Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
277/21.8T8CMN-B.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: VALOR DA CAUSA
UTILIDADE ECONÓMICA DO PEDIDO
CUMULAÇÃO APARENTE DE PEDIDOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – O valor da causa é atribuído em função do seu objeto, ou seja, do pedido ou pedidos deduzidos, mas este não é considerado abstratamente, mas sim em confronto com a causa de pedir.
2 – A referência fundamental para efeitos de fixação do valor da causa é a utilidade imediata que da dedução de um pedido pode resultar para a parte demandante.
3 – Formulando-se vários pedidos, na determinação da relação existente entre estes e no apuramento da respetiva utilidade, tem de atender-se à sua estrutura, aos interesses que o autor pretende realizar e ao efeito jurídico que com eles pretende alcançar.
4 – Da cumulação real de pedidos há que distinguir a cumulação aparente de pedidos, pois nesta não se verifica a soma dos valores dos pedidos cumulados.
5 – Quando os pedidos se reportam a uma mesma utilidade económica ocorre uma cumulação aparente de pedidos.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. O Condomínio do Prédio sito no lugar ..., ..., NIPC ...20, freguesia ..., concelho ..., e AA e mulher, BB, intentaram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e mulher, DD, EE, FF e Junta de Freguesia ..., formulando os seguintes pedidos:

«- Declarar-se a nulidade ou a anulabilidade do negócio entre o primeiro e segundo Réus e nula ou anulável a escritura de compra e venda mencionada nos artigos 18º a 20º desta petição inicial;
- Declarar-se que o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG, e HH pertence ao 1º - R. CC;
Caso assim não se entenda e subsidiariamente, condenar-se os 1º R., 2º R. e a 3º R., a pagar aos AA., a indemnização ilíquida que, por força dos factos alegados nos artigos 45º a 62º, desta petição inicial, vier a ser fixada em decisão ulterior (artigo 564º., nº. 2, do Código Civil e artigo 358º., nº. 2 -, do Código de Processo Civil)».
Os Autores atribuíram à causa o valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).
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Os Réus Junta de Freguesia ..., EE e FF contestaram, sem impugnar o valor da causa indicado pelos Autores.
Foi admitida a intervenção acessória provocada de EMP01... – Companhia de Seguros, SA, que contestou, igualmente sem impugnar aquele valor.
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1.2. Convidadas as partes a pronunciarem-se sobre a questão do valor a atribuir à causa, os Autores, os Réus Junta de Freguesia ... e FF manifestaram-se no sentido de ser fixado à causa o valor de € 25.000,00.
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1.3. Seguidamente, foi proferida a decisão recorrida, que se transcreve na parte relevante:

«Os Autores, em 08.07.2021, formularam os seguintes pedidos principais:
“NESTES TERMOS, e nos mais de direito, que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, deve a acção ser julgada totalmente procedente por provada, e consequentemente:
- Declarar-se a nulidade ou a anulabilidade do negócio entre o primeiro e segundo Réus e nula ou anulável a escritura de compra e venda mencionada nos artigos 18º a 20º desta petição inicial;
- Declarar-se que o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG, e HH pertence ao 1º - R. CC.”
E atribuíram à acção o valor de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros).
Mais alegaram no art. 30.º da petição inicial, invocado pelo Tribunal na supra mencionada acta de audiência prévia, que “o quinhão hereditário que pertence ao 1º R., tem um valor de cerca de 334.000,00€ (trezentos e trinta e quatro mil euros), como é aliás admitido pelo 1º e 2º RR. no doc. ...9 e ...0 junto aos autos”.
Preceitua o art. 297.º, n.º 2 do CPC: “Cumulando-se na mesma acção vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles (…)” (sublinhado agora aposto).
Estabelece também o art. 302.º, n.º 1 do CPC: “1 - Se a acção tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa.”
E consagra o art. 296.º, n.º 1 do CPC: “A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.”
Está bom de ver, pela análise até do pedido subsidiária, que, evidentemente, a utilidade económica inerente ao pedido é muito superior a 50.000,00€.
