Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
490/21.8T8GMR-A.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS
CARTÃO DE CRÉDITO E CARTÃO DE DÉBITO
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO EM CONTA CORRENTE
CONTRATO DE UTILIZAÇÃO OU DE EMISSÃO
CUSTOS
AVAL
CAPITALIZAÇÃO DE JUROS
USURA
TAEG
PACTO DE PREENCHIMENTO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Subjacente à emissão de um cartão de crédito bancário está um contrato, designado por “contrato de utilização” ou “contrato de emissão”, o qual configura um contrato acessório em relação aos contratos de depósito bancário ou ao de abertura de crédito em conta corrente.
II - Embora os avalistas (de uma livrança) não sejam sujeitos da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, isto é, da relação subjacente à obrigação cambiária, estabelece o art.º 32º da LULL, que o dador de aval é responsável da mesma forma que a pessoa por ele afiançada, sendo certo que a extensão e o conteúdo da obrigação do avalista aferem-se pela do avalizado.
III- O CPC permite o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos, ou de alguma exceção perentória (artigo 595.º, n.º 1, al. b) do CPC), sendo essa decisão tomada livremente pelo tribunal quando considere que se encontra já habilitado, de forma cabal, a decidir conscienciosamente o mérito da causa naquela fase processual.
IV- Sendo os embargos de executado um meio de defesa posto em benefício do executado, eles tomam o carácter de uma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e/ou da ação que nele se baseia. Por isso, é o embargante quem tem o ónus da prova, nos termos do art.º 342.º, n.º 2. do CC, dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que, através dos embargos, adianta contra o exequente e que este pretende fazer valer através do título que traz à execução.
V- A obrigação do avalista é autónoma e válida nos precisos termos decorrentes da livrança, enquanto título de crédito que goza das características da literalidade e abstração, não sendo por isso pacífica a questão de saber se a embargante, na qualidade de avalista, tem legitimidade para arguir as eventuais nulidades do contrato de utilização de cartão de crédito, que não subscreveu nem assinou, encontrando-se por isso fora do campo das relações imediatas estabelecidas entre as partes daquele contrato.
VI- Pode no entanto defender-se que quando o avalista intervenha no pacto de preenchimento do título – subscrevendo-o -, se considera que ele pode suscitar questões atinente ao preenchimento abusivo do título (livrança), já que nesse caso se está no domínio das relações imediatas.
VII - O contrato - ou pacto - de preenchimento é o ato pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc, acordo esse que pode ser expresso ou tácito, e pode ou não coincidir com a obrigação que garante e que daquela é causal ou subjacente.
VIII – Considera-se usurário o contrato de crédito ao consumo em que a TAEG (taxa anual de encargos efetiva global), no momento da celebração do contrato, exceda em um quarto a TAEG média praticada pelas instituições de crédito no trimestre anterior para cada tipo de contrato de crédito aos consumidores, sendo o Banco de Portugal quem calcula e publica trimestralmente as taxas máximas em vigor para cada tipo de crédito ao consumo.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: José Manuel Alves Flores
2ª Adjunta: Sandra Maria Vieira Melo
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I- RELATÓRIO:

Por apenso aos autos de Execução intentados pela “Banco 1..., SA” contra “S...-Importação e Exportação, Lda.”, “P...-Lojas Multiconceitos, Lda.”, AA e BB, para pagamento da quantia de € 30.830,17, acrescida de juros de mora à taxa de 6%, desde 24.11.2020, vieram os executados AA e BB, deduzir Oposição à execução por Embargos de executado, visando a extinção da execução.
Alegam para tanto que a quantia em dívida é titulada por duas livranças: a livrança n.º ...07, emitida em 17.02.20171 e vencida em 23.11.2020, subscrita pela devedora principal e avalizada pelos embargantes, titulando o montante de € 4.588,84, e pela livrança nº ...15, emitida em 10.03.2017 e vencida em 23.11.2020, também subscrita pela devedora principal e avalizada pelos embargantes, titulando o montante de € 26.241,33, correspondendo a primeira livrança a um contrato de crédito concedido pela exequente à devedora principal, e a segunda a um contrato de cartão de crédito concedido pela exequente à mesma devedora, e com o limite de crédito de € 20.000,00.
Acontece que os títulos dados à execução (livranças) foram entregues à exequente em branco, que os preencheu (com as respetivas datas e valores), após concluir pelo incumprimento do financiamento feito à devedora principal, sem que os embargantes (avalistas) tenham tido conhecimento daquele preenchimento, nem tenham dado autorização para o mesmo, e ainda sem que os mesmos pudessem sindicar o valor do preenchimento dos títulos.
Além disso, a responsabilidade dos embargantes no que respeita à livrança n.º ...15 deve limitar-se ao montante máximo de € 20.000,00, ao qual aqueles se vincularam como avalistas, além de que as taxas de juro que a exequente aplicou à quantia em dívida antes do preenchimento daquela livrança terá sido superior às fixadas pelo Banco de Portugal (BdP).
Acresce que a exequente incluiu no capital reclamado por conta do contrato de cartão de crédito, juros de mora, ou seja, capitalizou os juros, cobrando juros sobre juros, o que, sendo embora admissível, depende de convenção das partes, desconhecendo os embargantes se tal convenção existiu ou não (por não lhes ter sido comunicada tal cláusula, nem nenhum dos executados possuírem cópia do contrato celebrado).
Acresce ainda que tratando-se de contrato de adesão, aos executados não foi informada nenhuma das cláusulas contratuais gerais constantes do contrato celebrado, nem lhes foram explicadas quaisquer cláusulas específicas do mesmo contrato, pelo que são os mesmos nulos, devendo tais cláusulas ser excluídas do contrato, ou, pelo menos, serem declaradas nulas as clausulas relativas à possibilidade de resolução do contrato por parte da embargada, quando lhe aprouver.
Alegam ainda que a exequente atua com manifesto abuso de direito ao deduzir as pretensões acima mencionadas, a que não tem direito, pelo que são inexigíveis as quantias por ela reclamadas.
Além disso, tendo a embargada recebido da devedora principal durante todo o contrato (ou seja, desde 2016) mais do que aquilo a que tinha direito, o valor que vier a ser apurado como tendo sido cobrado em excesso deve ser amortizado ao valor que vier a ser determinado como efetivamente em dívida pela P...-Lojas Multiconceitos à Embargada, compensando-se o maior ate às forças do menor.
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Indeferiu-se, liminarmente, por extemporâneos, os embargos oferecidos pelo executado AA e, recebeu-se os embargos deduzidos pela embargante BB, determinando-se a notificação da exequente/embargada para os contestar.
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A Banco 1... SA contestou, sustentando o indeferimento das exceções alegadas, e concluindo pela improcedência dos embargos. Requereu ainda a condenação da embargante como litigante de má-fé.
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Observou-se o contraditório quanto à contestação, e após notificou-se as partes da intenção do tribunal de conhecer de mérito no despacho saneador.
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Tramitados regularmente os autos foi então proferido o seguinte Saneador-Sentença:
“Pelo exposto, julga-se totalmente improcedentes os embargos de executado e, assim, determina-se o prosseguimento da execução.
Custas pela embargante - 527º nºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil - sem prejuízo do apoio judiciário concedido…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a embargante BB interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:

“i. As nulidades processuais que se encontrem a coberto de uma decisão judicial podem ser impugnadas no recurso da decisão que lhes deu cobertura, de harmonia com o entendimento doutrinária e jurisprudencialmente firmado.
ii. A Recorrente suscitou nos embargos de executado as seguintes questões: a. proceder, por provada, a invocada nulidade do contrato de utilização de cartão de crédito e de descoberto autorizado, por falta de forma;
b. proceder, por provada, a invocada excepção de usura quanto aos juros remuneratórios;
c. proceder, por provada, a invocada excepção de usura quanto à taxa máxima da TAEG;
d. proceder, por provada, a invocada nulidade parcial do contrato de crédito que tem como consequência a redução da taxa dos juros remuneratórios e da TAEG aos limites legalmente fixados, ou, subsidiariamente, decretada a anulabilidade do contrato que tem como efeito a redução das taxas de juro remuneratórios e da TAEG aos limites legais ou segundo juízos de equidade;
e. reconhecer-se que a Requerente actua em manifesto abuso de direito, nas diversas vertentes invocadas supra, mormente no pedido de juros remuneratórios a taxa superior à TAEG trimestralmente fixada pelo Bdp, no pedido de juros remuneratórios sobre as quantias que excedem o limite de crédito;
f. ser reconhecida a nulidade das clausulas reportadas às temáticas supra alegadas na rúbrica respectiva, as quais não se indicam por os Embargantes não disporem de cópia dos contratos, por se tratarem de clausulas contratuais gerais do contrato que não foram transmitidas e explicadas;
g. declarada a nulidade do preenchimento das livranças (seja por falta de pacto de preenchimento (no que toca à livrança n.º ...08(…)77107) seja porque preenchida em violação do pacto (no que toca à livrança n.º ...08(…) 77115), ou, caso assim não se entenda, a inexigibilidade do montante preenchido para além do limite de crédito constante do pacto de preenchimento (no que toca à livrança n.º ...08(…) 77115);
h. absolver-se os Embargados dos juros de mora peticionados;
i. ser a Embargada condenada a reconhecer a compensação entre os seus créditos sobre a P...-Lojas Multiconceitos e os créditos que vierem a ser reconhecidos a favor desta sobre a Embargante até às forças do de valor mais reduzido;
j. improceder, por não provada, a presente acção, na medida e nos termos dos factos e pelas razões de direito expendidas, absolvendo-se os Embargantes do pedido nessa exacta medida;
subordinadamente;
k. declarada a inexistência da obrigação exequenda, conforme a mesma está delimitada no RE».
iii. Com respeito ao referido supra em k), a Embargante alegou nos Embargos (em 22.º a 28.º e 36.º a 40.º) que não sabia, nem tinha forma de saber, dentro do “bolo” global” reclamado no RE, o que se está a reclamar, qual a razão de ser de cada uma dessas quantias e se essas quantias são, efectivamente, devidas.
iv. Mais foi referido que a Recorrida após a resolução do contrato, A Embargada recebeu quantias da N... para amortização da dívida dos autos, desconhecendo a Embargante se tais quantias foram amortizadas na dívida reclamada no RE, mas tudo aparentado que não o tenha sido considerada.
v. Salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal ad quo na Douta Sentença não apreciou todas as questões suscitadas, concretamente:
vi. Não se pronunciou acerca da composição do montante em dívida, mormente apurando qual a quantia paga pela N... e se esta foi considerada na quantia reclamada nos autos;
vii. Não se pronunciou acerca do abuso de direito invocado de reclamar juros de mora e remuneratórios e despesas, sobre as quantias que excedem o limite de crédito fixado na operação C...;
viii. Não se pronunciou acerca da nulidade do contrato, por se tratar de contrato de adesão cujas cláusulas deveriam ter sido explicadas.
ix. Não se pronunciou sobre a responsabilidade da Recorrida pela ultrapassagem dos limites de crédito.
x. Não apreciou a questão da necessidade de, a cada trimestre decorrido, fixar a TAEG de acordo com as instruções que trimestralmente são fixadas pelo Banco de Portugal.
xi. A Douta decisão sob recurso, sempre com o devido respeito por opinião diversa, não apreciou as ante mencionadas questões, pelo que, enferma da ante referenciada nulidade, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d) 1.ª parte do CPC, que aqui se invoca.
xii. A Douta decisão sub iudice não fundamentou de facto os factos dados como provados e não provados, como impõe o artigo 607.º, n.º 4 do CPC.
xiii. A Douta decisão sob recurso, sempre com o devido respeito por opinião diversa, não fundamentou criticamente, de forma a se compreender o processo lógico e racional que levou a dar-se os factos provados como provados e os não provados como não provados, pelo que, enferma da ante referenciada nulidade, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, que aqui se invoca.
xiv. A Recorrente alegou que em face da convenção de preenchimento da livrança (Contrato C... – livrança n.º ...15) apenas se responsabilizava pela quantia correspondente ao limite de crédito, ou seja, € 20.000,00, pelo que, o preenchimento da mesma, ao abrigo da convenção de preenchimento prestada, se encontrava limitado até esse montante.
xv. A Recorrente apenas se responsabilizava até ao valor de € 20.000,00, qualquer que fosse a composição desse valor, quer fosse capital, juros remuneratórios ou moratórios e/ou despesas .
xvi. Com o devido respeito, a Douta Decisão do Tribunal ad quo, enferma de equívocos e faz juízos (na fundamentação de direito (III.) – pág. 7, últimos dois parágrafos e pág. 8, primeiro parágrafo –) que não encontram respaldo nos articulados nem nos documentos juntos aos autos.
xvii. A Recorrente alegou os factos concretos de onde emerge o preenchimento abusivo: defendendo que o limite de responsabilidade era de € 20.000,00, valor até ao qual, pagaria o capital, os juros e as despesas.
xviii. O doc. n.º ... junto com a PI de Embargos (que aqui se dá por plasmando), refere um limite de crédito de € 20.000,00.
xix. O cerne do preenchimento abusivo da livrança, é o preenchimento para além da quantia de € 20.000,00.
xx. A Douta Sentença fundamenta-se, para desatender a questão da ultrapassagem de crédito e o preenchimento abusivo da livrança para além do limite, no disposto no artigo 32.º (doc. n.º ...4 da Contestação – condições particulares do cartão de crédito), que, todavia, não refere aquilo que se escreveu, dado que, em lado algum a dita cláusula 32.º refere, sem limite de valor, como se refere na Douta Sentença (pág. 8, 1.º parágrafo).
xxi. O pedido formulado no Requerimento Executivo, a título de capital ascende, no que respeita à livrança n.º ...15, à quantia de € 26.241,33, quando o limite de crédito referido na convenção de preenchimento da livrança fala em € 20.000,00.
xxii. A Douta Sentença refere que o valor pago à Exequente pela N... foi amortizado pela Embargada, mas não se apurou qual foi esse valor, pelo que, se ignora o que foi deduzido. Se não se apurou qual o valor pago e qual foi deduzido, não se pode concluir sem mais, pela certeza do valor reclamado.
xxiii. E, ainda que se sustente que, tal valor tem juros, ao serem capitalizados passaram a ser capital, e, se assim não se entendesse, importava demonstrar qual era a proporção dos juros e a de capital.
xxiv. Em face do alegado na PI de Embargos, do resultante do doc. n.º ... desse articulado e do doc. n.º ...4 da Contestação, deve ser ampliada a matéria de facto de modo que fique a constar ou do facto assente r) ou de outro facto a aditar, que, quanto aos avalistas estes apenas se responsabilizaram ate ao limite de crédito (facto assente p)).
xxv. A Recorrente alegou que a cláusula da capitalização dos juros (do contrato de adesão) não lhes foi comunicada (artigos 65.º a 74.º da PI de Embargos).
xxvi. A Douta decisão, sem mais, detém-se apenas no contrato e sustenta que a capitalização é permitida pelo contrato.
xxvii. Salvo mais douta opinião, antes dessa conclusão, necessário se tornava que se fizesse prova acerca da comunicação ou não da cláusula da capitalização dos juros e, quanto a isso, não se chegou a produzir prova. Só provada a comunicação da cláusula, a mesma pode ser oponível aos Recorrentes.
xxviii. A comunicação da cláusula da capitalização dos juros é matéria controvertida.
xxix. Como resulta do alegado, está em causa saber se o Tribunal, quando conheceu do mérito da causa, detinha todos os elementos necessários para o efeito, ou se, ao invés, tal não sucedia e deveria a causa ter prosseguido para instrução, com produção probatória.
xxx. No caso dos autos, salvo mais douta opinião, não estava o mérito do processo em condições de ser conhecido no despacho saneador, sem a necessária produção de prova acerca do prévio conhecimento ou não pelos Recorrente da cláusula da capitalização dos juros, sendo, certo, que, tratando-se de um contrato de adesão o ónus da prova da comunicação corre por conta da Recorrida.
xxxi. Pelo que, decidir-se o mérito do processo sem se estar em condições disso, violou-se o disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b) do CPC, deve, destarte, determinar-se a baixa do processo para que o mesmo siga os seus tramites.
xxxii. O conhecimento imediato do mérito no despacho saneador só será de admitir se o processo possibilitar esse conhecimento e, no caso, não ocorram factos contravertidos que possam ser relevantes para a solução de direito.
xxxiii. As taxas máximas da TAEG dos créditos ao consumidor são fixados trimestralmente pelo Banco de Portugal (BdP) em instrução emanada com essa finalidade ( artigos 56.º a 64.º e 75.º a 83.º da PI de Embargos).
xxxiv. A devedora principal e a Recorrente são consumidores dos serviços bancários.
xxxv. As questões que se coloca é de saber se a TAEG a aplicar no caso dos autos, é fixada pela instrução em vigor no momento da formalização do contrato ou se a mesma deve respeitar (e por ela se encontra limitada) as instruções que, trimestralmente, são fixadas pelo Banco de Portugal.
xxxvi. Só após a resposta a esta questão, se pode fazer o cálculo da TAEG e determinar se no caso dos autos ocorreu usura.
xxxvii. Com o devido respeito por opinião diversa, o contrato de crédito deve respeitar a TAEG máxima estipulada, trimestralmente, pelas instruções do Banco de Portugal.
xxxviii. Se as regras do DL n.º 133/2009, de 02.06, visam proteger o consumir e sendo consabido que o cartão de crédito é um sistema de pagamentos de que muitas das vezes (como in casu) o consumidor dele não se consegue livrar, por ter contraído a dívida e depois não a conseguir liquidar, não deixa de ser contraditório com toda a protecção conferida ao consumidor que a taxa que se lhe aplica seja a do momento da contratação.
xxxix. A aplicar-se ao contrato a TAEG máxima que trimestralmente é fixada pelo Banco de Portugal, nesse caso, os juros cobrados pela Recorrida foram usurários, com as consequências previstas no artigo 28.º, n.º 6 do DL n.º 133/2009, de 02.06.
xl. O artigo 28.º, n.º 1 do DL n.º 133/2009, de 02.06, deve ser interpretado no sentido de que as instruções trimestrais do Banco de Portugal são aplicáveis aos contratos em vigor na ordem jurídica e, por via disso, a TAEG a aplicar no âmbito dos mesmos, encontra-se limitada pelas instruções trimestrais do Banco de Portugal que fixam a TAEG máxima dos Cartões de Créditos.
xli. Ao decidir de modo diferente a Douta Sentença violou o disposto no artigo 28.º, n.º 1 e 6 do DL n.º 133/2009, de 02.06 e bem assim as instruções do Banco de Portugal (Instrução 16/2017, Instrução 3/2017, Instrução 8/2017, Instrução 14/2017, Instrução 18/2017, Instrução 7/2018, Instrução 12/2018, Instrução 20/2018, Instrução 27/2018, Instrução 6/2019, Instrução 9/2019, Instrução 16/2019, Instrução 22/2019, Instrução 7/2020, Instrução 15/2020, Instrução 24/2020, Instrução 29/2020 e Instrução 3/2021).
xlii. A Douta Sentença equivoca-se na determinação da Instrução do BdP relevante para o caso dos autos, considerando a Instrução 8/2017, quando deveria considerar a Instrução 16/2016, que é a aplicável no 1.º trimestre de 2017 (por o contrato ter sido celebrado em 10.03.2017).
xliii. Por outro lado, a Douta Sentença confunde a taxa máxima fixada pelo BdP com a taxa média praticada pelas instituições financeiras que serve para definir a taxa máxima trimestralmente fixada pelo Bdp (que é a taxa média acrescida de 25%).
xliv. A Douta Sentença labora no equívoco, de que a Instrução fixa a taxa média, quando na verdade fixa a taxa máxima.
xlv. A taxa fixada em cada Instrução é a máxima e os 25% de acréscimo (a que se reporta o artigo 28.º, n.º 1 do DL 133/2009) são calculados sobre a taxa média e não sobre a taxa máxima como faz a Douta Sentença. Ou seja, os 25% acrescidos à taxa média é que servem para apurar a taxa máxima prevista na Instrução.
xlvi. Todavia, a Douta Sentença para apurar se o juro é usuário (nos termos do artigo 28.º, n.º do DL 133/2009), aplica os 25% à taxa máxima (a fixada na Instrução).
xlvii. Tendo o contrato (de cartão de crédito) praticado a taxa de 20,7%, quando a taxa máxima admissível no momento da contratação era de 17%, faz com que o juro praticado seja usurário.
xlviii. Pelo que, também por esta razão, se violou in casu o disposto na Instrução 16/2017, Instrução 3/2017, Instrução 8/2017, Instrução 14/2017, Instrução 18/2017, Instrução 7/2018, Instrução 12/2018, Instrução 20/2018, Instrução 27/2018, Instrução 6/2019, Instrução 9/2019, Instrução 16/2019, Instrução 22/2019, Instrução 7/2020, Instrução 15/2020, Instrução 24/2020, Instrução 29/2020 e Instrução 3/2021 e o disposto no artigo 28.º, n.º 1 do DL 133/2009, de 02.06.
Nestes termos (…) deverá ser concedido integral provimento ao (…) recurso de apelação e ser revogada a Douta Sentença…”
                                                    *
Dos autos não consta que tenha sido apresentada Resposta ao recurso.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir no presente recurso (por ordem lógica de conhecimento) são as seguintes:

- A de saber se a decisão é nula por omissão de pronúncia e/ou por falta de fundamentação;
- A de saber se deve ser ampliada a matéria de facto;
- Se a questão da “capitalização dos juros” poderia ter sido decidida no Despacho Saneador;
- Se a embargante, como avalista, poderia invocar a usura quanto à taxa de juros negociada entre a exequente e a devedora principal.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

Foram dados como provados na primeira instância os seguintes factos:

“Do requerimento executivo:
a) Foram dadas à execução:
i) Livrança no valor de € 4.588,84 (…), emitida em ... a 07 de Fevereiro de 2017 e com vencimento em 23 de Novembro de 2020, subscrita pela sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.” e avalizada por “P...-Lojas Multiconceitos, Lda.”, AA e BB.
ii) Livrança no valor de € 26.241,33 (…), emitida em ... a 10 de Março de 2017 e com vencimento em 23 de Novembro de 2020, subscrita pela sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.” e avalizada por “P...-Lojas Multiconceitos, Lda.”, AA e BB—
Da petição de embargos:
b) As livranças têm subjacentes duas operações bancárias, uma correspondente a um P... e outra um Cartão de Crédito C... com o número ...66, com limite em € 20.000,00.
c) Os títulos ora dados à execução (livranças) foram entregues à exequente em branco.
d) O preenchimento da data de vencimento e do valor em dívida foi feito unilateralmente pela Exequente após concluir pelo incumprimento do financiamento feito à devedora principal.
e) a Embargada recebeu € 9.479,14 (…) por conta da quantia em dívida, da N....
f) O cartão de crédito concedido à S...-Importação e Exportação tinha um limite de crédito de € 20.000,00.
g) A Exequente inclui no capital reclamado por conta do cartão de crédito, juros de mora.
Da contestação:
h) No exercício da sua actividade creditícia, a Banco 1..., S.A. celebrou com a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.”, também executada nos autos principais, um contrato de abertura de crédito (...), identificado pelo n.º ...91, no montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) – nos termos do acordo junto à contestação dos embargos como documento n.º... e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
i) Para garantia de 70% do capital em dívida em cada momento do empréstimo, a sociedade “N..., S.A.” prestou a favor da Banco 1... uma garantia autónoma, com o n.º 2016.09410, à primeira solicitação.
j) Ainda para garantia de todas as responsabilidades emergentes do referido contrato, a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.” entregou à Banco 1... a livrança referida em a) i).
k) Da cláusula 24 do contrato referido em h) consta que “quando tal se mostre necessário, a juízo da própria Banco 1..., tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: a) a data de vencimento será fixada pela Banco 1... quando, em caso de incumprimento pela devedora das obrigações assumidas, a Banco 1... decida preencher a livrança; b) a importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança.”
l) A 17 de Fevereiro de 2020, a sociedade mutuária deixou de proceder ao pagamento das prestações a que se achava adstrita.
m) Em face do incumprimento, a Banco 1... considerou a dívida totalmente vencida, do que a mutuária e os avalistas foram informados nos termos dos documentos juntos à contestação como docs. n.º ... e ... e cujos teores se dão por integralmente reproduzidos.
n) A quantia recebida da N... foi aplicada na amortização da dívida à data de 08 de Abril de 2020.
o) Após a aplicação da verba recebida, foram remetidas aos intervenientes interpelados as cartas juntas à contestação como docs. n.º ... a ...1 e cujos teores se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
p) Ainda no exercício da sua actividade creditícia, a Banco 1... celebrou com a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.”, também executada nos autos principais, um contrato de utilização de cartão de crédito, identificado pelo n.º ...83, até ao limite de € 20.000,00 (vinte mil euros) nos termos do contrato junto à contestação como doc.n.º...4 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
q) Para garantia de todas as responsabilidades emergentes do contrato supra identificado, a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.” entregou à Banco 1... uma livrança com montante e vencimento em branco, por si subscrita, e avalizada por “P...-Lojas Multiconceitos, Lda.”, AA e BB – correspondente à livrança referida em a) 2).
r) A Embargante assinou o contrato de garantia acessória, junto à contestação como doc.n.º...5 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos no qual assumiu a responsabilidade pessoal pelo pagamento de todas as responsabilidades emergentes daquele contrato de utilização de cartão de crédito, mediante o aval que prestou.
s) No âmbito de contrato de utilização de crédito em apreço, a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.” foi celebrando várias operações de aquisição de bens ou serviços ou de adiantamento de dinheiro que foram liquidadas pela Banco 1..., conforme acordado no dito contrato.
t) Em Novembro de 2018, a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.” deixou de aprovisionar a conta-cartão com os montantes necessários ao débito do saldo devedor.
u) Por se ter mantido esta situação de incumprimento, a Banco 1... procedeu à denúncia do contrato de utilização de cartão de crédito e ao cancelamento do respectivo cartão.

Está não provado, com relevância para a decisão a proferir, que:
1) Por falha dos serviços da Requerente, os limites do cartão de crédito foram ultrapassados sem que a utilização tenha sido travada/bloqueada.
2) A Embargada aplicou às quantias em dívida juros a taxas superiores às fixadas pelo Banco de Portugal.---
Não se apurou se (mantendo-se esta matéria controvertida, embora sem relevância para a decisão a proferir atenta a solução de direito adoptada):
i. O conteúdo do contrato celebrado com a “S...-Importação e Exportação, Lda.” foi explicado aos intervenientes”.
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Da nulidade da decisão proferida (por omissão de pronúncia):
Começa a recorrente por invocar a nulidade da decisão proferida, por omissão de pronúncia, dizendo que o Tribunal recorrido não apreciou todas as questões por ela suscitadas, concretamente que:
“vi. Não se pronunciou acerca da composição do montante em dívida, mormente apurando qual a quantia paga pela N... e se esta foi considerada na quantia reclamada nos autos;
vii. Não se pronunciou acerca do abuso de direito da exequente - de reclamar juros de mora e remuneratórios e despesas, sobre as quantias que excedem o limite de crédito fixado na operação C...;
viii. Não se pronunciou acerca da nulidade do contrato, por se tratar de contrato de adesão cujas cláusulas deveriam ter sido explicadas;
ix. Não se pronunciou sobre a responsabilidade da Recorrida pela ultrapassagem dos limites de crédito; e
x. Não apreciou a questão da necessidade de, a cada trimestre decorrido, de fixar a TAEG de acordo com as instruções que trimestralmente são fixadas pelo Banco de Portugal…”.
Conclui assim que a decisão sob recurso, ao não apreciar as mencionadas questões enferma da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d) 1.ª parte do CPC.
*
Apreciando e decidindo a invocada nulidade da decisão, adiantamos desde já que a mesma não se verifica.
Começa a recorrente por alegar que o tribunal recorrido “Não se pronunciou acerca da composição do montante em dívida, mormente apurando qual a quantia paga pela N... e se esta foi considerada na quantia reclamada nos autos”;
Ora, da decisão recorrida consta expressamente o seguinte: “Apurou-se ainda que houve o pagamento de parte da dívida pela N... e que tal valor foi deduzido da quantia em dívida”. Reportou-se a decisão recorrida ao que ficou a constar da matéria de facto provada na alínea e) (da petição de embargos), de que “a Embargada recebeu € 9.479,14 (…) por conta da quantia em dívida, da N...”, e ao que ficou a constar da matéria de facto provada nas alíneas h), i), l), m) n) e o) (da contestação aos embargos), nas quais se concretiza que o pagamento em causa pela N... se destinou a garantir o cumprimento do contrato de abertura de crédito celebrado entre a exequente e a devedora principal. Isso mesmo resulta das alíneas h), i), l), m) n) e o) da contestação, ou seja, de que “h) No exercício da sua actividade creditícia, a Banco 1..., S.A. celebrou com a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.”, também executada nos autos principais, um contrato de abertura de crédito (...), identificado pelo n.º ...91, no montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) – nos termos do acordo junto à contestação dos embargos como documento n.º... e cujo teor se dá por integralmente reproduzido; i) Para garantia de 70% do capital em dívida em cada momento do empréstimo, a sociedade “N..., S.A.” prestou a favor da Banco 1... uma garantia autónoma, com o n.º 2016.09410, à primeira solicitação; l) A 17 de Fevereiro de 2020, a sociedade mutuária deixou de proceder ao pagamento das prestações a que se achava adstrita; m) Em face do incumprimento, a Banco 1... considerou a dívida totalmente vencida, do que a mutuária e os avalistas foram informados nos termos dos documentos juntos à contestação como docs. n.º ... e ... e cujos teores se dão por integralmente reproduzidos; n) A quantia recebida da N... foi aplicada na amortização da dívida à data de 08 de Abril de 2020; o) Após a aplicação da verba recebida, foram remetidas aos intervenientes interpelados as cartas juntas à contestação como docs. n.º ... a ...1 e cujos teores se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais”.
Ora, referindo-se na sentença recorrida, expressamente, que se apurou que houve o pagamento de parte da dívida pela N..., e que tal valor foi deduzido da quantia em dívida, afigura-se-nos suficiente tal decisão em termos de se apreciar e decidir a questão suscitada.
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Alega também a recorrente que o tribunal recorrido “Não se pronunciou acerca do abuso de direito da exequente - de reclamar juros de mora e remuneratórios e despesas, sobre as quantias que excedem o limite de crédito fixado na operação C...”, assim como “Não se pronunciou acerca da nulidade do contrato, por se tratar de contrato de adesão cujas cláusulas deveriam ter sido explicadas” - o que também não corresponde à verdade, pois da sentença recorrida consta expressamente que “A improcedência das exceções previamente identificadas faz desde logo cair por terra as excepções de nulidade do contrato, de abuso de direito e de compensação invocadas, pois que as mesmas tinham por pressuposto a existência de cobrança excessiva de valores pela exequente e de, em razão disso a existência de créditos a favor dos embargantes. Não se torna, nessa medida, necessária a apreciação concreta das mesmas”.
Ora, como resulta de forma expressa do art.º 608º nº2 do CPC, intitulado “Questões a resolver”, “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras…”  
Ora, foi precisamente esse o entendimento do tribunal recorrido, manifestado naquele excerto da decisão, de que a improcedência das exceções deduzidas pela embargante, e das quais conheceu anteriormente, fez cair por terra as demais exceções invocadas, designadamente a da nulidade do contrato, do abuso de direito, e da compensação invocadas, esclarecendo-se que as mesmas tinham por pressuposto a existência de cobrança excessiva de valores pela exequente e da existência de créditos a favor dos embargantes, considerando que, com a improcedência de tais pretensões, não se tornava necessária a apreciação concreta das aludidas exceções.
Ainda sobre a questão da nulidade do contrato (C...) pronunciou-se a decisão recorrida sobre a mesma, até de forma exaustiva, no trecho seguinte: “A última questão levantada prende-se com a alegada nulidade dos contratos que subjazem à emissão das livranças, por incumprimento do dever de comunicação das cláusulas (integrantes de um contrato de adesão) pela exequente à embargante. Vimos entendendo que quando o avalista intervenha no pacto de preenchimento do título – subscrevendo-o -, se considera que pode suscitar questões atinente ao preenchimento do título (letra ou livrança), pois que como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/3/2008 (…) «O avalista tem legitimidade para excepcionar o preenchimento abusivo, se ele subscreveu o acordo de preenchimento, já que, nesse caso se está no domínio das relações imediatas». No caso que nos ocupa, a embargante alega a falta de comunicação das cláusulas pela Embargada/exequente, a qual, por seu turno, afirma ter tal dever sido cumprido. Não se produziu prova, pelo que tal matéria ficou por apurar. Contudo, essa omissão não reveste relevância, porquanto ainda que não se desse como provado o conhecimento das cláusulas contratuais pela embargante – e assim se julgasse nulas as mesmas – sempre se teria de entender que nesse caso não poderia a embargante invocar o preenchimento abusivo da livrança (note-se que o preenchimento abusivo se fundamenta no caso no desconhecimento das cláusulas do contrato subjacente) (…) Assim, a procedência da nulidade das cláusulas gerais teria como efeito a nulidade da cláusula relativa ao preenchimento da livrança, o que retiraria do âmbito das relações imediatas a relação entre o exequente e os avalistas, nomeadamente a agora embargante, deixando os mesmos de poder invocar o preenchimento abusivo. Manter-se-ia, nesse caso, a obrigação abstracta que resulta da prestação do aval, já que a nulidade das cláusulas gerais não tem efeito (nomeadamente de nulidade) sobre a garantia do aval – cfr. arts 32º e 77º da LULL…”.
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Alega também a apelante que o tribunal recorrido “Não se pronunciou sobre a responsabilidade da Recorrida pela ultrapassagem dos limites de crédito”, o que também não corresponde à verdade, uma vez que é referido na decisão recorrida, de forma expressa, sobre tal matéria, que “Na verdade, a questão da ultrapassagem do valor de crédito fixado no contrato referido em p) carece de sustento, pois que conforme resulta da cláusula 32º do mesmo contrato, a embargante garantiu o pagamento de todas as responsabilidades emergentes do referido contrato de utilização de cartão de crédito, a título de capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e demais encargos, incluindo os fiscais relativos à própria livrança, sem limite de valor” – o que significa que houve pronúncia sobre a alegada questão da ultrapassagem dos limites de crédito concedido quanto ao cartão de crédito.
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Finalmente, sustenta a recorrente que a decisão recorrida “Não apreciou a questão da necessidade de, a cada trimestre decorrido, se fixar a TAEG de acordo com as instruções que trimestralmente são fixadas pelo Banco de Portugal”.
Mas o tribunal recorrido apreciou também esta questão, suscitada pela embargante relativa à usura quanto aos juros e respetiva TAEG (taxa anual de encargos efetiva global), explicando que “Sendo a exequente uma instituição de crédito, e contrariamente ao que pretendem sustentar os embargantes, aplicam-se normas especificas, destinadas a garantir a sustentabilidade da actividade bancária e que derrogam as normas gerais do Código Civil. Nos termos do art. 28.º, n.º1 do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02 de Junho, “é havido como usurário o contrato de crédito cuja TAEG, no momento da celebração do contrato, exceda em um quarto a TAEG média praticada pelas instituições de crédito no trimestre anterior, para cada tipo de contrato de crédito aos consumidores”. A TAEG média a que se refere a citada disposição legal é publicada trimestralmente por Instrução do Banco de Portugal e que os embargantes fizeram constar do seu articulado. O contrato relativamente ao qual é arguida a usura foi celebrado em 10 de Março de 2017, a Instrução relevante é a Instrução n.º 8/2017, segundo a qual a TAEG média praticada pelas instituições de crédito no trimestre anterior ao da celebração do contrato era de 17%. Nos termos do sobredito clausulado e por haver garantia pessoal, a taxa máxima foi fixada em 20,7% e, assim, inferior àquela que resultaria da aplicação das normas acima mencionadas (21,25%) – cfr. a tabela denominada “preçário” no dito contrato. Inexiste, assim, usura nos juros cobrados e na TAEG aplicada…”.
Como decorre do exposto, o tribunal recorrido conheceu da questão que lhe foi colocada pela embargante – a da usura na fixação da taxa de juro aplicável ao contrato celebrado –, não lhe sendo exigível apreciar cada argumento ou linha de argumento por ela deduzida, pois tal matéria não é uma questão, mas uma linha de raciocínio ou de entendimento que poderá ter já a ver com a fundamentação jurídica da decisão e consequentemente com a assertividade da mesma, questão essa a sindicar em sede de recurso,  mas não em sede de nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
Ainda assim é bem patente na decisão recorrida que o tribunal recorrido tomou posição clara sobre o momento da fixação da TAEG – no momento da celebração do contrato de crédito e não nos momentos sucessivos de duração desse contrato (com a aplicação em cada um desses momentos das várias taxas de juros que iam sendo emitidas pelos Avisos do Banco de Portugal).
Concluímos assim do exposto que por ter conhecido de todas as questões que lhe foram submetidas para apreciação, a decisão recorrida não padece do vício da nulidade por omissão de pronúncia.
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Da nulidade da decisão por falta de fundamentação:
Alega também a recorrente que o tribunal recorrido “…não fundamentou de facto os factos dados como provados e não provados, como impõe o artigo 607.º, n.º 4 do CPC” e que também “…não fundamentou criticamente, de forma a se compreender o processo lógico e racional que levou a dar-se os factos provados como provados e os não provados como não provados”.
Mas também sem razão.
Postula efetivamente o artigo 607.º, n.º 4 do CPC que “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida, e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
Preceitua por sua vez o artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC que: “É nula a sentença quando: b) Não especifique os fundamentos de facto…”.
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Em termos de matéria de facto, e à luz dos preceitos legais transcritos, impõe-se ao juiz a obrigação de na sentença discriminar os factos que considera provados e não provados, devendo, de forma clara e especificada, analisar criticamente as provas e expor os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção em relação a cada facto (art.º 607º, n.ºs 3, 4 e 5 do CPC.), explicitando desse modo, não só a respetiva decisão, como também quais os motivos que a determinaram.
Pese embora a importância angular da fundamentação, precise-se no entanto que de acordo com a doutrina e a jurisprudência, só a falta em absoluto de fundamentação determina a nulidade da sentença a que se reporta a al. b) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, designadamente a falta de discriminação dos factos provados, ou a genérica referência a toda a prova produzida na fundamentação da decisão de facto, e não apenas a mera deficiência da mesma (cfr. Abílio Neto, “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., Janeiro de 2014, pág. 736; e Acs. STJ. de 14/11/2006 e de 17/04/2017; Ac. R.C. de 16/10/2012; Ac RE. de 03/07/2014; e RG. de 14/05/2015, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
No caso concreto, a recorrente imputa à decisão proferida o vício da ausência de falta de fundamentação da matéria de facto, mas ela existe, ainda que parca e por remissão para o que consta dos articulados, pois no local indicado “Factos provados”, acrescenta-se  “…atentos os articulados e documentos juntos (que se mostram aptos a provar a matéria em causa e cuja autenticidade não foi impugnada), com relevância para a decisão a proferir…”.
 Ou seja, faz-se referência, na fundamentação da matéria de facto, aos factos provados e não provados retirados dos articulados (especificando-se, no lugar próprio, os factos constantes do requerimento executivo, da petição de embargos, e da contestação), e à respetiva motivação, que segundo o tribunal recorrido foram apenas os documentos juntos, considerados, na sua ótica, aptos a provar a matéria em causa e cuja autenticidade não foi impugnada. Ou seja, a matéria de facto apresenta-se fundamentada, ainda que de forma genérica, e por remissão para os articulados.
Cumpre no entanto dizer que em algumas das alíneas da matéria de facto provada faz-se ainda referência expressa ao respetivo documento (caso das alíneas h), k), m), o), p) e r), para cujo teor se remete de forma expressa.
Ou seja, não se pode falar, no caso dos autos, de falta de fundamentação. Embora, como se disse, ela possa ser parca, ou por mera remissão para os documentos juntos aos autos – não se descrevendo o respetivo teor -, não há ausência de fundamentação, ao ponto de se poder imputar à decisão recorrida o vício que lhe é apontado pela recorrente de nulidade por falta de fundamentação.
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Da Ampliação da Matéria de facto:
Pretende ainda a recorrente que seja ampliada a matéria de facto provada, referindo-se à alínea r) daquela matéria, ou a um novo facto a aditar (que não especifica).
Ora, embora a recorrente o não refira expressamente, situamo-nos no âmbito da Impugnação da matéria de facto, prevista no art.º 640º do CPC, impondo-se ao recorrente que pretenda impugnar aquela matéria, o cumprimento dos ónus ali referidos para que seja admissível o recurso da matéria de facto.
Efetivamente, nos termos do art.º 662º nº 2, alínea c) do CPC a Relação deve, mesmo oficiosamente, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, quando repute deficiente, obscura ou contraditória aquela decisão sobre determinados pontos da matéria de facto, ou quando considere indispensável a sua ampliação, se do processo constarem todos os elementos que lhe permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto (os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente).
 Mas como temos vindo a defender, cremos que no seguimento do entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, se essa alteração da matéria de facto (mesmo em termos de ampliação) partir da iniciativa da parte, aquela terá de dar cumprimento aos ónus que a lei lhe impõe no art.º 640º do CPC, ou seja, e no essencial, indicar os concretos pontos da matéria de facto (provados ou não provados) que pretende ver alterados, assim como os meios de prova nos quais se baseia para ver alterados aqueles pontos de facto em concreto.
Ora, partindo desse pressuposto, o facto concretamente impugnado pela recorrente é apenas a alínea r) da matéria de facto provada, sendo os meios de prova por ela convocados o doc. nº ... junto com a petição de embargos, e o doc. nº ...4 junto com a contestação da embargada. É isso que se retira da sua afirmação de que “Em face do alegado na PI de Embargos, do resultante do doc. n.º ... desse articulado e do doc. n.º ...4 da Contestação, deve ser ampliada a matéria de facto de modo que fique a constar ou do facto assente r) ou de outro facto a aditar, que, quanto aos avalistas estes apenas se responsabilizaram ate ao limite de crédito (facto assente p)).
Analisando a pretensão da recorrente, concretamente o facto descrito em r), é a seguinte a sua redação: r) A Embargante assinou o contrato de garantia acessória, junto à contestação como doc.n.º...5 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, no qual assumiu a responsabilidade pessoal pelo pagamento de todas as responsabilidades emergentes daquele contrato de utilização de cartão de crédito, mediante o aval que prestou”. Mas pretende a recorrente que a mesma seja alterada no sentido de dela ficar a constar que “…quanto aos avalistas estes apenas se responsabilizaram ate ao limite de crédito (facto assente p))”.
Não consideramos, no entanto, que assista razão à apelante, desde logo por ela ter aceite, sem impugnação, o que ficou a constar das alíneas p) (a que faz referência) e q) da mesma matéria de facto, havendo mesmo contradição na sua pretensão (se confrontados os factos vertidos naquelas alíneas).
Ficou de facto provada a seguinte matéria de facto (que a recorrente não questiona): p) Ainda no exercício da sua actividade creditícia, a Banco 1... celebrou com a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.”, também executada nos autos principais, um contrato de utilização de cartão de crédito, identificado pelo n.º ...83, até ao limite de € 20.000,00 (vinte mil euros) nos termos do contrato junto à contestação como doc.n.º...4 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. q) Para garantia de todas as responsabilidades emergentes do contrato supra identificado, a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.” entregou à Banco 1... uma livrança com montante e vencimento em branco, por si subscrita, e avalizada por “P...-Lojas Multiconceitos, Lda.”, AA e BB – correspondente à livrança referida em a) 2.” (negrito nosso).
Ou seja, é  a própria embargante que aceita que se assumiu como garante de todas as responsabilidades emergentes do contrato de utilização do cartão de crédito celebrado pela devedora principal com a exequente, mesmo que esse cartão de crédito tivesse um plafond de € 20.000,00. Esse plafond refere-se, como é evidente, ao limite do crédito concedido, mas não iliba o devedor de pagar juros e outros encargos (incluídos na TAEG acordada), decorrentes da utilização do crédito que lhe foi concedido, e por cujo incumprimento a apelante se responsabilizou, assumindo-se garante de todas as responsabilidades emergentes daquele contrato.
Aliás, isso mesmo decorre da alínea r) – que a embargante pretende ver alterada, mas que se mostra em contradição com as alíneas anteriores – de que “A Embargante assinou o contrato de garantia acessória, junto à contestação como doc.n.º...5 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, no qual assumiu a responsabilidade pessoal pelo pagamento de todas as responsabilidades emergentes daquele contrato de utilização de cartão de crédito, mediante o aval que prestou”. (negrito nosso).
E o mesmo resulta das alíneas s), t), e u) – também não questionadas pela embargante - de que “No âmbito do contrato de utilização de crédito em apreço, a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.” foi celebrando várias operações de aquisição de bens ou serviços ou de adiantamento de dinheiro que foram liquidadas pela Banco 1..., conforme acordado no dito contrato”; “Em Novembro de 2018, a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.” deixou de aprovisionar a conta-cartão com os montantes necessários ao débito do saldo devedor”; “Por se ter mantido esta situação de incumprimento, a Banco 1... procedeu à denúncia do contrato de utilização de cartão de crédito e ao cancelamento do respectivo cartão”.
Como se disse, embora o cartão de crédito concedido à S...-Importação e Exportação – a devedora principal -, tivesse um limite de crédito de € 20.000,00, daí não se pode concluir, como pretende a recorrente, de que “por inerência os Embargantes ao subscreverem tal documento, apenas aquiesceram responsabilizar-se até ao limite de € 20.000,00”.
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Clarificando melhor a questão, diremos o seguinte:
No que respeita ao contrato celebrado entre a exequente e a devedora principal, melhor descrito na alínea p) da matéria de facto provada, resultou provado que no exercício da sua atividade creditícia, a Banco 1... celebrou com a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.”, um contrato de utilização de cartão de crédito, identificado pelo n.º ...83, até ao limite de € 20.000,00 (vinte mil euros).
Ou seja, está em causa a utilização, pela dita sociedade, de um cartão bancário, emitido a seu pedido e em seu nome, o qual lhe permitia efetuar movimentos a crédito. Estamos no âmbito do chamado “dinheiro plástico” ou “moeda eletrónica”, intimamente relacionado com as transferências eletrónicas de fundos, na medida em que é um instrumento necessário para a realização das referidas operações.
De acordo com a sua função, é possível dividir os “cartões de plástico” em várias categorias, das quais se destacam os cartões de crédito e os cartões de levantamento ou de débito, sendo os primeiros cartões de pagamento diferido, em que não existe uma relação direta entre o cartão e os fundos depositados, e os segundos cartões de pagamento que permitem mobilizar diretamente os fundos depositados.
Assim, segundo Menezes Cordeiro (“Direito Bancário”, 5.ª Edição, págs. 648 e 649) “O cartão de levantamento automático põe, frente a frente, simplesmente o banqueiro e o seu cliente: dá azo a uma denominada relação entre duas pessoas. O cartão é utilizado em terminais automáticos, denominados ATM e CD (…) Autenticada a operação, o ATM facultará o levantamento automático, entregando as notas de banco e um talão (…). O cartão de crédito relaciona três pessoas: o banqueiro, o cliente e um terceiro – normalmente o comerciante ou fornecedor de bens e de serviços. Ajustado um negócio que implique um pagamento, o cliente vai realizá-lo por meio do cartão. Por via mecânica ou eletrónica, a despesa vai ficar consignada em nome do cliente, vindo, depois, a ser paga ao comerciante pelo banqueiro, que a debitará ao cliente. O comerciante pagará uma comissão ao banqueiro, outro tanto podendo suceder com o cliente. O banqueiro só debitará a importância em dívida, ao cliente, no termo de um período que variará entre as duas e as seis semanas: há um crédito a curto prazo. Além disso, o banqueiro poderá ajustar com o cliente pagamentos parcelares e diferidos, aumentando o crédito…”.
Também segundo J. Maria Pires (“Elucidário de Direito Bancário”, Coimbra Editora, 2002, pág. 735), o cartão de crédito pode ser definido como “Instrumento de pagamento, para uso eletrónico ou não, emitido por uma instituição de crédito ou por uma sociedade financeira, que possibilite ao seu detentor a utilização de crédito outorgado pelo emitente, em especial para a aquisição de bens ou serviços”. O mesmo autor (op. cit., pág. 736), distingue os cartões de crédito em sentido estrito e em sentido lato, sendo o cartão de crédito em sentido estrito aquele em que o emissor concede ao titular um crédito o qual tem a possibilidade de pagar parcialmente, mediante pagamento de uma percentagem da dívida ou de uma prestação fixa mensal, sendo devidos juros sobre o saldo em dívida, enquanto que no cartão de crédito em sentido lado não é contemplada a opção de pagamento parcial, tendo o montante total da dívida que ser pago na data indicada no extrato enviado ao titular.
Ainda segundo Luís Miguel Monteiro (“As Operações de Levantamento Automático de Numerário”, in R.O.A., Ano 52.º, Abril de 1992, pág. 148) subjacente à emissão de um cartão bancário está um contrato, designado por “contrato de utilização” ou “contrato de emissão”, o qual configura um contrato acessório em relação aos contratos de depósito bancário ou ao de abertura de crédito em conta corrente (no mesmo sentido Maria Raquel Guimarães, “As Transferências Eletrónicas de Fundos e os Cartões de Débito”, Almedina, 1999, págs. 107 a 112).
Citando novamente José Maria Pires (op. cit., pág. 737 a 739), “O núcleo essencial das relações entre o emissor e o titular reside numa abertura de crédito em conta corrente, à qual está associado como instrumento indispensável para a utilização desse crédito o respetivo cartão (…). O crédito é concedido sob a forma de conta corrente, incluindo, por conseguinte, a cláusula revolving. O cartão de crédito não se destina a movimentar a conta à ordem (conta corrente bancária ordinária) do titular, mas uma conta especial denominada conta-cartão. Atendendo à cláusula revolving acima mencionada, o crédito disponível, a cada momento, é a diferença entre o valor da linha de crédito concedida e o montante correspondente às transações efetuadas até esse montante, incluindo débitos de juros e encargos. Como sabemos, o montante da linha de crédito pode ser, total ou parcialmente reintegrado mediante as referidas entregas para crédito da conta-cartão…”.
Ainda segundo o mesmo autor (op. cit., pág. 625), “A abertura de crédito é o contrato pelo qual o banco assume o compromisso, por determinado período de tempo, de ter uma certa quantia em dinheiro à disposição do seu cliente, ficando este obrigado a pagar as comissões contratadas e, na medida da utilização efetiva da disponibilidade, a reembolsar o banco e a satisfazer os respetivos juros (…) O banco denomina-se creditante; o compromisso ou obrigação que assume, acreditamento; o beneficiário do acreditamento é designado creditado e o montante máximo desse acreditamento, linha de crédito…”.
Trata-se, segundo ainda o mesmo autor “…de um contrato bilateral (sinalagmático), em que o compromisso do banco (constituição de uma disponibilidade) corresponde ao compromisso do creditado pagar uma comissão pelo serviço prestado. É ainda bilateral porque quando o compromisso do banco, a solicitação do creditado, se efetiva, a esse compromisso corresponde a obrigação do mesmo creditado restituir outro tanto. Além disso, a abertura de crédito é também um contrato consensual (…), bastando, por conseguinte, o mero acordo das partes para que ele se torne perfeito” (Cfr. no mesmo sentido Menezes Cordeiro, “Direito Bancário”, 5.ª Edição, Almedina, 2014, pág. 680).
Trata-se além do mais, de um contrato nominado, contemplado no art.º 362.º do Código Comercial, entre as operações bancárias. Todavia, como a lei não estabelece diretamente o regime do contrato de abertura de crédito, nem sequer de forma supletiva, ele é considerado um contrato atípico, embora de utilização muito frequente na prática bancária.
Ora, serve esta explicação, baseada na doutrina mais consagrada, para afirmar o óbvio, e que a embargante não podia ignorar: que o contrato celebrado pela devedora principal com a exequente, e por si avalizado, era um contrato de concessão de crédito – na modalidade de abertura de crédito em conta corrente, que o seu utilizador ia utilizando, e que acarretava custos pela utilização do crédito concedido (custos esses discriminados no documento nº ...4 junto com a contestação, no título “Preçário” e que a ora recorrente, como avalista, declarou, no documento por si assinado – doc. nº ...5 junto à contestação -, conhecer os seus termos).
Embora exista, efetivamente, uma distinção entre a abertura de crédito simples e a abertura de crédito em conta-corrente - pois no primeiro caso, o crédito disponibilizado pode ser usado uma vez, e no segundo o cliente pode sacar diversas vezes sobre o crédito, solvendo as parcelas de que não necessite, numa conta-corrente com o banqueiro -, trata-se, em ambos os casos, de concessão de crédito, por natureza remunerado (Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 681, e J. Maria Pires, op. cit., págs. 627 e 628).
Segundo este último autor “A abertura de crédito em conta corrente regula-se também pelas regas estabelecidas no contrato. Porém, o seu montante é registado na respetiva conta corrente, que, em alguns casos, pode ser movimentada diretamente pelo creditado. Na maioria dos casos, porém, o banco, a solicitação do creditado, transfere os montantes utilizados para a sua conta à ordem. Sob a modalidade de utilização em conta corrente, a abertura de crédito atinge o seu grau máximo de flexibilidade, permitindo modular as aplicações e os reembolsos de acordo com os interesses e as necessidades do creditado. Com efeito, no âmbito do limite (ou linha de crédito) estabelecido e nos termos que tiverem sido convencionados, o creditado pode não só efetuar levantamentos mas também entradas parciais que lhe permitem a reconstituição daquele limite e, consequentemente, do seu direito de saque. Estamos, portanto, em presença de um crédito renovável ou rotativo (“revolving credit”). Assim, a abertura de crédito em conta corrente apresenta as características gerais de toda a abertura de crédito, a saber: o Compromisso do banco de ter à disposição do creditado capitais até um certo montante e dentro de determinado prazo; Obrigação do creditado satisfazer a comissão de abertura de crédito e, em caso de utilização do crédito, as de reembolsar o montante utilizado e de pagar os juros convencionados e eventuais comissões. A estas características acrescentam-se as características próprias da conta corrente, consistindo nas seguintes faculdades do creditado: Utilizações parciais do montante do crédito; Entradas parciais que permitem a reconstituição do crédito dentro do montante acordado como limite…”
Particulariza ainda Menezes Cordeiro (op. cit., pág. 683), que a abertura de crédito visa a disponibilidade do dinheiro, a qual constitui um bem autónomo, próprio, perfeitamente conhecido por todos os operadores e que não equivale a um crédito; o crédito surge, mas por via potestativa e em simples execução do contrato.
O mesmo entendimento é seguido por J. Maria Pires (op. cit., págs. 625 e 626) de que “…a abertura de crédito caracteriza-se pela obrigação do banco ter à disposição do creditado determinado montante em dinheiro, a utilizar quando o mesmo creditado, nas condições estipuladas no respectivo contrato, o solicitar. Porém o creditado não é obrigado a tal solicitação. Quer isto dizer que na altura da celebração do contrato, o banco não concede um crédito efectivo, mas assume o compromisso unilateral de, no futuro e quando solicitado, conceder esse crédito. Em termos de uma noção restrita da operação, o banco autoriza o cliente a sacar sobre o montante dos fundos colocados à disposição – abre-lhe um crédito. É esta a primeira fase do contrato, que, em nosso entender, o caracteriza, porque nela se estabelece o regime respeitante à eventual fase posterior de utilização dos fundos disponíveis. A abertura de crédito é um contrato em que há efeitos que se produzem imediatamente e outros que só futuramente se tornarão efectivos, de acordo com as solicitações do creditado efectuadas no âmbito do quadro das cláusulas contratuais convencionadas em concreto. Antes destas solicitações, a obrigação creditícia do banco resume-se a um compromisso perante o creditado – pura disponibilidade –, sujeita, no entanto, a risco. Após as solicitações, o banco tem de cumprir a sua obrigação, convertendo a simples disponibilidade em disposição efectiva – o crédito potencial transforma-se em acto de concessão de crédito”.
Isto posto, caracterizado que se encontra o contrato de abertura de crédito, podemos acompanhar o referido por J. Maria Pires (op. cit. pág. 639), quanto à enumeração das obrigações do creditado: “Na primeira fase da abertura de crédito, a obrigação do creditado consiste no pagamento de uma comissão, como contraprestação do compromisso tomado pelo creditante. É a chamada comissão de abertura de crédito, destinada a remunerar o serviço que o banco presta, ao assumir esse compromisso. Também se denomina comissão de reserva de crédito e representa uma remuneração inteiramente distinta dos juros que o cliente pagará, se vier a utilizar o crédito. O creditado não é obrigado a utilizar efetivamente os fundos postos à sua disposição. Mas se passa a essa fase da disposição efetiva fica, por isso mesmo, obrigado a pagar juros, de acordo com o convencionado no contrato (…). Na hipótese de utilização do crédito, o creditado fica também, como é óbvio, obrigado a reembolsar o banco das importâncias utilizadas, nos termos que tenham sido convencionados”
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Cremos ter clarificado, com a exposição supra, que a concessão do crédito pela exequente à devedora principal, na modalidade de contrato de utilização de cartão de crédito implicava custos, quer os custos iniciais (desde logo a aludida comissão de abertura de crédito), quer os custos futuros, consistentes – além da obrigação de pagamento do crédito utilizado -, nos respetivos juros acordados pela respetiva utilização do crédito concedido.
A alusão no contrato de utilização do cartão ao limite de crédito - € 20.000,00 – não ilibava portanto a devedora dos demais encargos, como resulta, aliás, de forma clara da análise do contrato celebrado (junto aos autos com a contestação como doc. nº ...4).
Ora, como é bom de ver pela análise do doc. nº ...5 (também junto pela exequente com a contestação), a embargante, como avalista, responsabilizou-se por todas as obrigações do utilizador do cartão de crédito para com o banco que lho concedeu, nelas se incluindo não só a obrigação de “solving”, ou seja, de pagamento atempado dos montantes que foi usufruindo, como dos demais encargos decorrentes, quer dessa utilização, quer do incumprimento em que incorreu.
Aliás, como é sabido, o aval é o ato pelo qual um terceiro ou um signatário de um título cambiário garante o respetivo pagamento por parte de um dos seus subscritores (art.º 30º da Lei Uniforme de Letras e Livranças (LULL), aplicável às livranças por força do art. 77º LULL), sendo a função do aval uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la e a caucioná-la.
O fim específico do aval é, assim, o de garantir o cumprimento pontual do direito de crédito cambiário; com o aval o avalista garante o cumprimento do responsável cambiário; fica ao lado dele, a garantir o crédito do credor, que fica reforçado, porque em vez de um obrigado fica com dois. Trata-se, assim, de uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado.
Ora, embora os avalistas (de uma livrança) não sejam sujeitos da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, isto é, da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o seu avalizado, estabelece o art.º 32º da LULL, que o dador de aval é responsável da mesma forma que a pessoa por ele afiançada, sendo certo que a extensão e o conteúdo da obrigação do avalista aferem-se pela do avalizado (Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, 1975, III, pág. 207 a 215).
E foi essa a responsabilidade assumida pela embargante ao dar o seu aval à devedora principal.
Efetivamente, analisados os documentos juntos aos autos – nos quais o tribunal recorrido se estribou para dar aquela alínea r) como provada -, dos mesmos não resulta que a embargante se tenha limitado a garantir o limite de crédito que foi concedido à devedora principal (de € 20.000,00); bem pelo contrário, ela assumiu-se como garante de todas as responsabilidades que adviessem àquela (como é próprio de um avalista).
Daquele documento consta de facto, no ponto 1, intitulado “Aval” que “Todas e quaisquer quantias que sejam ou venham a ser devidas à Banco 1... pela cliente no âmbito do contrato supra identificado, quer a título de capital, quer a de juros remuneratórios ou moratórios, comissões, despesas ou quaisquer outros encargos ficam garantidos pelo aval prestado na livrança prevista no nº 2, caso a Banco 1... decida proceder ao seu preenchimento de acordo com o pacto de preenchimento ali convencionado”.
E do ponto 2 do mesmo documento, intitulado “Livrança em branco”, concretamente da sua alínea b) consta ainda que “A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo as da própria livrança”.
Ou seja, em momento algum do acordo celebrado ou em lugar algum dos documentos analisados ficou a constar que a responsabilidade da embargante, enquanto avalista, tinha como limite o montante de € 20.000,00. A sua responsabilidade estendia-se a tudo quanto fosse exigido à devedora principal, quer quanto ao capital em dívida quer aos juros (remuneratórios e moratórios), e demais despesas incluídas no contrato celebrado e devidamente assinado pela embargante enquanto avalista (esposa do sócio gerente da devedora).
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Da Capitalização dos Juros:
Alega ainda a recorrente que alegou na petição de embargos (artigos 65.º a 74.º) que a cláusula da capitalização dos juros no contrato de utilização do cartão de crédito (como contrato de adesão) não lhe foi comunicada, e que a decisão recorrida não podia ter conhecido dessa questão no despacho saneador sem ter feito a prova dessa alegação, o que importa a violação do artigo 595.º, n.º 1, al. b) do CPC, devendo determinar-se a baixa do processo para que o mesmo siga os seus tramites.
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Começamos por dizer que o conhecimento pelo tribunal recorrido, no despacho saneador, da questão controvertida, foi consensual, tendo sido as partes notificadas da intenção do tribunal em conhecer de mérito no despacho saneador, não constando dos autos a oposição da embargante a que a decisão fosse proferida naquele momento.
De resto, a possibilidade do tribunal conhecer do mérito da questão no despacho saneador é admitida legalmente, por razões de economia e de celeridade processuais.
O conhecimento do mérito da causa em sede despacho saneador, dispensando a audiência final de discussão e julgamento, há muito é consagrada pelo legislador no âmbito das normas processuais civis que foram sucessivamente vigorando na lei do processo.
O atual art.º 595º, nº1, al. b) do CPC preceitua expressamente que o despacho saneador se destina a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2.º, 3.ª ed., Almedina, pag. 659) “O juiz conhece do mérito da causa no despacho saneador, total ou parcialmente, quando para tal, isto é, para dar resposta ao pedido ou à parte do pedido correspondente, não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo. Tal pode acontecer por inconcludência do pedido (…), procedência ou improcedência de exceção perentória (…) e procedência ou improcedência do pedido. Este conhecimento (…) deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa».
Paulo Ramos de Faria debruçou-se sobre esta matéria (na “Revista Julgar” On line, Outubro de 2019, pag. 9) dizendo que “A desnecessidade de mais provas para o imediato conhecimento do pedido não equivale a ausência de controvérsia sobre a questão de facto apresentada pelo autor. Pode esta subsistir e, não obstante, ser possível o conhecimento do mérito da causa. Assim ocorrerá, desde logo, nos casos em que deve ser formulado um juízo de manifesta inviabilidade da ação. Este juízo pode evoluir e reforçar-se entre a apreciação liminar e a fase do saneamento processual, levando à decisão de improcedência nesta ocasião. Em termos simétricos, a manifesta inviabilidade da oposição − por exemplo, limitada à inconsequente invocação de uma difficultas praestandi − levará à imediata decisão de procedência do pedido», acrescentando, ainda, numa afirmação que subscrevemos, que “Reunidos os pressupostos da sua admissibilidade, a realização do julgamento imediato da causa não é apenas um poder do tribunal de primeira instância. É um dever tributário do princípio da economia processual…”.
Como dissemos, o CPC permite o conhecimento do mérito na fase do saneador: “O despacho saneador destina-se a: (…) b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória” (cfr. artigo 595.º, n.º 1, al. b) do CPC).
Assim, o juiz conhecerá – total ou parcialmente – do mérito da causa no despacho saneador quando não houver necessidade de provas adicionais, para além das já processualmente adquiridas nos autos, encontrando-se, por tal, já habilitado, de forma cabal, a decidir conscienciosamente.
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E foi o que aconteceu no caso dos autos, tendo a Sra. Juíza emitido o seu juízo sobre o assunto em despacho que proferiu, findos os articulados, sem deixar de dar a palavra às partes para se pronunciarem (no exercício do seu direito ao contraditório) sobre a sua intenção: “O tribunal entende que os autos contêm já os elementos necessários para a prolação de decisão de mérito, propondo-se a proferir a mesma por escrito. Com efeito, todas as questões suscitadas nos embargos – que foram adequadamente discutidas nos articulados - são de direito. Notifique, assim, as partes para, querendo e em 10 dias, alegarem o que tiverem por conveniente, podendo, nesse prazo, requerer a realização de audiência prévia”, tendo a reclamante requerido a realização daquela Audiência, o que foi feito, sem que na mesma tenha suscitado a necessidade de produzir mais prova sobre a matéria ora alegada.
E por isso foi decidido no despacho saneador-sentença o seguinte, quanto à questão da capitalização dos juros:
“Invoca a embargante, ainda, a indevida capitalização de juros. Conforme a própria indica, a capitalização é admitida desde que haja prévio acordo das partes nesse sentido, como o prescreve o art.º 7º do DL n.º 58/2013, de 05.08. Contudo, não resulta demonstrada essa capitalização, sendo a alegação da embargante vaga e sem concretização. Soçobra, pois, igualmente esta excepção.”
E nenhuma objeção temos a fazer quanto à decisão proferida, uma vez que a alegação da recorrente na petição de embargos foi de facto muito vaga em termos de pôr em causa a aludida capitalização dos juros no preenchimento da livrança relativa ao contrato de utilização do cartão de crédito.
Analisando a petição de embargos, da mesma consta, quanto ao capital reclamado constante da referida livrança apenas o seguinte (artºs 65º e ss.): “A Exequente inclui no capital reclamado por conta do cartão de crédito, juros de mora; Ou seja, capitalizou os juros; Cobrando, juros sobre juros. Se é verdade que a disciplina jurídica aplicável aos contratos dos autos o permite, não é menos verdade que tal circunstância depende do prévio acordo das partes nesse sentido – artigo 7.º do DL n.º 58/2013, de 05.08. Os Embargantes por não terem cópia do contrato de cartão de crédito, não sabem se existe tal convenção. Se existe, tal cláusula não foi devida e convenientemente explicada à S...-Importação e Exportação, nem aos aqui Embargantes enquanto avalistas. Tratando-se de um contrato de adesão, tal cláusula devia ter-lhe sido explicada. Daí que os Embargantes não façam a mínima ideia de quanto deve a S...-Importação e Exportação. Ou até se deve alguma coisa (…). Pelo que, importa que a Exequente venha dizer como chegou ao capital em dívida e como ele é composto, indicando detalhadamente as operações que deram origem ao mesmo”.
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Ora, como se vê, a alegação da recorrente na petição de embargos é muito vaga em termos de pôr em causa a aludida capitalização dos juros no preenchimento da livrança relativa ao contrato de utilização do cartão de crédito, cabendo-lhe tomar posição clara sobre o montante que foi aposto na livrança pela exequente (ao abrigo do pacto de preenchimento da mesma), e sobre o qual discorda.
Como tem sido defendido, cremos que de forma unânime e pacífica, os embargos de executado constituem um modo de oposição à execução através dos quais o executado vai procurar demonstrar que a obrigação documentada no título trazido à execução é insubsistente. Ou seja, a oposição do executado visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da atual inexistência do direito exequendo ou da falta dum pressuposto, específico ou geral, da ação executiva (José Lebre de Freitas, “A Acção Executiva”, pág. 141).
Efetivamente, na sua estrutura processual os embargos constituem uma ação declarativa que, simultaneamente, são um meio de defesa posta em benefício do executado, pois diversamente da contestação da ação declarativa, a oposição por embargos de executado, constituindo, do ponto de vista estrutural, algo de extrínseco à ação executiva, toma o carácter de uma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e (ou) da ação que nele se baseia.
Por isso, é o embargante quem tem o ónus da prova, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 2. do C.C., dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que, através dos embargos, adianta contra o exequente e que este dirige contra o executado e pretende fazer valer através do título que traz à execução (Ac. S.T.J. de 29.02.1996: C.J./STJ; 1996;1.º; pág. 102, e Ac. RG, de 21.4.2004, disponível em www.dgsi.pt).
Isso mesmo resulta, aliás, do n.º 3 do art.º 732.º do CPC, ao estipular que “à falta de contestação é aplicável o disposto no n.º 1 do art.º 567.º e no art.º 568.º, não se considerando, porém, confessados os factos que estiverem em oposição com os expressamente alegados pelo exequente no requerimento executivo”.
Este normativo legal (que veio reproduzir praticamente o do pretérito CPC, introduzido pela reforma processual operada pelo Dec. Lei n.º 329 -A/95, de 12/12), procedeu à revisão global do regime de efeitos cominatórios decorrentes da falta ou insuficiência da contestação dos embargos, remetendo pura e simplesmente para as exceções ao efeito cominatório da revelia previstas para o processo declaratório; mas esclarecendo que, na falta de impugnação pelo exequente, não se consideram confessados os factos que estejam em oposição com o expressamente alegado no requerimento executivo - obstando-se, por esta via, à produção de um efeito cominatório que se supõe desproporcionado, nos casos em que o exequente, não tendo embora contestado as razões apresentadas pelo embargante, já houvesse, no requerimento executivo, tomado clara e expressa posição sobre a questão controvertida, deste modo consentindo a desnecessidade de o embargado/exequente deduzir contestação aos embargos deduzidos pelo embargante/executado no caso de se poder considerar que os factos articulados nos embargos estão em contradição com aqueles que foram alegados no requerimento executivo.
Mas no caso em análise nem sequer estamos perante esta situação (de falta de contestação e eventual efeito cominatório): a embargada veio contestar os embargos deduzidos pela embargante, tomando posição clara sobre os factos articulados, e juntando prova (considerada pelo tribunal suficiente) para rebater os argumentos da embargante.
Assim, e quanto à questão da capitalização dos juros, alegou a embargada que no exercício da sua atividade creditícia, celebrou com a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.”, também executada nos autos principais, um contrato de utilização de cartão de crédito, identificado pelo n.º ...83, até ao limite de € 20.000,00 (vinte mil euros) – (juntando aos autos o referido contrato como doc.n.º...4, para cujo teor remete). E que para garantia de todas as responsabilidades emergentes do aludido contrato a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.” entregou à Banco 1... uma livrança com montante e vencimento em branco, por si subscrita, e avalizada por “P...-Lojas Multiconceitos, Lda.”, AA e BB – correspondente à livrança junta aos autos principais com o requerimento executivo como doc.n.º... (juntando também aos autos o contrato de garantia acessória como doc.n.º...5, para cujo teor remete).
Mais alega que sendo o contrato em análise um contrato de adesão – do qual a embargante diz não dispor de cópia nem conhecer as suas cláusulas -, o dito contrato foi apenas celebrado entre a Banco 1... e a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.”, não tendo a Embargante tido qualquer intervenção nesse contrato, limitando-se a assinar o contrato de garantia acessória, no qual assumiu a responsabilidade pessoal pelo pagamento de todas as responsabilidades emergentes daquele contrato, mediante o aval que prestou.
Não obstante, alega a embargada ter cumprido todos os deveres de informação e esclarecimento a que se achava adstrita, tendo os avalistas, designadamente a Embargante declarado no contrato por si assinado (de “garantia acessória”) “conhecer perfeita e integralmente os termos, cláusulas e condições” do dito contrato de utilização de cartão de crédito (conforme consta da alínea b) do contrato junto como doc.n.º...5), o que demonstra que a Embargante estava perfeitamente consciente de todo o conteúdo do contrato celebrado com a sociedade devedora, caso contrário não teria feito tal declaração, ou sequer assinado o contrato de garantia acessória.
Ora, tal matéria foi levada à matéria de facto provada - nas alíneas p), q), r), s) t) e u) -, baseada, como decorre do acima exposto, nos documentos juntos aos autos pela embargada, pelo que, tinha de facto o tribunal recorrido todos os elementos de facto necessários e suficientes para proferir uma decisão conscienciosa no despacho saneador, sem necessidade de fazer prosseguir os autos para apuramento de mais factos.
Se a embargante afirmou - no contrato de garantia acessória que assinou - que “conhecia perfeita e integralmente os termos, cláusulas e condições” do dito contrato de utilização de cartão de crédito (conforme consta da alínea b) do contrato junto como doc.n.º...5), teria de ser ela a alegar factos que contrariassem essas declarações, uma vez que estamos perante um documento assinado pelo seu autor, cuja assinatura não foi impugnada, considerando-se a mesma como verdadeira, quando não impugnada pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando ele declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas  (art.º 374º nº 1 do CC).
Ora, o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos do artigo mencionado faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (art.º 376º nº 1 do CC). Não tendo a embargante impugnado a sua assinatura aposta no documento de garantia acessória junta aos autos pela embargada (doc. ...5 já acima analisado), nem posto em causa a autenticidade de tal documento, não pode vir agora dizer que havia prova a produzir nos autos para além daquela que já se encontrava nos autos.
Subscrevemos aqui inteiramente o afirmado pela Sra. Juíza quando fundamenta a matéria de facto provada nos “…documentos juntos (que se mostram aptos a provar a matéria em causa e cuja autenticidade não foi impugnada)…”.
Acresce que, notificados que foram à embargante os documentos juntos aos autos pela embardada, a mesma veio apenas dizer, de uma forma muito genérica, que “dos documentos juntos nada resulta daquilo que a embargada pretende com eles provar, foram produzidos pela embargante, e os outros não demonstram aquilo que a embargada pretende demonstrar com os mesmos. A embargante desconhece a respetiva autenticidade, autoria, proveniência, justificação, causas e consequências, não sabendo as circunstâncias e princípios sob os quais os mesmos foram compostos e compilados. Para além disso, nunca foram do conhecimento da Embargante (…) pelo que, nos termos do disposto no artigo 574.º, n.ºs 2 e 3 do CPC, dá-se por expressamente impugnado todo o teor dos documentos, pressupostos e conclusões, impugnando-se o alcance e efeitos probatório que dos mesmos se pretende retirar”.
Ora, a impugnação genérica que é feita pela embargante dos documentos apresentados pela embargada não tem a consequência que a recorrente lhe pretende atribuir, tanto mais que tal impugnação é reportada ao art.º 574º do CPC, o qual tem a ver apenas com a impugnação dos factos alegados, do qual consta expressamente que “Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor”; questão bem diferente é a tomada de posição que caberia à parte em termos de prova, nomeadamente a prova documental, regendo a matéria quanto às provas por documentos – no caso, quanto aos documentos particulares -,  os citados artºs 374º nº1 e 376º nº 1 do CC.
Em conclusão, se quanto aos documentos apresentados pela embargada e notificados à embargante - entre eles o documento por ela assinado relativa à garantia acessória –, a sua assinatura não foi impugnada nos termos consignados no art.º 374º nº 1 do CC, esses documentos eram aptos a proferir uma decisão de mérito, de imediato, como bem se decidiu no tribunal recorrido.
Improcede assim também nesta parte a questão colocada pela embargante.
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Alega finalmente a embargante a ilegalidade/usura dos juros aplicados.
Diz que as taxas máximas da TAEG (taxa anual de encargos efetiva global) dos créditos ao consumidor são fixados trimestralmente pelo Banco de Portugal (BdP) em instrução emanada com essa finalidade, sendo a devedora principal e a Recorrente consumidores dos serviços bancários, pelo que importa saber se a TAEG a aplicar ao caso dos autos é fixada pela instrução em vigor no momento da formalização do contrato, ou se a mesma deve respeitar (e por ela se encontra limitada) as instruções que, trimestralmente, são fixadas pelo Banco de Portugal, a fim de se apurar o cálculo da TAEG, e determinar se no caso dos autos ocorreu usura.

Sobre esta matéria decidiu-se da seguinte forma na sentença recorrida:

“Alega a embargante a usura nos juros e respectiva TAEG (taxa anual de encargos efectiva global). Nos termos do art. 1146º do Cód. Civil, “1 - É havido como usurário o contrato de mútuo em que sejam estipulados juros anuais que excedam os juros legais, acrescidos de 3% ou 5%, conforme exista ou não garantia real (…) 3. Se a taxa de juros estipulada ou o montante da indemnização exceder o máximo fixado nos números precedentes, considera-se reduzido a esses máximos, ainda que seja outra a vontade dos contraentes. 4 - O respeito dos limites máximos referidos neste artigo não obsta à aplicabilidade dos artigos 282.º a 284.º” Sendo a exequente uma instituição de crédito (…), aplicam-se normas especificas, destinadas a garantir a sustentabilidade da atividade bancária e que derrogam as normas gerais do Código Civil. Nos termos do art. 28.º, n.º1 do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02 de Junho, “é havido como usurário o contrato de crédito cuja TAEG, no momento da celebração do contrato, exceda em um quarto a TAEG média praticada pelas instituições de crédito no trimestre anterior, para cada tipo de contrato de crédito aos consumidores”. A TAEG média a que se refere a citada disposição legal é publicada trimestralmente por Instrução do Banco de Portugal e que os embargantes fizeram constar do seu articulado. O contrato relativamente ao qual é arguida a usura foi celebrado em 10 de Março de 2017, a Instrução relevante é a Instrução n.º 8/2017, segundo o qual a TAEG média praticada pelas instituições de crédito no trimestre anterior ao da celebração do contrato era de 17%. Nos termos do sobredito clausulado e por haver garantia pessoal, a taxa máxima foi fixada em 20,7% e, assim, inferior àquela que resultaria da aplicação das normas acima mencionadas (21,25%) – cfr. a tabela denominada “preçário” no dito contrato. Inexiste, assim, usura nos juros cobrados e na TAEG aplicada”.
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Começamos por dizer que não é pacífico o entendimento defendido na sentença recorrida, de que possa a embargante, enquanto mera avalista, arguir a ilegalidade dos juros acordados e outras prestações (a TAEG) entre a Banco 1... e a sociedade mutuária, pois que se trata de uma questão relativa a contrato ao qual a avalista se considera alheia, dado que o aval, como garantia autónoma, tem um regime distanciado da relação que se destina a avalisar (a relação subjacente).
Ou seja, é ponto assente e resulta dos documentos juntos aos autos (nomeadamente o doc. nº ...4 junto com a contestação aos embargos) que o contrato de utilização de cartão de crédito foi apenas celebrado entre a Banco 1... e a sociedade “S...-Importação e Exportação, Lda.”, não tendo a embargante tido qualquer intervenção nesse contrato.
A Embargante limitou-se a assinar o “contrato de garantia acessória” àquele contrato, no qual assumiu a responsabilidade pessoal pelo pagamento de todas as responsabilidades emergentes daquele contrato, mediante o aval que prestou, aposto na livrança em branco subscrita pela devedora (e avalizada por mais dois avalistas) pelo que se suscita a questão de saber se a embargante, na qualidade de avalista, tem legitimidade para arguir as eventuais nulidades do contrato de utilização de cartão de crédito, que não assinou, e por isso se encontra fora do campo das relações imediatas com a credora.
Com efeito, como se decidiu no Ac. Uniformizador de jurisprudência n.º 4/2013, de 21.1. (Publicado no Diário da República n.º 14/2013, Série I de 2013-01-21), “Poder-se-á, assim, definir o aval como o negócio cambiário típico, por força do qual se oferece aos tomadores do título cambiário a garantia de uma pessoa, o avalista, formalmente dependente da de outro obrigado no título, o avalizado, mas configurada num plano substancial com carácter autónomo. A garantia oferecida pelo avalista constitui-se ao mesmo tempo acessória e autónoma. Acessória porque se apoia, pelo menos formalmente, em outra obrigação cambiária, a do avalizado; autónoma porque é válida ainda que a obrigação garantida resulte nula por qualquer causa que não seja vício de forma, e porque o avalista não poderá opor excepções pessoais ao beneficiário do aval. Para Oliveira Ascensão o aval funciona como uma obrigação autónoma e não como garantia, dado que pelo aval o avalista contrai uma responsabilidade (jurídica) distinta da do avalizado, não estando, sequer, dependente da validade da obrigação garantida "nem mesmo da obrigação do afiançado".
Aliás, estas conclusões, de que a garantia do aval funciona como uma “obrigação autónoma”, são sustentadas pelas normas previstas no art.º 32.º da Lei Uniforme das Letras e das Livranças (LULL), aplicável às livranças por força do art.º 77.º do mesmo diploma legal, segundo o qual “o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”.
No art.º 17.º da LULL (também aplicável ao caso das livranças por força daquele art.º 77.º), prevê-se que “as pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”, o mesmo se passando no art.º 10.º da mesma LULL, segundo o qual “se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.
Resulta efetivamente dos preceitos legais transcritos que a obrigação cambiária se constitui mesmo antes do total preenchimento da livrança ou, no limite, aquando do seu preenchimento. O fundamento da lide executiva é o próprio título preenchido, e a sua natureza é cambiária, com a consequente irrelevância das relações extra-cartulares.
Esse mesmo entendimento foi perfilhado no Ac. RP de 23.2.2021 (disponível em www.dgsi.pt/), do qual consta o seguinte: «Por tal razão, pode-se e comumente afirma-se que a obrigação cambiária que serve de base à execução é como se fosse uma obrigação sem causa; o que de certo modo resume o conjunto dos princípios caracterizadores da letra de câmbio e da livrança, enquanto títulos de crédito - incorporação da obrigação no título, literalidade, abstracção, independência recíproca das diversas obrigações incorporadas no título e autonomia do direito do portador que é considerado credor originário (cfr. Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada”, pág. 105). Por força da literalidade, a existência, validade e persistência da obrigação cambiária não podem ser contestados com o recurso a elementos estranhos ao título, e o conteúdo, extensão e modalidades da obrigação cartular são os que a declaração objectivamente define e revela (cfr. Ferrer Correia, in “Lições de Direito Comercial”, vol. III, Letra de Câmbio, pág. 41). Pela abstracção, a relação jurídica fundamental e a convenção executiva ficam separadas da relação cambiária, sendo o negócio cambiário independente, em cada caso concreto, da sua causa. A obrigação cambiária torna-se, pois, vinculante independentemente dos possíveis vícios da sua causa, sendo, por isso, inoponíveis ao portador mediato de boa-fé as excepções causais».
Resulta assim do entendimento exposto que a obrigação da avalista é autónoma e válida nos precisos termos decorrentes da livrança, enquanto título de crédito que goza das características da literalidade e abstração.
Por isso, a embargante ao invocar a “invalidade das taxas de juros aplicáveis” ao contrato de utilização de cartão de crédito ao qual é alheia, porque não fez parte da sua celebração, não o outorgou nem o assinou, está a fazer alegações respeitantes à relação extra-cartular ou subjacente, o que não lhe é permitido, à luz do entendimento acima descrito e para o qual nos inclinamos.
Ou seja, encontrando-se o contrato cuja ilegalidade quanto à taxa de juros aplicável se invoca no âmbito das relações mediatas entre a Embargante e a Banco 1..., a avalista não tem legitimidade para invocar os seus eventuais vícios (entendimento seguido no Ac. do STJ de 11.11.2004 e no Ac. RP de 24.10.2006, ambos publicados em www.dgsi.pt.).
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Ainda assim, não somos de todo insensíveis ao entendimento seguido na sentença recorrida (e por alguma jurisprudência que consultamos em www.dgsi.pt), de que quando o avalista intervenha no pacto de preenchimento do título – subscrevendo-o -, se considera que pode suscitar questões atinente ao preenchimento abusivo do título (letra ou livrança).
Foi esse o entendimento defendido desde logo no Ac. RP de 13/3/2008 (citado na decisão recorrida e disponível em www.dgsi.pt.) de que “O avalista tem legitimidade para excecionar o preenchimento abusivo, se ele subscreveu o acordo de preenchimento, já que, nesse caso se está no domínio das relações imediatas”.
E de facto, analisado o contrato de garantia acessória junto aos autos (doc. ...5 junto aos autos com a contestação da embargada), do mesmo resulta que a embargante (juntamente com mais dois avalistas) subscreveram o pacto de preenchimento da livrança em branco, entregue pela devedora à exequente.
Desse contrato de garantia acessória junto aos autos consta efetivamente que entre a 1ª outorgante (S...-Importação e Exportação) e os 2ºs outorgantes (AA e cônjuge, BB e P...-Lojas Multiconceitos – como avalistas - e a 3ª outorgante, Banco 1..., S.A. foi estabelecido o seguinte: “a) A Banco 1..., por contrato de atribuição e utilização do cartão de crédito designado como “C...” celebrado nesta mesma data por documento particular que aqui se dá por integralmente reproduzido concedeu à sua cliente acima identificada um limite de crédito no montante inicial de € 20.000,00 e com as cláusulas e demais condições constantes das respetivas condições gerais de utilização; b) As partes declaram conhecer perfeita e integralmente os termos das cláusulas e condições do contrato identificado na alínea anterior. É celebrado o presente contrato de constituição da seguinte garantia que ficará anexo e como parte integrante do contrato atrás identificado, com as cláusulas seguintes: 1- “Aval” “Todas e quaisquer quantias que sejam ou venham a ser devidas à Banco 1... pela cliente no âmbito do contrato supra identificado, quer a título de capital, quer a de juros remuneratórios ou moratórios, comissões, despesas ou quaisquer outros encargos ficam garantidos pelo aval prestado na livrança prevista no nº 2, caso a Banco 1... decida proceder ao seu preenchimento de acordo com o pacto de preenchimento ali convencionado. 2- Livrança em branco: 2.1. Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do contrato supra identificado, a cliente e os avalistas atrás identificados, para o efeito entregam à Banco 1... neste ato uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada e, subscrita pela primeira e avalizada pelos segundos, e autorizam desde já a Banco 1... a preencher a sobredita livrança quando tal se mostre necessário a juízo da própria Banco 1..., tendo em conta, nomeadamente o seguinte: a) a data de vencimento será fixada pela Banco 1... quando, em caso de incumprimento pela cliente das obrigações assumidas, a Banco 1... decida preencher a livrança; b) a importância da livrança nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança…”.
Resulta assim do contrato celebrado, designadamente das cláusulas contratuais transcritas, que foi formalizado naquele contrato pelas partes outorgantes um pacto ou acordo de preenchimento da livrança em branco, entregue no ato, devidamente assinada, à exequente, com  a devida autorização para o seu preenchimento.
A livrança em branco é admissível, sendo de considerar como tal a que, embora contendo a assinatura de pelo menos um obrigado cambiário, lhe faltam alguns dos requisitos elencados no artigo 75º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL) (Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre letras e livranças, 7.ª ed., ps. 78 e 79).
Por sua vez, o contrato - ou pacto - de preenchimento é o ato pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc, acordo esse que pode ser expresso ou tácito, e pode ou não coincidir com a obrigação que garante e que daquela é causal ou subjacente (Ac. do STJ de 13-03-2007, publicado em www.dgsi.pt).
Ora, situando-se os avalistas no domínio das relações imediatas, na própria relação subjacente que originou o denominado pacto de preenchimento da livrança, é admissível (e aceitável), como se decidiu na sentença recorrida, que eles possam opor ao portador da livrança o seu preenchimento abusivo ou contrário ao pacto a que aquele se obrigou. 
Como se decidiu no Ac. da RP acima citado (de 13/3/2008), “No pacto de preenchimento valem, tão somente, os critérios da incorporação, literalidade, autonomia e abstração, e não a “causa debendi” bastando-se para a execução a não demonstração, pelo executado, de ter sido incumprido o pacto de preenchimento, que pode ser invocado no domínio das relações imediatas. Princípio igualmente válido para os avalistas, se subscreveram - como é o caso - o pacto de preenchimento. Do que se conclui que, no presente caso os avalistas, podiam, como fizeram, apor ao portador da livrança a exceção de preenchimento abusivo. Com efeito, do facto de a prestação do aval estar normalmente condicionada ao conhecimento e aceitação pelo avalista do montante a avalizar e data de vencimento, não pode concluir-se, sem mais, que a qualidade de mero avalista não legitima a oponibilidade da exceção de preenchimento abusivo. O avalista tem legitimidade para excecionar o preenchimento abusivo, se ele subscreveu o acordo de preenchimento, já que, nesse caso se está no domínio das relações imediatas. Já nas relações mediatas, em que o título é detido por alguém estranho à convenção extra cartular, por já ter entrado em circulação, prevalecem os princípios típicos da relação cambiária que são independentes da causa que deu lugar à sua assunção. Ou seja, se o portador da livrança for já um terceiro interveniente (a quem a livrança foi endossada diretamente pelo anterior beneficiário ou que se mostre justificada a respetiva posse por uma série ininterrupta de endossos), não poderá ser deduzida qualquer exceção de direito material assente nas relações pessoais dos obrigados com os anteriores sacadores ou portadores, porque, deixando de haver correspondência entre a relação causal e a relação cartular, torna-se essencial para a segurança do comércio jurídico, assegurar a validade do título, nas suas dimensões de completa literalidade, abstração e autonomia. Não sendo este o caso dos autos, encontrando-se a livrança no domínio das relações imediatas, uma vez que a livrança exequenda ainda se encontra na posse do portador inicial, e estando demonstrada a existência de um pacto de preenchimento expresso, no qual intervieram os oponentes, o preenchimento da livrança, que pode ser contemporâneo, ou posterior à aquisição do título pelo adquirente, apenas tem que ser feito de harmonia com esse pacto…”. (cfr. no mesmo sentido o Ac. RP de 23.4.2007, também disponível em www.dgsi.pt).
No mesmo sentido se decidiu ainda no Ac. do STJ de 14.12.2006 (publicado em www.dgsi.pt.), no qual se defendeu (ponto 5 do respetivo Sumário) que “Se o avalista subscreveu o acordo de preenchimento, pode opor ao portador a exceção de preenchimento abusivo, estando o título no âmbito das relações imediatas.” (Seguiram o mesmo entendimento os Acs. do STJ de 11.2.03; de 11.12.03; e de 13.3.2007, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
E foi o que aconteceu no caso em apreço porquanto, nos termos do pacto de preenchimento acima mencionado, a exequente ficou autorizada “…a preencher a sobredita livrança quando tal se mostre necessário (…), tendo em conta, nomeadamente (…) a data de vencimento (…) em caso de incumprimento pela cliente das obrigações assumidas (…) a importância da livrança, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança…”.
No fundo, trata-se de saber se a exequente cumpriu o acordo de preenchimento, no âmbito das relações imediatas estabelecidas com os avalistas, sendo certo que a exceção de preenchimento abusivo, como exceção do direito material que é, deve ser alegada e provada pela embargante, nos termos previstos no nº2 do artigo 342º do Código Civil.
Trata-se então de saber se houve da parte da exequente o preenchimento abusivo da livrança, nomeadamente no que se refere à taxa de juros aplicável, uma vez que ela ficou autorizada a preencher a livrança (em branco), além do mais, com o montante dos juros remuneratórios – sendo a esses que se refere a embargante, ao referir-se à TAEG aplicada, e ao que dispõe o art.º 28.º, n.º1 do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02 de Junho, (contratos de crédito a consumidores), com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL n.º 42-A/2013, de 28/03.
Prevê-se efetivamente no artigo 28.º daquele DL, intitulado “Usura” que “É havido como usurário o contrato de crédito cuja TAEG, no momento da celebração do contrato, exceda em um quarto a TAEG média praticada pelas instituições de crédito no trimestre anterior, para cada tipo de contrato de crédito aos consumidores (nº1). É igualmente tido como usurário o contrato de crédito cuja TAEG, no momento da celebração do contrato, embora não exceda o limite definido no número anterior, ultrapasse em 50/prct. a TAEG média dos contratos de crédito aos consumidores celebrados no trimestre anterior (nº2). A identificação dos tipos de contrato de crédito aos consumidores relevantes e a definição do valor máximo resultante da aplicação do disposto nos números anteriores são determinados e divulgados ao público trimestralmente pelo Banco de Portugal, sendo válidos para os contratos a celebrar no trimestre seguinte (…) (nº3). Considera-se automaticamente reduzida a metade do limite máximo previsto nos nºs 1, 2, 4 e 5 a TAEG, ou, no caso de ultrapassagem de crédito, a TAN, que os ultrapasse, sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal (nº6)…”.
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Ora, de acordo com o preceito legal transcrito, no que se refere à TAEG (A taxa anual de encargos efetiva global), ela representa o custo total do crédito (concedido no âmbito do crédito ao consumo regulado no citado DL nº 133/2009), englobando a TAN (A taxa de juro anual nominal) e outros encargos cobrados pela instituição de crédito, sendo expressa em percentagem anual do montante total do crédito.
Ou seja, além da taxa de juro, o cliente/consumidor tem de pagar comissões e outros encargos associados ao contrato de crédito aos consumidores, nomeadamente: os juros; as comissões; os impostos; os seguros exigidos para obtenção do crédito; a comissão de manutenção de conta à ordem cuja abertura seja obrigatória para a gestão do empréstimo; os custos com operações de pagamento e de utilização do crédito, caso existam; a remuneração do intermediário de crédito, caso essa remuneração seja paga pelo consumidor, o que sucede quando recorre a um intermediário de crédito não vinculado; e outros encargos associados ao contrato de crédito.
Ora, como estamos no âmbito de uma taxa livremente negociável pelas partes – entre as sociedades financeiras e os particulares/consumidores, parte mais frágil do contrato –, o Estado intervém, fixando taxas máximas da TAEG, considerando usurário o contrato de crédito em que essa taxa, no momento da celebração do contrato, exceda em um quarto a TAEG média praticada pelas instituições de crédito no trimestre anterior, para cada tipo de contrato de crédito aos consumidores, sendo o Banco de Portugal quem calcula e publica trimestralmente as taxas máximas em vigor para cada tipo de crédito ao consumo.
Ou seja, essas taxas – calculadas e publicadas pelo BdP, constituem limites máximos aos encargos que podem ser contratados em cada tipo de contrato de crédito.
Efetivamente, o regime de taxas máximas vigora desde o dia .../.../2010 e aplica-se aos contratos de crédito aos consumidores enquadrados no âmbito do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, prevendo esse regime que as taxas máximas correspondem às taxas anuais de encargos efetivos globais (TAEG) médias praticadas pelas instituições de crédito no trimestre anterior, nos diferentes tipos de contratos, acrescidas de um quarto.
Acresce que nenhuma taxa pode ultrapassar em 50% a TAEG média da totalidade dos contratos de crédito aos consumidores celebrados no trimestre anterior (entre outras regras previstas naquele preceito, que por desnecessidade não se transcreveram).
Acresce ainda que as taxas máximas aplicáveis aos contratos de crédito aos consumidores são também definidas de acordo com os vários tipos de contrato, de acordo com as respetivas finalidades (“Crédito pessoal”, no qual se incluem “educação”, “saúde”, “energias renováveis”, e “locação financeira de equipamentos”;  “Outros créditos pessoais”, que incluem os créditos destinados à aquisição de bens e serviços não incluídos nas subcategorias anteriores; “Crédito automóvel”; “Crédito revolving”, no qual se incluem os Cartões de crédito, linhas de crédito, contas correntes bancárias; Facilidades de descoberto, incluindo as que têm obrigação de reembolso no prazo de um mês e as que têm prazo de reembolso superior a um mês), sendo variáveis essas taxas máximas, de acordo com o destino que for dado pelo cliente ao crédito solicitado.
Feita esta breve explanação, e aplicando a disposição legal ao caso dos autos concluímos que atenta a data da celebração do contrato - 10 de Março de 2017 -, a Instrução relevante do BdP, que definia a taxa máxima aplicável àquele contrato era a Instrução nº 16/2016, que era a aplicável ao 1.º trimestre de 2017 (por o contrato ter sido celebrado em 10.03.2017) – e não a que certamente por lapso foi considerada na decisão recorrida (a Instrução 8/2017), prevendo-se nessa Instrução a taxa de juro máxima aplicável de 17% (para créditos de Cartões de Crédito, Linhas de Crédito, Contas Correntes Bancárias e Facilidades de Descoberto) acrescida de um quarto.
Como resulta daquela Instrução 16/2016, emanada do BdP (BO nº 12, de 15-12-2016), “as taxas máximas para cada tipo de crédito são determinadas com base nas Taxas Anuais de Encargos Efetivas Globais (TAEG) médias praticadas no mercado pelas instituições de crédito no trimestre anterior, acrescidas de um quarto. Adicionalmente, a taxa máxima de qualquer tipo de crédito não pode exceder a TAEG média da totalidade do mercado do crédito aos consumidores, acrescida de 50%. Aplicando o critério definido na lei, o Banco de Portugal divulga trimestralmente as taxas máximas para os diferentes tipos de crédito, para aplicação aos contratos a celebrar no trimestre seguinte. As taxas definidas na presente Instrução constituem limites máximos aos encargos que podem ser contratados em cada tipo de contrato de crédito, não podendo, em caso algum, ser referidas como “taxas legais”. A liberdade de contratação de condições de financiamento mantém-se, com a única exceção do cumprimento destes limites”.
Ora, mesmo aplicando ao caso dos autos aquela Instrução do BdP (16/2016) e o limite por ela imposto, de 17%, a taxa de juros negociada pela exequente com a devedora principal aquando da celebração do contrato de utilização de cartão de crédito, foi de 20,7%, ou seja, dentro dos limites legais (que seriam de 21,25%, correspondente à TAEG fixada, excedida de um quarto), pelo que a conclusão a tirar de todo o exposto é a de que não foram cobrados juros usurários no preenchimento da livrança por parte da exequente, não havendo assim lugar à pretendida redução das taxas de juro aplicáveis, que são inteiramente válidas.
Não houve também preenchimento abusivo da livrança por parte da exequente.
Quanto à questão concretamente colocada pela embargante, sobre o momento em que são aplicadas as referidas taxas (TAEG), resulta da lei de forma clara que esse momento é o da contratação (como tivemos a oportunidade de sublinhar no lugar indicado, ao transcrever o preceito legal analisado), sendo nesse momento que se define qual a Instrução do BdP que deve ser aplicada.
Improcede assim também esta questão colocada nos autos pela Apelante. 
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IV- DECISÃO:

Por todo o exposto, Julga-se Improcedente a Apelação e confirma-se a sentença recorrida.
Custas da Apelação pela recorrente (art.º 527º nº1 e 2 do CPC).
Notifique
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Sumário do Acórdão:

I- Subjacente à emissão de um cartão de crédito bancário está um contrato, designado por “contrato de utilização” ou “contrato de emissão”, o qual configura um contrato acessório em relação aos contratos de depósito bancário ou ao de abertura de crédito em conta corrente.
II - Embora os avalistas (de uma livrança) não sejam sujeitos da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, isto é, da relação subjacente à obrigação cambiária, estabelece o art.º 32º da LULL, que o dador de aval é responsável da mesma forma que a pessoa por ele afiançada, sendo certo que a extensão e o conteúdo da obrigação do avalista aferem-se pela do avalizado.
III- O CPC permite o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos, ou de alguma exceção perentória (artigo 595.º, n.º 1, al. b) do CPC), sendo essa decisão tomada livremente pelo tribunal quando considere que se encontra já habilitado, de forma cabal, a decidir conscienciosamente o mérito da causa naquela fase processual.
IV- Sendo os embargos de executado um meio de defesa posto em benefício do executado, eles tomam o carácter de uma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e/ou da ação que nele se baseia. Por isso, é o embargante quem tem o ónus da prova, nos termos do art.º 342.º, n.º 2. do CC, dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que, através dos embargos, adianta contra o exequente e que este pretende fazer valer através do título que traz à execução.
V- A obrigação do avalista é autónoma e válida nos precisos termos decorrentes da livrança, enquanto título de crédito que goza das características da literalidade e abstração, não sendo por isso pacífica a questão de saber se a embargante, na qualidade de avalista, tem legitimidade para arguir as eventuais nulidades do contrato de utilização de cartão de crédito, que não subscreveu nem assinou, encontrando-se por isso fora do campo das relações imediatas estabelecidas entre as partes daquele contrato.
VI- Pode no entanto defender-se que quando o avalista intervenha no pacto de preenchimento do título – subscrevendo-o -, se considera que ele pode suscitar questões atinente ao preenchimento abusivo do título (livrança), já que nesse caso se está no domínio das relações imediatas.
VII - O contrato - ou pacto - de preenchimento é o ato pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc, acordo esse que pode ser expresso ou tácito, e pode ou não coincidir com a obrigação que garante e que daquela é causal ou subjacente.
VIII – Considera-se usurário o contrato de crédito ao consumo em que a TAEG (taxa anual de encargos efetiva global), no momento da celebração do contrato, exceda em um quarto a TAEG média praticada pelas instituições de crédito no trimestre anterior para cada tipo de contrato de crédito aos consumidores, sendo o Banco de Portugal quem calcula e publica trimestralmente as taxas máximas em vigor para cada tipo de crédito ao consumo.
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Guimarães, 2.3.2023