Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
789/23.9T8GMR.G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: CONTRATO PROMESSA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
OBRIGAÇÃO AUTÓNOMA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- O contrato promessa considera-se cumprido quando celebrado o contrato prometido.
- No entanto, o nele estipulado pode ser utilizado para apurar a vontade das partes nos termos dos artigos 236.º e seguintes do Código Civil e/ou pode relevar em termos de questionar se ocorreram frustrações de expectativas pela confiança na situação que foi criada, ou quebra de boa-fé eventualmente inserível na responsabilidade pré-contratual
- Por outro lado, no contrato promessa podem ser estipuladas obrigações autónomas ou “desvinculadas” da obrigação da contraparte, como sucede com as prestações que se traduzem em efeitos antecipados do contrato prometido.
- Estas obrigações que poderão ser invocadas pelos outorgantes mesmo após a realização do contrato definitivo, mesmo que não incluídas neste.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório:

EMP01..., Automóveis, Lda., intentou a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra EMP02..., SA, através da qual pretende a condenação da Ré a:
Proceder à entrega dos materiais em falta, nomeadamente o ferro de suporte à estrutura metálica;
Subsidiariamente, caso a Ré não proceda à entrega dos materiais em falta, reduzir o preço, pagando a Autora o valor dos € 49 563,50.
Subsidiariamente, pretende que seja declarada a nulidade (sic.) “do contrato de compra e venda do imóvel, melhor identificado no art. 1.º da petição inicial., nos termos do art. 289/1 do Código Civil por não cumprimento do contrato, entregando as partes o que obtiveram, sendo que a Ré deve entregar o valor de € 160 00,00, acrescido do valor das benfeitorias realizadas no prédio urbano nomeadamente terraplanagem que para já ascendem ao valor de € 38 89,65, num total de € 198 689,65, acrescido do que for liquidado em sentença final das restantes benfeitorias entretanto realizadas.”
Alegou, em síntese, que por escritura pública de 30 de abril de 2020, comprou à Ré, pelo preço de € 160 000,00, o prédio urbano destinada a habitação, composto por casa de r/c, andar e logradouro, com uma área total de dois mil duzentos e cinquenta metros quadrados, sito na Avenida ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...41 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ....
Esse contrato foi precedido de um contrato-promessa no qual as partes consignaram que era parte integrante do prédio vendido a estrutura metálica destinada à construção de um pavilhão, composta por pilares e vigas em aço metalizado, conforme as quantidades e especificações melhores identificadas em documento anexo (anexo III). Consignaram ainda que estava a decorrer um processo de licenciamento da referida construção, sendo da responsabilidade da Ré a aprovação do projeto de arquitetura, que também ficou a constar de documento anexo (anexo II).
Acontece que a Ré, apesar de interpelada, não entregou à Autora uma versão AutoCAD do projeto de arquitetura, a qual é necessária para que esta solicite orçamentos para a conclusão do pavilhão.
Acresce que a estrutura metálica existente, sendo embora composta pelo material elencado no anexo III, é insuficiente para a construção do pavilhão, tal como projetada. Mais concretamente, no referido anexo III apenas é feita referência a 20 Pilares IPE270, quando na realidade o projeto de estabilidade submetido à Camara Municipal apresenta 36 pilares; já no que concerne às Vigas no mesmo anexo III constam apenas 20 de IPN 240, sendo que o Projeto de estabilidade apresenta diversas secções como IPE180, IPE220, IPE270, IPE300 e IPE360. Está assim em falta o restante material necessário para a estrutura metálica de acordo com o projeto, como os perfis tubulares, as madres superomega e as platibandas, no valor de € 49 563,50.
Na sequência, disse que a Ré incumpriu o contrato, posto que a coisa entregue não possui as qualidades asseguradas aquando da celebração do contrato.
Citada, a Ré contestou dizendo que aquilo que se obrigou a vender foi o prédio tal como existia, com o material destinado à estrutura, ainda incompleta, do pavilhão, tal como descrito no referido anexo III, e, bem assim, o projeto de arquitetura, que não foi elaborado em AutoCAD. Cumpriu essas obrigações, pelo que a ação deve improceder.
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Foi proferido saneador-sentença que julgou a ação improcedente.
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Inconformada veio a Autora recorrer formulando as seguintes Conclusões:

1. O presente recurso estriba-se antes de mais na impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 640.º do Código de Processo Civil.
2. Deu a matéria de facto peticionada como não provada, sem qualquer realização de audiência e julgamento e sem considerar o conteúdo da prova documental junta.
3. Salvo o devido respeito por opinião diversa, entende a Autora que devem constar do elenco da factualidade dada como provada, os factos constantes dos artigos 17.º, 20º, 22.º, ....º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º e 30.º da Petição Inicial.
4. Quis a Autora aqui demonstrar que a construção foi alvo de um relatório técnico, após a escritura de compra e venda, pois só aqui a Autora se apercebeu que o material constante do ANEXO III ao contrato-promessa era manifestamente insuficiente e algum nem existe, para a execução do projeto edificado.
5. Relatório (documento ... petição inicial) esse que que não foi considerado pelo tribunal e que não foi objeto de impugnação por parte da Ré.
6. A matéria de facto da Petição Inicial não sendo dada como provada, foi incorretamente julgada, uma vez que os factos elencados impunha que fossem tais factos julgados procedentes.
7. Neste contexto a Autora percebeu que foi aliciada na realização do contrato promessa com uma estrutura que não poderia ser edificada conforme pretendia e conforme foi abordado, mas não redigido, pois o material constante do anexo III que foi junto pela Ré ao contrato promessa não é nem foi compatível com a vontade de celebração do contrato por parte da Autora.
8. Realidade esta que é percetível no referido contrato-promessa junto como documento ... na petição inicial, nomeadamente na sua clausula primeira e ponto 2 e ainda conforme ponto 3 da clausula primeira do referido contrato promessa de compra e venda.
9. O que de certa forma torna-se incoerente, sabendo a Autora que o projeto de estabilidade do pavilhão apresenta 36 pilares, ao passo que em sede de contrato promessa são apenas contabilizados 20 pilares.
10. Ainda neste sentido é notório que as secções apresentadas em sede de contrato promessa de compra e venda em nada correspondem às secções dimensionadas em projeto para responder aos vãos e solicitações consideradas, concluindo-se assim que o material constante do contrato promessa – anexo III, é manifestamente insuficiente para a execução daquele projeto de estabilidade.
11. Ou seja, no âmbito desta sequência de acontecimentos, a Ré era sabedora de que a relação de material elaborada no anexo III ao contrato-promessa de compra e venda não era adequada à construção do pavilhão licenciado a construir, sabendo que a edificação do pavilhão era essencial á concretização do negócio.
12. Salvo o devido respeito, não poderá a Autora concordar com os articulados 3, 4, 5 e 6 da Sentença.
13. A Autora discorda da interpretação dos factos em causa, isto porque, o pretendido pela Autora no momento de celebração do contrato-promessa era que a estrutura constante no anexo III fosse a estrutura apropriada á edificação pretendida, e não uma estrutura complementada com outros materiais que se diz a Autora agora pretender.
14. O que efetivamente não sucedeu.
15. A Ré sabia que os materiais constantes do anexo III não eram os suficientes para a estrutura pretendida e mesmo assim fez a Autora acreditar que era sustentável a realização do contrato naqueles moldes.
16. Tal como a Autora não só pretende a entrega por parte da Ré dos materiais destinados à conclusão da estrutura do pavilhão, bem como os materiais certos para a estrutura metálica dimensionada para vencer a estabilidade.
17. O que pretende a Autora é que os materiais que estão contemplados no anexo III ao contrato-promessa sejam considerados manifestamente insuficientes, porque efetivamente o são, o mesmo é avançado pelo relatório técnico junto á petição inicial como documento ....
18. A Autora não pretende a conclusão ou reforço dessa estrutura, mas sim os materiais adequados à concretização dessa estrutura. Até porque foi com a devida estrutura que a Ré submeteu o projeto de licenciamento e não com os materiais descritos no anexo III, o que mais uma vez se reitera, a Autora não pretende a sua execução, mas sim os materiais elementares á sua execução.
19. Aliás, mais se diz que quanto à entrega dos elementos/materiais constantes do anexo III do contrato promessa, os mesmos nunca foram entregues à Autora para os fins a que se destinam, encontrando-se a Ré em incumprimento até ao dia de hoje, tendo efetivamente recebido carta de interpelação nesse sentido
20. De evidenciar ainda que, os 20 Pilares IPN270 com 7,00 m de comprimento elencados no anexo III não existem.
21. Os materiais elencados pela Ré à Autora não só constam como inexistentes, como são insuficientes.
22. Tendo a Ré garantido que aquele era o ferro para toda a estrutura do pavilhão, ou seja, a Autora foi erradamente convencida com estruturas inexistentes e com material insuficiente para a realização do contrato-promessa.
23. Ainda assim os perfis que se elencam são completamente inadequados à estrutura a executar, ou seja, a Ré prejudicou manifestamente a Autora.