Está é certo e seguro que os Autores peticionam, como pedido principal, o reconhecimento da propriedade do quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG, e HH pertence ao 1º - R. CC, quinhão esse a que atribuem, na propositura da acção/petição inicial, o valor de 334.000,00€ (trezentos e trinta e quatro mil euros).
Aliás, o mesmo valor que o referido R. CC lhe atribuiu no âmbito do processo n.º 68/14.... conforme doc. n.º ...9 junto com a petição inicial, processo correspondente a uma das execuções que alegam os Autores ter sido frustrada pela venda em apreço nestes autos.
Assim, o certo e seguro é que cumulam-se nesta acção um pedido de declaração de nulidade ou anulabilidade de um negócio e de uma escritura de compra e venda com base num preço aí inscrito de 25.000,00€ (cfr. doc. n.º ...8 junto com a petição inicial) e o referido pedido de reconhecimento da propriedade do quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG, e HH pertence ao 1º - R. CC no alegado valor de 334.000,00€.
Ora, 334.000,00€ + 25.000,00€ = 359.000,00€.
Em face de todo o exposto e nos termos conjugados dos arts. 296.º, n.º 1, 297.º, n.º 2, 301.º, n.º 1, 302.º, n.º 1, 306.º, 308.º e 310.º do CPC, não concordo com o valor mencionado pelas partes e fixo à causa o valor de 359.000,00€ (trezentos e cinquenta nove mil euros).
(…)
Em conformidade, atendendo ao valor fixado à acção e à sediação do litígio, será competente para a tramitação destes autos e decisão o Tribunal dos Juízos Centrais cíveis da Comarca ..., conforme o art. 117.º, n.º 1, als. a) e c) e n.º 3 da LOSJ, pelo que DECLARO INCOMPETENTE este Tribunal do Juízo de Competência Genérica ... para a tramitação e decisão do presente processo.»
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1.4. Inconformado, o Autor Condomínio do Prédio sito no lugar ..., ..., interpôs recurso de apelação daquele despacho, formulando as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos à margem referenciados, declarar incompetente o Tribunal do Juízo de Competência Genérica ..., por considerar que o valor da causa é €359.000,00 (trezentos e cinquenta e nove mil euros), com o qual o ora Recorrente não se conforma.
2. O Autor formula dois pedidos cumulativos e principais: que se declare a nulidade ou de anulabilidade do negócio celebrado entre o primeiro e segundo Réus e que se declara nula ou anulável a escritura de compra e venda mencionada nos artigos 18º a 20º da petição inicial; e que se declare que o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG, e HH pertence ao 1º - R. CC, ora Recorrido.
3. E, subsidiariamente peticiona que, se condene os 1º R., 2º R.. e a 3º R., a pagar aos AA., a indemnização ilíquida que, por força dos factos alegados nos artigos 45º a 62º, contantes na petição inicial, vier a ser fixada em decisão ulterior, nos termos dos artigos 564º., nº. 2, do Código Civil e 358º., nº. 2 do Código de Processo Civil.
4. In casu, existem dois pedidos cumulativos e um pedido subsidiário.
5. Quando exista cumulação de vários pedidos numa mesma ação, o valor da ação será a quantia que corresponde à soma dos valores de todos os pedidos.
6. Relativamente aos pedidos cumulativos, verificada a cumulação de pedidos na mesma ação, cumpre salientar que poderá existir uma cumulação real ou uma cumulação aparente de pedidos.
7. Assim, existirá uma cumulação real de pedidos quando se formule mais de que um pedido de carácter substancial, qualquer deles traduzindo pretensão autónoma, com distinta causa de pedir, e por isso permitindo a obtenção simultânea de vários efeitos jurídicos através da procedência de todos eles.
8. Por seu turno, existirá uma cumulação aparente de pedidos quando a multiplicidade destes é meramente de carácter processual, nomeadamente por refletirem as múltiplas operações (v.g. uma prévia e instrumental – de apreciação, e outra posterior - de condenação) que o tribunal terá de desenvolver para atingir o fim último da ação (a «utilidade económica imediata do pedido»).
