Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
255/ 17.1T8CHV-A.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: OBRIGAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE FACTO NEGATIVO
INCUMPRIMENTO
EXECUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/14/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
A execução na sequência da violação de uma obrigação de prestação de facto negativo pode dar lugar à prática de factos positivos para remoção do obstáculo ao exercício do seu direito e para a reparação do dano, verificado que seja o incumprimento pelo executado, devendo ler-se de forma ampla a referência à “demolição” contida nos artigos 876º nº 1 do Código de Processo Civil e 829º nº 1 do Código Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

Os presentes embargos de executado são deduzidos por apenso à execução “com diversas finalidades” (como consta do requerimento executivo), na qual se peticionou:

-- que seja ordenado a prática dos atos necessários para repor a situação anterior à supra descrita violação, nomeadamente arrasar ou demolir a vala, poça e manilhas, bem como o pagamento de quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória a fixar em montante não inferior a € 50,00 por dia (precedida de realização de perícia).
-- o pagamento da quantia de € 10.500,00, acrescido dos juros moratórios que se venham a vencer desde a data da citação até integral pagamento.

Os embargantes de executado requereram que fosse julgada procedente a oposição à execução, alegando, em síntese, que desde a prolação da sentença dada à execução não praticaram quaisquer atos que pusessem em causa os direitos dos Exequentes reconhecidos naquela sentença, chamando a atenção para o facto dos exequentes, na fase declarativa do processo, não terem peticionado a demolição das referidas obras ou a reposição da situação anterior à realização de tais obras.
Os embargados contestaram, afirmando, também em súmula, que os executados foram condenados a abster-se de praticar quaisquer atos que prejudiquem o direito a explorar águas subterrâneas pelos exequentes/oponidos no prédio "X”, mas continuam a manter aberta uma vala que ali haviam construído e a usar o poço inscrito no limite do prédio, pelo que continuam a prejudicar a eficácia da exploração das águas subterrâneas no prédio denominado “ X.
Notificadas as partes da possibilidade de o Tribunal conhecer de imediato do mérito dos presentes embargos, ninguém se pronunciou.

Foi proferida decisão com a seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, julgo os presentes embargos parcialmente procedentes, por provados, e, em consequência:

a) Determino o prosseguimento da execução para prestação de facto, com a realização da perícia com vista a determinar os atos necessários a repor o direito dos exequentes sobre as águas em causa e a determinar o seu custo;
b) Rejeito a execução quanto ao pagamento da quantia peticionada, por inexequibilidade do título dado à execução.”

O presente recurso de apelação foi interposto pelos Executados e Embargantes, pugnando pela revogação da sentença e sua substituição por outra que conclua pela total procedência dos embargos.

Os embargantes de executado apresentam, seu recurso de apelação, as seguintes conclusões:

A – Na ação declarativa de que os presentes autos são dependência, os autores haviam pedido a condenação dos réus:

A reconhecer aos Autores o direito de propriedade:

a) Do prédio rústico composto de terra de cultura (feno e pastagem), situado no lugar das …, a confrontar de Norte com António com A. D. Sul Limite da freguesia e Poente com o caminho, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Pena sob o art.º …
b) Das águas do prédio "Lameira de fora" ou "Três Caminhos" inscrito na matriz predial rústica da referida freguesia sob o artigo ....
A Abster-se de praticar quaisquer atos que diminuam a posse e gozo dos direitos supra invocados, nomeadamente, absterem-se de através de vala e manilhas, ou por outra forma, captar as águas do prédio identificado no artigo 4º desta pi.
A indemnizar os prejuízos, causados ou que venham a causar os quais serão avaliados em execução de sentença.
Custas e procuradoria

B – Na sentença dada à execução foi decidido o seguinte:

a) Declara-se que os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio rústico composto de terra de cultura (feno e pastagem), situado no lugar …, a confrontar de Norte com António, de Nascente com A. D., do Sul com Limite da Freguesia e Poente com o caminho, inscrito na matriz predial rústica da freguesia da Pena sob o art. …, condenando-se os RR a reconhecer tal direito e a absterem-se de praticar quaisquer actos que diminuam o gozo do mesmo.
b) Condena-se os RR a abster-se de praticar quaisquer actos que prejudiquem o direito a explorar águas subterrâneas no prédio denominado “X”, pelos AA.
c) Condena-se os RR a indemnizar os AA dos prejuízos causados a liquidar em incidente de liquidação. Custas a cargo de Autores e Réus na proporção de 1/3 para os Autores e 2/3 para os Réus.”;
C – Ao contrário do que deixa antever a instauração da presente execução, os Executados desde a prolação da sentença dada à execução não praticaram quaisquer atos ou realizaram quaisquer obras que pusessem em causa os direitos dos Exequentes reconhecidos naquela sentença;
D – Os Exequentes, na fase declarativa do processo, não peticionaram a demolição das referidas obras ou a reposição da situação anterior à realização de tais obras.
E- Nem, como é óbvio, o Tribunal condenou os Executados nesse desiderato.
F- A condenação dos RR circunscreve-se a indemnizar os AA dos prejuízos causados pelas obras realizadas em 2010 e a abster-se, de futuro, da prática de quaisquer atos que prejudiquem o direito de explorar águas subterrâneas no prédio denominado “X”, pelos AA, o que tem sucedido. «Sendo certo também que apesar de terem esse direito, os AA nunca exploraram as águas subterrâneas existentes no prédio dos RR»
G- É o que se extrai também, da repartição das custas na proporção do decaimento, fixado em 1/3 para os Autores e 2/3 para os Réus.
H- Decaíram os AA no reconhecimento destes “como donos e legítimos proprietários das águas existentes no prédio “Lameira de Fora”, inscrito na matriz predial rústica da supra referida freguesia sob o art....”; E
I- Na condenação dos RR “(…) a absterem-se de, através de vala e manilhas, ou por outra forma, captar as águas do prédio identificado no art.4º desta p.i.”.
J- Resumindo e para concluir, os RR, ora Executados, foram condenados a indemnizar os AA dos prejuízos causados pela diminuição de caudal com a exploração das águas subterrâneas qualquer aqueles efetuaram no seu prédio.
L- A remoção da vala e do poço pretendida pelos Exequentes levaria a um efeito perverso e contrário à lei, constituindo mesmo abuso de direito, que seria o de ser bem mais oneroso do que o exercício efetivo, reconhecido na sentença exequenda aos Exequentes, do direito a explorar águas subterrâneas no prédio dos Executados, nomeadamente, através da abertura de um furo artesiano para captação de água, cujo custo, eventualmente poderia ser imputado aos Executados em sede do tal incidente de liquidação previsto no dispositivo da sentença exequenda.
M- Isto posto, não faz qualquer sentido o prosseguimento da execução para prestação de facto, com a realização de perícia com vista a determinar os atos necessários a repor o direito dos exequentes sobre as águas em causa e a determinar o seu custo,
N- Porquanto, a sentença exequenda não condena os RR na demolição dessas obras ou reposição da situação existente em momento anterior ao da sua execução.
O-Nem podia, porque tal não foi peticionado pelos AA ação declarativa intentada contra os RR.
P- A condenação que impende sobre os ora recorrentes é a prestação de um facto negativo, de non facere.
Q- Após a prolação daquela sentença os RR. ficaram obrigados a abster-se de praticar quaisquer atos que prejudiquem o direito a explorar águas subterrâneas no prédio denominado “X”, pelos AA., o que tem sucedido como ficou demonstrado.
R- Sendo certo que é lícito ao proprietário procurar águas subterrâneas no seu prédio, por meio de poços ordinários ou artesianos, minas ou quaisquer escavações, contanto que não prejudique direitos que terceiro haja adquirido por título justo – cfr. Art.1394º, nº 1 do Código Civil.
S- A simples atribuição a terceiro do direito de explorar águas subterrâneas não importa, para o proprietário, privação do mesmo direito, se tal abdicação não resultar claramente do título (nº2 do art.1395º do Código Civil).
T- Por tal razão decidiu a Meritíssima Juiz no processo declarativo de que este é dependência não ordenar a remoção do poço e vala construídos pelos RR no seu prédio, contrariando neste ponto, a pretensão dos AA, tendo estes apenas direito a ser indemnizados pelos prejuízos causados pela diminuição do caudal de água em virtudes das obras lícitas levadas a cabo pelos RR.
U- Pelo que, ao assim não decidir, violou a Sentença recorrida, para além de outros normativos legais, o estatuído nos arts. 868º nº 2, 856 e seguintes do C.P.C, assim como os arts. 334º, 1394º e 1395º do C. Civil.
V- Razão pela qual deverá a mesma ser revogada e substituída por outra em que se decida pela total procedência dos embargos.
Foi apresentada resposta, sem conclusões.

II. Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

III. Fundamentação de Facto

A sentença vem com a seguinte factualidade assente, que se não mostra impugnada:

.Factos Provados

.1- O título executivo dado à execução é uma sentença, transitada em julgado a 21/10/2015, na qual se decidiu:

III— DECISÃO Por todo o exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente por parcialmente provada, em consequência:

a) Declara-se que os Autores são donos e legítimos proprietários do: prédio rústico composto de terra de cultura (feno e pastagem), situado no lugar das …, a confrontar de Norte com António, de Nascente com A. D., do Sul Limite da freguesia e poente com caminho, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Pena sob o art.º …, condenando-se os Réus a reconhecer tal direito e a absterem-se de praticar quaisquer atos que diminuam o gozo da mesmo.
b) Condena-se os Réus a abster-se de praticar quaisquer atos que prejudiquem o direito a explorar águas subterrâneas no prédio denominado "X", pelos Autores.
c) Condena-se os Réus a indemnizar os Autores dos prejuízos causados a liquidar em incidente de liquidação.”

B) Aí se julgou provado que:

1. Os Autores são donos e legítimos proprietários de um prédio rústico composto de terra de cultura (feno e pastagem), situado no lugar das "…", a confrontar de Norte com António, de Nascente com A. D., do Sul Limite da freguesia e Poente com o caminho, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Pena sob o art.o ….
. 2. O prédio identificado em 1. foi adquirido pelos Autores em 1978, por Escritura Pública de Partilha outorgada no Cartório Notarial do Concelho de Sabrosa, no dia 18 de Setembro de 1978 a fls. 20 a 21 verso do Livro de Notas para Escrituras Diversas ….
3. Desde que adquiriam o prédio identificado em 1., os Autores dele se apoderaram, chamando-lhe propriedade sua, pagando as respectivas contribuições prediais, fruindo e possuindo o referido prédio como donos, por si e família, cultivando-o, regando-o, semeando e colhendo feno e pastagens, guardando e pastoreando gados, enfin praticando todos os actos inerentes ao direito de propriedade.
4. Há mais de 100 anos que por si e antecessores, os Autores encontram-se na posse do referido prédio, como donos, praticando os actos inerentes ao direito de propriedade, frente a todas as pessoas do lugar nomeadamente dos Réus, sem oposição de ninguém, convictos de exercerem direito próprio e na convicção de não lesarem direitos alheios.
5. O prédio identificado em 1. foi adquirido pelo avô dos Autores, João, a Luís por escritura de Venda e Quitação, outorgada em 06 de Maio de 1901.
6. Da escritura referida em 5. consta que o comprador fica com o direito de meter mina, rota ou aqueduto para exploração de águas no prédio do vendedor chamado X.
7. Após a realização da escritura João meteu aqueduto no prédio referido em 1. para exploração das águas.
8. Encaminhando as águas do prédio superior para uma poça existente no prédio referido em 1. através duma estrutura de captação e transporte de água alinhada no sentido do prédio superior e constituída sucessivamente por uma vala a céu aberto, depois por aqueduto construído em lajes de pedra, depois por uma mina escavada na rocha a cerca de cinco metros de profundidade e finalmente por um orifício escavado na rocha com cerca de dez centímetros de diâmetro e pelo menos nove metros de extensão, orifício este que extravasa o limite do prédio referido em 1.
9. Na poça referida em 8. existe um engenho que quando a poça enche, abre e vaza a água em rego a céu aberto, para regar o prédio referido em 1.
10. As obras referidas em 8. foram mantidas até ao presente.
11. A água era usada e fruída pelos Autores e seus antecessores para rega do prédio referido em 1., para dar de beber ao gado, sem interrupção sem quezílias, frente a todas as pessoas do lugar, dos Réus e de seus antecessores de boa-fé, na convicção de exercerem um direito próprio.
12. Cerca do ano de 2010, os Réus mandaram abrir uma vala com cerca de 7 metros de comprimento por cerca de 3 metros de profundidade e 2 metros de largura, no limite do prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Pena sob o artigo ....
13. Nessa vala abriram um poço e introduziram manilhas, justapostas na vertical.
14. Colectando deste modo a água do prédio referido em 12. para vala e poços. 15. Privando os Autores de grande parte da água que era colectada e conduzida através da estrutura referida em 8. para rega e lima do prédio referido em 1.
16. Os Autores ficaram privados de limar o referido prédio, como sempre limaram, durante o Inverno, diminuindo a quantidade do pasto para o gado.
17. E de regar durante o Verão, deixando de colher a quantidade de feno que sempre colheram.
18. Os Autores têm vacas, novilhos e vitelas, que vendem para criação e abate.
19. E precisam dos pastos e fenos para alimentar o gado, tendo agora que comprar rações e fenos.
20. Os Autores além dos pastos, colhiam feno em quantidade e com um valor que em concreto não foi possível apurar.
21. Por estarem privados dessa água, os Autores não colhem feno e o pasto diminuiu bastante.
22. Os Autores têm que suprir a falta de pasto com a compra de ração para o seu gado.
23. O prédio dos Réus situa-se a num nível superior ao prédio referido em 1.
24. O prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia da Pena sob o artigo ... composto por mata de Carvalho, com área de 3750 m2, a confrontar de Norte com Manuel, de Nascente com B. C., de Sul com Fernando e de Poente com I o caminho é fruído pelos Réus e antecessores há um número de anos que em concreto não foi possível apurar.
C) Após o trânsito em julgado da decisão referida em A) e B) os executados embargantes mantiveram a vala e o poço descritos em 12) e 13) dos factos provados da sentença referida em A) e B), mantendo assim a situação de facto referida descrito em 12) a 15) da matéria de facto descrita em B).
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Mais importa aditar os seguintes factos, retirados do processo e relevantes para a decisão da causa, ao abrigo do disposto no artigo 607º nº 4 do Código de Processo Civil, 2ª parte, também aplicável à 2ª instância:

D) No âmbito do processo declarativo onde foi proferida a sentença dada à execução fora pedido pelos então Autores, ora exequentes, como na mesma se elencou: “se declare que os Autores são os dono e legítimos proprietários a) do prédio…b) das águas existentes no prédio “…” …e em consequência os Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade a) do prédio rustico…b) das águas do prédio “X”…A absterem-se de praticar quaisquer actos que diminuam a posse e gozo dos direitos supra invocados, nomeadamente absterem-se de, através de vala e manilhas, ou por outra forma, captar as águas do prédio identificado no artigo 4º da pi. A indemnizar os prejuízos, causados ou que venham a causar os quais serão avaliados em execução de sentença.”
E) Esta sentença foi objeto de recurso interposto pelos embargantes, os quais na alínea I) das suas alegações impugnam a sentença por entender que “no caso “sub judice” a matéria de facto não espelha qualquer conduta dos réus subsumível à previsão do artigo 334º do Código Civil, pelo que, o que de tudo o exposto resulta, é que não se logra surpreender na factualidade provada que os réus, designadamente com a abertura do poço, ao provocarem a diminuição do caudal das águas que eram captadas numa poça existente no prédio dos autores, hajam violado direitos destes
F) Por Acórdão proferido em 17/09/2015, a apelação foi julgada improcedente e foi confirmada a decisão recorrida, afirmando–se no texto do mesmo que tal ocorreu “embora com diversa fundamentação”.

IV. Fundamentação de Direito

1– do conteúdo da obrigação fixada na sentença dada à execução

Na sentença dada à execução, condenaram-se os Réus a absterem-se de praticar quaisquer atos que prejudiquem o direito dos Autores a explorar águas subterrâneas no prédio denominado “X”.
Para se compreender a obrigação a que os executados foram adstritos pelo título executivo há que o interpretar, recorrendo a todo o processado que deu origem à mesma.
Para tanto importa ter em atenção o pedido formulado em confronto com a condenação operada, a fundamentação da sentença e do acórdão que a confirmou, este com razões algo diversas daquela.
Assim, uma leitura menos atenta logo mostra uma divergência entre o que foi pedido e o que foi o objeto da condenação: pedida a condenação dos executados a “absterem-se de praticar quaisquer atos que diminuam a posse e gozo dos direitos supra invocados, nomeadamente absterem-se de, através de vala e manilhas, ou por outra forma, captar as águas do prédio identificado no artigo 4º da petição inicial” foi proferida condenação a “a abster-se de praticar quaisquer atos que prejudiquem o direito a explorar águas subterrâneas no prédio denominado "X", pelos Autores”.
Pode entender-se que com esta limitação se pretendeu permitir que os Autores através de vala ou manilhas ou por qualquer outra forma captassem as águas do prédio das “X”?

Dúvidas não há que no acórdão proferido nos autos se entendeu que a captação dessas águas pelo poço e valas era ato ilícito, pelo que interdito aos Réus. Ali se esclareceu, claramente, que o direito de explorar águas de que os exequentes são titulares têm natureza obrigacional, que a construção da vala e poço em 2010, efetuada pelos executados, por privar os exequentes de grande parte da água que era coletada e utilizada por estes no seu prédio, foi ilícita.

Mas este acórdão foi produzido na sequência do recurso interposto pelos executados, não pelos ora exequentes, na qual peticionam a redução da condenação, pelo que a decisão do Tribunal da Relação não podia (nem tal foi ali pretendido) alargar a condenação efetuada pelo Tribunal de primeira instância para obrigações que não estivessem já previstas na sentença (a tal conduz o princípio da proibição da “reformatio in pejus”).
Na sentença, parecia que se atribuía, em abstrato, aos réus o direito de explorar as águas no seu prédio, mas também se afirmou que tal lhes estava vedado ou “vinculado” pelos limites impostos pela boa-fé. Mais se concluiu que os Réus não podiam prejudicar o direito dos Autores de ali explorarem as águas subterrâneas, condenando-os no pagamento dos prejuízos causados.

Do exposto mais não se pode concluir que a sentença entendeu que o emprego do poço e valas no terreno sobre o qual incide o direito dos Autores de explorar águas subterrâneas estava vedado aos Réus (e que essa prática os prejudicou, obrigando-os a pagar uma indemnização por tais prejuízos, a liquidar).
E desta forma na condenação obrigaram-se os Réus a não prejudicar o direito dos Autores a explorar águas subterrâneas no prédio denominado "X”, impondo-se esta abstenção de forma mais genérica, sem descer ao pormenor (para que remetiam os Autores com a expressão “nomeadamente…”), ficando abrangido pela condenação o exemplo dado pelos Autores no pedido, na medida em que prejudicasse esse direito dos Autores (como se concluiu que prejudicava).

Descoberto o objeto da condenação em causa e o conteúdo da obrigação dada à execução e assegurando-nos que pela mesma se não pretendeu permitir o uso do poço e valas pelos executados, mas sim impedir que os executados por tal uso ou qualquer outro meio prejudicassem o direito dos exequentes a explorar as águas subterrâneas, a questão torna-se mais simples, sem prejuízo de haver ainda que analisar se tem alguma consequência não ter sido diretamente pedida na ação a destruição do poço.

2- a natureza e exequibilidade da obrigação em causa

Há que classificar-se a obrigação imposta aos executados no título executivo, supra analisada, de abstenção de prejudicar o direito dos exequentes á exploração das águas, como uma prestação de facto negativa.

Com efeito, nos termos dos artigos 397º do Código Civil, o sujeito de uma obrigação fica adstrita ao cumprimento de uma prestação, podendo, dentro de uma das várias classificações que com que se ordenam as prestações, classificar-se as mesmas, pelo seu objeto e em função do regime executivo a que conduzem, como prestação de facto, em contraposição às prestações de entrega de coisa certa e à obrigação de pagamento de quantia certa (cf. artigos 827º e 828º do Código Civil).

Por seu turno, as prestações de facto (em que o agente está obrigado a determinada atividade) podem dividir-se consoante o facto em causa. Se se traduzirem num comportamento ativo entende-se que são prestações positivas, se se traduzirem na obrigação de omitir determinados factos (non facere) ou de suportar que o credor pratique certos atos (pati) diz-se que são negativas.

Como é patente, é muito relevante, nomeadamente em sede de execução, para a determinação do seu regime, apurar-se se a prestação em causa pode ser, ou não, realizada por terceiro (podendo-o ser como regra, desde que não tenha sido convencionado o oposto ou a substituição da prestação, pela sua natureza, prejudique o interesse do credor).
A esta distinção se referem os artigos 767º nº 1 e 828º do Código Civil; este último logo determina que o credor da prestação de facto fungível tem a faculdade de requerer, em execução, que o facto seja prestado por outrem à custa do devedor.
Já o artigo 868º nº 2 do Código de Processo Civil concede ao credor de alguém que esteja “obrigado a prestar um facto em prazo certo e não cumprir” os seguintes direitos:

-- pode requerer a prestação por outrem, se o facto for fungível, bem como a indemnização moratória a que tenha direito,
ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação;
- além disso, pode também o credor requerer o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter no processo executivo.
Quando a obrigação não seja voluntariamente cumprida o direito coloca à disposição do credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento (na medida do possível) e executar o património do devedor (817º do Código Civil); pretende-se que o credor obtenha a obrigação a que tem direito ou pelo menos um seu sucedâneo ou equivalente, a indemnização correspondente.

Quanto à execução na sequência da violação de obrigações que tenham por objeto um facto negativo, regula atualmente o artigo 876.º do Código de Processo Civil, o qual dispõe, de forma clara, que quando a obrigação do devedor consista em não praticar algum facto, o exequente peticiona que a violação seja verificada por meio de perícia, podendo peticionar:

-- a) a demolição da obra que eventualmente tenha sido feita; (podendo, nos embargos o executado defender-se com a invocação que esta representa para si prejuízo consideravelmente superior ao sofrido pelo exequente);
b) a indemnização do exequente pelo prejuízo sofrido; e
c) o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter na execução.

Costuma-se afirmar que as prestações de facto negativo, quer sejam de non facere, quer de pati, são, em regra, prestações infungíveis (porquanto só o próprio devedor se pode abster de determinada conduta ou só ele pode tolerar uma determinada conduta do credor), mas tal não ocorre quando a violação da obrigação negativa consistir na construção de uma obra, porquanto esta pode ser demolida. O artigo 829º nº 1 do Código Civil, tem conteúdo muito semelhante à norma processual supra citada: “Se o devedor estiver obrigado a não praticar algum acto e vier a praticá-lo, tem o credor o direito de exigir que a obra, se obra feita houver, seja demolida à custa do que se obrigou a não a fazer. 2. Cessa o direito conferido no número anterior, havendo apenas lugar à indemnização, nos termos gerais, se o prejuízo da demolição para o devedor for consideravelmente superior ao prejuízo sofrido pelo credor”).
É discutível se esta última norma se pode aplicar “mesmo que o facto praticado não tivesse um resultado material suscetível de demolição (como um muro que se pode demolir ou uma parede que se pode tapar), mas fosse possível repor as coisas no estado anterior, como por exemplo através do encerramento aberto com violação da obrigação de não fazer concorrência”.

Negando tal aplicação se pronunciaram Antunes Varela e Pires de Lima em Anotação ao artigo 830º do Código Civil (de onde provem a citação ora efetuada), contrariando o entendimento de Vaz Serra, afirmando que tal é revelado pelo teor deste artigo. (Neste sentido também o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de 10/16/2008, no processo 0620782, disponível em www.dgsi.pt).

No entanto, após o Dec-Lei 262/83 de 16-6, que aditou o artigo 829ºA do Código Civil, aqueles dois autores referem a existência de uma viragem na filosofia da legislação (no seu Código Civil anotado, vol II, 3ª ed,), eliminando o que denominam de “escrúpulos da legislação anterior”, admitindo novo passo para a coercibilidade de prestações de facto não fungíveis, ao estabelecer as sanções pecuniárias compulsórias.

Entendemos que, respeitada que seja, como não podia deixar de ser, a pessoa humana, na sua integridade física e psíquica, bem como de todos os direitos fundamentais que lhe assistem, que devem limitar a intervenção da força para obter a efetividade dos direitos de crédito, que a execução de simples atos materiais sobre coisas (à demolição, referida expressamente na norma em causa, equivale a remoção de bens, a construção de obra, a entrega de bens, todos indiscutivelmente permitidos pelo nosso direito) só reforçam a ordem jurídica, dando-lhe efetividade, sem haver que recorrer a obrigações sucedâneas, de simples indemnizações pelo prejuízo.

No sentido de estender a execução material de prestações de facto negativo para além das demolições, cf o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/19/2003, no processo 1897/03-1 , disponível em www.dgsi.pt, cuja doutrina, não obstante à luz do pregresso direito adjetivo, se mantem atual, porquanto o teor da norma então vigente se mantém (artigo 933º nº 1 do anterior Código de Processo Civil versus atual 868º nº 1): “Mas isto não significa, tal como defendeu o Tribunal a quo, que a possibilidade de execução para prestação de facto negativo fique restringida única e exclusivamente aos casos em que haja lugar à destruição ou demolição da obra. É que, conforme já se deixou dito, as prestações de facto negativas podem apresentar-se não só sob a forma de pura omissão, mas também sob a forma de uma tolerância ou deixar fazer. E num e noutro caso, é sempre possível a execução, caso contrário não se respeitaria o princípio da obrigatoriedade de acatamento das decisões judiciais.”

No mesmo sentido, impondo a execução de prestação de facto positivo na sequência de violação de dever de abstenção, cf o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/04/2007, no processo 5150/2006-6 disponível em www.dgsi.pt: “Estando em causa a violação de obrigação negativa, seja de non facere ou de pati, a respetiva execução tem natureza específica, diferentemente da execução para prestação de facto positivo, em que a execução específica constitui uma faculdade e não uma obrigação do credor, ao qual é lícito optar sempre, em vez dela, pelo seu equivalente em dinheiro, sendo o facto prestado pelo exequente ou por terceiro (artigos 828º do Código Civil e 933º e seguintes do Código de Processo Civil). Por isso, o credor de obrigação negativa, caso pretenda o cumprimento coercivo dessa obrigação, deve requerer as providências adequadas à reparação do dano de forma que a execução não tem por objecto um facto negativo, mas o facto positivo da reparação do dano ou da remoção do obstáculo ao exercício do seu direito”.

3- concretização

Isto posto, analisado já o âmbito da determinação que foi imposta ao exequente e até onde pode ir a execução de uma prestação de facto negativo, importa concretizar.

Pode considerar-se que os exequentes podem nesta sede obter prestações de factos positivos necessários para ver respeitado o direito que os executados têm que respeitar, quando a necessidade dessas prestações são originadas nos atos ilícitos praticados por estes em detrimento do direito que foram obrigados a respeitar, o que engloba, caso se mostre necessário, a intervenção no poço e valas que estes apuseram no prédio (de forma ilícita, repete-se, como decorre da sentença e acórdão exequendos).

Como se viu supra a determinação imposta aos executados, embora descrita na forma negativa (abster-se de prejudicar o direito dos exequentes) pode, na execução, dar lugar a comportamentos ativos que visam eliminar as consequências da violação da obrigação que impendia sobre os Autores.

O facto de o poço ter sido construído em data anterior ao reconhecimento do direito dos exequentes não implica que se não considere que a sua manutenção constitua a continuação da violação de abstenção de prejudicar o direito de aproveitamento das águas de que os Autores são titulares reconhecido na sentença exequenda e que deu origem à condenação ora em execução.

Se assim não fosse, retirar-se-ia qualquer sentido útil a tal decisão: declarou-se que os Autores têm direito à exploração das águas, esclarece-se que o poço prejudica tal direito, condenam-se os executados no pagamento de uma indemnização por estarem a violar o direito dos exequentes e a absterem-se de praticar quaisquer atos que prejudiquem tal direito, pelo que há que entender que esta imposição aos executados tem ínsita a determinação de remoção do que foi colocado pelos executados no dito prédio que continue a prejudicar o direitos dos exequentes, independentemente da data em que colocação ocorreu.

De outra forma estaria o tribunal a impor aos executados uma obrigação impossível, o que seria absurdo (abster-se de prejudicar sem estar obrigado a não manter o que ali colocou que prejudica) ou estar-se-ia a desapossar a condenação de qualquer conteúdo útil, o que é inadmissível, face à função atribuída aos tribunais e a necessidade de preservar a ordem jurídica, base de proteção da pessoa.

Como tão bem se disse em situação semelhante à dos autos, no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, supra citado, em que estava em causa, em sede declarativa, a condenação do executado a abster-se de impedir a exequente de usar a cave e a sub-cave de um edifício (com um parque de estacionamento) e, em sede executiva, a remoção da cancela existente na entrada do parque de estacionamento, a substituição da fechadura e chave e/ou a substituição dos eventuais meios electrónicos de abertura e fecho do portão: “Conferir relevo à data da colocação de tais meios impeditivos do acesso da exequente/embargada ao parque de estacionamento instalado na referida parte comum do prédio seria defraudar o alcance daquela decisão judicial, deixando-a sem conteúdo prático.”

Após citar Lebre de Freitas, in A Ação Executiva Depois da Reforma da Reforma, Coimbra Editora, 5ª edição, pág. 392 e 393: “Fala-se correntemente de execução para prestação de facto negativo e para qualificar a ação executiva em que, em face da violação (necessariamente positiva) duma obrigação de não fazer, o credor requer as providências adequadas à reparação do dano. O objeto da execução não é, no entanto, um facto negativo, mas sim o facto positivo da reparação, embora esta possa (e deva, sempre que possível) consistir na reconstituição natural da situação anterior à violação. Trata-se, pois, duma execução para prestação de facto positivo, embora baseada na violação duma obrigação negativa, no sentido lato que o termo obrigação tem na acção executiva (supra, 1.3) e, portanto, mesmo quando na sua base esteja um direito absoluto.”,

Diz-se na sentença recorrida, com a qual se concorda totalmente, como vem de todo o exposto: “Ou seja, perante a condenação na obrigação de se absterem de praticar quaisquer atos que prejudiquem o direito a explorar águas subterrâneas no prédio denominado "X" pelos exequentes (obrigação non facere), gerou-se para os executados uma obrigação positiva, de repor a situação de forma a que efetivamente não mais prejudicassem o direito dos exequentes de explorar as águas subterrâneas no prédio denominado "X".

No entanto, os exequentes mantiveram a situação violadora dos direitos dos exequentes, não removendo os obstáculos à fruição da água.

Assim fazendo, dúvida não há de que violaram a obrigação a que estavam sujeitos, legitimando o recuso à ação executiva.”

Os executados invocam também, agora, nas alegações e conclusões do seu recurso, que lhes é mais onerosa a execução da sentença do que o beneficio obtido pelo exequentes. No entanto, sendo este argumento razão de oposição à execução, não pode ser conhecida neste recurso, visto que não foi invocada tempestivamente, no local próprio, que consistia nos próprios embargos de executado: a tal se opõe o princípio da preclusão e bem assim o facto de em sede recursiva se não poderem conhecer questões novas. Os recursos são meios de impugnar decisões judiciais, pelo que o tribunal que os vai apreciar não pode conhecer questões novas, que não possam ter sido valoradas na decisão recorrida, por não lhe terem sido apresentadas pelas partes no momento devido. Por isso, permite apenas o artigo 665º nº 2 do Código de Processo Civil que o tribunal conheça questões não examinadas na decisão recorrida se estas o não foram, quando ficaram prejudicadas pela solução dada ao litígio. Esta é uma das consequências do disposto no artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil, conjugado com o princípio da preclusão.

V. Decisão

Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Custas da apelação pelos recorrentes, que decaíram na totalidade.
Guimarães, 14 de junho de 2017

Sandra Melo
Amílcar Andrade
Heitor Gonçalves