Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
30/18.6T9VVD.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: CRIME TRIBUTÁRIO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONDIÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO
APLICAÇÃO DO ARTº 51º
Nº 2
DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. Não obstante o disposto no art. 14º nº 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), se do juízo de prognose feito pelo tribunal resultar que o condenado pela prática de um crime tributário, em pena de prisão suspensa na execução, não tem possibilidade de pagar a quantia tributária em dívida, não deve o tribunal impor como condição de suspensão da pena a obrigação de pagar tal quantia.
2. A imposição ao condenado de uma obrigação cujo cumprimento não seja razoavelmente de exigir, contraria o disposto no nº 2 do art.º 51.º do Código Penal, o qual se aplica ao RGIT (art.º 3º al. a) do RGIT).
Decisão Texto Integral:
Juiz Desembargadora Relatora: Maria Teresa Coimbra.
Juiz Desembargadora Adjunta: Cândida Martinho.

Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal Relação de Guimarães.

I.
Por sentença proferida no processo nº 30/18.6T9VVD, que corre termos no juízo local criminal de Vila Verde, foi o arguido M. J. condenado pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma agravada, p.p. art.º 105.º nºs 1 e 5 do RGIT ex vi art.º 107.º do mesmo diploma legal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

Inconformado por não ter a suspensão da pena ficado condicionada ao pagamento pelo arguido das prestações contributivas em dívida e demais acréscimos e por não ter sido ponderada a aplicação de outra pena recorreu o ministério público, concluindo o seu recurso da seguinte forma ( transcrição):

1.ª) O arguido M. J. foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, nºs 1, 2 e 4 do RGIT, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
2.ª) Entende o Ministério Público que pese embora o Tribunal “a quo” tenha efectuado uma correcta, crítica e objectiva apreciação dos factos que constituem o objecto processual nos presentes autos, na sentença recorrida, contudo, violou o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT e ainda a jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) n.º 8/2012, de 12 de setembro, uma vez que não condicionou a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento, no prazo da suspensão ou até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, das prestações contributivas e demais acréscimos legais ou, aplicou outra pena substitutiva de tal pena de prisão aplica;
3.ª) Diz-se a este propósito na sentença recorrida «no caso dos autos, atentas as condições económicas do arguido e, atendendo aos escassos rendimentos do seu agregado e ao facto de terem duas menores a seu cargo, com as inerentes despesas fixas e variáveis, não nos parece possível impor a devolução de qualquer quantia mensal»;
4.ª) Ora, em obediência ao n.º 1 do artigo 14.º do RGIT e ao supra citado Acórdão de fixação de jurisprudência, a suspensão da execução da pena de prisão teria de ficar “sempre” condicionada ao pagamento ao Estado da prestação tributária e demais acréscimos legais, pelo que, no momento da escolha/determinação concreta da pena, deveria a Mm.ª Juíza ter efetuado um prévio juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, constituindo a falta desse juízo a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
5.ª) Caso concluísse que o pagamento era viável, o Tribunal poderia optar pela suspensão da execução da pena de prisão, podendo alargar o prazo de pagamento até 5 anos (artigo 14.º, n.º 1 do RGIT); caso concluísse que esse pagamento não era viável (como se veio a suceder no caso vertente e, a nosso ver, nesta parte correctamente), o Tribunal não poderia optar pela suspensão da execução da pena de prisão, devendo decidir-se pela aplicação de diferente pena principal ou de diversa pena de substituição da pena de prisão (v.g., trabalho a favor da comunidade), sob pena de decidir contra legem;
6.ª) Porém, o Tribunal a quo afastou sem mais o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao condenado pelo facto de este não ter meios económicos suficientes para satisfazer, no período da suspensão, o pagamento da quantia de €62.265,87 e demais acréscimos legais (juros e coimas);
7.ª) Acontece que não bastava ao Tribunal fundamentar a não imposição da condição prevista no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT na “impossibilidade” do arguido proceder a esse pagamento por “não ter meios para tal”. Pelo contrário, tal conclusão – de insuficiência de meios económicos do arguido – impunha a ponderação da escolha de outra pena (v.g., pena de multa) ou a escolha de outra pena substitutiva da pena de prisão (v.g., trabalho a favor da comunidade – artigo 58.º do Código Penal);
8.ª) Em suma, ao não condicionar a suspensão da execução da pena de 1 ano e 2 meses de prisão aplicada ao condenado ao pagamento das prestações contributivas e demais acréscimos o Tribunal a quo violou o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT e, ao não ponderar a aplicação de outra pena que não a suspensão da execução da pena de prisão, violou a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 8/2012, de 12 de setembro;

Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se parcialmente a sentença proferida no que se refere à concreta pena aplicada ao condenado M. J., condicionando-se a suspensão da execução da pena de 2 anos e 6 meses de prisão ao pagamento das prestações contributivas em dívida e demais acréscimos legais, em prazo a fixar até 5 anos, ou aplicando-se uma pena diversa da pena suspensa, assim se fazendo JUSTIÇA.
*
O arguido respondeu ao recurso defendendo a manutenção da decisão recorrida.
*
O recurso foi corretamente recebido.
*
Remetidos os autos a este tribunal, o ministério público emitiu parecer no sentido de dever o recurso ser julgado procedente.
*
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP).
*
II.
Cumpre apreciar e decidir, tendo em conta que é pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Analisando a síntese conclusiva temos que a única questão a dirimir é a de saber se o tribunal a quo deveria ter condicionado a suspensão da pena imposta ao pagamento pelo arguido das prestações contributivas em dívida e demais acréscimos, ou, não o fazendo, se deveria ter ponderado a aplicação de outra pena.
É a seguinte a matéria de facto fixada em 1ª instância e respetiva fundamentação, também de direito, no que ao recurso concerne (transcrição).