9. Na cumulação real de pedidos «o autor pretende utilidades económicas diversas».
10. Enquanto que na cumulação aparente de pedidos o autor, «embora tenha de formular várias pretensões correspondentes a vários estádios jurídicos da tutela do seu interesse, a utilidade económica imediata derivada da procedência do pedido é uma só (cfr. art.ºs 26º, n.º 2, e 305º, n.º 1 do C.P.C.).
11. No presente caso o que existe é, verdadeiramente, uma cumulação aparente de pedidos, uma vez que, apesar do Autor formular mais do que uma pretensão - a nulidade do negócio e da escritura de compra e venda e o reconhecimento da propriedade do quinhão - a utilidade económica que surge da procedência dos pedidos é uma só: os 25.000,00 € a que corresponde o valor pelo qual o quinhão foi vendido.
12. A utilidade económica imediata que deriva da procedência dos vários pedidos formulados pelo Recorrente, Autor na ação é exatamente a mesma.
13. A anulação ou nulidade do negócio celebrado entre o 1º e os 2º Réus, é uma condição necessária e prévia, para que se possa declarar que o mesmo é pertença do 1º Réu.
14. São dois pedidos declarativos, que se influenciam mutuamente, na medida em que o reconhecimento do primeiro permite a concretização do segundo.
15. E, em sentido contrário, o segundo emerge da concretização do primeiro.
16. Pelo que, ainda que o Recorrente, ora Autor, peticione dois pedidos principais, a utilidade económica que advirá da procedência destes é a mesma.
17. O primeiro pedido principal formulado é o pedido efetivo, refletindo a utilidade económica que advirá da procedência de ambos os pedidos formulados com carácter principal.
18. Pelo que, in casu, o Tribunal a quo não deveria ter levado a cabo a soma dos pedidos alternativos.
19. E, deveria ter considerado o preço da venda do quinhão (o ato que deve ser nulo ou anulado) no valor de €25.000,00 (vinte cinco mil euros), por o mesmo corresponder ao seu valor real e, pelo qual as partes acordaram comprar e vender.
20. Como dispõe o artigo 301.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil “Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.”
21. O valor atribuído ao quinhão pelo 1º R. e 2º RR., e pelo qual as partes o transacionaram, foram 25.000,00 (vinte cinco mil euros).
22. Na sistemática do Processo Civil, a competência do tribunal determina-se, entre outros, em função do valor da causa.
23. À ação corresponde o valor da utilidade económica que advier da procedência dos pedidos principais formulados e o que no presente caso corresponde ao “valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes”, os 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros).
24. Pelo que, é competente o Juízo de Competência Genérica ..., pertencente ao Tribunal Judicial da Comarca ... - Artigo 117.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 da LOSJ a contrario.
25. Por tudo o quanto exposto, entende o Autor que o valor a ser fixado à ação é de 25.000,00€ (vinte cinco mil euros) inexistindo assim qualquer incompetência do Tribunal a quo, para dirimir o litigio.»
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.5. Questões a decidir
Atentas as conclusões do recurso interposto pelo Autor, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil[1]), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são duas as questões a decidir:

- Qual o valor a atribuir à presente causa (em concreto se deve ser fixado em € 25.000,00, como defende o Recorrente, ou mantido o atribuído pelo Tribunal recorrido, no valor de € 359.000,00, correspondente à soma dos pedidos principais) – conclusões 1ª a 21ª;
- Qual o Tribunal competente para a presente causa, em função do valor da mesma – conclusões 22ª a 25ª.
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II – Fundamentos
2.1. Fundamentação de facto
Os factos relevantes para a apreciação das apontadas questões são os descritos no relatório que antecede, para onde se remete por razões de economia processual.
