Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | FERNANDA PROENÇA FERNANDES | ||
| Descritores: | AVAL MORTE DO AVALISTA RESPONSABILIDADE DOS HERDEIROS | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 12/04/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 3.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I. O facto de o vencimento de uma letra ter ocorrido posteriormente à morte do respetivo avalista, de quem a embargante é herdeira, não desresponsabiliza esta da obrigação cambiária por aquele contraída, pois que tal obrigação integrava, já à data da respetiva morte, a globalidade das relações jurídicas patrimoniais de que o mesmo avalista era, então, titular. II. Mas não sendo a embargante/apelante a devedora, não pode ela ser responsável como tal, mas apenas em substituição do devedor, seu irmão, pelo que apenas responde com o património que recebeu da herança do seu irmão e não com quaisquer bens próprios de que a mesma seja, eventualmente, titular. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório. AA, habilitada enquanto herdeira do falecido executado BB, veio apresentar oposição à execução através de embargos de executado, pedindo a procedência das exceções invocadas e consequentemente a oposição à execução, com as legais consequências. Alegou em síntese, e para o que à economia deste recurso releva, que a letra apresentada à execução pela embargada/exequente EMP01..., S.A foi aceite pela sociedade EMP02... Unipessoal Lda. e avalizada pelos executados BB, CC e DD, a qual foi emitida em ../../2020 e com vencimento em 01.10.2020. Acontece que o executado BB faleceu no dia 25.03.2018, cerca de dois anos e meio antes da emissão da letra de câmbio dada à execução e que a embargada/exequente não circunstancia no requerimento executivo a data em que a sociedade executada terá deixado de cumprir com as suas obrigações contratuais, presumindo que a data do imputado incumprimento remontará a 01.10.2020, correspondendo à data de vencimento da letra de câmbio. Conclui que se encontra a ser demandada como herdeira do pretenso avalista, falecido muito antes do pretenso incumprimento do contrato de fornecimento de mercadorias, garantido por uma letra de câmbio, motivo pelo qual não poderá em caso algum ser responsável pela dívida de capital (não se alegando a existência de qualquer dívida no momento da morte) e muito menos pelos juros vencidos desde o pretenso incumprimento. Notificada veio a exequente contestar alegando, em síntese, que decorrente das relações comerciais estabelecidas entre a embargada e a sociedade EMP02..., Lda., para garantia do integral cumprimento de todas as obrigações e responsabilidades pela falta de pagamento dos fornecimentos de pneus e outros produtos efetuados pela embargada, a sociedade EMP02..., Lda, como aceitante e BB, CC e DD, como avalistas, procederam à entrega em 12.05.2015, de um impresso de letra sem data, valor e vencimento, tal como decorre do pacto de preenchimento, tendo declarado a aceitante e os avalistas que seria permitido à embargada preencher aquela letra com a data e os montantes em mora, que lhes fossem notificados para pagar e que não fossem por eles liquidados, tendo ficado estipulado naquele pacto que o vencimento da letra seria o que a embargante nele apusesse, quando entendesse que assim seria necessário para cobrar os seus créditos. Mais alega que notificou a aceitante e os avalistas para procederem ao pagamento das quantias vencidas, por carta registada com aviso de receção remetidas para a morada constante do pacto de preenchimento, tendo as mesmas sido devolvidas à embargante com a indicação “mudou-se”, não tendo contudo a aceitante ou os avalistas, comunicado à embargante a alteração de morada, pelo que haverá de ter-se aqueles por notificados. Esclareceu que o incumprimento compreende o período de 21.05.2019 a 28.06.2019. Concluiu pela improcedência dos embargos deduzidos. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: “DECISÃO: Pelo exposto, decide-se julgar a presente oposição à execução, através de embargos de executado, improcedente prosseguindo a execução nos termos sobreditos. Custas pela Embargante/Habilitada que decaiu na sua pretensão (art.527.º do CPC). Registe e notifique. Comunique ao AE..”. * Inconformada com a decisão, dela interpôs recurso a executada/embargante, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões (que se transcrevem):“III. CONCLUSÕES a) A douta sentença recorrida incorre em erro de julgamento na apreciação da matéria de direito, mormente quanto à questão do não reconhecimento da morte como um termo extintivo subjacente da fiança/aval de divida futura. b) Com o devido respeito por opinião contrária, deveria ter sido acolhida a tese propugnada pela embargante em sede de embargos de executado, reiterada no requerimento de 02.01.2025, no sentido de que em relação às obrigações ainda não constituídas à data da morte, a respectiva cobertura em termos de responsabilidade fidejussória não se devia estender à embargante enquanto herdeira do avalista. c) Com efeito, tendo em conta a factualidade ínsita nos pontos F) e O dos factos provados, estando a ser demandada uma herdeira do avalista BB, falecido muito antes do pretenso incumprimento do contrato de fornecimento de mercadorias, garantido pela sobredita letra de câmbio, esta herdeira não poderá em caso algum ser responsável pela dívida de capital (não se alegando a existência de qualquer dívida no momento da morte) e muito menos pelos juros vencidos desde o pretenso incumprimento. d) É este, aliás, o entendimento que decorre do acórdão de 12.10.2023 do TRL, proferido no processo 14/20.4T8MMN-A.L1-2, onde se sumariou que “a herdeira do avalista falecido antes do incumprimento de um contrato de abertura de crédito em conta-corrente, cujo saldo final seria garantido por uma livrança em branco, não é responsável pela dívida de capital (não se alegando a existência de um saldo provisório negativo no momento da morte), nem, por isso, pelos juros vencidos desde o incumprimento”. e) Como se discorreu no citado acórdão, “não tendo o carácter pessoal da fiança o significado de obrigação ligada essencialmente à pessoa do fiador em termos de se dever extinguir por sua morte (art. 2025/1 do CC), as obrigações decorrentes da vinculação fidejussória manter-se-iam encabeçadas, agora, na esfera dos herdeiros.” (págs. 796-797). f) Mas esta conclusão só é válida em relação às obrigações já constituídas à data da morte do fiador, pois que em relação às ainda não constituídas, “a respectiva cobertura em termos de responsabilidade fidejussória não se estende aos herdeiros do fiador, já que a obrigação de cobertura [esta diz respeito às fianças de créditos futuros – pág. 308] do fiador tem naturalmente intuitu personae” (págs. 804-805)”. g) O que, aplicado ao caso vertente, no qual a Embargada EMP01..., S.A. é possuidora de uma letra de câmbio que foi dada à execução, na qual consta como avalista, além de outros, o falecido BB, cuja morte, repete-se, ocorreu antes do incumprimento do contrato de fornecimento de mercadorias garantido pela sobredita letra de câmbio e do concomitante preenchimento dessa letra, a solução será a de, em coerência com o reconhecimento da morte como um termo extintivo subjacente [das fianças de dívidas futuras – pág. 802 da mencionada obra], circunscrever a responsabilidade da herdeira habilitada, que não foi tida nem achada na operação, ao saldo apurado com referência à data da morte. h) Dito de outra forma, como no caso dos autos o incumprimento do contrato de fornecimento de mercadorias garantido pela sobredita letra de câmbio, que o Tribunal a quo balizou no período compreendido de 21.05.2019 a 28.06.2019, ocorreu depois da morte do avalista (../../2018), sem que haja prova ou sinal de qualquer saldo à data da morte do avalista, a embargante, herdeira do avalista, não poderá ser responsável pela dívida de capital constituída depois disso e, por isso, muito menos o será da dívida de juros. i) A despeito de tudo quanto vai dito, o Tribunal a quo entendeu que “não pode a avalista (e, por extensão, os embargantes-herdeiros, seus “representantes”) deduzir oposição à execução, invocando defesa que só poderia ser oposta, no domínio das relações imediatas existentes entre a exequente – portadora da livrança em causa e a respetiva subscritora (sociedade “EMP02..., Unipessoal Lda.”), precisamente por não ser sujeito da relação material respetiva”, concluindo que “a natureza jurídica do aval apontam decididamente no sentido de – fora a invocação da exceção do pagamento – não lhe ser aplicável o regime do art. 637º, nº2, do CC, o qual permite ao fiador opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor, já que tal regime se mostra incompatível com o carácter autónomo e abstracto daquele acto cambiário, sendo que só são aplicáveis ao aval os princípios da fiança que, a despeito das afinidades existentes entre ambas as figuras, não contradigam o carácter cambiário daquele – Cfr. Ac. do STJ, de 23.01.86 (Bol. 353º/482) e Prof. Ferrer Correia (Ob. citada, págs. 198). j) Contudo, com o devido respeito, não se vislumbra em que medida o entendimento propugnado pela embargante/recorrente possa contradizer o carácter cambiário do aval, pois em causa está somente a apreciação da questão do reconhecimento da morte como um termo extintivo subjacente da fiança/aval de divida futura. k) De facto, a tutela reclamada por situações como a colocada à sindicância do Tribunal recorrido, que são situações-limite de carácter transversal (a garantia de dívidas alheias ainda não contraídas), não é posta em causa pelas diferenças estruturais ou discrepâncias de regime emergentes da contraposição entre o carácter acessório da fiança e a autonomia do aval. l) Neste conspecto dever-se-á revogar a douta sentença recorrida e substituí-la por decisão que julgue procedentes os embargos, determinando a extinção da execução na parte relativa à embargante Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, em conformidade com as conclusões que antecedem, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA”. * Não houve contra-alegações.* O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.* Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.* II. Questões a decidir.Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se, tendo o incumprimento do contrato de fornecimento de mercadorias garantido pela letra de câmbio, ocorrido depois da morte do avalista, a embargante, herdeira do avalista, poderá ser responsável pela dívida de capital e juros constituída depois disso. * III. Fundamentação de facto.Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes: “A) A exequente é uma sociedade que tem por objeto a importação, exportação, comercialização e distribuição de pneus e de produtos derivados do petróleo. B) No âmbito da sua atividade e para pagamento do preço das mercadorias adquiridas pela sociedade EMP02..., Unipessoal, Lda., NIPC ...61, aquela entregou à exequente a letra de câmbio n.º ...12, no montante de € 8.295,14 (oito mil duzentos e noventa e cinco euros e catorze cêntimos), emitida em ../../2020 e com vencimento em 01.10.2020. C) Tal letra tem aposta o aceite da referida sociedade, tendo nela sido aposto o aval dos executados BB, CC e DD. D) A dita letra não foi paga nem na data de vencimento, nem posteriormente. E) A sociedade "EMP02..., Unipessoal, Lda." se encontra dissolvida, encerrada a liquidação e a respetiva matrícula cancelada. F) O Executado BB faleceu no dia ../../2018, vítima de um acidente de viação. G) A aqui embargante era irmã mais nova do malogrado BB e na data de preenchimento e vencimento da letra de câmbio encontrava-se a estudar no ensino superior na cidade ..., tendo sido habilitada como sua sucessora. H) A embargante desconhecia os meandros em que se desenvolvia a atividade da empresa pois sempre esteve arredada da respetiva gestão, quer no plano organizacional quer financeiro, desconhecendo por completo as contas e as decisões de fundo da vida societária. I) O registo da dissolução e encerramento da referida empresa data de ../../2019. J) Desde o falecimento do malogrado BB e até ../../2019, era o seu pai, CC, quem punha e dispunha em relação à sociedade avalizada, EMP02..., Unipessoal Lda.., administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros. K) A embargante encontra-se a ser demandada na qualidade de herdeira de BB, que prestou aval à sociedade subscritora da letra de câmbio dada à execução como título executivo. L) Para garantia do integral cumprimento de todas as obrigações e responsabilidades pela falta de pagamento dos fornecimentos de pneus e outros produtos efetuados pela embargada, a sociedade EMP02..., Lda, como aceitante e BB, CC e DD, como avalistas, procederam à entrega em 12.05.2015, de um impresso de letra sem data, valor e vencimento, tendo declarado, no pacto de preenchimento, a aceitante e os avalistas que seria permitido à embargada preencher aquela letra com a data e os montantes em mora, que lhes fossem notificados para pagar e que não fossem por eles liquidados, tendo ficado estipulado naquele pacto que o vencimento da letra seria o que a embargante nele apusesse, quando entendesse que assim seria necessário para cobrar os seus créditos. M) A embargante notificou a aceitante e os avalistas para procederem ao pagamento das quantias vencidas, o que concretizou por carta registada com aviso de receção remetidas para a morada constante do pacto de preenchimento, tendo as mesmas sido devolvidas à embargante com a indicação “mudou-se”. N) Nem a aceitante nem os avalistas comunicaram à embargada a alteração de morada. O) O incumprimento compreende o período de 21.05.2019 a 28.06.2019 pois a sociedade encomendou e usufruiu de pneus rodoviários entre maio e junho de 2019. P) Por deliberação tomada pela embargante em ata lavrada com data de 16 de julho de 2019 foi deliberada a dissolução e encerramento da liquidação da sociedade EMP02..., Lda.. Q) No período compreendido entre o dia 25 de março de 2018 e o dia 26 de agosto de 2019 a embargante foi a gerente de direito e o seu pai, CC foi o gerente de facto da sociedade “EMP02..., Unipessoal, Lda.”, sendo que no aludido período temporal foi o pai da embargante, CC, quem exerceu a gestão diária da sociedade “EMP02..., Unipessoal, Lda.”, contactando fornecedores e clientes, efetuando pagamento de salários a trabalhadores e materiais a fornecedores. R) No período compreendido entre o dia 7 de maio de 2018 e o dia 26 de agosto de 2018, a gerente da sociedade “EMP02..., Unipessoal, Lda.” Foi a mãe da embargada, DD. S) Através da ap. ...7 de 25.11.2016 foi inscrita na competente Conservatória do Registo Comercial, a sociedade unipessoal por quotas de responsabilidade limitada que gira com a firma “EMP03..., Unipessoal, Lda”, titular do número único de matrícula e de pessoal coletiva ...90, com sede na Estrada ..., ..., ... ... (coincidente com a mesma sede social da extinta sociedade “EMP02..., Unipessoal, Lda.”), com o capital social de € 20.000,00 (vinte mil euros), tendo como objeto social “as atividades de compra e venda de bens imobiliários, nomeadamente edifícios residenciais e não residenciais e de terrenos. Inclui atividades de subdivisão de terrenos em lotes sem introdução de melhoramentos e ainda as atividades de arrendamento e exploração de bens imobiliários, nomeadamente edifícios residenciais, não residenciais e de terrenos. Inclui a intermediação na compra, venda, arrendamento ou atividades similares sobre imóveis, executadas por conta de terceiros. Compreende ainda as atividades de angariação relacionadas com a compra, venda e arrendamento e similares, sobre bens imóveis, realizadas por entidades independentes para a atividade de mediação imobiliária”, sendo certo que o capital social desta social era composto por uma quota, com o valor nominal de € 20.000,00 (vinte mil euros) titulada pela embargante. T) A dissolução da firma “EMP03..., Unipessoal, Lda” ocorreu em 10 de novembro de 2017, ou seja, um ano após a sua constituição. U) No dia 16 de julho de 2019, a embargante AA subscreveu uma ata da sociedade “EMP02..., Unipessoal, Lda.”, na qual foi deliberada a dissolução da sociedade “EMP02..., Unipessoal, Lda.”, dela se fazendo constar o seguinte: “Seguidamente a sócia AA afirmou que, em virtude de a sociedade, na presente data, já não ter qualquer ativo ou passivo, se encontrava em condições de poder ser dada como liquidada conforme tudo quanto decorre da contabilidade social”, constando ainda que “Nestes termos, propôs que fossem aprovados os documentos de prestação de contas e de balanço do exercício final, reportados à data da dissolução e reconhecida a inexistência de ativo e passivo, (…)”, tendo ainda a embargante concordado que “(…) os documentos em apreciação eram do seu perfeito conhecimento, pelo que dispensou a sua leitura e outras formalidades”, tendo a referida sociedade, sido dissolvida, encerrada a liquidação, com o consequente cancelamento da matrícula da sociedade, o que realizou na Conservatória do Registo Comercial .... V) No âmbito do processo crime n.º378/21.2T9CHV que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real - Juízo Local Criminal de Chaves – foi dado como provado, para além do mais, que AA desconhecia a situação patrimonial da sociedade “EMP02..., Unipessoal Lda.” e confiou no que o arguido (CC) lhe comunicou acerca da mesma, nomeadamente que não tinha ativo nem passivo. O arguido sabia que a sociedade “EMP02..., Unipessoal Lda.” devia a quantia de € 7.590,76.”. * Não foram considerados factos como não provados. * IV. Do objecto do recurso. Entende a apelante que, tendo o incumprimento do contrato de fornecimento de mercadorias garantido pela letra de câmbio, ocorrido no período compreendido de 21.05.2019 a 28.06.2019, ou seja, depois da morte do avalista (25.03.2018), sem que haja prova ou sinal de qualquer saldo à data da morte do deste, a embargante, herdeira do avalista, não poderá ser responsável pela dívida de capital constituída depois disso e, por isso, muito menos o será da dívida de juros. Para tal equipara a situação dos autos, à situação de prestação de fiança a dívidas futuras. O aval é o negócio jurídico-cambiário através do qual uma pessoa (avalista) garante o pagamento de uma letra ou de uma livrança por parte de um dos seus subscritores (avalizado). O aval representa assim uma obrigação cambiária que tem por finalidade garantir ou caucionar obrigação cambiária idêntica e preexistente de um signatário do título cambiário. Apesar de economicamente visar um fim semelhante à fiança, o aval representa uma obrigação pessoal de garantia dotada de um regime jurídico próprio. Duas das diferenças essenciais são: i) contrariamente ao que se passa com a fiança, que é uma garantia de natureza acessória (art. 627.º, n.º 2, do Cód. Civil), a obrigação do avalista é autónoma, subsistindo mesmo no caso de a obrigação do avalizado ser nula por qualquer razão que não um vício de forma (art. 32.º, n.º 2, da Lei Uniforme das Letras e Livranças, doravante LULL); ii) enquanto a fiança tem natureza subsidiária (benefício da prévia excussão do fiador: art. 638.º do CC), a obrigação do avalista é solidária, respondendo a par dos demais subscritores pelo pagamento integral do título (art. 47.º, n.º 1, da LULL). No caso dos autos, estamos perante um aval colocado, antecipadamente, numa letra em branco, tendo sido celebrado concomitantemente um pacto de preenchimento futuro da mesma. A LULL admite a letra/livrança em branco, definindo-se esta como um título que se destina a ser preenchido de harmonia com o pacto ou contrato de preenchimento convencionado, cfr. art.ºs 10.º e 75.º da LULL. O pacto de preenchimento constitui um acordo que pode ser expresso, quando as partes estipularem certos termos concretos, ou tácito, por estar implícito nas cláusulas do negócio determinante da emissão do título, o qual deverá depois ser preenchido em conformidade com esses termos ou cláusulas, sob pena de preenchimento abusivo. Assim, o pacto de preenchimento pode definir-se como o ato pelo qual as partes no negócio cambiário ajustam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, nomeadamente no que concerne ao montante, à data do seu vencimento ou ao lugar de pagamento. O pacto ou acordo de preenchimento consubstancia a figura do mandato (cfr. art.º 1157.º do Cód. Civil). E, nos termos dispostos pelo art. 1174.º n.º1 al. a) conjugado com o disposto no art.º 1175.º, ambos do Cód. Civil, decorre que a morte do mandante não determina a caducidade do mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário. No caso dos autos, o acordo de preenchimento da letra foi celebrado e a autorização do preenchimento da mesma foi dada pelos subscritores e pelo avalista, não só no seu interesse, como também no interesse da própria exequente. Donde, o óbito do avalista não determinou a caducidade do pacto de preenchimento da letra em branco que havia avalisado e entregue à exequente juntamente com aquele pacto. Tendo sido o aval aposto numa letra em branco, coloca-se a questão de saber em que momento nasceu a obrigação cambiária do avalista relativamente ao portador da letra, se na data da aposição do aval (tese da emissão) ou na data do preenchimento (tese do preenchimento). Como se afirma no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 22.05.2025, proc. 916/19.0T8BGC.G1, in dgsi, que passaremos a seguir de perto, em síntese e para a primeira, o avalista fica obrigado com a aposição do aval, ou seja, com a aposição da assinatura nessa qualidade, porque com ela manifesta a vontade de se obrigar cambiariamente, sendo o preenchimento mera condição de exigibilidade (neste sentido Abel Delgado in Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, 6ª Edição, pág. 76, que em seu abono citava Vaz Serra, BMJ, 61, pág. 264). Para a segunda a vinculação cambiária só surge como tal depois de preenchida a letra ou livrança (neste sentido Ac. do STJ de 12.07.2005, proc. 05B2344, in www.dgsi.pt). Sendo que a posição dominante no STJ vai no sentido da tese da emissão (cfr. entre outros, Ac. de 27.09.2016, proc. 701/07.2TBMCN.P1.S1, Ac. de 13/09/2018, processo 3622/15.1T8STS.P1.S2; Ac. de 11.07.2019, processo 10336/16.T8VNG.P1.S1; e Ac. de 17.02.2022, processo 10511/19.9T8LSB.L1.S1, todos in www.dgsi.pt). E a posição dominante na doutrina tem vindo a dar enfase à tese do preenchimento (cfr. Cassiano Santos in Livrança em branco, pacto de preenchimento e aval, in Revista de Direito Comercial, liber amicorum, consultável in https://www.revistadedireitocomercial.com/livranca-em-branco-pacto-de-preenchimento-e-aval; Evaristo Mendes in Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio, RDS VII (2015), 3/4, e Carolina Cunha in Manual das Letras e Livranças, 2ª edição, Almedina). No AUJ n.º 1/2025, publicado no DR de 08.01.2025, que não tinha por objeto a questão destes autos, mas a questão da denúncia da vinculação para aval do avalista que deixou de ser sócio da sociedade subscritora da livrança, resulta da fundamentação a adoção da tese do preenchimento, afirmando-se aí que: “Mas, como é evidente, subscrever uma letra ou livrança em branco e entregá-la assim subscrita a alguém, não constituirá um ato desprovido de efeitos e vínculos jurídicos: o subscritor em branco fica sujeito/exposto à produção de uma consequência – a constituição da obrigação cambiária – na sua esfera jurídica por mero efeito do preenchimento do título assinado em branco, ou seja, com a entrega duma livrança em branco ao credor, os que a subscreveram ficam sujeitos a que o credor preencha o documento, passando a produzir efeitos como título de crédito, ganhando, então, as vinculações – do emitente e do avalista – a natureza de vinculações cambiárias, mas, é o que importa acentuar, antes de tal preenchimento, as situações jurídicas decorrentes da subscrição em branco não são ainda cambiárias …”. (…) Em síntese, antes de preenchida a letra/livrança, o “aval” (o “saque”, o “aceite”, o “endosso”, a “emissão da livrança”) não existe enquanto negócio jurídico cambiário, existindo “apenas” a vinculação cambiária em estado embrionário (através da assinatura aposta na letra/livrança) e a vinculação jurídica constante do essencial acordo/pacto de preenchimento a que alude o art. 10.º da LU e o inerente poder fáctico de o portador da letra/livrança a poder vir a preencher.”. Assim, como se afirma no já acima referido Ac. desta Relação de Guimarães de 22.05.2025, neste quadro, um “aval” aposto numa letra em branco não é ainda um verdadeiro aval, não traduz ainda uma obrigação cambiária, estando dependente para tal do preenchimento da letra, a qual, por sua vez, está dependente do facto que o possibilita, máxime o incumprimento das obrigações garantidas. Nesta medida, o nascimento dos direitos e obrigações cambiárias, máxime, do portador relativamente ao avalista, está dependente de um evento futuro e incerto – o incumprimento das obrigações que a emissão do instrumento de letra em branco teve em vista garantir –, o que nos remete para a condição suspensiva tal como prevista no art.º 270º do Cód. Civil. Nos termos do disposto no art.º 276ºdo Cód. Civil “os efeitos do preenchimento da condição retrotraem-se à data da conclusão do negócio, a não ser que, pela vontade das partes ou pela natureza do acto, hajam de ser reportados a outro momento. (no sentido da aplicabilidade deste normativo à questão em referência o Ac. da RC de 04.04.2017, proc. 89/08.4TBVLF.F.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc e o Ac. desta RG de 18.12.2024, proc. 901/24.0T8GMR-B.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg). Assim, no caso dos autos, e utilizando as palavras do AUJ supra referido, a “vinculação para aval”, produzirá os efeitos com o preenchimento. Mas aplicando o disposto no art.º 276º do Cód. Civil, tal produção de efeitos retroagirá à data da aposição do aval se as partes – portador e avalista - não tiverem manifestado a vontade de reportar os efeitos a outro momento ou a natureza do ato determinar que sejam reportados a outro momento. A natureza do ato em causa não determina que se reporte a produção dos efeitos cambiários a uma qualquer outra data, pois que, como refere Carolina Cunha, ob. cit. pág. 280 : “a subscrição de um titulo incompleto e a sua entrega a outrem “faz imediatamente nascer certos efeitos de direito, importa um verdadeiro acto jurídico entre o signatário e o possuidor do título: aquele fica adstrito a assumir a obrigação cambiária nos termos previamente ajustados entre os dois, termos em harmonia com os quais o título deverá ser preenchido. (…) a entrega do título em branco representa para o credor uma garantia (lato sensu): o devedor inadimplente fica num estado análogo ao da sujeição, ou seja, inevitavelmente exposto à produção de uma consequência na sua esfera jurídica por mero efeito do preenchimento (conforme) do título. Essa consequência não é outra, claro está que a constituição da obrigação cambiária.” Por outro lado, não se encontra na factualidade provada qualquer elemento que possa ser considerado como manifestação das partes no sentido de reportar os efeitos do preenchimento a outra data que não seja a da subscrição. O que resulta da mesma é que, o falecido avalista prestou o referido aval para garantia do integral cumprimento de todas as obrigações e responsabilidades pela falta de pagamento dos fornecimentos de pneus e outros produtos efetuados pela embargada, a sociedade EMP02..., Lda, sendo que tal obrigação se constituiu a 12.05.2015. Ora, considerando o preceituado no art.º 2024º do Cód. Civil, o facto de o vencimento da letra ter ocorrido posteriormente à morte do respetivo avalista, de quem a embargante é herdeira, não desresponsabiliza esta da obrigação cambiária por aquele validamente contraída, pois que tal obrigação integrava, já à data da respetiva morte, a globalidade das relações jurídicas patrimoniais de que o mesmo avalista era, então, titular. Mas não sendo a embargante/apelante a devedora, não pode ela ser responsável como tal, mas apenas em substituição do devedor, seu irmão, pelo que apenas responde com o património que recebeu da herança do seu irmão e não com quaisquer bens próprios de que a mesma seja, eventualmente, titular, o que deverá ser tido em consideração nos autos principais de execução. Improcede, pois, a apelação. * VI. Decisão.Perante o exposto, acordam as Juízes desta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação interposta, confirmando a decisão recorrida. Custas da apelação pela apelante. * Guimarães, 4 de dezembro de 2025 Assinado electronicamente por: Fernanda Proença Fernandes Paula Ribas Conceição Sampaio |