24. No que concerne a esta matéria de facto, a Autora foi gravemente prejudicada em sede de produção de prova, pois a ação foi julgada improcedente.
25. Não tendo a Autora a oportunidade de evidenciar o relevo factual que serve de causa de pedir.
26. Pois bem, salvo o devido respeito, o aresto recorrido não fez uma aplicação correta do direito ao caso concreto.
27. Ora, com o devido respeito, os articulados 27.º e 30.º da Petição Inicial são precisamente a reflexão da má interpretação da matéria de facto.
28. Para a celebração do dito negócio, foi essencial, elementar a estrutura metálica para a construção do pavilhão.
29. Ora, aquilo que foi o objeto essencial do negócio padece efetivamente de um vicio que impede a realização do fim a que a coisa é destinada. Vicio esse que desvaloriza consideravelmente o negócio quanto ao elemento essencial para a sua concretização.
30. Pelo que, salvo o devido respeito, não poderá a Autora concordar com as conclusões referentes ao 1.º e 2.º pedido, pois efetivamente o material fornecido pela Ré não é de senso conforme ao idealizado para a concretização do negocio, sabendo a Autora que a Ré era conhecedora á data de celebração do contrato que os materiais constantes do anexo III não seriam de todo suficientes para a edificação da estrutura.
31. O mesmo se enuncia quanto ao 3.º pedido formulado pela Autora e não pode assim concordar com a absolvição da Ré do referido pedido, pois é de senso comum que se Autora soubesse que os materiais referenciados no anexo III não seriam suficientes para a edificação da estrutura não teria celebrado tal negócio.
32. Assim, com o devido respeito não estará a Autora tão equivocada assim, até perante o relacionado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-06-2013.
33. Assim, dos factos enunciados bem como da matéria de facto impugnada que se pretende ver elencada na factualidade dada como provada, conclui-se que o caso dos autos é subsumível no entendimento deste último Acórdão.
34. Se de outra forma se entender, não estará o tribunal vinculado aos pedidos formulados pela Autora neste sentido – Cfr. Artigo 5.º CPC.
35. Convenhamos que, a Autora alegou os factos essenciais que constituem a causa de pedir, no entanto além dos factos articulados pelas partes, devem ainda ser considerados pelo juiz os factos instrumentais, os que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e ainda os factos notórios – Cfr. Artigos 5.º n.º1, n.º2, 412.º e 612.º CPC.
36. Pois bem, de facto é notória a intenção da Ré e o desfasamento entre os elementos que constituem a celebração do contrato promessa e os elementos que constituem a submissão do projeto à Câmara Municipal, com o devido respeito, não pode a Autora concordar com a improcedência da ação e a consequente absolvição da Ré dos pedidos.
37. Isto porque, e de acordo com o artigo 5.º n.º3 do CPC: “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”
38. Como se consegue alcançar andou mal o Tribunal a quo na consideração da matéria de facto que primazia o sustento da causa de pedir da petição inicial.
39. No mesmo sentido vem ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de ...-02-2016.
40. Pelo que, provada que está a manifesta existência de causa de pedir, deveria o Tribunal a quo reconhecer os pedidos formulados pela Autora e se assim não fosse, submeter à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito quanto à matéria de facto produzida na petição inicial.
41. Sendo certo que a dita ação foi julgada improcedente.
42. Ora, sem prescindir, no caso, a celebração do contrato promessa compra e venda concretizou-se, pois, a Autora jamais o celebraria perante as condições em que está no presente momento.
43. Jamais seria objeto de negócio o imóvel sem as condições essenciais à edificação da estrutura.
44. Pois, a Autora sabe hoje pelo projeto submetido á Câmara Municipal que a Ré sabia que os materiais elencados no anexo III ao contrato promessa jamais fariam a concretização da dita estrutura, pois os materiais constantes do projeto em nada se relacionam com o anexo III.
45. Assim, andou mal o Tribunal a quo quando não considerou a matéria de facto relevante para os pedidos formulados, reiterando-se a sua importância e requerendo-se a sua reapreciação.
46. Tendo ficado a Autora manifestamente prejudicada em sede de produção de prova.
47. Face ao exposto, decidiu mal o Tribunal ao julgar improcedente os pedidos formulados pela Autora e absolver a Ré dos mesmos, devendo os mesmos ser considerados procedentes.
48. Assim deve ser considerado o Relatório (documento ... petição inicial) pois não foi impugnado pela Ré.
49. E em consequência, ser alterada a matéria de facto dado como provada, nomeadamente os artigos 17.º, 20º, 22.º, ....º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º e 30.º da petição inicial e deve ser julgada a ação procedente e consequentemente condenando a Ré nos pedidos deduzidos pela Autora.
50. Salvo o devido respeito, e caso assim não se entenda, que se ordene a realização da audiência de discussão e julgamento.

Pelo exposto, deverão V. Exas., Senhores Juízes Desembargadores, conceder provimento ao presente recurso, e, consequentemente, alterar a decisão sobre a matéria de facto nos termos supra alegados, bem como revogar a Douta Sentença proferida pelo Tribunal da Primeira Instância, substituindo-a por outra que julgue a Ação procedente e consequentemente condenando a Ré nos pedidos deduzidos pela Autora.
Caso assim não se entenda, que se ordene a realização da audiência de discussão e julgamento.
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A Ré apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:

I. Não foi cumprido o disposto no art.º 640.º do C.P.Civ., pelo que deve ser indeferida a alteração da matéria de facto.
II. A Ré impugnou (e impugna) expressa e especificadamente os itens que a Recorrente pretende ver provados,
III. Igual modo, foi impugnada a prova documental para além daquela em que o tribunal acertou a sua convicção.
IV. pelo que, sem a produção adicional de prova, os mesmos não podem ser alterados para provados.
V. Por fim, convicções e lamentos da Recorrente não são factos cujo conhecimento interesse ao tribunal, antes, como bem se alicerçou a sentença proferida, importam os factos essenciais e o direito.
VI. O negócio gizado entre as partes é o que consta dos documentos, sendo pura fantasia o agira alegado pela Recorrente.
VII. Nunca por nunca a Recorrida declarou vender mais vigas/pilares que as constantes no anexo III,
VIII. Nunca por nunca a Recorrente declarou comprar mais vigas/pilares que as constantes no anexo
IX. Nunca por nunca a Recorrida declarou vender um pavilhão ou uma estrutura completa ou aprovada, antes declarou vender o que estava no local e ficou evidenciado no anexo III ao contrato promessa.
X. A douta sentença proferia pelo Tribunal a quo fez uma profunda análise dos normativos aplicáveis, doutrina e jurisprudência e outra a respeito do direito em causa, aos quais se adere.
XI. O tribunal não está obrigado ao direito alegado pelas partes, mas o certo é que não se percebe qual o direito que a recorrente pretende ver aplicado considerando os parcos factos alegados.
XII. O Tribunal está limitado aos factos constantes da petição inicial, não podendo debruçar-se sore os factos novos alegados nas Alegações.

TERMOS EM QUE, negando integral provimento à Apelação da recorrente, confirmando a douta decisão recorrida, farão V.ªs Ex.ªs, a tão acostumada,
JUSTIÇA!!
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Questões a decidir:

- Verificar se é admissível a impugnação da matéria de facto efetuada no recurso;
- Caso seja admissível e se justifique, proceder à sua análise;
- Verificar se o direito foi bem aplicado aos factos provados.
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Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

A matéria considerada provada na 1ª instância é a seguinte:
   
a) Por escrito de 17 de maio de 2019, denominado “Contrato-promessa de compra e venda”, Autora (promitente-vendedora) e Ré (promitente-compradora), declararam:
“Considerando que: A) A promitente-vendedora é dona e legítima possuidora de um prédio urbano, com a área total de 2 250 m2, sito na Av. ..., freguesia ..., concelho ..., cuja titularidade de propriedade é comprovada pela descrição do imóvel da CRP ... sobre o n.º ... e inscrição na matriz predial urbana sob o art. matricial n.º ... (…) para o qual está a decorrer um Processo de Licenciamento na Câmara Municipal ... sob a designação DEST-.../2018, para a construção de um pavilhão com uma área de implantação de, aproximadamente, 818 m2, cujo projeto de arquitetura se anexa ao presente contrato fazendo parte integrante do mesmo como anexo II; B) Existe interesse da promitente-compradora em adquirir o prédio urbano (…), doravante designado apenas por imóvel, estando a promitente-vendedora interessada em vender o mesmo à promitente-compradora, (…) pretendem acordar, desde já, os termos e as condições em que tal transação se realizará.
Entre as outorgantes é realizado, mutuamente acordado e aceite o presente contrato-promessa de compra e venda (…), nos termos e condições constantes das cláusulas seguintes, a cujo cumprimento reciprocamente se obrigam:
1.ª Objeto da promessa: 1. Pelo presente contrato, a promitente-vendedora promete vender à promitente-compradora, que promete comprar-lhe, o imóvel (…) / 2. Faz parte integrante do imóvel (…) a estrutura metálica para a construção do pavilhão aí a ser implementado, composta por pilares e vigas em aço metalizado conforme as quantidades e especificações melhor identificadas no documento anexo ao presento contrato e que do mesmo faz parte integrante como anexo III. / 3. Encontra-se a decorrer para o imóvel um processo de licenciamento na Câmara Municipal ... sob a designação DEST-.../2018, relativo à construção de um pavilhão com uma área de implantação de, aproximadamente, 818 m2 estando o projeto de arquitetura em fase de aprovação, sendo da responsabilidade da promitente-vendedora a aprovação desse mesmo projeto de arquitetura.
(…)
3.ª Preço: 1. O imóvel (…) será vendido pelo preço global de € 160 000,00 (…)”, cf. documento ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
b) O anexo III ao referido escrito é do seguinte teor: “Relação de material que compõe a estrutura principal do pavilhão: Viga IPN 240: 16 vigas IPN 240 com 7,50 m de comprimento; 4 vigas IPN 240 com 13 m de comprimento; Pilares PIN 270: 20 pilares IPN 270 com 7 me de comprimento”, cf. documento ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
c) Por escritura pública lavrada a 20.04.2020, no Cartório da Notária AA, Autora e Ré declararam vender e comprar, respetivamente, pelo preço de € 160 000,00, o identificado prédio, cf. documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
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Modificabilidade da decisão de facto:

A Recorrente pretende que à matéria de facto considerada provada, sejam aditados os artigos 17º, 20º, 22, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º e 30º da petição inicial, com base no relatório técnico que juntam com a p.i. e que são os seguintes:

17. Deste relatório técnico resulta que a estrutura metálica, parte integrante do contrato-promessa de compra e venda não reúne os pressupostos para a edificação projetada.
20. Desde logo, é possível observar que o material constante do ANEXO III é manifestamente insuficiente para a execução do projeto edificado inicialmente.
22. De realçar o restante material que se vislumbra em falta no referido ANEXO III e consta como necessário para a estrutura metálica dimensionada submetida à Camara Municipal, como por exemplo os perfis tubulares, madres superomega e platibandas.
Assim se conclui que,
23. Os materiais constantes do ANEXO III e que constituem a estrutura metálica para a construção do pavilhão não correspondem aos materiais preconizados em sede de projeto de estabilidade.
24. Os materiais não são em quantidade suficiente para a construção da edificação.
25. E ainda que os materiais constantes do ANEXO III não apresentam características mecânicas por forma a resistir às solicitações atuantes na estrutura do pavilhão que se pretende construir.
26. Facilmente se conclui que a relação de material elaborada no ANEXO III ao contrato-promessa de compra e venda não são adequados á construção do pavilhão licenciado a construir.
27. Face à obrigação de entregar a coisa, de facto foi entregue, não obstante sofrer de vícios que a desvalorizam consideravelmente quanto ao elemento essencial para concretização do respetivo negócio de compra e venda.
30. Pois na realidade foram realizadas várias interpelações à Ré para suprir as limitações existentes decorrentes do não cumprimento de entrega dos materiais necessários para a edificação do pretendido pavilhão a que o contrato de compra e venda se subjaz.

Quanto à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente especificar, obrigatoriamente e sob pena de rejeição, o seguinte (v. artigo 640º n.º 1 do CPC):

“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
         
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a distinguir, quanto aos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, entre:

- Ónus primário ou fundamental, que se reportam ao mérito da pretensão;
- Ónus secundários, que respeitam a requisitos formais.

Relativamente aos requisitos primários, onde inclui a obrigação do recorrente de formular conclusões e nestas especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados e falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, requisitos estes sobre que versa o n.° 1 do art.° 640°, do CPC, a jurisprudência tem considerado que aquele critério é de aplicar de forma rigorosa, pelo que sempre que se verifique o incumprimento de algum desses ónus por parte do recorrente se impõe rejeitar o recurso". (v. por todos Ac. STJ de 25/03/21 in www.dgsi.pt ).

Cumpre, a Recorrente, ainda que imperfeitamente os ónus previstos no art. 640º do C. P. Civil, pois, embora indique como meio de prova dos factos que pretende provados, o relatório que junta, o que é certo é que não motiva tal conclusão, explicando de que forma o teor de tal relatório serviria para provar cada um dos pontos de facto referidos no recurso.

No entanto, a matéria em causa não tem relevância na decisão jurídica a proferir, pelo que, será inútil a apreciação do recurso de impugnação da matéria de facto, tal como infra se verá.
                       
Tal como se refere no Ac. da Relação de Coimbra de 24/04/2012 e ainda nos Acs. desta Relação de 15/12/16 e 2/11/17 (ambos in www.dgsi.pt ) “se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente. Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.”
Assim, por falta de utilidade, não será de conhecer do recurso de impugnação da matéria de facto.
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O Direito:
           
Não foi posta em causa e encontra-se correta a qualificação do contrato (como de compra a venda) e regime aplicável ao respetivo incumprimento ou cumprimento defeituoso (regime jurídico da compra e venda defeituosa), efetuada na sentença recorrida que, por esse motivo, se têm aqui por reproduzidos.

Analisemos, então as pretensões da A.
A título principal, a A., alegando que os materiais constantes do anexo III ao contrato promessa, que constituem a estrutura metálica existente no terreno que adquiriram à Ré não são suficientes para a construção do pavilhão que pretende construir, pede que a Ré lhe entregue o material em falta, nomeadamente o ferro de suporte à estrutura metálica.
Ora, de acordo com o disposto no art. 406º do C. Civil, o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos por lei.
Por sua vez, preceitua o art. 762º do mesmo Código, que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.
Está assim, o vendedor obrigado a entregar ao comprador uma coisa isenta de vícios que a desvalorizem ou impeçam o fim a que é destinada e com as características e qualidades acordadas. É o que resulta do disposto no art. 913º do C. Civil.
Nos termos do nº 2 do preceito, na dúvida quanto ao fim a que a coisa se destina, deve recorrer-se ao critério da normalidade: o fim da coisa é o fim a que normalmente são destinadas as coisas da mesma categoria. Tal como deve considerar-se que as qualidades asseguradas pelo vendedor são apenas aquelas cuja existência ele garantiu, por cuja existência ele se responsabilizou perante o comprador independentemente das qualidades que sejam ou possam ser usuais ou normalmente supostas (v Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil anotado, vol. II, edição revista e atualizada., pág. 214).
Uma vez que a existência do defeito é um facto constitutivo dos direitos atribuídos ao comprador, nos termos do nº 1 desse normativo, cabe a este a respetiva prova.
No caso, do contrato de compra e venda celebrado entre as partes, decorreu para a Ré a obrigação de entregar à A. o prédio aí descrito, o que esta efetivamente fez.
Com efeito, o que foi transmitido através da escritura pública identificada nos factos provados foi o imóvel designado por prédio urbano destinado a habitação, composto por casa de rés-do-chão, andar e logradouro, com uma área total de dois mil duzentos e cinquenta metros quadrados, sito na Avenida ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...41 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... e esse imóvel foi entregue à A..
No entanto, no contrato promessa de compra e venda desse imóvel, ficou estabelecido que faz parte do mesmo a estrutura metálica para a construção de um Pavilhão aí a ser implementado, composta por pilares e vigas em aço metalizado, conforme as quantidades e especificações melhores identificadas no documento anexo ao presente contrato e que do mesmo faz parte integrante como ANEXO III.
Consta ainda desse contrato promessa que para o referido imóvel objeto do negócio se encontrava a decorrer um processo de licenciamento da Câmara Municipal ... sob a designação DEST-.../2018, relativo à construção de um Pavilhão com uma área de implantação de aproximadamente 818,00 m2 (oitocentos e dezoito metros quadrados), estando o Projeto de Arquitetura em fase de aprovação, sendo da responsabilidade da Ré a aprovação desse mesmo Projeto de Arquitetura.
Ora, um contrato-promessa consiste na convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato (art. 410º nº 1 do C. Civil) sendo, pois, um contrato transitório, acessório de outro negócio a celebrar futuramente.
O contrato promessa considera-se cumprido quando celebrado o contrato prometido.
Conforme se diz no Acórdão do STJ de 5/4/17 (in  www.dgsi.pt )” Celebrado o contrato definitivo, mostra-se cumprida a promessa constante do preliminar (pré-contrato; “quase-contrato”).
Este que tem uma vocação transitória, na relação de dependência, ou instrumentalidade, com o contrato prometido “desaparece” do universo jurídico-negocial.
Mas esse desaparecimento (que ocorre por diluição do seu clausulado no contrato prometido) e que resulta da vocação transitória que o enformou, não é completo.
É que, o nele clausulado pode ser utilizado para apurar a vontade das partes (real ou hipotético-conjectural) nos termos dos artigos 236.º e seguintes do Código Civil, pois, quer a vontade real dos outorgantes, quer o sentido da declaração negocial (vontade virtual), pode ser mais facilmente apurada perante o que foi clausulado no contrato-promessa, e não foi expressamente afastado, ou não tem o mínimo de correspondência com o texto final (aproximação do n.º 2 do artigo 238.º CC).
Outrossim, o firmado no contrato-promessa pode relevar em termos de questionar se ocorreram frustrações de expectativas pela confiança na situação que foi criada, ou quebra de boa-fé eventualmente inserível na responsabilidade pré-contratual (cf. v.g. Prof. Mota Pinto. “A responsabilidade pré-negocial pela não conclusão dos contratos”, 1963, BFDC,XIV; Prof. Almeida Costa – Responsabilidade Civil pela Ruptura das Negociações Preparatórias de um Contrato”, 1994, 57).”
No Acórdão do STJ de 13/09/11 explica-se que “a par de obrigações acessórias ou secundárias que intervêm no evoluir do contrato [promessa] e que, como tais, se apresentam como instrumentais do exacto cumprimento da obrigação principal e da satisfação do interesse do credor, nela se projectando, outras há que surgem como autónomas ou “desvinculadas” da obrigação da contraparte, como sucede com as prestações que se traduzem em efeitos antecipados do contrato prometido”
São estas as obrigações que poderão ser invocadas pelos outorgantes mesmo após a realização do contrato definitivo, mesmo que não incluídas neste.
Discute-se, neste caso, nomeadamente, se tal convenção configura um negócio autónomo ou uma mera cláusula adicional da promessa, mas, uma vez que tais questões não fazem parte do objeto deste processo, nem são necessárias à resolução do litígio, não serão aqui analisadas.

No caso, no contrato promessa, os outorgantes referiram que fazia parte do imóvel objeto do contrato uma estrutura metálica para a construção de um pavilhão, composta por vigas e pilares e, no respetivo anexo elencaram os materiais que compunham tal estrutura.
Nada destas obrigações foi referida no contrato definitivo, contudo, ainda que se considere que tais obrigações podem ser invocadas contra o promitente vendedor mesmo após a celebração do contrato prometido, o que ocorre é que tais obrigações foram cumpridas pela Ré.
Com efeito, não tem razão a A. ao exigir da Ré os restantes materiais que entende necessários para construir um pavilhão, pois não foi a isso que a Ré se obrigou.
Na verdade, a Ré obrigou-se unicamente a entregar à A. o prédio com a estrutura aí existente e o projeto de estabilidade, o que, com efeito, aconteceu.
É certo que a A. alega que o projeto apresentado pela Ré prevê mais materiais do que os existentes no local, nomeadamente mais pilares, mas, no contrato promessa, a Ré não se obrigou a construir o pavilhão ou a facultar à A. os materiais necessários a tal construção, obrigando-se apenas a elaborar um projeto de arquitetura relativo à construção desse pavilhão no terreno prometido vender e responsabilizando-se pela aprovação de tal projeto junto da Câmara Municipal competente para o efeito. Tendo cumprido tais obrigações.
Deste modo, mesmo atendendo às obrigações assumidas no contrato promessa, não há qualquer incumprimento por parte da Ré, já que tais obrigações foram integralmente cumpridas.
Os restantes pedidos formulados baseiam-se também no incumprimento do(s) contrato(s) que, como vimos, não ocorreu. Assim, pelo que, estes pedidos têm também de improceder, tal como se decidiu na decisão recorrida.
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Quanto à questão de eventual erro na formação da vontade, que a Recorrente parece aflorar no recurso, a mesma, assim como os factos que a deveriam sustentar, nunca foram invocados na primeira instância.
Ora, visando os recursos ordinários o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu e sendo eles meios de impugnação e de correção de decisões judiciais e não meios para obter decisões novas, não pode o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas ao tribunal recorrido (v. por todos Ac. R. L. de 23/5/12 in www.dgsi.pt ).

Conforme diz Abrantes Geraldes (in Os Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., pág. 98), “As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais graus de jurisdição.”
Por outro lado, o tribunal não pode conhecer oficiosamente do erro-vício   porque não está em causa matéria excluída da disponibilidade das partes tendo, pois, de ser invocada pela parte a quem aproveita, nos termos do disposto nos arts. 333º e 303º do C. Civil.
Ora, no caso, tal como acima se disse, nunca foram alegados os factos integrantes da causa de pedir com base em tal instituto, pelo que, tal matéria não pode ser apreciada neste recurso.
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Improcede, assim, totalmente o recurso.
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DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.
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Guimarães, 2 de novembro de 2023

Alexandra Rolim Mendes
Carla Maria Oliveira
Eva Almeida