Factos Provados.

Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:

a) A sociedade comercial arguida ”X, Lda”, é uma sociedade comercial por quotas, constituída em 23 de Outubro de 2014, cujo objecto social corresponde à confecção de vestuário em série, à importação e exportação e compra e venda de malhas e artigos têxteis, que se encontra inscrita na segurança social, com o n.º de beneficiário .............
b) Desde a data da respectiva constituição que a sociedade comercial arguida ”X, Lda”, desenvolve a sua actividade na Rua …, em …, neste concelho de Vila Verde.
c) Desde a data da sua constituição em 23 de Outubro de 2014 e até, pelo menos, Novembro de 2016 – inclusive -, a gerência, de facto, e os destinos da sociedade comercial arguida “X, Lda”, estiveram sempre a cargo do arguido M. J..
d) No período temporal compreendido entre 29 de Janeiro de 2015 e, de igual modo, até 21 de Julho de 2015, a gerência, de facto, e os destinos da sociedade comercial arguida “X, Lda”, estiveram ainda – conjuntamente com o arguido M. J. - a cargo do arguido D. A..
e) A referida actividade comercial, dentro desses períodos temporais foi desenvolvida pelos arguidos M. J. e D. A. (este no período temporal descrito em d)), tendo ao seu serviço, vários trabalhadores, relativamente aos quais, procedia à distribuição das tarefas e funções a desempenhar por cada um, às marcações das faltas e férias, bem como ao pagamento dos seus respectivos salários.
f) Nos períodos temporais supra referidos, os arguidos M. J. e D. A. (no período temporal descrito em d)) assumiram ainda, no quadro das funções de gerência e direcção de tal actividade comercial, a sua gestão corrente, as vendas por efectuadas junto dos seus clientes e os pagamentos dos impostos apurados, auferindo remunerações, nessa qualidade, pela actividade por si desempenhada.
g) Relativamente aos meses de Novembro de 2014 a Outubro de 2016, respectivamente, os arguidos M. J. e D. A. (este, apenas no período temporal descrito em d)), no âmbito da supra referida actividade, entregaram nas instituições de segurança social as declarações de remunerações dos trabalhadores ao seu serviço, bem como as atinentes às suas próprias remunerações, enquanto gerentes, tendo procedido ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social pelos referidos trabalhadores e por si, nas remunerações efectivamente pagas em tais períodos, com a aplicação da taxa de 11%, descontos esses que se traduziram nos seguintes montantes:
h)

Mês/Referência Cotizações 11%
(Trabalhadores e Gerentes)
Novembro 2014 €1.369,17
Dezembro 2014 €1.479,83
Janeiro 2015 €1.345,11
Fevereiro 2015 €1.675,05
Março 2015 €1.687,87
Abril 2015 €1.693,78
Maio 2015 €1.565,12
Junho 2015 €1.474,82



i) Tais montantes, no total de €62.265,87 (sessenta e dois mil duzentos e sessenta e cinco euros e oitenta e sete cêntimos), não foram, porém, entregues pelos arguidos (no que concerne ao arguido D. A., apenas no período temporal descrito em d)) à Segurança Social até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que respeitam, assim como não os entregaram nos 90 (noventa) dias posteriores.j) Ao agirem do modo descrito, concretamente, ao omitirem a entrega nos competentes serviços da segurança social, nos prazos legalmente estipulados, ou seja, até ao dia vinte do mês seguinte àquele a que as cotizações supra referidas respeitavam, tinham os arguidos M. J. e D. A. consciência de que lhes competia providenciar em nome e em representação da sociedade comercial arguida ”X, Lda”, pelo cumprimento desta obrigação legal.
k) Apesar do exposto, os arguidos M. J. e D. A. (no que concerne ao arguido D. A., apenas no período temporal descrito em d)) obtiveram e alcançaram para si e para a sua representada, vantagens patrimoniais e benefícios económicos que ascenderam a €62.265,87 (sessenta e dois mil duzentos e sessenta e cinco euros e oitenta e sete cêntimos) e a que bem sabiam não ter direito, dando consequentemente origem a uma correspectiva diminuição das receitas dos serviços da segurança social, em prejuízo do Estado Português, em valor equivalente.
l) Os arguidos M. J. e D. A. fizeram assim, seus tais montantes (no que concerne ao arguido D. A., apenas no período temporal descrito em d)), não obstante não lhe pertencerem, em prejuízo do Estado, que não os pôde utilizar para as finalidades previstas na legislação da Segurança Social.
m) Agiram assim, nos períodos temporais supra referidos, arguidos M. J. e D. A. (no que concerne ao arguido D. A., apenas no período temporal descrito em d)), na qualidade de gerentes de facto e responsáveis pela actividade comercial desenvolvida pela sociedade comercial “X, Lda”, num contexto de dificuldades económicas, em que decidiram optar pelo cumprimento de outros encargos, sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
n) Foram ainda notificados os arguidos D. A. e M. J., pessoalmente, respectivamente, em 25 de Janeiro de 2019 e 28 de Janeiro de 2019, para os efeitos do artigo 105º, n.º 4, al. b) e n.º 6 do RGIT, não tendo, contudo, procedido ao pagamento dos valores acima indicados, no prazo de 30 dias estabelecido em tal norma legal.
o) A sociedade arguida não tem antecedentes criminais conhecidos.
p) O arguido D. A. não tem antecedentes criminais registados.
q) O arguido M. J. tem os seguinte antecedentes criminais:
a. Condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, praticado em 15.02.2012 – transitado em julgado em 08.01.2014 e pena extinta em 03.07.2014.
b. Condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, praticado em 02.11.2017 – transitado em julgado em 04.07.2016 e pena extinta em 02.11.2017.
c. Condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, praticado em 15.05.2015 – transitado em julgado em 15.01.2018 – pena de 1 ano e 2 meses de prisão suspensa com regime de prova.
d. Condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, praticado em 22.01.2016 – transitado em julgado em 24.09.2018 – pena de prisão de 1 ano suspensa com regime de prova.
e. Condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, praticado em 13.04.2012 – transitado em julgado em 10.09.2017 – pena de 320 dias multa.
f. Condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, praticado em 08.2012 – transitado em julgado em 02.03.2018 – na pena de 300 dias de multa.

Condições pessoais:
O arguido D. A. encontra-se divorciado e tem dois filhos, um com 19 anos e o outro com 9.
Paga mensalmente € 209,00 a título de pensão de alimentos ajudando ainda os seus filhos com outras despesas que possam ter.
O arguido M. J. tem duas filhas menores pelas quais paga €209,00 de creche.
Aufere € 650,00 da sua função como gerente da sociedade. A sua mulher trabalha na empresa consigo e aufere €600,00.
Reside numa casa própria pagando ao banco a quantia de € 260,00.
*
Factos Não Provados.
Inexistem factos não provados.
*
Convicção do Tribunal.
Para julgar os factos nos termos sobreditos, o Tribunal procedeu à apreciação crítica e conjunta da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente, das declarações prestadas pelos arguidos, dos depoimentos das testemunhas ouvidas e dos documentos que se encontram juntos aos autos.
Concretizando:
O tribunal valorou o Mapa de Contribuições em dívida de fls. 6, 86 a 87, 100, 107 a 146, 165 a 167, 179 a 181, 183 a 192, 203, 207, 211, 249, 294 a 304, 324 a 327 o qual serviu para se demonstrar a não entrega dos montantes à Segurança Social, nos termos dados como provados.
A cópia de recibos de vencimento de fls. 171 a 178 serviram para demonstrar os pagamentos de salários aos trabalhadores e a não entrega dos valores à Segurança Social.
A Certidão permanente por NIPC de fls. 10 a 12, 101 a 106, 286 a 292, 364 a 368 foi relevante para dar como provado os períodos temporais de gestão na empresa.
A Certidão por fotocópia dos autos de processo comum singular n.º 395/15.1IDBRG de fls. 17 a 49 foi relevante para demonstrar a gestão da empresa por parte do arguido M. J..
O “Relatório Preliminar” de fls. 152 a 153 e o “Parecer” de fls. 335 a 348 foram cotejados com a restante prova produzida e serviram para demonstrar as quantias em dívida à Segurança Social.
As Notificações pessoais de fls. 69, 79, 222, 239, 240, 308, 321, 322 serviram para dar como provado que os arguidos foram notificados para procederem ao pagamento das quantias em dívida.
Finalmente e, quanto aos antecedentes criminais o Tribunal ancorou-se nos C.R.C.s dos arguidos juntos aos autos.
No que concerne aos meios de prova orais, iniciou-se a audiência com as declarações da testemunha A. L., que foi funcionária da sociedade arguida durante cerca de um ano. Trabalhou “na firma que era deles”, a aqui arguida. A testemunha explicou que os seus patrões eram o M. J., no início, e depois o arguido D. A.. Os arguidos encontravam-se na empresa diariamente, pagavam os salários e falavam com os fornecedores, fazendo a gestão da empresa.
A testemunha M. P., trabalhou com os arguidos numa empresa têxtil. Descreveu os arguidos como sendo os seus patrões, “eram eles que me pagavam”. A testemunha foi ainda confrontada com os recibos de vencimento juntos aos autos e confirmou o seu teor e que eram efectivamente entregues no âmbito do trabalho desenvolvido na empresa. No mais, a testemunha referiu que via os dois arguidos como seus patrões, pagando salários e gerindo a empresa muito embora não tivesse conseguido concretizar o período temporal em causa.
O arguido D. A. quis prestar declarações e referiu o seguinte: Foi gerente da sociedade em causa desde Janeiro de 2015, “o sr. M. J. propôs-me entrar para gerente e eu entrei”. Em Julho de 2015 vendeu a quota ao Sr. M. J. e saiu da sociedade. Confessou os factos no que concerne ao período temporal em causa.
O arguido juntou aos autos documentos com vista a demonstrar a venda da quota ao co-arguido M. J., concretamente fotocópia da certidão permanente e da escritura de cessão de quotas
Relativamente às condições pessoais, o arguido esclareceu que se encontra divorciado e com dois filhos, um com 19 anos e o outro com 9. Paga mensalmente €209,00 a título de pensão de alimentos.
Ajudando ainda os seus filhos com outras despesas que possam ter.
Depois de o arguido D. A. ter prestado declarações também o arguido M. J. M. J. quis prestar declarações. O arguido esclareceu que foi quem constituiu a sociedade em causa. Na altura convidou o arguido D. A. e ele apenas ficou na empresa durante 6 meses, tendo saído da mesma em Julho de 2015. A partir dessa data o arguido D. A. não mais teve qualquer intervenção no processo.
No mais, o arguido confessou integralmente e sem reservas os factos, esclarecendo que não tinha dinheiro para pagar à Segurança Social pelo que privilegiou o pagamento de salários.
Actualmente, considera que a sociedade está encerrada e sem qualquer actividade.
No que respeita às condições pessoais, o arguido esclareceu que tem duas filhas menores pelas quais paga €209,00 de creche.
Aufere € 650,00 da sua função como gerente da sociedade. A sua mulher trabalha na empresa consigo e aufere €600,00.
Reside numa casa própria pagando ao banco a quantia de € 260,00. No seguimento das declarações do arguido foi determinada uma informação actualizada relativamente à quantia em dívida ao ISS. Junta essa informação aos autos constata-se pelos arguidos não foi paga qualquer quantia, continuando em dívida a quantia referida na acusação.
O tribunal valorou as declarações dos arguidos para dar como provado o lapso temporal relativo ao arguido D. A., uma vez que não se produziu qualquer outra prova relativamente a essa matéria.
*
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Do enquadramento jurídico-criminal dos factos.
Vêm os arguidos acusados pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punível pelo disposto nos artigos 105.º, n.º 1 e n.º 5 e 107.º, n.º 1, ambos do R.G.I.T..
Fundamentando a responsabilidade da Sociedade arguida no artigo 7.º, n.º 1, do R.G.I.T. e artigo 11.º, do Código Penal.
Dispõe o artigo 107.º, n.º 1, do R.G.I.T. que “1 – As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 105.º”.
Por seu turno, dispõe o artigo 105.º, n.º 1 que “(…) é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
No caso dos autos há que aplicar o n.º 5, do citado artigo 105.º, em virtude da entrega não efectuada ser superior a € 50.000,00, pelo que a pena é de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
Contudo, no que concerne ao arguido D. A., uma vez que apenas se demonstrou que foi gerente no período de Janeiro a Julho de 2015, temos um valor não entregue de € 10.945,95. Quer isto dizer que o crime terá que ser desqualificado no que respeita a este arguido, passando o mesmo a ser julgado pelo crime de abuso de confiança à segurança social simples, do artigo 105º, n.º 1 do RGIT.
São elementos do tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social: a dedução, pelas entidades empregadoras, no valor das remunerações devidas aos trabalhadores das quantias por estes legalmente devidos à segurança social e; bem assim aos órgãos sociais; a não entrega, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no prazo de 90 dias; a apropriação dessas quantias pelas entidades empregadoras; o dolo (trata-se de um crime essencialmente doloso, por não estar prevista a sua prática a título de negligência).
Os artigos 1.º a 3.º do Decreto – Lei n.º 103/80 de 9 de Maio, impõem a inscrição obrigatória nas caixas de previdência dos trabalhadores por conta de outrem, como beneficiários, e as suas entidades patronais, como contribuintes.
Nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e n.º 3, do diploma citado e artigo 18.º do Decreto – Lei n.º 140-D/86, de 14 de Junho, as contribuições do regime da Segurança Social devem ser descontadas das remunerações dos trabalhadores dependentes e entregues pela respectiva entidade patronal nos Centros Regionais de Segurança Social, até ao dia 15 do mês seguinte àquele que disserem respeito.
No que respeita à taxa de cotização (percentagem de 11% ou de 10%), ela incide sobre a retribuição do trabalhador ou do órgão social (respectivamente), repercutindo-se no seu montante líquido, mas é à entidade patronal que compete satisfazer o crédito da segurança social, por cujo pagamento se torna responsável.
E, como se decidiu no Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães de 11/11/2009, com o n.º de processo 187/06.9TAMNC.G1, relatora: TERESA BALTAZAR “O crime de abuso de confiança verifica-se com a simples conduta omissiva do agente da não entrega dos montantes à Segurança Social a esta pertencentes”.
Neste mesmo sentido, ver o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/10/2006, com o n.º de processo 06P2935, com o n.º convencional JSTJ000, relator: ARMINDO MONTEIRO, onde se decidiu que “VI – O novo preceito (artigo 105.º do RGIT) manifesta um alargamento da punibilidade, abrangendo claramente não só as situações de indevida apropriação mas também as de intencional não entrega”.
E, ainda a título de exemplo, o Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto em 12/03/2003, com o n.º de processo 0210289, com o n.º convencional JTRP00035668, relator: JORGE ARCANJO, onde se decidiu de forma muito expressiva que “A apropriação não tem de ser necessariamente material, podendo ser, como quase sempre é, apenas contabilística” (sublinhado nosso).
Todos os Acórdãos citados se encontram disponíveis in http://www.dgsi.pt/jtrp.
Ora, face aos factos julgados como provados, há que concluir que se verifica preenchidos os elementos típicos objectivos e subjectivos do tipo criminal pelo qual os arguidos (pessoas singulares) se encontram acusados.
A responsabilidade da sociedade arguida não exclui a responsabilidade dos seus agentes que, de acordo com o n.º 3, do citado artigo 7.º respondem cumulativamente e em co-autoria.
*
Das consequências Jurídicas do Crime.
Nos termos do artigo 105.º, n.º 1 e n.º 5, do R.G.I.T. ex vi artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma legal é aplicável em abstracto, aos arguidos (pessoas singulares), uma pena de prisão de 1 a 5 anos.
Prevê o artigo 70.º do Código Penal que, se ao crime forem aplicáveis uma pena privativa da liberdade e uma pena não privativa da liberdade, o Tribunal deverá dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição, previstas no artigo 40.º do mesmo diploma legal.
Vejamos primeiro o caso do arguido M. J.:
No caso dos autos a escolha da pena encontra-se vedada ao tribunal uma vez que a lei impõe a aplicação de uma pena de prisão.
*
Nos termos do artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal, a “aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
As finalidades de punição são, pois as consideradas no citado artigo 40.º do Código Penal: protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade. Estas finalidades são complementares no sentido de que não se excluem materialmente, havendo sempre que encontrar um justo equilíbrio na sua ponderação (cfr. Acórdão de S.T.J. de 10/12/1997, Proc. n.º 916/97, 3.ª Secção).
Com a determinação que sejam tomadas em consideração as exigências de prevenção geral procura dar-se satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos.
E, com recurso à vertente da prevenção especial almeja-se satisfazer as exigências da socialização do agente, com vista à sua reintegração na comunidade (cfr. Acórdão do S.T.J. de 04/07/1996, Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do S.T.J., ano IV, tomo 2, página 225).
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente: entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (cfr. Acórdão do S.T.J. de 15/10/1997, Proc. n.º 589/97, 3.ª Secção).
É também esta, em síntese a lição do Prof. Figueiredo Dias (“O Código Penal Português de 1982 e a sua Reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fascículo 2-4, Dezembro de 1993, páginas 186-187).
Dando concretização aos vectores enunciados, o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal enumera exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação e determinação concreta da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente.
Assim, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, será feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção – artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, bem como do prejuízo causado pelo crime, nos termos do artigo 13.º, do R.G.I.T.
Estas últimas revelam-se acentuadas na vertente da prevenção geral.
Serão igualmente tidas em consideração todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
No que concerne ao arguido M. J. ter-se-á, assim, em consideração todas as circunstâncias que depõem contra este: o grau de ilicitude é elevado, pois pautou-se por uma conduta que consubstancia um período de cerca de 2 anos de incumprimento das obrigações perante a Segurança Social; a intensidade do dolo, o arguido agiu com dolo directo, a forma mais intensa do dolo; o arguido não procurou pagar voluntariamente as quantias em dívida, não resultando evidenciado qualquer esforço de diminuição do mal causado com a prática do crime; o montante das quantias em falta é de valor global considerável e o arguido tem já um antecedente criminal (que pode ser valorado atendendo à data da prática dos factos) por crime de idêntica natureza.
A favor do arguido releva ainda a circunstância de se encontrar convenientemente inseridos social e familiarmente e ter confessado os factos.
*
Tudo devidamente ponderado, fazendo uso de um critério de razoável proporcionalidade e sem esquecer que, na lição sempre actual de Beleza dos Santos (que não julgamos contrariada pelo artigo 40.º do Código Penal), “a tranquilidade pública só deverá considerar-se convenientemente restabelecida quando a pena for um justo castigo, um adequado meio de intimidação e um conveniente processo de regeneração do delinquente” (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 78.º, página 26), afigura-se necessária e adequada a pena para o arguido M. J. a pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
*
Considerando que o arguido tem apenas um antecedente criminal valorável, mostrando-se inserido no seu meio social, conclui o Tribunal que a simples censura dos factos e a ameaça da pena de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que determina a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, pelo período de 2 anos e 6 meses, nos termos do art.º 50.º, nºs. 1 e 5 do C. Penal.
*
Da suspensão da pena de prisão condicionada à obrigação de devolver a quantia em falta ao Estado:
Tendo presente o disposto no artigo 14º do RGIT, analisemos o que tem sido decidido pelos Tribunais superiores relativamente a esta matéria:
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.02.2016, disponível em www.dgsi.pt,
“O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2012 do Supremo Tribunal de Justiça tal como o artigo 14.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, não afastam a aplicabilidade do artigo 51.º, n.º 2 do Código Penal, o qual materializa a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana, como se alcança do artigo 1º da Constituição da República Portuguesa.
O que tal AUJ obriga é que se faça, em sede de decisão, um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, isto é, o julgador tem de aquilatar se o condenado está em condições de proceder ao pagamento da prestação tributária, durante o período da suspensão de execução da pena, e, estando, condicionar tal suspensão a esse pagamento. O acórdão não obriga, nem poderia obrigar, sob pena de violação do princípio da igualdade, a que, não tendo o condenado condições para pagar a prestação tributária, mas reunindo os demais requisitos para a suspensão de execução da pena, a mesma não seja suspensa. Seria uma verdadeira “prisão por dívidas ao Estado".”
No mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 24.04.2016: “O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2012, do Supremo Tribunal de Justiça, não obriga, nem poderia obrigar, sob pena de violação do princípio da igualdade, a que não tendo o condenado condições para pagar a prestação tributária, mas reunindo os demais requisitos para a suspensão de execução da pena, a mesma não seja suspensa.”

Ora, no caso concreto provou-se que o arguido aufere € 600,00 mensais, tem que pagar o empréstimo da habitação e ainda a creche das duas filhas menores que se encontram a seu cargo. Provou-se ainda que vive com a sua mulher e que esta também aufere a quantia mensal de € 600,00 pelo que é de todo impossível exigir ao arguido a devolução de uma quantia superior a € 60.000,00 no espaço de dois anos e meio. Na verdade, o orçamento familiar anual ascende a € 14.400,00 pelo que para se atingir o quantitativo de € 60.000,00 seriam precisos mais de 4 anos.
Por outro lado, atendendo aos escassos rendimentos do agregado e ao facto de terem duas menores a seu cargo, com as inerentes despesas fixas e variáveis, não nos parece possível impor a devolução de qualquer quantia mensal. Pelo exposto, a suspensão não ficará subordinada a qualquer condição.
*
Apreciação do recurso.

O recorrente discorda do direito aplicado pelo tribunal a quo à factualidade apurada. Isto é, discorda de ter o tribunal condenado o arguido numa pena de prisão suspensa e não ter condicionado a suspensão ao pagamento da quantia tributária em dívida, entendendo que tal viola não só o art.º 14.º nº 1 do RGIT, como também o Ac. FJ 8/12 de 12/09.

Dispõe o art.º 14.º do RGIT com a epígrafe “suspensão da execução da pena de prisão que

1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.

Como se disse no processo 349/15.8T8BRG.G1 in www.dgsi.pt, da leitura da lei resulta, à primeira vista inequivocamente que, em caso de suspensão da pena de prisão por crime tributário, ela terá de ser sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária em falta.
Foi a forma que o legislador encontrou para punir a persistente omissão da entrega de contribuições devidas à autoridade tributária e à segurança social, ultrapassando a primazia pela pena de multa, que vigorava no anterior RJIFNA, antes das alterações nele operadas pelo DL 394/93 de 24.11.
Tratou-se de uma opção muito aplaudida a nível doutrinal (Cfr Anabela Miranda Rodrigues in “Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria penal fiscal” in Direito Penal Económico e Europeu, textos doutrinários, Volume II, Coimbra Editora, 1999, 481 e ss).
Mas foi também a doutrina que sempre chamou a atenção para a necessidade e evitar os efeitos perversos, degradantes, das penas efetivas de prisão e para a necessidade de entender a pena suspensa, enquanto pena de substituição, como verdadeira pena com eficácia retributiva e preventiva.
Desde a Lei de 06/07/1893 – a primeira que regulou a suspensão condicional da pena de prisão – até aos nossos dias e ao artigo 50º do Código Penal o caminho foi sendo feito paulatinamente no sentido de se alcançar, com a suspensão da pena, verdadeiramente a ressocialização do condenado. São, pois, considerações de natureza preventiva (de prevenção geral e especial) aquelas que devem presidir à opção pela pena de prisão, opção esta que se traduz num poder-dever do julgador, ou seja, um poder vinculado do juiz que tem de aplicar sempre a suspensão, quando se verifique o preenchimento dos pressupostos em que assenta e que tem sempre de justificar a sua concessão ou a denegação sob pena da nulidade da decisão.
A suspensão da pena no Código Penal pode ser condicionada ao cumprimento de deveres, de regras de conduta ou acompanhada por regime de prova (artigo 50º, nº 2 do Código Penal).
No que aos deveres diz respeito, o artigo 51º do Código Penal no seu nº 2 dispõe que os deveres impostos para suspensão não podem, em caso algum, representar para o condenado obrigação cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.
Este nº 2 foi introduzido pela reforma do Código Penal de 1995 e projetou na lei penal um princípio que acompanhava todos os ramos do direito, porque inerente à ideia de justiça, o princípio da razoabilidade.
De acordo com tal princípio, o critério a adotar passa pela necessidade de averiguar da possibilidade de cumprimento dos deveres pelo condenado a quem tais deveres são impostos como condição de suspensão, sem prejuízo de, posteriormente, de em caso de incumprimento, poder ser levada a cabo nova apreciação para aferir das circunstâncias que determinaram tal impossibilidade.
Mas a suspensão das penas nos crimes tributários esteve sempre sujeita a um regime específico, que extravasa os quadros do regime geral do direito penal clássico traçado pelo Código Penal.
Desde a impossibilidade da suspensão condicional de pena (adotada pelo DL 619/76 de 27.07) até ao atual RGIT, o caminho foi-se fazendo no sentido de vir a ser admitida a suspensão da pena, embora com a exigência de pagamento das quantias tributárias em falta – exigência que sempre mereceu a aprovação do Tribunal Constitucional ao decidir, sempre que foi chamado a fazê-lo, não julgar inconstitucional o artigo 14º do RGIT. É certo que num desses acórdãos (376/2003 de 15/07/2003) ficou inscrito um voto de vencido da Exma Conselheira Maria Fernanda Palma de acordo com o qual “a obrigatoriedade fixada pelo artigo 14, nº 1 do RGIT ao condicionar sempre a suspensão da pena ao pagamento das prestações tributárias e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos, sem admitir a ponderação casuística do julgador, viola os princípios constitucionais da igualdade, da culpa, da necessidade e da proporcionalidade da pena”, mas tal não afastou a declaração de que o artigo 14º do RGIT não sofria de inconstitucionalidade.
A mudança de paradigma teve início com o Acórdão STJ de 29/01/2003 que abordou a questão da “ingerência do legislador na reserva de jurisdição” ao impor a obrigatoriedade de condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento total das quantias, embora acabasse por concluir que tal ingerência “não atingia em grau de intolerável o núcleo essencial da reserva da jurisdição”.
O certo é que diversas vozes se começaram a levantar a nível doutrinário para defender que, só olhando para a concreta situação pessoal e económica dos condenados e fazendo-a refletir na sentença, se poderia assegurar o conteúdo pedagógico e reeducativo visado com a aplicação da pena.

E foi assim que veio a ser fixada jurisprudência pelo acórdão 8/2012 de 12/09/2012 publicado no DR I, série nº 206 de 24/10/2012 segundo o qual:

No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p.p. no artigo 105º, nº 1 do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão nos termos do artigo 50º, nº 1 do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14º, nº 1 do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia”.

Ora, do juízo de prognose feito pelo tribunal a quo resulta que o arguido condenado não tem possibilidade de no prazo de suspensão da pena pagar a quantia em dívida. De facto, o tribunal a quo na ponderação que expressa e individualizadamente fez da necessidade de condicionar a suspensão da pena ao pagamento das quantias em dívida faz a seguinte ponderação: “No caso concreto provou-se que o arguido aufere 600,00€ mensais, tem de pagar o empréstimo da habitação e ainda a creche das duas filhas menores que se encontram a seu cargo.
Provou-se ainda que vive com a sua mulher e que esta também aufere a quantia mensal de 600,00€ pelo que é de todo impossível exigir ao arguido a devolução de uma quantia superior a 60.000€ no espaço de 2 anos e meio. Na verdade o orçamento familiar anual ascende a 14.400€, pelo que para se atingir o quantitativo de 60.000€ seriam precisos mais de 4 anos.
Por outro lado, atendendo aos escassos rendimentos do agregado e no facto de terem duas menores a seu cargo, com as inerentes despesas fixas e variáveis, não nos parece possível impor a devolução de qualquer quantia mensal. Pelo exposto, a suspensão não ficará condicionada a qualquer condição.”
O recorrente concorda com a conclusão a que chegou o tribunal a quo de que o pagamento não era viável (conclusão 5ª do recurso), entendendo que deveria, então, o tribunal ter optado por aplicar outra pena, v.g. a pena de trabalho a favor da comunidade.
A questão que, primeiramente, se põe é, então, como se disse, a de saber se sendo indubitável que o arguido não dispunha de qualquer possibilidade de cumprir o dever de pagar a quantia em dívida, o tribunal a quo, mesmo assim, deveria ter condicionado a suspensão ao pagamento, como parece resultar da simples leitura do art.º 14.º do RGIT.
Como se disse no processo nº 86/17.9T9VLN.G1, desta Relação, não publicado, (Des. Cândida Martinho) “não sendo clara a solução apontada no mencionado AUJ para as situações em que o arguido não tem possibilidades de pagar as quantias condicionantes da suspensão da execução da pena, a jurisprudência vem-se dividindo, como, aliás, se assinalou no Acórdão da Relação do Porto, de 20/4/2016, proferido no processo 21/14.6IDAVR.P1.
“Para uns “o tribunal não deve suspender a execução da pena de prisão determinada, pela qual tivesse optado inicialmente, quando a concreta situação económica do arguido não permite prognosticar que ele virá a satisfazer ao Estado a prestação tributária e legais acréscimos que, nos termos do art. 14º n.º 1, do RGIT, condiciona obrigatoriamente a suspensão da pena. Em tal hipótese, o tribunal deve voltar a ponderar a aplicação da pena principal de multa ou a aplicação de pena de substituição diversa da suspensão da execução da prisão, quando a pena concretamente determinada o permita”.