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2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. Do valor da causa
Dispõe o artigo 296º, nº 1, do CPC, que a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade imediata do pedido. Portanto, a referência fundamental para efeitos de fixação do valor da causa é a utilidade imediata que da dedução de um pedido (efeito jurídico que o autor pretende obter com a ação – artigo 581º, nº 3, do CPC) pode resultar para a parte demandante. É de notar que o valor da causa é atribuído em função do seu objeto, ou seja, do pedido deduzido, mas, como alertam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[2], «este não é considerado abstratamente, mas sim em confronto com a causa de pedir».
Por sua vez estipula o artigo 297º, nº 1, do CPC que «se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício».
Com relevo para os autos, a primeira parte do nº 2 do artigo 297º prevê que em caso de cumulação de pedidos o valor da causa corresponde à soma do valor dos pedidos. Todavia, o aludido critério apenas é válido para a cumulação real de pedidos, também designada por cumulação objetiva simples, e não para a cumulação aparente de pedidos. Como refere Miguel Teixeira de Sousa[3], o «n.º 2 1.ª parte estabelece o critério de aferição do valor da causa quando a mesma comporte uma cumulação objectiva simples (art. 555.º). (…) Da cumulação simples de pedidos há que distinguir a cumulação aparente de pedidos. O critério de distinção é precisamente o do benefício económico da parte, dado que a cumulação aparente ocorre quando, apesar de o tribunal ter de apreciar vários pedidos, todas eles se reportam a uma mesma utilidade económica. Na cumulação aparente não se verifica a soma dos valores dos pedidos cumulados».
Recorrendo ao mesmo autor[4], a cumulação aparente pode conformar-se, pelo menos, de três maneiras distintas.
A primeira é «aquela em que um dos pedidos é prejudicial em relação ao outro, mas em que ao pedido prejudicial não corresponde um benefício económico distinto daquele que corresponde ao pedido dependente. Quer dizer: a cumulação é aparente, porque ambos os pedidos respeitam a um único benefício económico. P. ex.: a parte pede o reconhecimento do direito exclusivo de autorizar a utilização pública de fonogramas ou videogramas no estabelecimento comercial explorado pela parte demandada e a consequente condenação desta em indemnização por perdas e danos por violação daquele direito exclusivo».
A segunda verifica-se quando «um dos pedidos é uma consequência necessária da procedência de um outro pedido, ou seja, a hipótese em que a parte formula um pedido principal e um pedido acessório. P. ex.: (i) o autor pede a anulação do negócio e a restituição da coisa alienada; (ii) o autor reivindica uma coisa e pede o cancelamento dos registos em favor do demandado; (iii) o autor pede o despejo e a entrega do imóvel; (iv) o autor pede a declaração do pagamento da dívida e a restituição do bem dado em penhor.»
A terceira respeita ao «pedido de apreciação ou de reconvenção incidental que é admitido pelo art. 91.º, n.º 2», pois «também constitui, em regra, uma cumulação aparente com o pedido do autor ou com o pedido de defesa do réu.»
Por conseguinte, na cumulação real de pedidos o autor pretende obter utilidades económicas diversas, daí a soma do valor correspondente a cada pedido.
Finalmente o artigo 301º, nº 1, do CPC estabelece que «quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes». Porém, de harmonia com o seu nº 2, «se não houver preço nem valor estipulado, o valor do ato determina-se de harmonia com as regras gerais». Acrescenta o nº 3: «Se a ação tiver por objeto a anulação do contrato fundada na simulação do preço, o valor da causa é o maior de dois valores em discussão entre as partes.»

Na decisão recorrida atribuiu-se à causa o valor de € 359.000,00, enquanto o Recorrente sustenta que é de fixar em € 25.000,00.
Tendo sido formulados dois pedidos em cumulação e um pedido subsidiário, o Tribunal recorrido somou o valor dos dois pedidos principais (€25.000,00 + €334.000,00) para encontrar o valor da causa (€ 359.000,00).
Não é posta em causa no recurso a desconsideração do valor do pedido subsidiário, o que se mostra em conformidade com a regra do artigo 297º, nº 3, do CPC, onde se determina que «no caso de pedidos subsidiários, [atende-se unicamente] ao pedido formulado em primeiro lugar».
Portanto, resta apurar se é correta a determinação do valor da causa através da soma dos valores dos dois primeiros pedidos.

No caso vertente, pelo primeiro pedido os Autores pretendem que se declare «a nulidade ou a anulabilidade do negócio entre o primeiro e segundo Réus e nula ou anulável a escritura de compra e venda mencionada nos artigos 18º a 20º desta petição inicial».
Segundo o alegado pelos Autores, em ações que intentaram (846/03.... e 112/09....), foram-lhes reconhecidos determinados direitos e posteriormente, com base nos títulos assim constituídos, instauraram execuções, tendo-se considerado provado, por sentença de 23.05.2019, proferida no processo nº 68/14...., que:
«1. Na execução apensa, em 11.04.2016, foi realizada a penhora do quinhão hereditário do executado CC na herança aberta por óbito de GG e cuja notificação ocorreu em 3.05.2016.
2. E, em 5.06.2016, foi realizada a penhora do quinhão hereditário do executado CC na herança aberta por óbito de HH, tendo a respectiva notificação ocorrido em 6.05.2016.
3. Na execução que corre termos sob o nº 164/11.... foi realizada a penhora do quinhão hereditário do executado CC nas heranças abertas por óbito de GG e de HH no dia 2.10.2017.»
Na execução instaurada pelos 2ºs Autores contra os 1ºs Réus, com o nº 112/09...., foi efetuada a penhora, relativamente executado CC, do «quinhão hereditário que lhe pertencia, na herança aberta por óbito de GG, e no quinhão hereditário que lhe pertencia, na herança aberta por óbito de HH» (arts. 13º e 14º),
Nos artigos 18º, 19º, 22º, 23º, 24º e 25º da petição inicial os Autores alegam que:
- «no dia 28 de Agosto de 2019, foi realizada venda por negociação particular do quinhão hereditário pertencente ao executado CC da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus pais, HH e GG» (art. 18º);
- «A referida venda foi realizada no Cartório Notarial da Dra. II, sito na Avenida ..., Edifício ..., ..., ..., na qual a 3ª R. - FF, na qualidade de agente de execução e encarregada de venda, nomeada nos autos de execução número 164/11.... vendeu ao 2º R. - EE o quinhão hereditário pertencente ao executado CC da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus pais, HH e GG, pelo preço de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros)» (art. 19º);
- «A 3ª R –Agente de Execução - FF, tinha conhecimento que [o] quinhão hereditário pertencente ao executado CC da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus pais, HH e GG, estava penhorado anteriormente, no processo n.º 68/14...., por ter sido comunicado pelo agente de execução ao processo n.º 164/11....» (art. 22º);
- «Assim como tinha o R. CC conhecimento que o quinhão hereditário que lhe pertence da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus pais, HH e GG, se encontrava penhorado à ordem dos processos 68/14.... e 112/09....» (art. 23º);
- «E, como tinha conhecimento o 2º R. EE que os quinhões hereditários pertencentes a CC por óbito dos seus pais, HH e GG, se encontravam penhorados à ordem do processo n.º 68/14.... (onde também ele é executado), e que a penhora era anterior à penhora do processo n.º 164/11....» (24º);
- «A venda do quinhão hereditário, pelo preço de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), tinha o objectivo de enganar os AA. furtando-se ao cumprimento do pagamento devido nos processos executivos que foram movidos pelos AA. contra o 1º R.» (25º).
Com relevo para a decisão da questão ora em apreciação, os Autores alegaram que «o preço de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros) pelo qual foi vendido o referido quinhão hereditário que pertencia ao 1º R. não corresponde sequer ao valor aproximado que aquele valia» (28º), uma vez que este «tem um valor de cerca de 334.000,00€» (30º).
Os Autores invocam a simulação absoluta da venda do aludido quinhão hereditário (art. 36º: «O negócio que se realizou e que se mostra titulado por aquela escritura é, pois, simulado e, por conseguinte, nulo»), pois que «o 2º R. nunca quis comprar o quinhão hereditário pertencente a CC por óbito dos seus pais, bem como o 1º R. nunca quis vender o quinhão hereditário que lhe pertencia por óbito dos seus pais» (31º), sendo que na realidade «o que houve foi uma maquinação entre o 1º e 2º RR. para enganar os credores, aqui AA., e terceiras pessoas, com o entendimento e acordo recíproco entre o primeiro R. e o segundo R., no sentido de procederem pela forma descrita nos artigos procedentes» (32º). Sustentam que «a venda pelo preço de vinte e cinco mil euros foi um negócio fingido, já que as partes nele intervenientes não quiseram, em verdade, realizar negócio algum» (33º).

Pedem ainda os Autores que se declara «que o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG, e HH pertence ao 1º - R. CC»[5].
Este segundo pedido está intimamente relacionado com o primeiro pedido: é o reconhecimento do efeito natural que subjaz à procedência do primeiro. Declarada a nulidade ou a anulação, nos termos do artigo 289º, nº 1, do Código Civil, produz-se um efeito retroativo, «devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente». Por conseguinte, em consequência de tal declaração, o bem vendido (quinhão hereditário) voltará à titularidade do 1º Réu, CC.
Por conseguinte, no nosso entender, o segundo pedido não tem uma utilidade económica distinta – autónoma – daquela que subjaz ao primeiro pedido. É apenas o reconhecimento formal de um efeito que emerge da procedência do primeiro pedido (declaração de nulidade ou de anulação), pelo que a utilidade económica imediata que deriva da procedência dos dois pedidos formulados pelos Autores é só uma. Ambos os pedidos se reportam a uma mesma utilidade económica.
Significa isto que estamos perante uma cumulação aparente de pedidos e não uma cumulação real de pedidos ou, sob outra designação, uma cumulação objetiva simples.
Não basta haver pluralidade de pedidos para se considerar que se verifica uma cumulação real entre eles; é necessário algo mais: que se consigam identificar distintos benefícios económicos para a parte, o mesmo é dizer que não exista entre eles identidade económica.
Nesta conformidade, existirá uma cumulação real de pedidos quando se formule mais de que um pedido de carácter substancial, qualquer deles traduzindo pretensão autónoma, baseados em distintas causas de pedir, e, por isso, permitindo a obtenção simultânea de vários efeitos jurídicos através da procedência de todos eles[6].
Por seu turno, verificar-se-á uma cumulação aparente de pedidos quando a multiplicidade destes é apenas de carácter processual, nomeadamente por refletirem as múltiplas operações que o tribunal terá de desenvolver para atingir o fim último da ação.
Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[7] apontam um exemplo em que a cumulação de pedidos pode corresponder a uma só utilidade económica imediata a atingir: pedir-se «a anulação dum contrato translativo e a restituição da coisa entregue em cumprimento dele, não há que somar o valor dos dois pedidos, sendo o valor da ação determinado nos termos do artigo 301-1». Também Salvador da Costa[8] sustenta que «a cumulação de pedidos derivada de uma única relação jurídica, como é o caso de ser pedida a resolução de um contrato e a restituição do seu objeto mediato ou do preço, não releva para determinação do respetivo valor processual.»
Se assim é nos casos de anulação ou de resolução do contrato translativo, em que a generalidade da doutrina e jurisprudência considera que o pedido de restituição da coisa não tem uma utilidade económica distinta do pedido de anulação ou de resolução, por maioria de razão assim será relativamente a um pedido que consiste no reconhecimento formal de um efeito decorrente da procedência de um pedido de nulidade de ato jurídico.

Assente que se verifica uma cumulação aparente de pedidos e representando o valor da causa a utilidade imediata do pedido, ou seja, a concreta vantagem que do pedido advém para a parte que o formula, importa determinar que concreta utilidade tem a presente ação para os Autores. Qual é o benefício que prosseguem com a presente ação?
Este é o ponto nevrálgico, do qual depende a decisão do recurso. Diga-se que não se trata de uma questão de fácil resolução, pese a sua aparente simplicidade.
Numa situação de pluralidade de pedidos, quando através de um deles se pretende obter um benefício que não é uma quantia em dinheiro ou que não é imediatamente reconduzível a um valor em moeda legal, é necessário, desde logo, proceder ao seu confronto com a causa de pedir. Não basta a análise do pedido para definir a utilidade que com a ação se pretende obter. Mas também não se pode escamotear que o critério essencial assenta na utilidade económica, o que por vezes, em situações de cumulação ou, em geral, de interpretação de qual é a relação existente entre os pedidos, exige do julgador que se circunscreva aos elementos que permitem apurar aquele benefício económico, de modo a não considerar no valor da causa benefícios que as partes não retiram da ação.
Assim, na determinação da relação existente entre os pedidos e no apuramento da respetiva utilidade, tem de atender-se à sua estrutura, aos interesses que o autor pretende realizar e ao efeito jurídico que com eles pretende alcançar.
Dito isto, não estando alegados interesses de outra ordem, está exclusivamente em causa a utilidade económica dos pedidos deduzidos, ou seja, o benefício económico que os Autores pretendem obter.
Pese embora a autonomização formal dos dois pedidos, com a procedência de ambos pretendem os Autores obter apenas a possibilidade de a ação executiva prosseguir com a venda do quinhão hereditário nela penhorado e que, segundo alegam, foi objeto de uma venda que será nula ou anulável. Impugnam o ato jurídico, pretendendo obter a sua “destruição”, para que tudo volte à situação anterior, verificada antes da venda que alegam ser simulada.
Portanto, os dois pedidos reportam-se à mesma utilidade económica, a qual afere-se pela utilidade derivada da procedência da ação (art. 30º, nº 2, do CPC).

No caso vertente estamos perante uma ação de apreciação, em conformidade com o disposto no artigo 10º, nº 3, al. a), do CPC.
A este propósito, refere Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao artigo 301º[9], que «o valor de uma acção de declaração de nulidade de um negócio jurídico proposta por um terceiro “interessado” (art. 286.º e 605.º, n.º 1, CC) deve ser apreciado pela utilidade económica dessa declaração para o terceiro».
É de notar que, segundo Salvador da Costa[10], no caso de «a simulação a que se reporta o artigo 240º do CC não respeitar ao elemento preço, o valor processual da causa é determinado nos termos do nº 1 ou do nº 2 do artigo em análise [301º do CPC], conforme os casos».
Na situação em apreciação, como a alegada simulação é absoluta, pois, no dizer dos Autores, «a venda pelo preço de vinte e cinco mil euros foi um negócio fingido, já que as partes nele intervenientes não quiseram, em verdade, realizar negócio algum» (art. 33º da petição inicial), até o preço foi fingido. Como não há um verdadeiro preço (há apenas uma aparência de negócio, para enganar terceiros, entre os quais os Autores), não pode ser aplicada a regra prevista no nº 1 do artigo 301º do CPC[11]. Como todos os elementos do negócio (das declarações externas que o integram) foram simulados, incluindo o preço, aplica-se o nº 2 desse artigo, sendo «o valor do ato determinado de harmonia com as regras gerais».
Significa isto que o valor da presente ação, como visa obter a declaração de nulidade do negócio jurídico com fundamento em simulação absoluta, deve ser apreciado pela utilidade económica dessa declaração para os Autores.
Ora, a utilidade económica da declaração de nulidade (ou anulação) da venda realizada ao Réu EE, traduzida na utilidade que da procedência da ação advirá para os Autores não corresponde a € 25.000,00. Esse é apenas o valor que foi declarado no ato notarial (mas que não é para valer como tal, já que não há preço), o qual, segundo o alegado pelos Autores, não corresponde ao real valor do direito ao quinhão hereditário penhorado. O referido quinhão hereditário tem o valor de € 334.000,00, tal como alegado pelos Autores na petição inicial (e também foi esse o valor declarado pelo Réu CC numa ação).
Por isso, a utilidade económica imediata que os Autores pretendem obter, através da declaração de nulidade do negócio jurídico, aferida pela procedência da ação, é de € 334.000,00. Caso a ação venha a proceder, o dito quinhão hereditário voltará à titularidade do Réu CC e, como tal, poderá ser vendido na ação executiva pelo valor que os Autores alegam ser o real: € 334.000,00. Esse é o fim ou objetivo da ação, pelo que a equivalência económica desse objetivo corresponde ao apontado valor de € 334.000,00.
Nada disto pode ser considerado novo ou surpreendente em face da natureza da ação. Alegada a simulação absoluta de um negócio jurídico, isso significa que as partes fingiram celebrar um negócio jurídico e na realidade não quiseram celebrar qualquer negócio. Como é óbvio, se nenhum negócio pretenderam realizar, o valor da causa não pode resultar do valor que os simuladores fingiram atribuir ao negócio. O valor da causa corresponderá necessariamente à utilidade económica que o autor pretende obter com a ação, o que num caso de contrato de compra e venda viciado por simulação será o correspondente ao valor do bem ou direito objeto daquele.
Por isso, quanto ao primeiro segmento da decisão recorrida, a apelação deve ser julgada parcialmente procedente, fixando-se o valor da causa em € 334.000,00.
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2.2.2. Do Tribunal competente

No segundo segmento decisório objeto do recurso, em consequência da alteração do valor da causa, considerou-se verificada a incompetência relativa do Tribunal a quo e determinou-se a remessa do processo ao Juízo Central Cível ... por a ação ter um valor superior a € 50.000,00.
Nos termos do nº 2 do artigo 296º do CPC, atende-se ao valor da causa para determinar a competência do tribunal.
Segundo o disposto no artigo 117º, nº 1, al. a), da LOSJ (Lei nº 62/2013, de 26 de agosto), compete aos juízos centrais cíveis «a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00», ao passo que, nos termos do disposto no artigo 130º, nº 1[12], do mesmo diploma, compete aos juízos locais cíveis e juízos de competência genérica apreciar as causas cujo objeto seja semelhante ao da primeira disposição citada, mas cujo valor seja igual ou inferior ao montante nela referido.
Sendo o valor da causa de € 334.000,00, nenhuma censura merece a decisão recorrida, na parte em que considerou verificada a incompetência relativa do Tribunal a quo e determinou a remessa do processo ao Juízo Central Cível ... por a ação ter um valor superior a € 50.000,00.
Termos em que, nesta parte, improcede a apelação.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, decide-se:

3.1. Fixar o valor da causa em € 334.000,00 (trezentos e trinta e quatro mil euros);
3.2. Confirmar a decisão recorrida na parte em que considerou competente o Juízo Central Cível ... para a preparação e julgamento da ação.
O Recorrente suportará as custas correspondentes ao seu decaimento.
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Guimarães, 22.02.2024

(Acórdão assinado digitalmente)
Joaquim Boavida
Maria dos Anjos Melo Nogueira
Ana Cristina Duarte


[1] De ora em diante, CPC.
[2] Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Almedina, 4ª edição, pág. 601.
[3] CPC Online, Livro II, versão de outubro de 2023, em anotação ao art. 297º.
[4] Ob. cit., em anotação ao artigo 297º do CPC.
[5] O segundo pedido depende da procedência do primeiro.
[6] Na definição constante do acórdão desta Relação de Guimarães, de 04.10.2018, relatado por Maria João Matos, proferido no processo 71/18.3T8CHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 504.
[8] Os Incidentes da Instância, 9ª edição, Almedina, pág. 26.
[9] Na obra atrás citada.
[10] Ob. cit., pág. 42.
[11] A parte da norma que alude ao valor «estipulado pelas partes» respeita aos atos jurídicos de disposição de bens em que não há uma contrapartida, como sucede na doação, ou a contrapartida é em bens, caso da permuta, pelo que o valor do negócio e, em consequência, da ação, decorre do valor atribuído pelas partes aos bens envolvidos.
[12] «Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada».