) com o nº ... e membro nº ... da OET (Ordem dos Engenheiros Técnicos), cuja junção se requer como documento nº ... (doc. ...), e que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, assim como os demais que adiante se juntarão.
12. Nesse relatório, para além dos factos acima já descritos a respeito dos eventos ora em causa, é comunicada a verificação, em cada uma das fases e horas, dos seguintes valores registados de tensão de alimentação na entrada do centro de inspecções:
- Dia 19.11.2020, pelas 20:15 horas: Fase 1: 254,31V; Fase 2: 241,09V; Fase 3:
241,13V.

- Dia 26.11.2020, pelas 23:15 horas: Fase 1: 253,99V; Fase 2: 249,66V; Fase 3:
248,11V.

- Dia 28.11.2020, pelas 23.15 horas: Fase 1: 254,31V; Fase 2: 250,79V; Fase 3:
244,53V.
- Dia 13.12.2020, pelas 22:55 horas: Fase 1: 254,31V; Fase 2: 247,87V; Fase 3:
248,22V.

- Dia 14.12.2020, pelas 04:19 horas: Fase 1: 254,08V; Fase 2: 249,70V; Fase 3:
246,11V.

- Dia 14.12.2020, pelas 12:30 horas: Fase 1: 253,53V; Fase 2: 243,82V; Fase 3:
249,53.

- Dia 24.12.2020, pelas 07.10 horas: Fase 1: 250,55V; Fase 2: 249,90V; Fase 3:
253,60V.

13. Tal relatório (doc. ...), conjuntamente com reclamação e impressões do sistema de verificação e registo da tensão respeitantes àqueles valores registados nos dias 28.11.2020; 13.12.2020 e em 14.12.2020, pelas 04: horas e 12:30 horas, cuja junção se requer como documento nº ... (doc. ...), foram enviados à Ré, a título de reclamação, em 04 de janeiro de 2021, que deu origem à reclamação/solicitação nº ...70.
14. Sem prejuízo, entretanto, em 31 de dezembro de 2020, desde logo porque houve necessidade de corte/interrupção do fornecimento da energia eléctrica ao centro de inspecções da Autora, os trabalhadores do mesmo constataram a presença de colaboradores da Ré (ao tempo EMP03..., S.A.), a efectuarem trabalhos na rede de distribuição — no exterior do centro de inspecções aqui em causa —, nomeadamente no PT (posto de transformação) que se encontra nas imediações.
15. Questionados pelos trabalhadores do centro de inspecções sobre a natureza dos trabalhos/intervenções que estavam a efectuar na rede de distribuição de energia eléctrica, os colaboradores da Ré comunicaram que estavam a proceder a uma correcção na tensão, mais concretamente a reduzir a tensão da energia eléctrica em cerca de 10V a 12V.
16. Sendo que, após os referidos trabalhos efectuados pelos colaboradores da Ré, naquele dia 31.12.2020, cessaram os picos de tensão/corrente de energia eléctrica provindos da rede de distribuição de que a Ré é concessionária.
17. Entretanto, no dia 20 de janeiro de 2021, deslocou-se ao centro de inspecções pessoa que se identificou como Sr. BB e colaborador da Ré, para questionar se os picos de tensão tinham cessado, ou seja, se o problema havia sido resolvido com a intervenção ordenada pela Ré no dia 31.12.2020, ao qual foi dada resposta positiva.
18. Apesar disso, a Ré, de forma surpreendente e falaciosa, em resposta à reclamação da Autora de 04.01.2021, identificada como “Tensão no fornecimento de energia eléctrica PN ...43 (sem data), cuja junção se requer como documento nº ... (doc. ...), afirma não ter identificado causas para as perturbações que foram comunicadas, mas admitem que efectuaram “…uma intervenção na rede de distribuição que abastece…” as instalações do centro de inspecções da Autora, “…de forma, a melhorar a qualidade do fornecimento de energia eléctrica.” (itálico e sublinhado nossos).
19. Perante tal resposta, a Autora, em 03 de março de 2021, apresenta nova reclamação, constituída por novo relatório emitido pelo acima identificado técnico qualificado, Eng.º AA, e os registos de tensão verificada nos dias 28.11.2020; 13.12.2020 e em 14.12.2020, pelas 04: horas e 12:30 horas, cuja junção se requer como documento nº ... (doc. ...), por via da qual a Autora, além do mais, comunicou à Ré ter conhecimento da natureza da intervenção (redução da tensão de entrada de energia elétrica em cerca de 10V a 12V) efetuada na rede de distribuição, mais propriamente no Posto de Transformação, pelos seus colaboradores, em 31.12.2020, bem como lhe deu conta da visita do seu colaborador, Sr. BB, a fim de verificar se a redução efetuada havia resolvido o problema dos picos de tensão e ainda, de que após essa intervenção não mais foram registados picos de tensão.
20. Nesta reclamação (doc. ...), a Autora interpelou novamente a Ré para assumir a responsabilidade pela deficiente qualidade do serviço.
21. Contudo, a Ré, por resposta enviada à Autora, por email de 22 de março de 2021, recusou assumir a responsabilidade pelos danos provocados em equipamentos/máquinas do centro de inspecções da Autora, decorrentes da deficiente qualidade do serviço por si prestado, enquanto concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica — cf. documento que se junta como doc. ....
22. Neste particular (doc. ...), a Ré admite, novamente, ter efectuado trabalhos na rede, dizendo que efectuou “…uma intervenção na rede de distribuição, por forma a melhorar a qualidade de serviço e reforçar as condições técnicas do fornecimento de energia.”, apesar de dizer igualmente que não teve conhecimento de anomalias na rede de distribuição que pudessem ter afectado as instalações da Autora.
23. De tudo o quanto vem de dizer-se e aqui se dá por reproduzido, é falso que Ré não tenha tido conhecimento de anomalias que tenham afectado as instalações do centro de inspecções de veículos da Autora, uma vez que esta lhas reportou e, em consequência, a Ré fez deslocar ao centro de inspecções da Autora, em 14.12.2020, colaboradores da empresa EMP05..., e ordenou intervenção, em 31.12.2020, no posto de transformação (PT) no exterior próximo do centro de inspecções, para fins de redução da tensão do fornecimento de energia eléctrica, bem como fez deslocar ao centro de inspecções o seu colaborador, Sr. BB, em 20.01.2021, para averiguar se a intervenção no PT havia resolvido a situação de picos de corrente/tensão.
24. Aliás, tais afirmações, para além de não corresponderem à verdade, são contraditórias, porquanto, se não tinha conhecimento de anomalias, inexistia necessidade da intervenção que diz a Ré ter ordenado.
25. Por outro lado, nesta resposta (vide doc. ... junto), veio a Ré tentar escudar-se na possibilidade de variação da tensão entre +/- 10% do valor a que deve ser fornecida a energia (230V), o que não procede e muito menos se aceita ou concede.
26. Seja como como for, tal alegação terá sempre que improceder, uma vez que não se tratou de evento único ou pontual, mas sim recorrente, ao que acresce que a tensão verificada ultrapassou sistematicamente essa margem.
27. Por outro lado, não tem qualquer interesse, neste caso, a possibilidade de fornecimento com tensão inferior a 230V, pois que os danos e/ou avarias foram provocados por tensão muito superior a esse valor (230V) e não inferior.
28. Buscando sempre a resolução extrajudicial dos litígios, por intermédio de mandatário, foi a Ré novamente interpelada para assumir a responsabilidade pelos danos sofridos pela Autora, em consequência dos picos de tensão, solicitando a Autora à Ré o pagamento do valor global de € 19.139,05 (dezanove mil centro e trinta e nove euros e cinco cêntimos), correspondente apenas e só ao valor pago pela Autora pelas reparações nos equipamentos, conforme documento que se junta sob o nº 6, cujo teor aqui se dá por reproduzido, e facturas que se juntam como documentos nºs ..., ... e ....
29. No entanto, conforme documento que se junta sob o nº 10, por resposta de 01 de junho de 2021, a Ré recusou assumir a responsabilidade, vindo novamente dizer que não teve conhecimento de anomalias(?), mas que fizeram uma alteração no PT (posto de transformação)!!!!!
30. Perante a incompreensível posição assumida e mantida pela Ré, de modo a evitar maiores prejuízos advindos da paragem da linha de inspeção de viaturas automóveis, a Autora foi forçada a solicitar a empresas especializadas a reparação ou substituição dos equipamentos danificados pelos picos de corrente, solicitando-lhes relatórios sobre as causas das avarias.
31. Tais empresas, concretamente, a EMP06... - VEÍCULOS E EQUIPAMENTOS S.A., titular do NIPC: ...30, a EMP07... - COMÉRCIO DE COMPONENTES ELECTRÓNICOS E SERVIÇOS DE INFORMÁTICA, LDA., titular do NIPC: ...23 e a EMP08..., LDA., titular do NIPC: ...22, foram unânimes em declarar que as avarias verificadas nos diferentes equipamentos são consequência directa de picos de tensão (sobretensão) provenientes da rede de distribuição de electricidade para esses equipamentos, conforme relatórios que se juntam como documentos nºs ...1, ...2 e ...3.
32. Cumpre dizer que os equipamentos/aparelhos das linhas de inspecção possuem circuitos independentes, motivo pelo qual as avarias/danos não podem ter origem interna, pois em caso de Processo: avaria de um aparelho/equipamento, o diferencial corta a corrente não permitido que passe para os demais aparelhos, ou seja, ficaria circunscrita apenas a um qualquer equipamento/máquina.

II – DOS DANOS:

1. Não existe qualquer outro motivo para os danos sofridos pela Autora.
2. Dúvidas não restam que foram os picos de tensão acima referidos que provocaram danos em equipamentos destinados à inspeção de veículos propriamente dita e de equipamentos informáticos que lhes servem de apoio, bem como de suporte à própria atividade comercial desenvolvida no centro de inspeções.
3. Concretamente, conforme documentos nºs ... e ...1 já juntos, foi danificado o equipamento (máquina) destinado à inspeção de veículos, denominado de M..., com o número de série ...33, nomeadamente destinado à realização de testes dinâmicos nas viaturas automóveis, à potência, travões, suspensão e ripómetro, relativamente ao qual se verificou a destruição de diversos componentes eletrónicos, tais como “…a eletrónica SH-8 a placa de sinal digital e sinal analógico…”, tendo sido necessário proceder à atualização do equipamento uma vez que a placa digital (referência nº ...03) e a placa analógica (referência nº ...01), já não eram produzidas pelo fabricante.
4. Com a reparação em causa, por via da atualização da máquina/equipamento, muito embora menos dispendiosa que a opção de compra de novo equipamento, a Autora teve um gasto no valor de € 14.000,00, acrescido de IVA, no valor de € 3.220,00, num total de € 17.220,00 (dezassete mil duzentos e vinte euros) — cf. fatura junta como doc. ... e relatório junto como doc. ...1.
5. Por seu lado, na rede informática do centro de inspeções, foram danificadas totalmente uma “fonte de alimentação ATX” e uma “unidade ...” de computadores do centro inspeções, tendo sido necessária a sua substituição, bem como a reconfiguração do software das linhas de inspeção, resultando numa despesa de € 1.006,20, acrescida de IVA, no valor de € 231,43, no total de € 1.237,63 (mil duzentos e trinta e sete euros e sessenta e três cêntimos) — cf. fatura junta como doc. ... e relatório junto como doc. ...2.
6. Por fim, uma vez que foram também irremediavelmente danificados pelos picos de tensão acima identificados, foi necessário proceder à substituição de um “gravador – ...”, de um “disco rígido ...” e de uma “câmara – ..., cuja aquisição e montagem importou para a Autora uma despesa de € 554,00, acrescida de IVA no valor de € 127,42, num total de € 681,42 (seiscentos e oitenta e um euros e quarenta e dois cêntimos) — cf. fatura e relatório juntos, respetivamente como docs. nºs ... e ...3.
7. Pelo exposto, os picos de tensão elétrica provenientes da rede de distribuição de que a Ré é concessionária, provocaram à Autora uma despesa/dano global no valor global de € 19.139,05 (dezanove mil centro e trinta e nove euros e cinco cêntimos), que desde já se peticiona seja a Ré condenada a pagar à Autora.

Pedido:

Julgar-se a presente acção procedente por provada, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 19.139,05 (dezanove mil centro e trinta e nove euros e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Contestação:

1º) Vem a A. fundamentar a sua pretensão indemnizatória numa alegada variação de tensão com origem na rede elétrica de serviço público, mais especificamente “em recorrentes picos de corrente/tensão de alimentação de energia elétrica na entrada da instalação”.
2º) Contudo – e tal como a seguir se demonstrará – a R. cumpre todos os padrões de qualidade de serviço a que está legalmente obrigada no que respeita à variação da onda de tensão, motivo pelo qual a presente ação terá forçosamente que improceder.

Senão, vejamos,

3º) A Ré exerce, em regime de concessão de serviço público, a atividade de distribuição de energia elétrica em alta e média tensão, sendo ainda concessionária da rede de distribuição de energia elétrica em baixa tensão no concelho ....
4º) Na qualidade de operador de rede, a Ré assegura a distribuição e o abastecimento de energia elétrica à instalação da A., através da rede pública que lhe está concessionada, cujo ponto de fronteira se situa na portinhola, conforme previsto no ponto 2.2.2. do Regulamento da Rede de Distribuição, constante do Anexo II da Portaria n.º 596/2010 de 30 de Julho.
5º) O local de consumo da A. tem número ...21, dispondo de uma potência contratada de 41,4kVA através de uma instalação trifásica (conforme folha de detalhes do ramal que se junta como documento ...1).
6º) Este local de consumo é alimentado através de um ramal de baixa tensão, proveniente do posto de transformação de distribuição ... - ..., tratando-se de um ramal do tipo Aéreo-AI.
7º) O posto de transformação em apreço tem uma potência instalada de 160kVA e alimenta um total de 64 instalações de consumo (conforme folha de detalhes que se junta como documento ...2).
8º) Quer o PTD, quer a rede de baixa tensão encontravam-se - e encontram-se
- em condições normais de exploração, dentro do seu tempo de vida útil e instalados de acordo com as regras técnicas e de segurança legalmente previstas.
9º) Com efeito, a Ré EMP01... procede à fiscalização e manutenção da rede elétrica em causa, com periodicidade anual, assegurando a sua conservação e operacionalidade, conforme aliás resulta do histórico de manutenções da rede elétrica que se junta como documento ...3.
10º) Ora, nos termos do disposto no n.º 2, do 162.º, do Regulamento de Segurança de Redes de Distribuição de Energia Elétrica em Baixa Tensão, na redação conferida pelo Decreto n.º 67/2011 de 21 de dezembro, a periodicidade mínima das ações inspetivas está fixada em 5 anos para redes áreas e 10 anos para redes subterrâneas.
11º) Assim, forçoso é concluir que a Ré cumpre amplamente o dever de vigilância e conservação da rede elétrica em causa.
12º) Os padrões de qualidade técnica aplicáveis ao abastecimento de energia elétrica estão previstos no Regulamento da Qualidade de Serviço (RQS), cuja versão em vigor à data dos factos era a constante do Regulamento n.º 629/2017 da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, publicado na 2.ª Série do Diário da República n.º 243/2017, de 20 de dezembro.
13º) Concretamente, os padrões da qualidade da onda de tensão vão descritos nos artigos 25.º e seguintes daquele Regulamento.
14º) Resulta do disposto no artigo 27.º do RQS que a verificação da qualidade de energia elétrica na rede de distribuição em baixa tensão deve ser efetuada observando os métodos de medição e os métodos de cálculo dos indicadores de qualidade de energia previstos na Norma Portuguesa EN 50 160, conforme expressamente previsto na alínea b), do n.º 2 do artigo 26 do RQS.
15º) O poder de regulação da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos é atribuído e reconhecido pela lei, estando previsto, além do mais, nos artigos 203.º a 205.º do DL n.º 15/2022 de 14 de janeiro, que estabelece a organização e o funcionamento do Sistema Elétrico Nacional.
16º) Assim, o RQS e demais regulamentação aplicável ao setor elétrico – designadamente a NP 50160 - têm caracter vinculativo.

Isto posto,

17º) As medições e os cálculos destinados à avaliação da qualidade da onda de tensão devem obedecer aos requisitos previstos na NP EN 50160.
18º) A NP EN 50160 exige que seja feita uma medição ininterrupta, por um período de 8 dias, devendo esta medição ser feita na rede elétrica e não na instalação particular, ou seja, deve ser uma medição efetuada a montante do ponto de entrega.
19º) A norma em causa exige ainda que os valores eficazes médios da onda de tensão, medidos em cada período integrado de dez minutos, respeitem a variação de 10%, para cima ou para baixo, relativamente à tensão nominal de referência, estabelecida em 230 Volts (conforme pontos 4.2.2.1 e 4.2.2.2 da NP EN 50160).
20º) Isto significa que os valores da onda de tensão não podem ser inferiores a 207 V, nem superiores a 253 V, ou seja, devem respeitar a variação de +/- 10% relativamente à tensão nominal de referência fixada em 230 V.
21º) Para efeitos de cumprimento dos padrões de qualidade de serviço são relevantes os resultados médios obtidos em cada fração de 10 minutos, ao longo de todo o período de medição de 8 dias.
22º) Assim e além do mais, não são admitidas medições simples e instantâneas de valores de tensão para efeitos de avaliação do cumprimento dos padrões de qualidade técnica.

Aqui chegados e sem prescindir,

23º) Todas as medições promovidas e efetuadas pela A., diretamente ou por sua conta, jamais poderão ser atendidas para efeitos de cumprimento dos padrões de qualidade de serviço, uma vez que não cumprem os requisitos exigidos pelo RQS e pela NP EN 50160.
24º) Assim, vão impugnadas as medições, os cálculos e os valores referidos nos artigos 12.º, 13.º, 17.º a 19.º da Petição.
25º) Desde logo, estas medições foram efetuadas na instalação particular, ou seja, a jusante do ponto de fronteira com a rede elétrica.
26º) Acresce que tais medições foram efetuadas sem o seu conhecimento da R. e sem a sua participação, desconhecendo-se os aparelhos utilizados, métodos seguidos e forma de cálculo, assim como todas as demais circunstâncias em que as mesmas foram feitas, designadamente no que respeita às condições de utilização da própria instalação elétrica particular.

Sem conceder,

27º) Retira-se da Petição que estas medições não foram feias de acordo com o exigido pela NP EN 50160.
28º) De facto, para efeitos de aferição da qualidade de serviço, tal normativo exige que a medição seja feita com recurso a um equipamento normalizado, que a medição seja feita de forma ininterrupta durante 8 dias e que sejam obtidos resultados médios em cada fração de 10 minutos, ao longo de todo o período de medição.
29º) Ora, de acordo com o alegado nos artigos 12.º, 13.º, 17.º a 19.º da Petição, as medições promovidas pela A. não foram realizadas de acordo com tais requisitos.
30º) Por um lado, a Ré desconhece que tipo de equipamento foi utilizado.
31º) Por outro lado, a A. refere-se a um valor instantâneo de tensão e não a valores médios e por períodos de tempos integrados, tal como a NP EN 50160 exige.
32º) Por esse motivo, tais medições alegadas pelos AA. vão impugnadas e não poderão ser consideradas para os efeitos pretendidos com a presente ação.

Sem conceder,

33º) No seguimento da reclamação registada em 14.12.2020, a R. enviou uma equipa técnica ao local para averiguar a qualidade da onda de tensão.
34º) Aí chegados, em 15.12.2020, os técnicos ao serviço da R. confirmaram que os valores instantâneos medidos na rede elétrica de serviço público estavam compreendidos na variação ± 10%.
35º) Em concreto, foi efetuada uma medição instantânea do valor da tensão no posto de transformação - tendo sido obtido o valor de 246 V - e ainda uma medição instantânea do valor de tensão na baixada da instalação da A. - tendo igualmente sido obtido o valor de 246 V (tudo conforme folha de intervenção que se junta como documento ...4).
36º) Assim, para além de compreendidos entre o intervalo regulamentarmente previsto, estes valores de tensão não são – como é óbvio – tecnicamente adequados a provocar danos em equipamentos, sendo falso e desprovido se sentido tudo quanto vai alegado no artigo 16.º da Petição.

Sem escusar,

37º) Perante a insistência da A. e não obstante as medições instantâneas se situarem no limite ± 10% previsto na NP EN 50160, a EMP01... decidiu realizar uma intervenção preventiva na rede.
38º) Em concreto, a R. efetuou uma intervenção no PTD de modo a baixar os valores da tensão de saída, o que foi levado a cabo no dia 30.12.2020.
39º) Para esse efeito, foi necessário efetuar uma interrupção programada do fornecimento de energia elétrica não só à instalação da A., como a todas as instalações servidas pelo posto de transformação em causa.
40º) A verdade é que tratou-se de uma intervenção preventiva, sendo certo que em momento algum foram medidos ou registos valores não regulamentares da onda de tensão, nos termos e para os efeitos previstos no RQS e NP EN 50160.
41º) Assim, a intervenção em causa foi voluntária e livremente promovida pela Ré e assumiu um carácter preventivo, uma vez que não ocorreu qualquer incumprimento dos padrões de qualidade de serviço técnica aplicável à onda de tensão.
Aqui chegados,

42º) As medições efetuadas pela A. respeitam em exclusivo à sua instalação particular e – só por este motivo – não podem ser atendidas para efeitos de avaliação da qualidade de serviço prestada pela R., ao abrigo da regulamentação em vigor.
43º) Acresce que estas medições não obedecem aos métodos, pressupostos e requisitos previstos no RQS e NP EN 50160.
44º) Por outro lado, as medições efetuadas pela A. foram condicionadas pelas condições e características da própria instalação elétrica particular e dos equipamentos adotados, circunstâncias estas desconhecidas da R. e que a ela não lhe são oponíveis.
Mais ainda:

45º) No artigo 12.º da sua Petição, a A. refere dispor de uma estrutura de painéis solares.
46º) Este tipo de unidade de produção para auto consumo poderá ser tecnicamente adequada a provocar um aumento dos valores de tensão na instalação elétrica particular.
47º) Facto que poderá justificar a situação que serve de fundamento à presente ação.
Por último,

48º) Sempre se dirá que nenhuma outra instalação servida pelo mesmo posto de transformação apresentou qualquer reclamação técnica, comunicação de avaria ou
reclamação por danos com fundamento na qualidade da onda de tensão da energia elétrica abastecida por aquela mesma rede.
Em suma,

49º) É falso que tenha havido por parte da R. qualquer incumprimento dos padrões de qualidade ser serviço.
50º) Sendo igualmente falso que os valores de tensão medidos na rede elétrica de serviço público sejam casualmente adequados a provocar os danos descritos na petição.
Dos danos

51º) A R. desconhece a existência, alcance e valor dos danos alegados pela A. Sem conceder,
52º)Ao contrário do que a A. alega na sua petição, os danos reportados neste articulado não foram provocados por falta de qualidade técnica da onda de tensão imputável à R.
53º) Reitera-se – de resto – que jamais se verificou qualquer incumprimento dos padrões de qualidade técnica que vinculam a R., nos termos da regulamentação em vigor.
54º) Tais padrões de qualidade de serviço foram fixados de forma a estabelecer critérios estandardizados para avaliação da responsabilidade da R., no que respeita à qualidade de serviço prestada.
55º) E foram definidos pelas autoridades competentes – designadamente pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos – correspondendo a valores e parâmetros técnicos que todos os equipamentos elétricos devem suportar, desde que devidamente concebidos, construídos e instalados e desde que se encontrem dentro do seu sue tempo de vida útil.
56º) E para este efeito também não é despiciendo o nexo causal que existe entre os danos alegados e as condições em que se encontra a instalação particular da A., concretamente, a sua antiguidade, o seu dimensionamento, a sua conservação e sua reação à unidade de produção de autoconsumo.
57º) Por isso – ao contrário do que a A. alega e faz crer – não foi a rede elétrica a causa dos danos alegados, embora essa conclusão pareça a mais fácil na tese expendida na petição.

Sem escusar,

58º) Cabe à A. demonstrar que o facto lesivo que serve de fundamento à sua pretensão indemnizatória teve origem na rede elétrica de serviço público.
59º) Dito de outro modo e independentemente do regime de responsabilidade civil que se pretenda aplicar, deve a A. demonstrar que os danos tiveram a sua origem num pico de tensão proveniente da rede.
60º) O que – s.m.o. – não é de todo demonstrado, em face do claro cumprimento dos padrões de qualidade de serviço previstos na regulamentação em vigor, que definem clara e objetivamente a responsabilidade da R. pela energia fornecida.
61º) Assim, em face de tudo quanto vem exposto, não poderá a R. assumir a responsabilidade que a A. lhe pretende assacar, por manifesta falta de fundamento.

Em face do exposto e sem prescindir,

62º) A Ré dá por reproduzida toda a matéria supra alegada.

63º) A Ré ignora se correspondem à verdade os factos articulados pela A. nos artigos 2.º, 3.º, 8.º a 10.º, 17.º, 18.º, 43.º a 46.º, 49.º, 50.º a 53.º da Petição, o que deixa consignado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 574.º do CPC.
64º) Por serem falsos, por se encontrarem em contradição com a Contestação ora apresentada ou por deles pretender a A. retirar conclusões indevidas, vão impugnados os factos vertidos nos artigos 11.º a 13.º, 16.º, 36.º, 38.º, 39.º, 47.º, 48.º, 54.º, 62.º, 63.º e
65.º da Petição.

65º) Carecem de sentido e fundamento as conclusões de Direito levadas pela A. aos artigos 55.º a 61.º, 64.º, 66.º e 67.º da Petição.

66º) Por último, vão impugnados os documentos juntos pela A. à Petição Inicial que não sejam da autoria da R., por se tratarem de reproduções mecânicas e por se desconhecer a sua veracidade e autenticidade.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença em que, respondendo à matéria de facto controvertida, se decidiu nos seguintes termos:
“Pelos motivos expostos, decido:

Julgar a acção procedente e, em consequência, condeno a ré a pagar à autora a quantia de € 19.139,05 (dezanove mil centro e trinta e nove euros e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento”.
*

Inconformada com tal decisão, dela interpuseram recurso a Ré, e de cujas alegações extraiu as seguintes conclusões:

A. O presente recurso versa sobre matéria de facto e sobre a matéria de Direito, cuja reapreciação nos termos alegados impõe a total improcedência da acção e a absolvição da Recorrente do pedido indemnizatório contra si deduzido pela Recorrida.
B. No que respeita à reapreciação da matéria de facto, considera a Recorrente que da prova produzida em audiência de julgamento resultaram factos essenciais que não foram atendidos pelo tribunal a quo e, bem assim, factos que foram incorrectamente apreciados.
C. Já no que respeita à reapreciação da matéria de Direito, o tribunal a quo aplicou indevidamente o regime jurídico da responsabilidade civil contratual e fez ainda uma errada aplicação do Regulamento da Rede de Distribuição, do Regulamento da Qualidade de Serviço e da Norma Portuguesa EN 50160, que disciplinam a matéria relacionada com a qualidade de serviço técnica aplicável à onda de tensão.
D. Resulta dos pontos 3. e 4. da matéria de facto dada como provada que a Recorrente exerce a actividade de operador de rede de distribuição de energia eléctrica em regime de concessão de serviço público, tal como de resto vai previsto nos artigos 6.º, 7.º,
8.º e 107.º a 110.º do Decreto-Lei n.º 15/2022 de 14 de janeiro que estabelece a organização e o funcionamento do Sistema Eléctrico Nacional, diploma que também consagra um princípio de separação jurídica entre as actividades de distribuição e comercialização de energia eléctrica, nos seus artigos 6.º n.º 1 e 233.º.
E. Assim e porquanto tal facto tem relevância no enquadramento de Direito, imperioso se torna que seja aditado aos factos provados o seguinte ponto:
“Não foi celebrado qualquer contrato de fornecimento de energia eléctrica entre a Autora e Ré para o local de consumo versado nos autos”.
F. No que concerne aos pontos 8. e 9. dos factos provados, a Recorrente pugna pela alteração da sua redacção, nos termos que impõe a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.
G. Os registos de tensões de energia eléctrica a que se referem os pontos 8. e
9. dos factos provados foram feitos na instalação eléctrica particular da Recorrida e não na rede eléctrica de serviço público a cargo da Recorrente, concretamente, foram feitos a jusante do ponto de fronteira com a rede eléctrica de serviço público, tal como definido no ponto 2.2.2. do Capítulo 2, do Anexo II da Portaria 596/2010, de 30 de Julho, que estabelece o REGULAMENTO DA REDE DE DISTRIBUIÇÃO.
H. Por outro lado, os registos referidos nos pontos 8. e 9. dos factos provados correspondem a medições instantâneas, ou seja, a valores imediatos tomados num determinado momento e não a valores medidos durante uma semana e integrados em blocos de tempo, conforme exigido pelo método de ensaio previsto pela Norma Portuguesa EN 50160, no seu ponto 4.2.2.2.
I. Ao contrário do que vem plasmado na sentença, nunca se tratou de uma questão de “credibilidade” das medições, mas sim de uma questão de método de recolha e apresentação dos valores dessas medições, para efeitos de cumprimento dos padrões de qualidade de serviço, nos termos previstos na NP EN 50160, tendo a sentença ignorado por completo as circunstâncias relacionadas com o local onde os registos constantes dos pontos
8. e 9. foram tomados, assim como com o método e a forma como foram apresentados os valores.
J. As testemunhas ouvidas em audiência de julgamento confirmaram de forma unânime e esclarecedora que as medições a que se referem os pontos 8. e 9. dos factos provados são diferentes das medições efectuadas na rede eléctrica de serviço público, em concreto, no posto de transformação de distribuição, conforme: i) depoimento da testemunha AA, ficheiro áudio de 12-01-2023, minutos 00:14:27.7 a 00:15:28.0; minutos 00:25:07.3 a 00:26:26.8; minutos 00:32:03.7 a 00:32:18.3, ii) depoimento da testemunha CC, ficheiro áudio de 12- 01-2023, minutos 00:16:09.2 a 00:17:12.3; iii) depoimento da testemunha BB, ficheiro áudio de ...23, minutos 00:10:12.1 a 00:11:20.9 ; iv) depoimento da testemunha DD, ficheiro áudio de ...23, minutos 00:20:35.7 a 00:21:37.9.
K. Por outro lado e no que respeita ainda ao ponto 8. dos factos provados, não se pode concordar com o teor da sua parte final, designadamente quando aí vai dito que “(…) a tensão de entrada de corrente da eletricidade provinda da rede de distribuição era superior aos 230V (230 volts) previstos para o funcionamento dos equipamentos e/ou máquinas do centro de inspeções.”,uma vez que a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento confirmou unanime e claramente que os equipamentos e/ou máquinas do centro de inspeções são concebidas e construídas de forma a suportar uma variação de +/- 10% relativamente à tensão nominal de referência de 230 V.
L. Por isso, não é verdade que estes equipamentos só funcionem a uma tensão de 230 V, tal como decorre dos depoimentos das testemunhas: i) AA, ficheiro áudio de 12-01-2023, minutos 00:30:42.1 a 00:32:03.4; ii) CC, ficheiro áudio de ...23, minutos 00:24:07.2 a 00:24:25.1; iii) BB, ficheiro áudio de 12-01-2023,
minutos 00:08:44.5 a 00:09:22.5; iv) DD, ficheiro áudio de 12- 01-2023, minutos 00:14:12.0 a 00:14:29.0 e minutos 00:26:24.5 a 00:26:51.0.
M.  Em face do exposto, imperioso se torna que os pontos 8. e 9. dos factos provados tenham a seguinte redacção:
8.-O centro de inspecções em causa dispõe de uma estrutura de painéis solares, com analisadores de corrente, que efectuam o registo instantâneo das tensões da energia eléctrica dentro da instalação particular, por via do qual foi possível verificar que, em diversos dias, a tensão de entrada de corrente da electricidade dentro da instalação particular era superior aos 230V (230 volts).
9.-Nesse analisador de corrente existente nas instalações da autora foram registados os seguintes valores instantâneos de tensão (….)”
N. Por outro lado, resulta cristalinamente da prova produzida em audiência de julgamento que no seguimento da comunicação feita pela Recorrida e a que alude os pontos 11. e 12. dos factos provados, a Recorrente efectuou duas medições instantâneas do nível da onda de tensão no posto de transformação de distribuição (PTD), facto que foi ignorado pelo tribunal recorrido.
O. Antes de reduzir a tomada no transformador (ponto 13. dos factos provados), a Recorrente promoveu duas deslocações: i) uma delas realizada pelos técnicos do piquete EMP05... em 15-12-2020, tendo sido efectuada uma medição instantânea do nível de tensão no PTD que abastece a instalação da Recorrida, obtendo-se o valor de 246 V; ii) E outra realizada por um técnico próprio da Recorrente em 30.12.2020, tendo novamente sido efectuada uma medição instantânea do nível de tensão no PTD, obtendo-se o valor de 244 V.
P. Estes factos resultam do depoimento das testemunhas ouvidas em julgamento, designadamente: i) testemunha AA, ficheiro áudio de 12-01-2023, minutos 00:16:14.6 a 00:16:59.0; ii) testemunha CC, ficheiro áudio do dia ...23, minutos 00:02:09.1 a 00:06:32.4 e minutos 00:23:11.2a 00:23:21.0; iii) testemunha BB, ficheiro áudio do dia ...23, minutos 00:01:22.1 a 00:02:32.9 e minutos 00:20:14.3 a 00:20:33.7; iv) testemunha DD, ficheiro áudio do dia ...23, minutos 00:03:17.0 a 00:04:53.0 e minutos 00:06:39.0 a 00:10:20.0 e minutos 00:20:09.8 a minutos 00:29:45.6.
Q. E no que respeita à intervenção do piquete da EMP05..., a Recorrente juntou como documento ...4 à Contestação o registo interno referente à medição do nível de tensão tomado no posto de transformação de distribuição em 15-12-2020, mencionando o valor de 246V.
R. Em face do descrito, imperioso se torna que seja aditada à matéria de facto provada o seguinte ponto: FACTO NOVO:

“No seguimento da comunicação feita pela A. a 14 de dezembro de 2020, A
R. efectuou duas medições instantâneas do nível de tensão no posto de transformação de distribuição, a 15 de dezembro de 2020 feita pelo piquete EMP05... e a 30 de dezembro de 2020 feita por técnico próprio, tendo obtido valores de 246 V e 244 V, respectivamente”.
S. E pelos mesmos motivos devem ser retirados os pontos 1. e 2. dos factos não provados.
T. Por outro lado, o ponto 15. dos factos provados não corresponde à prova documental produzida nos autos.
U. A verdade é que pelo menos até 04 de janeiro de 2021, a Recorrida continuou a registar problemas de tensão na sua instalação particular conforme cristalinamente resulta do documento ...2 junto à petição, onde inclusivamente pede uma intervenção urgente.
V.  Ou seja, mesmo depois da redução de tensão no posto de transformação realizada a 30-12-2020, a Recorrida continuou a queixar-se da mesma situação.
W. Em face do descrito, deve ser eliminado o ponto 15 dos factos provados.

X. No que respeita à reapreciação da matéria de Direito, desde logo se constata que o tribunal recorrido subsume erradamente os factos ao regime jurídico da responsabilidade civil contratual (artigos 762.º n.º 1 e 763.º n.º 1 do CC), aplicando ao caso em análise a presunção de culpa prevista no artigo 799.º do CC.
Y.  Sucede que entre a Recorrente e a Recorrida inexiste qualquer vínculo ou relação contratual, pelo que jamais os factos poderiam ter sido apreciados ao abrigo daqueles normativos.
Z. Antes, a responsabilidade da Recorrente deve ser aferida em função da lei especial que determina os padrões de qualidade de serviço técnica aplicáveis à distribuição
de energia eléctrica, designadamente o Regulamento da Qualidade de Serviço, cuja versão à
data dos factos era a constante do Regulamento n.º 629/2017 da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, cujo poder vinculativo está reconhecido nos artigos 203.º e seguintes do DL n.º 15/2022.
AA. O tribunal a quo não atendeu ao disposto no artigo 27.º do RQS que determina a metodologia de verificação da qualidade de energia eléctrica, dispondo este normativo que “a verificação da qualidade de energia eléctrica nas redes de transporte e nas redes de distribuição deve ser efectuada observando os métodos de medição e os métodos de cálculo dos indicadores de qualidade de energia previstos (…) na NP EN 50160 para AT, MT e BT.” (sublinhado nosso).
BB. Ou seja, só se poderá concluir pelo incumprimento dos padrões de qualidade de serviço se forem cumpridos os métodos de medição e de cálculo consagrados na EN 50160, o que não aconteceu neste caso.
CC. Desde logo, resulta do ponto 1 Campo de aplicação e objectivo que os métodos de medição e de cálculo previstos na NP EN 50160 devem ser aplicados à rede de distribuição a cargo da Recorrente e não às instalações eléctricas particulares.
DD. Contudo, o tribunal recorrido concluiu pelo incumprimento dos padrões de qualidade de serviço com base em valores medidos dentro da instalação de consumo da Recorrida, designadamente nos analisadores dos painéis solares que aquela dispõe (conforme pontos 8. e 9. dos factos provados).
EE. A verdade é que estes analisadores de tensão situam-se a jusante do ponto de fronteira com a rede elétrica pública, ou seja, para lá do limite da rede de distribuição em baixa tensão, tal como descrita no ponto 2.2.2. do Capítulo 2, do Anexo II da Portaria 596/2010, de 30 de Julho, que estabelece o REGULAMENTO DA REDE DE DISTRIBUIÇÃO.
FF. Por outro lado, as medições atendidas pelo tribunal recorrido (pontos 8. e 9. dos factos provados) são medições instantâneas, ou seja, medições tomadas num único momento, sendo certo que a EN 50160, no seu ponto 4.2.2.2. determina que a conformidade dos valores medidos deve ser aferida de acordo com um método de ensaio próprio, que não foi observado no caso em apreço.
GG. A Norma obriga a que as medições sejam feitas continuamente durante uma semana e que devam ser analisados períodos integrados de 10 minutos, sendo que em cada um desses blocos de tempo os valores eficazes médios da tensão de alimentação devem respeitar os intervalos percentuais descritos naquele ponto 4.2.2.2.
HH. Esta metodologia não foi observada nas medições referidas nos pontos
8. e 9. dos factos provados, nem quanto ao local da medição, nem quanto ao método de ensaio, pelo que o tribunal recorrido jamais poderia ter concluído que os padrões de qualidade de serviço previstos no RQS e na EN 50160 foram incumpridos.
II. Mais ainda: na parte da sentença reservada à aplicação do Direito, o tribunal recorrido vem surpreendentemente falar de “sobretensões transitórias” sendo que esta inusitada classificação nem sequer consta do elenco dos factos provados, nem nos articulados das partes, nem nos depoimentos das testemunhas.
JJ. O tribunal recorrido empregou esta classificação de forma descriteriosa e infundamentada, pois a EN 50160 tem um extenso capítulo sob a epígrafe Termos e definições, não se vislumbrando com base em que prova o tribunal recorrido foi classificar as medições descritas nos pontos 8. e 9 dos factos provados como sendo “sobretensões transitórias”.
KK. E mais: nem se alcança onde o tribunal recorrido se fundamentou para se referir ao limite de 5% de variação, sendo que quanto a esta matéria a sentença já descreve outro fenómeno eléctrico, que denomina de “variações rápidas de tensão”, remetendo agora para o ponto 2.4 da Norma, normativo que não se consegue encontrar.
LL. E ainda no que respeita à apreciação da culpa da Recorrente, a verdade é que o operador de rede de distribuição não tinha neste caso a obrigação de efectuar medições complementares do nível da onda de tensão, pelo que a sentença não poderia concluir que cabia à Recorrente efectuar tal medição complementar.
MM. Com efeito, o n.º 3 do artigo 27.º do RQS determina que “Na sequência da apresentação de reclamações sobre a qualidade da energia eléctrica, os operadores das respectivas redes efectuam medições complementares quando se verifiquem as condições estabelecidas no artigo 65.º.
NN. E da leitura do artigo 65.º do RQS não emerge para a Recorrente qualquer obrigação de proceder a medições complementares, atentos os valores regulamentares que foram obtidos nas medições instantâneas feitas no PTD em 15-12-2020 e 30-12-2020.
OO. Ou seja, não ficou demonstrado que a Recorrente violou os padrões de qualidade de serviço aplicáveis à onda de tensão, pois nenhuma prova foi feita no sentido de que a energia eléctrica foi distribuída na rede de serviço pública a valores não regulamentares de tensão.
PP. Dito de outro modo, nenhuma medição foi feita na rede pública, de acordo com o método de ensaio legalmente previsto, que confirme o incumprimento dos padrões de qualidade de serviço.
QQ. E em face dessa ausência de demonstração, impõe-se a anulação da sentença e a absolvição da Recorrente do pedido que contra si foi deduzida pela Recorrida, assim se fazendo a devida Justiça.
*
A Apelada apresentou contra-alegações.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes:
- Analisar da impugnação da matéria de facto.
- Analisar se os picos de corrente foram causa adequada dos danos.
*
III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto. Factos provados.

1.- A Autora é uma sociedade comercial, legalmente constituída, anteriormente com sede no Loteamento ... ..., que se dedica a inspecções técnicas a veículos automóveis, para efeitos da (IPO) inspecção periódica obrigatória.
2.- No âmbito e por conta do desenvolvimento da actividade a que se dedica, a Autora é detentora/proprietária de diversos centros de inspecção técnica de veículos, de entre os quais, o centro sito na Avenida ... ....
3.- Por sua vez, a Ré, anteriormente denominada de EMP03..., S.A., é a operadora das redes de distribuição de energia elétrica em alta tensão, média tensão e/ou baixa tensão, por contrato de concessão do Estado ou das autarquias, e tem o papel de aplicar, gerir e implementar os processos de acesso às redes, nomeadamente a ligação, manutenção/intervenção e desligação, bem como conduzir e entregar/distribuir a energia.
4.- Em conformidade, a Ré tem por objecto/actividade a distribuição de energia eléctrica, bem como a prestação de outros serviços acessórios ou complementares, estando obrigada, por isso, a assegurar a exploração e manutenção da rede de distribuição em condições de segurança, fiabilidade e qualidade de serviço.
5.- A autora explora o centro de inspecções técnicas de veículos automóveis de que é proprietária, sito na Avenida ... ..., a Autora é titular de contrato de fornecimento de energia eléctrica (baixa tensão), a que corresponde CPE (código do ponto de entrega) ....
6.- Em data que não possível precisar com exactidão, mas que se situa em meados do mês de novembro de 2020, foram detectadas avarias em diversas máquinas e/ou equipamentos do identificado centro de inspecções, designadamente, em equipamento informático e equipamento destinado à inspecção de veículos propriamente dita, de que infra melhor se dará conta em pormenor aquando da identificação dos danos e despesas com a sua reparação e/ou obrigatória substituição.
7.- Em face disso, em 28 de novembro de 2020 foi solicitada vistoria/auditoria aos equipamentos do centro de inspecções à empresa/sociedade denominada EMP04..., LDA., titular do NIPC
...63, tendo esta apurado que as avarias nos equipamentos tiveram a sua origem em variação da tensão, mais especificamente em recorrentes picos de corrente/tensão de alimentação de energia eléctrica na entrada da instalação, vinda da rede de distribuição pela qual a Ré é responsável, na qualidade de concessionária.
8.- O centro de inspecções em causa dispõe de uma estrutura de painéis solares, com analisadores de corrente, que efectuam o registo das tensões da energia eléctrica, por via do qual foi possível verificar que, em diversos dias, a tensão de entrada de corrente da electricidade provinda da rede de distribuição era superior aos 230V (230 volts) previstos para o funcionamento dos equipamentos e/ou máquinas do centro de inspecções.
9.- Nesse analisador de corrente existente nas instalações da autora foram registadas as seguintes alterações na tensão de energia eléctrica fornecida pela ré à autora:
- Dia 19.11.2020, pelas 20:15 horas: Fase 1: 254,31V; Fase 2: 241,09V; Fase 3:
241,13V.

- Dia 26.11.2020, pelas 23:15 horas: Fase 1: 253,99V; Fase 2: 249,66V; Fase 3:
248,11V.

- Dia 28.11.2020, pelas 23.15 horas: Fase 1: 254,31V; Fase 2: 250,79V; Fase 3:
244,53V.

- Dia 13.12.2020, pelas 22:55 horas: Fase 1: 254,31V; Fase 2: 247,87V; Fase 3:
248,22V.

- Dia 14.12.2020, pelas 04:19 horas: Fase 1: 254,08V; Fase 2: 249,70V; Fase 3:
246,11V.

- Dia 14.12.2020, pelas 12:30 horas: Fase 1: 253,53V; Fase 2: 243,82V; Fase 3:
249,53.

- Dia 24.12.2020, pelas 07.10 horas: Fase 1: 250,55V; Fase 2: 249,90V; Fase 3:
253,60V.

10.- Os “picos de tensão” registados ocorreram nas 3 (três) fases existentes, sendo que os valores mais altos tinham lugar nas horas de vazio.

11.- Perante essa situação, no dia 14 de dezembro de 2020, telefonicamente, através do número ...06, foi efectuada participação/registo da avaria em causa (picos de tensão) à Ré.
12.- A autora também deu conhecimento à ré dos registos a que se alude em
9.

13.- No dia 30 de dezembro de 2021, o colaborador da ré CC dirigiu-se ao PT (posto de transformação) que se encontra nas imediações das instalações da autora e procedeu à redução da tensão em cerca de 6 volts numa das tomadas aí existentes e donde deriva a electricidade que é fornecida à autora e a outros clientes.
14.- O posto de transformação em apreço tem uma potência instalada de 160kVA e alimenta um total de 64 instalações de consumo, conforme documento n.º ... junto com a contestação, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
15.- Após esta intervenção, a autora não registou as variações na tensão da energia eléctrica fornecida pela ré nos termos a que se alude em 9.
16.- Entretanto, no dia 20 de janeiro de 2021, deslocou-se ao centro de inspecções pessoa que se identificou como Sr. BB e colaborador da Ré, para questionar se os picos de tensão tinham cessado, ou seja, se o problema havia sido resolvido com a intervenção ordenada pela Ré no dia 31.12.2020, ao qual foi dada resposta positiva.
17.- Após a intervenção a que se alude em 13, a ré informou a autora que não tinha identificado as causas para as perturbações que foram comunicadas, mas admitem que “…uma intervenção na rede de distribuição que abastece…” as instalações do centro de inspecções da Autora, “…de forma, a melhorar a qualidade do fornecimento de energia eléctrica.”, conforme documento n.º ... junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
18.- Perante tal resposta, a Autora, em 03 de março de 2021, apresenta nova reclamação, constituída por novo relatório emitido pelo acima identificado técnico qualificado, Eng.º AA, e os registos de tensão verificada nos dias 28.11.2020; 13.12.2020 e em 14.12.2020, pelas 04: horas e 12:30 horas, conforme documento n.º ... junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
19.- Nessa reclamação da Autora, além do mais, esta comunicou à Ré ter conhecimento da natureza da intervenção (redução da tensão de entrada de energia eléctrica em cerca de 10V a 12V) efectuada na rede de distribuição, mais propriamente no Posto de Transformação, pelos seus colaboradores, em 31.12.2020, bem como lhe deu conta da visita do seu colaborador, Sr. BB, a fim de verificar se a redução efectuada havia resolvido o problema dos picos de tensão e ainda, de que após essa intervenção não mais foram registados picos de tensão.
20.- Contudo, a Ré, por resposta enviada à Autora, por email de 22 de março de 2021, recusou assumir a responsabilidade pelos danos provocados em equipamentos/máquinas do centro de inspecções da Autora, decorrentes da deficiente qualidade do serviço por si prestado, enquanto concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica, conforme documento n.º ... junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
21.- Procurando a resolução extrajudicial dos litígios, por intermédio de mandatário, foi a Ré novamente interpelada para assumir a responsabilidade pelos danos sofridos pela Autora, em consequência dos picos de tensão, solicitando a Autora à Ré o pagamento do valor global de € 19.139,05 (dezanove mil centro e trinta e nove euros e cinco cêntimos), correspondente apenas e só ao valor pago pela Autora pelas reparações nos equipamentos, conforme documentos n.ºs ... a ... juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
22.- Por resposta de 01 de junho de 2021, a Ré recusou assumir a responsabilidade, vindo novamente dizer que não teve conhecimento de anomalias, conforme documento n.º ...0 junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
23.- Na sequência dessa variação da tensão da energia eléctrica que a ré forneceu à autora, foi danificado o equipamento (máquina) destinado à inspecção de veículos denominado de M..., com o número de série ...33, nomeadamente, destruição de diversos componentes electrónicos, tais como “…a electrónica SH-8 a placa de sinal digital e sinal analógico…”.
24.- Para a substituição desses componentes e porque a placa digital (referência nº ...03) e a placa analógica (referência nº ...01) já não eram produzidas pelo fabricante, a autora despendeu do valor de € 14.000,00, acrescido de IVA, no valor de € 3.220,00, num total de € 17.220,00 (dezassete mil duzentos e vinte euros), conforme documentos n.ºs ... e ...1 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
25.- Por seu lado, na rede informática do centro de inspeções, foram danificadas totalmente uma “fonte de alimentação ATX” e uma “unidade ...” de computadores do centro inspeções, tendo sido necessária a sua substituição, bem como a reconfiguração do software das linhas de inspeção, resultando numa despesa de € 1.006,20, acrescida de IVA, no valor de € 231,43, no total de € 1.237,63 (mil duzentos e trinta e sete euros e sessenta e três cêntimos), conforme documentos n.ºs ... e ...2 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
26.- Por fim, uma vez que foram também irremediavelmente danificados pelos picos de tensão acima identificados, foi necessário proceder à substituição de um “gravador – ...”, de um “disco rígido ...” e de uma “câmara – ..., cuja aquisição e montagem importou para a Autora uma despesa de € 554,00, acrescida de IVA no valor de € 127,42, num total de € 681,42 (seiscentos e oitenta e um euros e quarenta e dois cêntimos), conforme documentos n.ºs ... e ...3 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
27.- A Ré EMP01... procede à fiscalização e manutenção da rede eléctrica em causa, com periodicidade anual, assegurando a sua conservação e operacionalidade, conforme documento n.º ... junto com a contestação, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.

Factos não provados.

Não se provaram os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes, nomeadamente, os seguintes:

1.- Os técnicos ao serviço da R. confirmaram que os valores instantâneos medidos na rede eléctrica de serviço público estavam compreendidos na variação ± 10%.
2.- Em concreto, foi efectuada uma medição instantânea do valor da tensão no posto de transformação - tendo sido obtido o valor de 246 V - e ainda uma medição instantânea do valor de tensão na baixada da instalação da A. - tendo igualmente sido obtido o valor de 246 V.
3.- Em momento algum foram medidos ou registos valores não regulamentares da onda de tensão, nos termos e para os efeitos previstos no RQS e NP EN 50160.
4.- Os painéis solares instalados pela autora nas suas instalações causaram essa variação na tensão da energia eléctrica.

Fundamentação de direito.

Cumpre antes de mais apreciar a impugnação da matéria de facto pretendida pela Apelante, pois sem a fixação definitiva dos factos provados e não provados não é possível extrair as pertinentes consequências à luz do direito.

Ora, como resulta do disposto nos artigos 640 e 662º do C.P.C., os Recorrentes que impugne a decisão relativa à matéria de facto deve não só identificar os pontos de facto que considera incorrectamente como também especificar concreta e individualizadamente o sentido da resposta diversa que, em seu entender, a prova produzida permite relativamente a cada um dos factos impugnados.

A impugnação da matéria de facto traduz-se no meio de sindicar a decisão que sobre ela proferiu a primeira instância.

Contudo, nesta actividade, como se refere no acórdão da Relação de Guimarães, de 26/09/20181, os poderes do Tribunal da Relação não podem ser restritivamente circunscritos à simples apreciação do juízo valorativo efectuado pelo julgador a quo, ou seja, ao apuramento da razoabilidade da convicção formada pelo juiz da primeira instância face aos elementos probatórios disponíveis no processo, devendo antes a Relação, fazendo jus aos poderes que lhe são atribuídos enquanto tribunal de segunda instância que garante um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, efectuar uma autónoma apreciação crítica das provas produzidas (em vista de formar uma convicção autónoma), alterando a decisão caso adquira, face a essa autónoma apreciação dos elementos probatórios a que há-de proceder, uma diversa convicção2.

A análise crítica dos elementos probatórios (em ordem à justificação racional da decisão – elemento verdadeiramente estruturante e legitimador desta, que lhe confere a natureza de decisão, afastando-a do que seria uma simples imposição judicial) consiste na sua apreciação e valorização, tanto individual como conjugada (na sua relacionação reversiva – na sujeição dos elementos probatórios a mútuos testes de compatibilidade), à luz das regras da normalidade, da verosimilhança, do bom senso e experiência da vida (das leis da ciência, quando for o caso).

Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.

Mas, como é óbvio, e convirá realçar, a liberdade na apreciação da prova não equivale a uma apreciação arbitrária das provas produzidas, uma vez que o inerente dever de fundamentação do resultado alcançado impedirá a possibilidade de julgamentos despóticos.

À luz de tudo o exposto importa agora sindicar a decisão da matéria de facto, averiguando se as respostas impugnadas foram ou não proferidas de acordo com as regras e princípios do direito probatório aplicáveis.

Ora, como resulta do supra exposto, os Recorrentes impugnam a materialidade fixada na decisão recorrida alegando como fundamento que o Tribunal recorrido, por um lado, desconsiderou factos que devia ter valorado e, por outro, considerou como provados os factos a seguir referidos, as quais, contudo, em seu entender, em respeito pela integridade da prova produzida nos autos, deveriam ter obtido uma resposta de sentido diverso.

Assim, em seu entender, aos factos a seguir referidos, deverão ser também considerados ou deverá ser-lhes dada resposta diversa daquela que lhes foi dada, sendo tais factos os que a seguir se descrevem.

A Recorrente entende que houve factos alegados na petição inicial e com relevância para a boa e justa decisão da causa, que, em respeito pela integridade da prova produzida, justificavam resposta diversa da que lhe foi dada, nos termos que a seguir se descrevem:
a- Resulta dos pontos 3. e 4. da matéria de facto dada como provada que a Recorrente exerce a actividade de operador de rede de distribuição de energia eléctrica em regime de concessão de serviço público, tal como de resto vai previsto nos artigos 6.º, 7.º,
8.º e 107.º a 110.º do Decreto-Lei n.º 15/2022 de 14 de janeiro que estabelece a organização e o funcionamento do Sistema Eléctrico Nacional, diploma que também consagra um princípio de separação jurídica entre as actividades de distribuição e comercialização de energia eléctrica, nos seus artigos 6.º n.º 1 e 233.º.

Assim e porquanto tal facto tem relevância no enquadramento de Direito, imperioso se torna que seja aditado aos factos provados o seguinte ponto:
“Não foi celebrado qualquer contrato de fornecimento de energia eléctrica entre a Autora e Ré para o local de consumo versado nos autos”.

b- No que concerne aos pontos 8. e 9. dos factos provados, a Recorrente pugna pela alteração da sua redacção, nos termos que impõe a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.

Por outro lado, os registos referidos nos pontos 8. e 9. dos factos provados correspondem a medições instantâneas, ou seja, a valores imediatos tomados num determinado momento e não a valores medidos durante uma semana e integrados em blocos de tempo, conforme exigido pelo método de ensaio previsto pela Norma Portuguesa EN 50160, no seu ponto 4.2.2.2.

d- Por outro lado e no que respeita ainda ao ponto 8. dos factos provados, não se pode concordar com o teor da sua parte final, designadamente quando aí vai dito que “(…) a tensão de entrada de corrente da electricidade provinda da rede de distribuição era superior aos 230V (230 volts) previstos para o funcionamento dos equipamentos e/ou máquinas do centro de inspecções”, uma vez que a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento confirmou unanime e claramente que os equipamentos e/ou máquinas do centro de inspecções são concebidas e construídas de forma a suportar uma variação de +/- 10% relativamente à tensão nominal de referência de 230 V.

Em face do exposto, imperioso se torna que os pontos 8. e 9. dos factos provados tenham a seguinte redacção:
8.-O centro de inspecções em causa dispõe de uma estrutura de painéis solares, com analisadores de corrente, que efectuam o registo instantâneo das tensões da energia eléctrica dentro da instalação particular, por via do qual foi possível verificar que, em diversos dias, a tensão de entrada de corrente da electricidade dentro da instalação particular era superior aos 230V (230 volts).
9.-Nesse analisador de corrente existente nas instalações da autora foram registados os seguintes valores instantâneos de tensão (….)”

e- Por outro lado, resulta cristalinamente da prova produzida em audiência de julgamento que no seguimento da comunicação feita pela Recorrida e a que alude os pontos 11. e 12. dos factos provados, a Recorrente efectuou duas medições instantâneas do nível da onda de tensão no posto de transformação de distribuição (PTD), facto que foi ignorado pelo tribunal recorrido.

f- Antes de reduzir a tomada no transformador (ponto 13. dos factos provados), a Recorrente promoveu duas deslocações:
i) uma delas realizada pelos técnicos do piquete EMP05... em 15-12-2020, tendo sido efectuada uma medição instantânea do nível de tensão no PTD que abastece a instalação da Recorrida, obtendo-se o valor de 246 V;
ii) E outra realizada por um técnico próprio da Recorrente em 30.12.2020, tendo novamente sido efectuada uma medição instantânea do nível de tensão no PTD, obtendo-se o valor de 244 V.

Estes factos resultam do depoimento das testemunhas ouvidas em julgamento, designadamente: i) testemunha AA, ficheiro áudio de 12-01-2023, minutos 00:16:14.6 a 00:16:59.0; ii) testemunha CC, ficheiro áudio do dia ...23, minutos 00:02:09.1 a 00:06:32.4 e minutos 00:23:11.2a 00:23:21.0; iii) testemunha BB, ficheiro áudio do dia ...23, minutos 00:01:22.1 a 00:02:32.9 e minutos 00:20:14.3 a 00:20:33.7; iv) testemunha DD, ficheiro áudio do dia ...23, minutos 00:03:17.0 a 00:04:53.0 e minutos 00:06:39.0 a 00:10:20.0 e minutos 00:20:09.8 a minutos 00:29:45.6.

g- E no que respeita à intervenção do piquete da EMP05..., a Recorrente juntou como documento ...4 à Contestação o registo interno referente à medição do nível de tensão tomado no posto de transformação de distribuição em 15-12-2020, mencionando o valor de 246V.
Em face do descrito, imperioso se torna que seja aditada à matéria de facto provada o seguinte ponto: FACTO NOVO:

“No seguimento da comunicação feita pela A. a 14 de dezembro de 2020, A R. efectuou duas medições instantâneas do nível de tensão no posto de transformação de distribuição, a 15 de dezembro de 2020 feita pelo piquete EMP05... e a 30 de dezembro de 2020 feita por técnico próprio, tendo obtido valores de 246 V e 244 V, respectivamente”.

h- E pelos mesmos motivos devem ser retirados os pontos 1. e 2. dos factos não provados.

i- Por outro lado, o ponto 15. dos factos provados não corresponde à prova documental produzida nos autos
.
A verdade é que pelo menos até 04 de janeiro de 2021, a Recorrida continuou a registar problemas de tensão na sua instalação particular conforme cristalinamente resulta do documento ...2 junto à petição, onde inclusivamente pede uma intervenção urgente.
Ou seja, mesmo depois da redução de tensão no posto de transformação realizada a 30-12-2020, a Recorrida continuou a queixar-se da mesma situação.
Em face do descrito, deve ser eliminado o ponto 15 dos factos provados.

Sendo estes os factos impugnados, cumpre então analisar se o modo como foram valorados meios de prova produzidos respeitou as regras e princípios do direito probatório.

Ora, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância3.

Importa, porém, não esquecer que se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

O Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição4, está em posição de proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelos Recorrentes, pelo que neste âmbito a sua actuação é praticamente idêntica à do Tribunal de primeira Instância, apenas cedendo nos factores da imediação e da oralidade.

Este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.

Impõe-se-lhe, assim, que se “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a- formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”5.

Como é consabido, para que se possa considerar sustentada a análise ou explanação crítica da prova produzida em que se fundamenta a impugnação, deve deixar de modo claro, linear e consistente, explicitadas as razões da sua discordância com a decisão recorrida, de molde a que se entenda, por um lado, por que razões se considera que, com fundamento nos meios probatórios produzidos e de que o tribunal também se serviu e valorou deveriam ser extraídas conclusões diversas das retiradas na decisão recorrida, justificando, desse modo, as pretendidas alterações dos factos impugnados no sentido de se considerarem provados ou não provados, respectivamente, e, por outro, esclarecer por que razões errou o tribunal na interpretação que fez desses meios de prova.

Ou seja, e dito de outro modo, “na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.

Contudo, “a parte que impugne a decisão da matéria de facto não pode limitar-se a transcrever os depoimentos e concluir, sem mais, que com base neles se devem alterar determinados pontos factuais, a par disso terá de fazer a sua análise crítica.
(…)

Para desencadear a reapreciação pelo Tribunal da Relação, a parte tem de colocar uma questão a este tribunal.
Ora, só coloca uma questão se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida pelo juiz em 1.ª instância, colocando então o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.
(…)

“Os depoimentos das testemunhas, que a ora apelante pretende que sejam agora valorados diversamente do que o foram pelo tribunal recorrido, de molde a levarem à alteração da matéria de facto, são, consabidamente, como acima se deu nota elementos de prova a apreciar livremente pelo tribunal (cfr. artigos 396.º do Cód. Civil e 607.º, nº 5 do CPCivil).
Portanto, se o tribunal recorrido entendeu valorar diferentemente da ora recorrente tais depoimentos, não pode esta Relação pôr em causa, sem mais, a convicção daquele, livremente formada, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este tribunal ad quem não detém aqui, pois que, se a Relação deve formar a sua própria e autónoma convicção, a verdade é que, como acima se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta”.6

Assim, tal como a análise crítica das provas produzidas e especificação dos fundamentos decisivos para a formação da convicção (art. 607º, nº 4 do C.P.C.), também a impugnação factual se deve revestir dos mesmo requisitos, resultando, assim, como evidente que devem ser especificados os fundamentos decisivos para a convicção do julgador sobre a prova (ou falta de prova) dos factos, mencionando-se incumbir ao juiz o dever de indicar os “fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade aquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado, sendo certo que tal exigência de motivação não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão”, já que através “dessa fundamentação, o juiz deve passar de convencido a convincente”7.

Ora, como decorre do exposto, na motivação da matéria facto tribunal recorrido formou a sua convicção com fundamento nos elementos de prova, que identificou, e fez a valoração de tudo ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, dando relevância a uns elementos de prova em detrimento de outros que, fundadamente, entendeu não possuírem consistente credibilidade que permitissem alicerçar uma motivação positiva sobre a materialidade impugnada.

Com efeito, analisados os fundamentos da impugnação factual efectuada em termos de conclusão genérica e antes da própria análise concreta do meios de prova, poderá desde já afirmar-se que a conclusão que inelutavelmente se retira é a de que o presente recurso de facto, na sua essencialidade, não se funda na desconformidade entre a prova produzida em audiência, aproveitada pelo tribunal recorrido para formar a sua convicção, e os factos que, com base nela, veio a considerar provados, mas antes no entendimento da recorrente de que a interpretação que faze do substrato probatório em que a pretendem alicerçar, é que é merecedora de credibilidade, e não a versão diversa dessa, que permitiu ao tribunal dar como assentes os factos impugnados, assente na análise crítica positiva de um leque de meios probatórios, e que veio a ser acolhida na sentença recorrida.

A Recorrentes, embora alegue que não houve uma correcta interpretação e aplicação da prova produzida, omite por completo qualquer consideração sobre este último aspecto, limitando-se exclusivamente a assentar a sua convicção sobre a demonstração e indemonstração da mencionada factualidade apenas em alguns daqueles que o tribunal considerou, sem que, por qualquer forma, tenha posto em causa a credibilidade e a consistência que pelo tribunal foi atribuída a esses mesmos meios, ou, dito de outro modo, não efectua qualquer análise crítica tendente a abalar a credibilidade e consistência que o tribunal lhes conferiu.

E a motivação da decisão recorrida esbate por completo os fundamentos da impugnação efectuada, pois que, como aí se refere, “Entrando na matéria que foi alvo de discussão, digladiaram-se em audiência de julgamento duas versões: a dos autores que assumiram uma postura de negação completa, defendendo desconhecer em absoluto os termos do negócio firmado entre os réus, sustentado que nunca terem sido informados dos termos do negócio; e a os réus, que defenderam ter procedido à notificação dos autores dos elementos relevantes do negócio realizado, conforme missivas que juntam, acrescentando ainda a 1ª ré, Santa Casa da Misericórdia, que chegou a reunir pessoalmente com os representantes da herança autora.

No confronto entre a prova produzida, os autores não lograram minimamente rebater a motivação do Tribunal.

O conteúdo que a Recorrente atribui aos meios probatórios produzidos não diverge daquele que foi considerado na decisão recorrida, sendo, antes, a interpretação que deles fazem o ponto fulcral e fundamentador da sua divergência com a motivação da decisão recorrida e que fundamentam a impugnação.

O que a Recorrente verdadeiramente contesta (com razão ou sem ela) é a valoração que o tribunal fez da prova produzida e os meios de prova de que se socorreu para fundamentar a sua convicção, pretendendo, no essencial, levar em consideração os depoimentos de parte e a prova testemunhal supra-referida.

Ora, passando á análise dessa prova produzida, e depois de integralmente ouvida a prova gravada, concluímos que, desde logo, e em primeiro lugar, que a motivação da decisão recorrida reproduz com integridade o seu conteúdo, nada havendo a apontar, e, por outro lado, que, efectivamente, ela não enferma de relevantes fragilidades ou inconsistências intrínsecas, havendo, por isso, muito pouco, ou mesmo quase nada, a acrescentar ao que consta da motivação da decisão recorrida.

E isto mesmo, decorre da motivação da decisão recorrida, que rebate consistentemente a argumentação da impugnação, bem como, dos “depoimentos das testemunhas em que se fundamenta a impugnação factual deduzida, pois que, como se refere na motivação da decisão recorrida “o tribunal formou a sua convicção no conjunto da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento e documental junta aos autos,apreciada à luz das regras de experiência comum e de normalidade, nomeadamente, na conjugação do teor do relatório (cfr. documento n.º ... junto com a petição inicial), do teor das reclamações que a autora dirigiu à ré (cfr. documentos n.ºs ..., ... e ... juntos com a petição inicial), do teor das respostas da ré a essas reclamações (cfr. documentos n.ºs ..., ... e ...0 juntos com a petição inicial), do teor dos relatórios (cfr. documentos n.ºs ...0, ...1 e ...2 juntos com a petição inicial), do teor das faturas (cfr. documentos n.ºs ..., ... e ... juntos com a petição inicial), do teor das informações recolhidas do sistema informático da ré (cfr. documentos juntos com a contestação), com os depoimentos das testemunhas AA, EE, FF, CC, BB e DD.

Em primeiro lugar, não podemos deixar de evidenciar que apenas a autora juntou dados credíveis sobre as variações da tensão da energia eléctrica que a ré lhe fornece contratualmente.
Estes registos, repete-se, únicos registos juntos aos autos, são tão credíveis como quaisquer dados que a ré podia recolher na sequência da reclamação que confessadamente lhe foi dirigida pela autora e não apresentou nos autos.
Com efeito, conforme afirmou categoricamente o ex-colaborador da ré, CC, os dados recolhidos pelo medidor de tensão instalado nos painéis solares existentes nas instalações da autora merecem toda a credibilidade e não são menos fiáveis daqueles que a ré obtém com um voltímetro e que alegadamente foi usado pelos seus funcionários para averiguar da credibilidade da reclamação da autora, mas cujos registos nunca foram juntos aos autos.

É certo que existem outros aparelhos que até poderão executar a mesma função do aparelho que emitiu os registos juntos aos autos pela autora, como invoca a ré no documento n.º ... junto com a petição inicial.
Acontece que a ré, podendo fazê-lo, optou por não juntar qualquer registo de qualquer alegada medição da tensão que efectuou de modo a descredibilizar os dados registados pela autora e que lhe foram oportunamente comunicados por esta.
Por essa razão e porque, conforme afirmou a testemunha CC, os dados registados pela autora na sua instalação eléctrica merecem a mesma credibilidade dos dados que são recolhidos por qualquer voltímetro que a disponibiliza aos seus colaboradores para medir a tensão da emergia eléctrica, é nossa absoluta convicção de que os dados a que aludem os registos juntos aos autos (cfr. documento n.º ... junto com a petição inicial) merecem a credibilidade que foi anunciada pelo ex-colaborador da ré.
Afastado, assim, o reclamado descrédito dos únicos dados que foram apresentados nos autos quanto às variações da tensão da energia eléctrica que a ré contratualmente fornece à autora, importa, agora, dizer que o depoimento da testemunha AA, em conjugação com os documentos n.ºs ... a ...3, foi determinante para o tribunal ajuizar que esses “picos de tensão” danificaram vários equipamentos existentes nas instalações da autora.
Com efeito, conforme relatou, de um modo circunstanciado, esta testemunha, após constatar danos nos componentes mais sensíveis dos computadores e do “banco de potência” existentes nas instalações da autora, averiguou a causa e concluiu, dada a natureza dos componentes danificados, que tais danos só podiam derivar das variações na tensão da energia eléctrica registadas pelo medidor existente nos painéis solares instalados no edifício da autora.

Note-se que esta testemunha, como afirmou, antes de identificar a causa dos danos nos equipamentos, começou por inspeccionar esses equipamentos e constatou danos essencialmente nos componentes mais sensíveis, ou seja, nas placas digitais e analógicas desses equipamentos.
A existência de danos nos computadores e no “bando de potência” também foi confirmada, de um modo circunstanciado, pelos funcionários da autora, EE e FF.
Com efeito, também estas testemunhas confirmaram os danos nos equipamentos inspeccionados pela testemunha AA e identificados nos documentos n.ºs ...1 a ...3.
Acresce que após a confessada redução da tensão da energia eléctrica que a ré fornece à autora, esta não registou mais nenhuma oscilação anormal nos valores dessa mesma tensão e por si registados.
É certo e indiscutível que todos os equipamentos vendidos em Portugal estão tecnicamente preparados para receber oscilações da tensão da energia eléctrica – cfr. neste sentido AA, CC, BB e DD.
Também não é menos verdade que nem todos os equipamentos existentes nas instalações da autora ou nas habitações vizinhas sofreram qualquer dano na sequência da oscilação da tensão registada pela autora, conforme afirmaram as testemunhas AA, EE e FF.
Mas estas duas verdades não nos permitem presumir e assim ajuizar que a conclusão de quem inspeccionou os equipamentos da autora danificados e confirmou os registos da tensão não é verdadeira – cfr. documentos n.ºs ..., ...0, ...1, ...2 e ...3.

 E isto porque, conforme sobressaiu dos depoimentos das testemunhas CC e BB, nem todos os equipamentos eléctricos que coabitam no mesmo espaço podem padecer da mesma forma relativamente a variações na tensão da energia eléctrica que recebem.
Por todas estas razões, ajuizou o tribunal que a conclusão da testemunha AA de que os equipamentos em apreço foram danificados na sequência dos “picos de tensão” da energia elétrica fornecida pela ré à autora é credível.
De todo o modo, sempre se acrescentará, mais uma vez, que tendo a oportunidade para efectuar uma inspecção aos equipamentos da autora, após a reclamação da autora, a ré preferiu não o fazer e assim descredibilizar cegamente as conclusões de quem inspeccionou tecnicamente os equipamentos e ajuizou, com credibilidade técnica, que os ditos “picos de tensão” acabaram por danificar os equipamentos em apreço nos autos.
Note-se que esta conclusão de quem inspeccionou os equipamentos danificados não foi refutada por qualquer outra prova credível produzida na audiência de julgamento ou junta aos autos.
Por sua vez, no que diz respeito aos valores despendidos pela autora com vista à reparação dos componentes danificados nos seus equipamentos, o tribunal teve em atenção às facturas e relatórios juntos com a petição inicial como documentos n.ºs ... a ...3.

E, nomeadamente, no que concerne às variações de tensão, enquanto a Recorrente serve apenas dos meios que considera favoráveis à sua tese, a decisão recorrida efectua uma análise consistente de todos os meios de prova produzidos nos autos, e, designadamente, da que foi a conduta da Ré.

De tudo o exposto à evidência se constata que mais não resta do que concluir como se fez na decisão recorrida no sentido da demonstração da factualidade impugnada, com a consequente improcedência da impugnação factual.

E assim sendo, o conjunto destes elementos probatórios, analisado criticamente da forma supra exposta, de harmonia com as regras da experiência comum e segundo o princípio da livre apreciação da prova, levou o tribunal a concluir inequivocamente pela prova e não prova dos factos relevantes para a discussão da causa e supra elencados.

Por tudo o exposto, considerado que as conclusões retiradas pelo tribunal encontram indubitavelmente suporte válido na prova produzida, e que, por outro lado, em nada conflituam com a experiência comum, incontornável resulta também, por decorrência, que, com a relevância que, contextualmente, assumiram, no âmbito da valoração de toda a prova produzida, os meios probatórios aduzidos pela Recorrente, em sustentação da impugnação que efectuou, nos moldes em que efectivamente o foram, de modo algum se revestem de uma solidez e consistência, adequada a conferir-lhes um grau de credibilidade que os torne passíveis de sustentar a pretendida alteração da matéria factual em apreço.

Em consonância com tudo o acabado de expender, e pelas razões expostas, somos de entender que a conjugação de todo este substrato probatório comporta e alicerça de modo consistente a convicção do tribunal sobre matéria fáctica objecto da presente impugnação, razão pela qual se mantém a decisão recorrida sobre essa mesma matéria de facto.                       

Improcede, assim, nesta parte a presente apelação

Mais alega a Recorrente que o tribunal recorrido subsume os factos ao regime jurídico da responsabilidade civil contratual (artigos 762.º n.º 1 e 763.º n.º 1 do CC), aplicando ao caso em análise a presunção de culpa prevista no artigo 799.º do CC.

É seu entendimento o de que entre a Recorrente e a Recorrida inexiste qualquer vínculo ou relação contratual, já que a Recorrente não celebrou com a Recorrida um contrato de fornecimento de energia eléctrica ou qualquer outro tipo de contrato. Inexistindo um vínculo contratual entre as partes, jamais os factos poderiam ter sido apreciados ao abrigo daqueles normativos.

Em seu entender, a responsabilidade da Recorrente deve ser aferida em função da lei especial que determina os padrões de qualidade de serviço técnica aplicáveis à distribuição de energia eléctrica, designadamente o Regulamento da Qualidade de Serviço, cuja versão à data dos factos era a constante do Regulamento n.º 629/2017 da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, cujo poder vinculativo está reconhecido nos artigos 203.º e seguintes do DL n.º 15/2022.

Por manifesto erro, o tribunal a quo não atendeu ao disposto no artigo 27.º do RQS que determina a metodologia de verificação da qualidade de energia eléctrica.

E quanto a este ponto, determina este dispositivo que “a verificação da qualidade de energia eléctrica nas redes de transporte e nas redes de distribuição deve serefectuada observando os métodos de medição e os métodos de cálculo dos indicadores de qualidade de energia previstos (…) na NP EN 50160 para AT, MT e BT.” (sublinhado nosso).

Ou seja, só se poderá concluir pelo incumprimento dos padrões de qualidade de serviço se forem cumpridos os métodos de medição e de cálculo consagrados na EN 50160. O que não aconteceu neste caso!

Ou seja, os métodos de medição e de cálculo previstos nesta Norma devem ser aplicados à rede de distribuição a cargo da Recorrente e não às instalações eléctricas particulares.

Contudo, o tribunal recorrido concluiu pelo incumprimento dos padrões de qualidade de serviço com base em valores medidos dentro da instalação de consumo da Recorrida, designadamente nos analisadores dos painéis solares que aquela dispõe (conforme pontos 8. e 9. dos factos provados).

A verdade é que estes analisadores de tensão situam-se a jusante do ponto de fronteira com a rede eléctrica pública, ou seja, para lá do limite da rede de distribuição em baixa tensão, tal como descrita no ponto 2.2.2. do Capítulo 2, do Anexo II da Portaria 596/2010, de 30 de Julho, que estabelece o REGULAMENTO DA REDE DE DISTRIBUIÇÃO.

Por outro lado, as medições atendidas pelo tribunal recorrido (pontos 8. e 9. dos factos provados) são medições instantâneas, ou seja, medições tomadas num único momento.

Identificada, em síntese, a questão suscitada começaremos por dizer, com relação à alegada inexistência de contrato, que, como refere o Recorrido, “nos termos da petição inicial que oportunamente apresentou, a ora recorrida, não pode deixar de aceitar que, na realidade não existiu qualquer contrato entre a Recorrente e Recorrida.

Sucede ainda que, como igualmente refere a Recorrida, mesmo “não existindo relação contratual entre a Recorrente e Recorrida, não deixa a Recorrente de ser responsável pela reparação dos danos nos termos que lhe foram peticionados pela Recorrida.

Dispõe o artigo 509º, nºs 1 e 2, do código civil que:

“1. Aquele que tiver a direcção efectiva de instalação destinada à condução ou entrega da energia eléctrica ou do gás, e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que derive da condução ou entrega da electricidade ou do gás, como pelos danos resultantes da própria instalação, excepto se ao tempo do acidente esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação.
2. Não obrigam a reparação os danos devidos a causa de força maior; considera-se de força maior toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa.

Estamos aqui perante uma responsabilidade (extracontratual) objectiva ou pelo risco que radica no entendimento de que as empresas que exploram a produção, o transporte e a distribuição/entrega de energia eléctrica, auferindo o principal proveito da sua utilização é justo que suportem os respectivos riscos.
Ademais, nos termos do nº 2, do art. 493º, do Código Civil, a distribuição de energia eléctrica, é uma actividade perigosa. E porque assim é, a lei impõe a quem beneficia dessa mesma actividade, que suporte – objectivamente - os riscos inerentes a essa actividade”. 8

Relativamente à fiabilidade e consistência da prova relativa ás medições efectuada, além da análise crítica efectuada na motivação da decisão, e de modo individualizado, assumiram relevância os depoimentos prestados por AA, CC, DD, AA, CC, BB, na globalidade dos seus depoimentos.

Ora, independentemente do enquadramento jurídico efectuado na decisão recorrido, que parece ser o da responsabilidade contratual, em nosso entender, “A distribuição de energia eléctrica é uma actividade perigosa por natureza, e, como tal, sujeita ao regime previsto no art. 493º, n.º 2 do CC, que estabelece uma presunção de culpa por danos causados no exercício de uma actividade perigosa por sua própria natureza ou pelos meios utilizados.

Mas essa presunção só funciona após a prova de que o evento se ficou a dever a razões relacionadas com aquela actividade perigosa, cabendo ao lesado esse ónus de prova.

Aquela actividade encontra-se, ainda, sujeita ao regime de responsabilidade objectiva previsto no art. 509º do CC pelos danos causados pela condução ou entrega da electricidade ou do gás.

Como se refere nesse mesmo acórdão, os pressupostos do dever de indemnizar no contexto da responsabilidade civil extracontratual, aliás comuns à responsabilidade civil contratual, são: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Ou seja, nos termos dos artigos 483° e 487°, n.º 2, do Código Civil, exige-se a prática de um acto ilícito, a existência de um nexo de causalidade entre este e determinado dano indemnizável e a imputação do acto ao agente em termos de culpa, apreciada como regra em abstracto, segundo a diligência de um "bom pai de família".

Nos termos do art. 493º, n.º 2 do CC, quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.

Não se diz na lei o que se deve entender por actividade perigosa, tratando- se, assim, de matéria a apreciar, em cada caso, segundo as circunstâncias 9.

O que significa que a perigosidade de uma actividade deve aferir-se segundo as regras da experiência, pelo que será perigosa uma actividade que, segundo aquelas regras, envolve uma propensão para ocorrência de danos. Note-se que a perigosidade deve ser entendida objectivamente, deixando-se de lado meros temores pessoais de uma potencial vítima10.

Almeida Costa 11 defende que a actividade perigosa deve tratar-se de actividade que, mercê da sua natureza ou da natureza dos meios utilizados, «tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral».12

O que determinará, assim, a qualificação de uma atividade como perigosa será a sua especial aptidão para produzir danos, aptidão que há-de resultar da sua própria natureza      ou  da natureza  dos   meios utilizados13. E não há dúvida que a actividade de produção, transformação, condução e distribuição de energia eléctrica constitui uma actividade perigosa quer pela sua própria natureza, quer pelos meios usados14.

Como tal, está essa atividade sujeita ao regime previsto no n.º 2 do art. 493º do CC, que estabelece uma presunção de culpa por danos causados no exercício de uma actividade perigosa por sua própria natureza ou pelos meios utilizados.

É de referir, no entanto, que essa presunção de culpa não envolve simultaneamente a dispensa da prova do nexo de causalidade, exigindo-se, por isso, a demonstração de que a actividade perigosa foi juridicamente a causa da ocorrência daqueles danos.

E esse ónus de prova cabe ao lesado15:
“O presumidamente culpado pode liberar-se da responsabilidade instituída nesse normativo provando “que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias  com  o  fim  de» prevenir  a  ocorrência  dos  danos  causados. Mas a par desta responsabilidade subjetiva, independentemente de a mesma se poder afirmar através de culpa provada ou de culpa apenas presumida, na sub-secção da responsabilidade pelo risco do Código Civil o legislador inseriu um preceito relativo à responsabilidade por danos causados por instalações de energia elétrica ou gás.

Dispõe o art. 509º do CC:

«1. Aquele que tiver a direcção efectiva de instalação destinada à condução ou entrega da energia elétrica ou do gás, e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que derive da condução ou entrega da electricidade ou do gás, como pelos danos resultantes da própria instalação, excepto se ao tempo do acidente esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação.
2. Não obrigam a reparação os danos devidos a causa de força maior; considera-se de força maior toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa.
3. Os danos causados por utensílios de uso de energia não são reparáveis nos termos desta disposição.»

Considera a doutrina consagrar esta norma um caso de responsabilidade objectiva ou pelo risco – os danos causados pela instalação (produção e armazenamento), condução (transporte) ou entrega (distribuição) dessas fontes de energia correm por conta das empresas que as exploram (como proprietárias, concessionárias, arrendatárias, etc.), pelo que assim como auferem o principal proveito da sua utilização, é justo que elas suportem os riscos correspondentes16.

Para Vaz Serra, este é um dos casos em que parece razoável a responsabilidade objectiva, devido ao perigo especial que a electricidade ou o gás, quando oriundos de uma instalação para a condução ou entrega dessas energias representa: “realmente, elas constituem grave perigo para as pessoas ou coisas de terceiro e, assim como o dono da instalação aufere o principal proveito dela, deve igualmente suportar as desvantagens da mesma instalação resultantes”17.
Quanto aos danos resultantes da condução ou entrega da electricidade ou do gás, quem tiver a direcção efectiva da respectiva instalação e a utilizar no seu interesse só poderá evitar o dever de indemnizar os danos devidos aos efeitos da electricidade ou do gás se demonstrar que estes resultaram de causa de força maior (art. 509º, n.º 2 do CC); e, no caso de danos provocados pela própria instalação, se provar que esta, ao tempo do acidente, se encontrava em perfeito estado de conservação (n.º 1 do citado normativo).
Contudo, para que se aplique o regime aí previsto, e se ponha a cargo da entidade exploradora o ónus da prova de que a instalação se encontrava, ao tempo do acidente, de acordo com as técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação ou que os danos foram devidos a causa de força maior (art. 509º, n.ºs 1 e 2 do CC), necessário se torna, antes de mais, a demonstração de que o incidente causador do dano tenha efectivamente ocorrido no âmbito de uma das actividades aí previstas: produção, condução ou entrega (distribuição) da energia elétrica, prova esta que recairá sobre o lesado, enquanto facto constitutivo do seu direito à reparação (art. 342º, n.º 1 do CC) 18”.

Assente a Responsabilidade da Ré, refere a propósito dos danos a decisão recorrida o seguinte:
(…)
“No caso em apreço, a autora invoca a ocorrência de “sobretensões transitórias” nas suas instalações e o consequente danos em alguns equipamentos aí existentes.

A “sobretensão transitória” é qualificada como uma “sobretensão, oscilatória ou não, de curta duração, em geral fortemente amortecida e com uma duração máxima de alguns milissegundos”, em geral devidas “a descargas atmosféricas, a manobras ou à fusão de fusíveis” - cfr. ponto 1.3.20 da referida norma EN 50 160.

As sobretensões transitórias correspondem, assim, a variações extremamente rápidas do valor da tensão, com durações entre os microssegundos e os segundos, podendo atingir valores de pico bastante elevados.

Ora, de acordo com a citada norma EN 50160, em condições normais de exploração, as variações rápidas da tensão não devem ultrapassar, em geral, 5% de Ua, o que não exclui a possibilidade de ocorrerem variações atingindo 10% de Ua, com duração muito breve, várias vezes no mesmo dia, em circunstâncias excecionais” – cfr. ponto 2.4. da referida norma EN 50 160.

Voltando ao caso em apreço e atenta a factualidade provada, impõe-se concluir que a ré não respeitou os limites impostos pela citada norma EN 50 160, ou seja, não forneceu energia eléctrica à autora, nos termos contratados com esta, de forma contínua e em conformidade com padrões de qualidade de serviço estabelecidos no RQS.

Com efeito, ao longo de um período de tempo considerável, ocorreram fenómenos de sobretensão transitória que não respeitaram os limites imposto pela citada norma EN 50 160, ou seja, em diversos momentos, registaram-se valores de 254,31v, ultrapassando mais de 5% ou mesmo 10% dos valores estabelecidos para a Ua que são de 220v.

Concluímos, portanto, que a ré não forneceu energia eléctrica à autora com a qualidade exigida nos termos contratados com esta, de forma contínua e em conformidade com padrões de qualidade de serviço estabelecidos no RQS”.
(…)

Concluímos, portanto, que a ré não forneceu energia eléctrica à autora com a qualidade exigida.
Assim, resultaram os danos supra descritos para a autora que a ré terá de indemnizar.

(…)
“Com efeito, da matéria de facto assente resultou assente que essa “sobretensão transitória” casou danos em vários equipamentos que se encontravam nas instalações da autora, nomeadamente, o equipamento (máquina) destinado à inspeção de veículos denominado de M..., com o número de série ...33, a “fonte de alimentação ATX” e uma “unidade ...” de computadores do centro inspeções, e ainda um “gravador – ...”, de um “disco rígido ...” e de uma “câmara – ....

Nos termos do artigo 562.º e 564.º, do C.C., quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstruir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (Princípio da reconstituição ou restauração natural), compreendendo o dever de indemnizar não só o prejuízo causado (dano emergente) como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante).

Por seu lado, prescreve o artigo 566.º, n.º 1, do C.C., que o obrigado à reparação, na impossibilidade de reconstrução natural da situação que existia antes do acidente, deve pagar ao lesado uma indemnização em dinheiro.

Indemnização pecuniária essa que, nos termos do disposto no artigo 566.º, n.º 2, do C.C., deve medir-se pela diferença entre a situação (real) em que o facto deixou o lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano sofrido (teoria da diferença).

Assim, aplicando estas normas ao caso em apreço, pagando a ré à autora o valor por esta despendido com a substituição dos componentes danificados, cujo valor ascendeu ao total de € 19.139,05 (dezanove mil centro e trinta e nove euros e cinco cêntimos), reconstituirá a situação (hipotética) em que esta se encontraria se não tivesse sofrido os referidos danos (emergentes) em consequência desse incumprimento contratual; quantia essa sobre a qual são devidos juros de mora, à taxa legal, desde a data de citação até integral pagamento (cfr. artigo 805.º,n.º 1, do C.P.C.)”.

Assim sendo, e pelas razões acabadas de expender, decide-se julgar a apelação improcedente, com a consequente manutenção da decisão recorrida.

Sumário –Artigo 667, nº 3, do C.P.C.

I- A distribuição de energia eléctrica é uma actividade perigosa por natureza, e, como tal, sujeita ao regime previsto no art. 493º, n.º 2 do CC, que estabelece uma presunção de culpa por danos causados no exercício de uma actividade perigosa por sua própria natureza ou pelos meios utilizados.
II - Mas essa presunção só funciona após a prova de que o evento se ficou a dever a razões relacionadas com aquela actividade perigosa, cabendo ao lesado esse ónus de prova.
III – Aquela actividade encontra-se, ainda, sujeita ao regime de responsabilidade objectiva previsto no art. 509º do CC pelos danos causados pela condução ou entrega da electricidade ou do gás.
IV- Estamos aqui perante uma responsabilidade (extracontratual) objectiva ou pelo risco que radica no entendimento de que as empresas que exploram a produção, o transporte e a distribuição/entrega de energia eléctrica, auferindo o principal proveito da sua utilização é justo que suportem os respectivos riscos.
V- Ademais, nos termos do nº 2, do art. 493º, do Código Civil, a distribuição de energia eléctrica, é uma actividade perigosa. E porque assim é, a lei impõe a quem beneficia dessa mesma actividade, que suporte – objectivamente - os riscos inerentes a essa actividade.
VI- Considera a doutrina consagrar esta norma um caso de responsabilidade objectiva ou pelo risco – os danos causados pela instalação (produção e armazenamento), condução (transporte) ou entrega (distribuição) dessas fontes de energia correm por conta das empresas que as exploram (como proprietárias, concessionárias, arrendatárias, etc.), pelo que assim como auferem o principal proveito da sua utilização, é justo que elas suportem os riscos correspondentes.
VII- A “sobretensão transitória” é qualificada como uma “sobretensão, oscilatória ou não, de curta duração, em geral fortemente amortecida e com uma duração máxima de alguns milissegundos”, em geral devidas “a descargas atmosféricas, a manobras ou à fusão de fusíveis” - cfr. ponto 1.3.20 da referida norma EN 50 160.
VIII- A sobretensões transitórias correspondem, assim, a variações extremamente rápidas do valor da tensão, com durações entre os microssegundos e os segundos, podendo atingir valores de pico bastante elevados.

IV – DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Apelante.
Guimarães, 09/ 11/ 2023.
Processado em computador. Revisto – artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.


1 Cfr. Acórdão da Rel. De Guimarães, proferido no processo nº 702/18.5 T8BRG.G1. in www.dgsi.pt.
2 Defendiam-no a propósito do regime processual anterior ao introduzido pela Lei 41/2013, de 26/07, ao nível da doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, pp. 283 a 286 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 227 (referindo que, por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu – a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1ª instância); ao nível da jurisprudência (tirada no âmbito da vigência do anterior regime processual), p. ex., os Acórdãos do STJ de 01/07/2008, de 25/11/2008, de 12/03/2009, de 28/05/2009 e de 01/06/2010, no sítio www.dgsi.pt/jstj.
Posição que doutrina e jurisprudência vêem mantendo (e veementemente reforçando) quanto ao regime processual vigente – p. ex., na doutrina Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, p. 298 a 303 (máxime 302 e 303) e na jurisprudência (por mais recente) o Acórdão do STJ de 8/01/2019, no sítio www.dgsi.pt/jstj.
3 Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, disponível em www.dgsi.pt.
4 Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 266 “ A Relação actua como Tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de primeira Instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o Tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou alteração da decisão recorrida… “;
5 Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, disponível em www.dgsi.pt.
6 Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 22/05/2019, proferido no processo nº 467/17.8T8SJM.P1, in www.dgsi.pt.
7 Cfr. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348.
8 Cfr. Acórdão da R.G., proferido no processo nº 3702/16.6T8BRG.G1, in www.dgsi.pt.
9 Cfr. 2. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, p. 495.
10 Cfr. Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa, Lições de Responsabilidade Civil, Principia, p. 243.
11 Cfr. Direito das Obrigações, 6ª ed., Almedina, p. 493.
12 Cfr. Acórdão da R.G., proferido no processo nº 3702/16.6T8BRG.G1, in www.dgsi.pt
13 Cfr. Ac. RP de 13.09.2016 (relator Rodrigues Pires), in www.dgsi.pt.
14 Cfr., entre outros, os Acs. do S.T.J. 25/03/04, CJSTJ, T. I, p. 149, de 20/1/2010 CJSTJ, T. I, p. 29, ac. da RL de 17/03/05, CJ, T. II, p. 80, 12/02/2004 (relator Araújo Barros), Ac. do STJ de 8/11/2007 (relator Pires da Rosa), Acs. da RP de 02/07/2013 (relatora Maria João Fontinha Areias Cardoso) e de 21/02/2017 (relator Vieira e Cunha) e Ac. da RL de 9/03/2017 (relatora Maria Teresa Albuquerque), consultáveis in www.dgsi.pt.
15 Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 2ª ed., Almedina, 2002, p. 309 e Ac. da RL de 20/03/2001, CJ Ano XXVI – 2001, T. II, p. 83/84.
16 Cfr. neste sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6ª ed., Almedina, p. 680 e Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 525.
17 . Cfr. Responsabilidade pelos danos causados por instalações de energia elétrica ou gás e por produção e emprego de energia nuclear, BMJ n.º 92, p. 141.
18 Cfr. entre outros, os Acs. da RP de 02/07/2013 (relatora Maria João Fontinha Areias Cardoso) e de 21/02/2017 (relator Vieira e Cunha), in www.dgsi.pt.