Para outros, “O artigo 14º, n.º 1, do RGIT deve ser interpretado conjugadamente com o artigo 51º, n.º 2, do Código Penal, do que resulta que nos crimes tributários, tal como acontece com os restantes crimes, só pode ser imposto o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida”.
Propendemos neste último sentido, defendendo que, não obstante o imperativo da imposição da condicionante, é de ter em conta o princípio da razoabilidade previsto no nº2 do art.51 e existindo essa possibilidade, a sua não consideração origina nulidade por omissão de pronúncia.
Seguimos assim o entendimento expendido no acórdão da Relação de Lisboa de 8/10/2015 (não publicado), proferido no processo nº698/08.1IDLSB.L1, transcrito no acórdão dessa mesma Relação, de 18/2/2016, proferido no processo 949/14.3IDLB.L1-9.
(…)
Da análise dos preceitos legais e da jurisprudência obrigatória do Supremo Tribunal de Justiça, não nos parece, contrariamente ao que sustenta o Digno Magistrado do Ministério Público no seu recurso, que, nos crimes tributários, a suspensão de execução da pena de prisão aplicada, só possa ser possível desde que condicionada ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, isto é, desde que o condenado tenha condições de pagar a prestação tributária e legais acréscimos.
Na verdade, entendemos que não se pode fazer uma interpretação do acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que o condenado que reúna os pressupostos legais para beneficiar da suspensão de execução da pena, a mesma não lhe seja aplicada pelo simples facto de não ter condições de liquidar a prestação tributária em falta e legais acréscimos durante o período da suspensão. A defesa desta tese levaria a que dois arguidos na mesma situação processual, em que ambos reunissem condições para beneficiar do regime de suspensão de execução da pena, mas com diferente situação financeira, um pudesse beneficiar da mesma (porque tinha condições para liquidar a prestação tributária devida) e outro não pudesse (por não ter condições financeiras para liquidar a prestação tributária). Tal situação acarretaria, inexoravelmente, uma violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa e seria inconstitucional.
Na verdade, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça tal como o artigo 14º do RGIT, não afastam a aplicabilidade do artigo 51º, nº 2 do Código Penal, o qual materializa a protecção constitucional da dignidade da pessoa humana, como se alcança do artigo 1º da Constituição da República Portuguesa.
O que o acórdão de fixação de jurisprudência obriga é que se faça, em sede de decisão, sob pena de nulidade da mesma, “(…) um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia”, isto é, o julgador tem de aquilatar se o condenado está em condições de proceder ao pagamento da prestação tributária, durante o período da suspensão de execução da pena, e, estando, condicionar tal suspensão a esse pagamento. O acórdão não obriga, nem poderia obrigar, sob pena de violação do princípio da igualdade, a que, não tendo o condenado condições para pagar a prestação tributária, mas reunindo os demais requisitos para a suspensão de execução da pena, a mesma não seja suspensa. Seria uma verdadeira “prisão por dívidas ao Estado”.
Não podemos esquecer que o Estado tem outros mecanismos legais, muitos dos quais muito mais eficazes e até violentos que os que resultam do seu ius puniendi, para poder cobrar as dívidas tributárias, não necessitando deste poder de última ratio para tal fim. Neste sentido, o legislador apenas pretendeu que em relação a todos os infractores que estejam em condições de proceder ao pagamento das prestações tributárias, o tribunal condicione a suspensão ao referido pagamento."
No mesmo sentido, o Acórdão da Relação do Porto já citado e o Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 10/10/2016, proferido no processo 614/09.3IDBRG.G1.”.
É este também o nosso entendimento. De facto, a imposição do dever de pagar a quantia em dívida, representaria para o condenado uma obrigação cujo cumprimento não seria razoavelmente de exigir, o que contraria o disposto no nº 2 do art.º 51.º do CP, o qual se aplica ao RGIT (art.º 3º, al. a) do RGIT).
Tal como é dito no acórdão da Relação de Lisboa 26/02/2014 proferido no processo 1467/11.7DLSB.L1-3 in www.dgsi.pt há que “interpretar conjugadamente o mencionado art.º 14.º nº 1 do RGIT e o art.º 51.º nº 2 do CP do que resulta que nos crimes tributários tal como acontece com os restantes crimes, só pode ser imposto o dever de pagamento quando do juízo de prognose realizado resulta existirem condições para que essa obrigação possa ser cumprida”.
Decidir em sentido contrário seria violar a condição primeira de qualquer sentença: fazer justiça no caso concreto.
Portanto, sendo manifesta a impossibilidade de cumprimento da condição, manifesto é também que a suspensão da pena não poderia ficar condicionada a tal obrigação, quanto mais não fosse por inutilidade.
Deveria o tribunal ponderar a aplicação de outra pena, como também entende o recorrente?
Antes de mais diga-se que o recorrente refere (conclusão 8ª) a pena de 1 ano e 2 meses de prisão, quando a pena concretamente imposta foi de 2 anos e 6 meses de prisão.
Ora, o recorrente não discordou da dimensão da pena, nem da suspensão, não defendeu ou requereu a aplicação de uma pena de dimensão diferente. Discorda tão só de que a mesma tenha sido suspensa sem condição.
Assim sendo, a pena de 2 anos e 6 meses de prisão é inalterável, porque com a dimensão encontrada pelo tribunal a quo todos se conformaram.
E com a dimensão fixada, nenhuma outra pena não privativa de liberdade poderia ser equacionada, uma vez que outras penas de substituição como sejam a substituição por pena de multa (art.º 45.º do CP) ou por prestação de trabalho a favor da comunidade (art.º 58.º do CP) pressupõem a imposição de penas inferiores a, respetivamente, 1 ano e 2 anos, o que não é o caso.
Sendo a pena de 2 anos e 6 meses, a única pena de substituição aplicável é a de suspensão da execução, pela qual optou o tribunal a quo, posição que, pelo exposto, não merece censura.

Improcede, assim, o recurso.

III.
DECISÃO.

Em face do exposto decidem os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, mantêm a decisão recorrida.
Sem custas (art.º 522.º do CPP).
Notifique.
Guimarães, 08 de fevereiro de 2021

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho