Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5275/21.9T8VNF-A.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: EXEQUIBILIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO
OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA
DECISÃO JUDICIAL
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DOS EMBARGANTES IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Sendo o título dado à execução uma sentença, os fundamentos da oposição são os referidos no art.º 729.º do CPC., que procede a um elenco taxativo de meios de defesa autorizados na oposição à execução fundada em sentença.
II - Tais fundamentos podem respeitar à falta de pressupostos processuais gerais ou específicos da ação executiva ou à inexistência atual da obrigação exequenda.
III - No âmbito da ação executiva importa distinguir entre exequibilidade do título e exequibilidade da pretensão exequenda. A inexequibilidade do título executivo decorre do não preenchimento dos requisitos para que um documento possa desempenhar essa função específica, a inexequibilidade da pretensão baseia-se em qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do dever de prestar.
IV - Não é admissível, em sede executiva, reabrir a discussão sobre outra via de decisão dos direitos em conflito. Definida a obrigação com trânsito em julgado, esgota-se a possibilidade de redefinição da mesma, por a oposição apenas comportar uma dimensão declarativa na perspetiva da afetação dos efeitos normais do título.
V - A apreensão do sentido e alcance decisivo de qualquer decisão apura-se por atividade hermenêutica, cujas regras são as estabelecidas nos artigos 236º e seguintes do Código Civil, ainda que tenham de ponderar-se igualmente as regras da interpretação legal. O propósito de tal atividade hermenêutica não é reconstruir a intenção do julgador (a mens judicis), mas sim apreender "o sentido precetivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente", havendo que ponderar a especificidade da decisão como ato jurídico, exprimindo não uma declaração de vontade subjetiva, antes uma injunção aplicativa do direito ao caso concreto.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

As executadas AA e AA vieram deduzir oposição à execução que lhes move EMP01... & Cª Lda, mediante embargos, invocando que a sentença que serve de título executivo não é exequível, necessitando de liquidação prévia aos termos da execução.
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A exequente veio apresentar contestação, afirmando a exequibilidade do título.
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Realizada a audiência de discussão e julgamento veio a ser proferida sentença que, enfermando de lapso manifesto, declarou os embargos procedentes, resultando evidente que se quis declarar os embargos improcedentes, o que aqui se deixa retificado.
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Inconformadas com a sentença, as embargantes interpuseram recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

a) Atenta a prova testemunhal produzida e as declarações de parte prestadas nos autos, não podia ter sido proferida a douta sentença nos termos em que o foi.
b) A sentença proferida nos autos não é exequível, necessitando de liquidação prévia aos termos da execução.
c) Apesar de o douto Tribunal “a quo” ter entendido que já existia projecto do muro, o que é certo é que, aquele projeto, não é aquele a que se referem os doutos magistrados do Tribunal da Relação.
d) O processo em que foi proferida a decisão ora em execução, iniciou-se com um procedimento cautelar, no qual foi feito um projecto de execução do muro de modo a resolver imediato a situação das terras que invadiram a casa de morada das recorrentes, que está reproduzido nos autos.
e) Entretanto correu termos o processo declarativo e foi proferida decisão que condenou as recorrentes a“1.(…)a executarem um muro de suporte e contenção de terras em betão armado, constituído por estrutura em ferro e betão, em toda a extensão do limite dos prédios da Ré, pelo nascente, com fundações e sapatas resistentes, com travamentos a desenvolverem-se para o interior da propriedade das Autoras, de acordo com as regras e arte de bem construir, e a efetuar um aterro e compactação de terras nos prédios da Ré, tudo por forma a assegurar a estabilidade e a segurança do talude;”.
f) Porque a altura do muro era essencial para a boa execução da sentença, as partes recorreram para o Tribunal da Relação para tentarem que fosse fixada a altura do muro e esta acabou por decidir que: “…de essa construção deve ter em conta os fins definidos no alvará de loteamento e as circunstâncias do terreno, de molde a que fiquem asseguradas as suas funções, face ao movimento de terras, ocorrido há mais de vinte anos, como o definiu o tribunal recorrido. A sua projeção e execução terão ser avaliadas por técnicos competentes para o efeito, desenvolvendo o respetivo projeto, tendo em conta as características do terreno e o seu destino. Daí que seja prematuro definir a altura do muro.”.
g) Quando esta decisão foi proferida, já se encontrava nos autos o projeto do muro que as partes acordaram em construir, mas o douto Tribunal de 1ª instância não se pronunciou quanto à altura do mesmo.
h) As partes estiveram sempre de acordo quanto à necessidade da construção e à qualidade da construção do muro que seria implantado no local mas sempre discordaram da altura do mesmo.
i) O Tribunal da Relação de Guimarães, quando questionado sobre a altura do mesmo, alheou-se à altura do que se encontrava projetado nos autos, deixando claro que seria necessário fazer um outro projeto, que teria, de ser avaliado por técnicos competentes para o efeito, desenvolvendo o respetivo projeto, tendo em conta as características do terreno e o seu destino, bem como o movimento de terras ocorrido há mais de vinte anos.
j) A recorrida tem plena consciência do que foi proferido pelo Tribunal, pois no seu requerimento executivo referiu que “A obra, a que as executadas foram condenadas a realizar, deve ter em conta os fins definidos no alvará de loteamento e as circunstâncias do terreno de molde a que fiquem asseguradas as suas funções, face ao movimento de terras, ocorrido há mais de vinte anos.”.
k) É a própria recorrida que aceita que a obra tem de ter em consideração o movimento de terras ocorrido aquando da construção do muro inicial do loteamento, e não o movimento de terras ocorrido posteriormente, tanto mais que, desde logo, a 1ª instância deixou claro que as recorrentes não tinham obrigação de reconstruir o muro implantado pela recorrida em cima do seu.
l) As recorrentes não questionam o muro que se encontra implantado no local, aceitam que este está construído de acordo coma as legis artis e com segurança e, em seu entender, o muro que se encontra implantado no local, tem a mesma altura que tinha o muro implantado aquando da construção do muro no loteamento e, por isso, nada mais têm a construir.
m) Sem se definir a altura do muro, não é possível saber se o muro que está implantado no local, está ou não totalmente construído.
n) Embora o projeto do muro que se encontra nos autos, desde a providência cautelar, sirva para definir o modo de construção do mesmo com segurança, o que é certo é que não serve para definir a sua altura.
o) Se aquele projeto fosse suficiente para a prolação da decisão sobre a altura do muro, quer o Tribunal de 1ª instância, quer o de 2ª instância, o teriam determinado e não tinham referido como fez o Tribunal da Relação, de que seria necessário fazer um projeto.
p) O que está em causa nos autos, não é a construção do muro, nem a sua necessidade, porque ambas as partes aceitam que existe já no local um muro implantado no local com cerca de três metros de altura, construído de acordo com as legis artis, e que é necessário, mas apenas e só a sua altura.
q) O douto Tribunal “a quo”, devia ter ordenado que, previamente à execução da sentença, se levasse a cabo a sua liquidação, de modo a que, sem réstias de dúvida, se pudesse apurar qual a altura do muro a executar.
r) As recorrentes deixaram claro que, caso se viesse a verificar a necessidade de o subir, seriam as próprias a executar as obras e não terceiros, como pretendia a exequente.
s) Uma vez que o douto Tribunal entendeu não ser de proferir decisão a ordenar a liquidação prévia à execução, deve anular-se a referida decisão, substituindo-a por outra, que determine que, previamente à execução, seja feito o incidente da liquidação de sentença, apurando-se a altura do muro a implantar no local.
t) Consequentemente, deve considerar-se inexequível o título tal como está, considerando-se procedentes por provados os embargos de executado, extinguindo-se a execução.
u) Não podia o douto Tribunal ter referido na motivação, que os depoimentos das testemunhas e as declarações de parte foram absolutamente irrelevantes para o apuramento das questões controvertidas, pois a matéria controvertida era susceptível de ser provada por testemunhas.
v) Do depoimento testemunhal verificou-se que várias testemunhas tinham conhecimento direto dos factos mas, o douto Tribunal antes de fazer a inquirição das testemunhas tinha já decidido o processo, apenas e só com o que em seu entendimento já lá estava, não tendo permitido a realização de um normal julgamento, interrompendo constantemente os intervenientes, quer testemunhas quer mandatários.
w) O douto Tribunal considerou provados os factos dos nºs 2, 11 e 12 dos factos provados, sem qualquer sustentação.
x) Do decidido quer no Tribunal de 1ª instância quer do Tribunal da relação não resulta qual o desnível que existia entre os prédios, à data em que interessa para os presentes autos, ou seja, à data da operação de loteamento.
y) As recorrentes só estão obrigadas a reconstruir o muro que existia à data em que, há muitos anos, foi feita a operação de loteamento e com a respetiva finalidade e não com as terras que existem atualmente no local.
z) Ficou desde logo provado que a recorrida colocou terras no local e fez um muro em cima do muro das recorrentes para as segurar, muro este que as recorrentes não têm de reconstruir, pois dessa obrigação foram absolvidas na sentença.
aa) O Sr. Perito, baseando-se no projeto que existia no procedimento cautelar e na altura das terras que atualmente existem no local, referiu que entre os prédios existe uma diferença de altura de 6,00/7,00 metros, porém, não teve em consideração o projeto de loteamento aprovado para o local e que foi levado a efeito há muitos anos atrás, conforme o próprio referiu em tribunal.
bb) O Sr. perito não sabia qual a diferença de cota que existia entre os prédios à data da implantação do loteamento, pois nem sequer consultou os registos da Câmara Municipal.
cc) A testemunha BB, anterior proprietária do prédio, referiu que, quando adquiriu o prédio a cota do prédio superior era muito inferior à que atualmente existe no local pois via as pessoas no prédio superior pela cintura.
dd) Também a testemunha CC referiu que, quando caçava no prédio que hoje corresponde ao prédio da recorrida, o desnível entre os prédios era substancialmente inferior, sendo da altura da garagem que se encontra no local.
ee) Nunca podia o douto Tribunal “ a quo” ter decidido como fez, considerando que o desnível entre os prédios, no que à execução do muro respeita e ao período temporal que está em causa nos autos, era de 6,00/7,00 metros.
ff) O douto Tribunal que entra em contradição entre a sua decisão quanto aos factos provados e a sentença proferida.
gg) Se atendermos à decisão proferida quanto aos nº 11 e 12 dos factos provados verificamos que, há uma contradição que, não tem tão poucas repercussões na decisão quanto parece.
hh) Dos factos considerados provados, o douto Tribunal refere que o desnível medido entre as cotas dos terrenos é entre os 6,00 e os 7,00 metros e esta diferença é substancial e decisiva quanto ao que está em causa nos autos e implica uma diferença de custos de muitos milhares de euros.
ii) A sentença proferida obriga as recorrentes a, suportar os custos com a contenção da terras e não a corrigir os desníveis das quotas dos prédios.
jj) Tendo em atenção que a construção de um muro com 3 m de altura custou cerca de 15.000,00€, o acrescer de um metro de altura, implica um custo acrescido de pelo menos 5,000,00€ por cada metro a acrescer.
kk) As recorrentes não foram obrigadas a refazer o muro até eliminar as diferenças de cota entre os prédios mas sim a fazer o muro noutras circunstâncias.
ll) Pelo que se verifica impossibilidade de cumprimento da decisão, enquanto não fôr feita a sua liquidação.
mm) Não se sabe se a diferença de cota é de 6,00 m ou de 7,00m, no entanto o douto tribunal optou por decidir que a diferença seria de 7,00m sem qualquer sustentação ou base técnica.
nn) Existe contradição, insanável entre o decidido entre os nºs 11 e 12 dos factos provados e a decisão proferida, sem que o Tribunal “a quo” tenha justificado o motivo pelo qual fez a opção da necessidade da construção do muro em sete metros de altura em vez de seis metros, o que leva à nulidade, insanável, da decisão.
oo) O Tribunal a quo referiu que o projecto existente nos autos estava aprovado, o que não corresponde à verdade, sendo unânime que, porque não havia projecto aprovado, a Câmara municipal embargou as obras, facto até confessado pela recorrida na sua contestação.
pp) Devendo assim substituir-se a decisão proferida quanto aos nºs 2, 11 e 12 dos factos provados, de provados, para não provados.
qq) O douto Tribunal considerou não provado o facto 1 dos factos não provados, pois considerou que não se provou que o muro contende com as regras administrativas e, por esse motivo, a obra foi embargada pela Câmara Municipal.
rr) Basta atentar pelos depoimentos prestados em audiência e o referido em nº 26 da contestação de embargos, para se verificar que a decisão proferida, não o podia ter sido como foi.
ss) O douto Tribunal “a quo” devia ter dado como provado o nº 1 dos factos não provados.
tt) Mesmo que se entendesse que não seria de dar como não provada a primeira parte daquele facto, sempre teria de se considerar como provado que: “A obra foi embargada pela câmara Municipal, por falta de licenciamento”.
uu) Deve alterar-se a resposta dada ao facto 1 dos factos não provados, alterando-se para a resposta para provado.
vv) Caso assim se não entenda, sempre se deve dar-se como provado que “A obra foi embargada pela câmara Municipal, por falta de licenciamento”.
ww) Por tudo o exposto, deve revogar-se a douta decisão proferida por outra que reconheça a necessidade de apurar a altura do muro a levar a efeito pelas recorrentes, muro este que deve ter em conta os fins definidos no alvará de loteamento e as circunstâncias do terreno de molde a que fiquem asseguradas as suas funções, face ao movimento de terras ocorrido há mais de vinte anos, apuramento este que terá de ser feito através da elaboração de um projecto de execução por técnicos competentes para o efeito.
xx) Este apuramento terá sempre de ser feito em liquidação de execução de sentença, prévio à execução, devendo por isso extinguir-se a presente execução, atenta a inexequibilidade do título se a liquidação.
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A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em apreciar:

- Se a sentença é nula;
- Se deve ser alterada a decisão da matéria de facto;
- Se sentença não é exequível, necessitando de liquidação prévia aos termos da execução.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.1.1. Factos Provados
Na primeira instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Por douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, no âmbito do processo n.º 2321/08...., do ... Juízo Cível, do Tribunal Judicial da Comarca ..., Instância Central ..., ... Secção Cível, J-..., as Executadas foram condenadas, além do mais, no seguinte: a executarem um muro de suporte e contenção de terras em betão armado, constituído por estrutura em ferro e betão, em toda a extensão do limite dos prédios da Ré, pelo nascente, com fundações e sapatas resistentes, com travamentos a desenvolverem-se para o interior da propriedade das Autoras, de acordo com as regras e arte de bem construir, e a efetuar um aterro e compactação de terras nos prédios da Ré, tudo por forma a assegurar a estabilidade e a segurança do talude.
2.- Na presente data e no local em apreço nos autos, existe um muro realizado até sensivelmente meia altura da diferença de cotas entre o logradouro do prédio das embargantes (à cota mais baixa) e o logradouro do prédio da embargada (a uma cota mais elevada).
3.- Esse muro de suporte e de contenção de terras a meia altura, em betão armado, está constituído por estrutura em aço e betão, em quase toda a extensão do limite dos prédios da Ré, pelo nascente, com fundações e sapata resistente, sem travamentos a desenvolverem-se para o interior da propriedade das Autoras.
4.- Existe um projeto para a execução desse muro que respeita as boas regras para a sua construção.
5.- Nesse projeto não existe qualquer travamento nem existe necessidade desse travamento segundo as legis artis.
6.- No projeto consta ainda a execução de uma drenagem de águas freáticas do tardoz do muro, que se deverá encontrar enterrada, não existindo indícios visíveis que comprovem a sua existência.
7.- Na presente data e no local em apreço, o terreno da embargada apresenta inclinação de rampa, no seguimento da entrada carral deste prédio, que se faz através da Rua ..., que se apresenta a uma cota superior à da rua que dá acesso ao prédio das Embargantes em cerca de 14metros numa distância de cerca de 50,0metros.
8.- Verifica-se que foi executada a parte inicial do muro (assim como a sua sapata), tudo indicando que em consonância com o projeto elaborado.
9.- O muro apresenta uma vedação sobre o seu topo, em painéis de chapa metálica corrente (para vedação de espaços), existindo a armadura restante do muro pousada sobre o solo do valado em terra na zona do terreno dos Embargados.
10.- O muro atualmente existente no local apresenta uma altura entre os 2,80 e os 2,90metros acima do revestimento do logradouro do terreno das Embargantes (admite-se que tenha 3,00 m acima da sapata) e um desenvolvimento de 15,00metros ao longo da zona visível.
11.- O desnível medido entre as cotas dos terrenos confrontantes varia entre 6,00metros e os 7metros, conforme o declive existente no terreno dos Embargados, em forma de rampa de acesso à zona a poente do prédio.
12.- O projeto aprovado consta uma altura total da alma de 7,00 metros, com uma espessura variável de 30cm no topo e de 60cm na base.
13.- Na presente data, as executadas apenas executaram 3,00 metros de alma do muro, faltará ainda executar 4,00metros de alma de muro, numa extensão de cerca de 15,00metros.
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3.1.2. Factos Não Provados

1.- O projeto do muro contende com as regras administrativas e, por esse motivo, a obra foi embargada pela Câmara Municipal ....
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3.2. O Direito
3.2.1. Da nulidade da sentença
Consideram as recorrentes que a sentença é nula, vicio que fundamentam da seguinte forma: “existe contradição, insanável entre o decidido entre os nºs 11 e 12 dos factos provados e a decisão proferida, sem que o Tribunal “a quo” tenha justificado o motivo pelo qual fez a opção da necessidade da construção do muro em sete metros de altura em vez de seis metros, o que leva à nulidade, insanável, da decisão”.
Embora não subsumam normativamente esta arguição de nulidade, as hipóteses possíveis reconduzem-se à falta de fundamentação e contradição.
Como tais serão apreciadas.
As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615.º nº 1, do Código de Processo Civil, onde se estabelece, além do mais, que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)), ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).
O Prof. Castro Mendes[1], após a análise dos vícios da sentença, conclui que uma sentença é nula quando “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”.
Na senda da delimitação do conceito, adverte o Prof. Antunes Varela[2], que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”.
Quanto ao vício de falta de fundamentação, ensina o Prof. Alberto dos Reis[3], que “uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas”, conformemente a nulidade por falta de fundamentação só ocorre quando há “ausência total de fundamentos de direito e de facto”, sendo certo que “o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”.
Para que a sentença esteja eivada deste vício de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
O referido vício corresponde assim à ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), vício que encerra um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutiliza o julgado na parte afetada.
Tendo presentes estas noções, é manifesto que a sentença não enferma de falta de fundamentação, visto que nela se mostram devidamente especificados os fundamentos quer de facto quer de direito em que assenta.
Quanto à contradição, decorre do artigo 615.º, nº 1, al. c) do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
A nulidade da sentença contemplada nesse preceito pressupõe, como se afirmou no acórdão do STJ de 03.03.2021 “um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.”[4]
Assim, tal nulidade só ocorre quando há um vício real de raciocínio do julgador em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente[5].
Consequentemente, saber se o enquadramento jurídico feito na sentença e a conclusão a que nela se chegou são, ou não, acertados ou injustos, constitui matéria de que não cabe curar em sede de nulidade de sentença. Trata-se de questão a envolver eventual erro de julgamento e nunca fundamento de nulidade, que se prende tão só com a estrutura formal da decisão.
As recorrentes sustentam que há contradição entre o decidido entre os nºs 11 e 12 dos factos provados e a decisão proferida.

Os factos têm a seguinte redação:
«11.- O desnível medido entre as cotas dos terrenos confrontantes varia entre 6,00metros e os 7metros, conforme o declive existente no terreno da Embargada, em forma de rampa de acesso à zona a poente do prédio.
12.- O projeto aprovado consta uma altura total da alma de 7,00 metros, com uma espessura variável de 30cm no topo e de 60cm na base.»
A decisão é do seguinte teor:
«(…) Assim, de acordo com o preceito em causa e por força dos doutos fundamentos do douto Ac. V.T.R.G. proferido no âmbito da ação comum, qualquer muro que seja construído, nomeadamente, a sua altura, a “sua projecção e execução terão de ser avaliadas por técnicos competentes para o efeito, desenvolvendo o respectivo projecto, tendo em conta as características do terreno e o seu destino”.
Ora, partindo deste douto ensinamento do V.T.R.G., temos, desde logo, como indiscutível que, para além da altura mo muro, importa determinar também a sua composição e comprimento.          
E se as embargantes têm dificuldades em ajuizar apenas da altura do muro, a verdade é que já existe um projecto que afasta categoricamente a conveniência desta como claramente evidenciou o Sr. Perito em esclarecimentos prestados na audiência de julgamento.
Com efeito e no que diz respeito às características do muro, já existe um projeto executado por “técnicos competentes para o e feito”.
E, dado que esse projeto é competente, como avaliou o Sr. Perito, apenas nos resta concluir que a prudência do V.T.R.G. está assegurada com esse mesmo projeto.
Concluímos, assim, que a prudência do douto Ac. do V.T.R.G., já foi cumprida com a elaboração de um projeto por “técnicos competentes para o efeito”.
A obrigação em apreço, aliás, já parcialmente cumprida, está, assim, perfeitamente “liquidada” nos autos na sequência, repete-se, da elaboração de um projeto por “técnicos competentes para o efeito”.
Improcede, assim, esta argumentação inscrita na petição de embargos.»
No caso não estamos perante um erro de raciocínio lógico.
A afirmação de que se verifica contradição entre os factos provados 11 e 12, mesmo a ser verdade, não gera qualquer nulidade. Se o Tribunal deu como provados factos que são contraditórios entre si, isso apenas significa uma coisa: que ocorreu erro no julgamento da matéria de facto, a corrigir, nessa mesma sede, pela Relação.
Donde, a factualidade ora trazida deverá ser apreciada em sede de fundamento para a modificabilidade da decisão de facto, e não de nulidade da sentença.
Destarte, a sentença recorrida não enferma de vício que a torne nula.
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3.2.2. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Consideram as impugnantes que foram incorretamente julgados os factos nºs 2, 11 e 12 dos factos provados que no seu entender deveriam ser considerados não provados assim como devia ter sido dado como provado o nº 1 dos factos não provados.
Fundamentam a alteração no depoimento das testemunhas com essencialidade a as testemunhas BB, anterior proprietária do prédio e CC, os quais se pronunciaram sobre o desnível entre os prédios.
Insurgem-se contra a motivação feita pelo tribunal que se baseou exclusivamente no relatório pericial e no depoimento da testemunha DD, engenheiro que procedeu à elaboração do projeto a solicitação de ambas as partes.

Apreciemos.
A questão em apreciação, convém tê-la presente, circunscreve-se a saber se a obrigação a que as executadas foram condenadas se mostra cumprida.
A obrigação consiste na execução de «um muro de suporte e contenção de terras em betão armado, constituído por estrutura em ferro e betão, em toda a extensão do limite dos prédios da Ré, pelo nascente, com fundações e sapatas resistentes, com travamentos a desenvolverem-se para o interior da propriedade das Autoras, de acordo com as regras e arte de bem construir, e a efetuar um aterro e compactação de terras nos prédios da Ré, tudo por forma a assegurar a estabilidade e a segurança do talude».
A exequente alega que as executadas ainda não cumpriram integralmente a obrigação.
As executadas, por sua vez, afirmam, por um lado, que a obrigação já foi cumprida pois já executaram o muro, por outro, dizem não poderem cumprir porque desconhecendo a altura do muro, torna-se necessário previamente proceder à liquidação da sentença.
Assim definidos sumariamente os termos do litigio, e tendo bem presente o conteúdo e limites do título executivo (sentença), a questão da altura, das cotas e desníveis entre os prédios, é ponto que extravasa o objeto da demanda.
Importará ter em conta que o título executivo é um acórdão, transitado em julgado, pelo que não pode fazer-se qualquer juízo de valor sobre o teor da prova anteriormente produzida noutra ação nem sobre o teor da decisão final aí proferida, por a mesma ter transitado em julgado.
A oposição à execução não serve nem tem como finalidade a abertura de nova discussão sobre a matéria de facto considerada em sede de processo declarativo. E tal é, precisamente, a pretensão das impugnantes ao trazer aos embargos a necessidade de prévia definição da altura do muro. Ora, como refere Marco Carvalho Gonçalves, uma vez que, “na execução fundada em sentença condenatória, já existiu uma fase declarativa prévia, em que as partes tiveram a possibilidade e a oportunidade de discutir, com toda a amplitude, o mérito da causa, os fundamentos passíveis de serem alegados em sede de oposição à execução são, naturalmente, limitados e restritos”[6].
Donde, perante uma execução para prestação de facto, importa saber se o facto está ou não cumprido, o mesmo é dizer, se a obra está ou não realizada.
Para o efeito, o meio de prova fundamental é, indubitavelmente, a prova pericial.          
A prova pericial caracteriza-se pela singularidade do seu objeto: a perceção e indagação de factos que, atenta a sua especificidade técnica, o julgador não domina. É certo que o juiz não está vinculado às conclusões alcançadas pelo perito, nem está impedido de afastar os esclarecimentos por aquele prestados, dado que a perícia não está subtraída ao princípio da livre apreciação da prova (artigo 389º do Código Civil). Ainda assim, somos do entendimento que, se julgou a prova pericial como necessária para suprir as insuficiências do seu conhecimento técnico, não pode o julgador substituir-se ao perito, e, assim, extrair por si conclusões diversas daquelas assentes em (presume-se) conhecimento científico comprovado. Mais. Não o pode fazer no caso, como aqui sucede, quando quer o relatório, quer os esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito em audiência de julgamento, se apresentaram claros, coerentes e, principalmente, rigorosos e sustentados, não merecendo as conclusões alcançadas qualquer juízo crítico. Destarte, a prova pericial tem valor superior à prova testemunhal e, para esta afastar aquela deve colocar evidentes e fortes dúvidas no espírito do julgador.
Tal não sucedeu no caso em apreço, já que as testemunhas ouvidas, não só as indicadas pelas impugnantes, como as demais, nada declararam que pusessem em crise o relatório pericial.
Não só o relatório pericial é claro, fundamentado e conclusivo, como os esclarecimentos do Sr. Perito prestados em audiência, com a mesma clareza e concisão, (re)confirmam as suas conclusões.
O Sr. Perito não emitiu uma opinião, uma probabilidade, ou sequer manifestou um estado de dúvida. Emitiu um juízo técnico claro e afirmativo sobre a questão em análise.
Daí a valoração da prova pericial, por assentar em critérios técnicos e objetiváveis, tendo sido descrito e explicado pelo perito o procedimento/metodologia que conduziu às suas conclusões. É este conjunto de critérios objetivos que permite ao juiz, na ausência de conhecimentos técnicos equiparáveis ao do perito, formular um juízo sobre o mérito intrínseco e grau de convencimento a atribuir ao laudo pericial (neste sentido, Luís Filipe Pires de Sousa, “A valoração da prova pericial”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal (27), 2016, p. 11-24).
Importa referir que o depoimento da testemunha DD, autor do projeto de construção do muro, foi no sentido de corroboração do relatório pericial, o qual, aliás, serviu de orientação ao sr. Perito.
Uma nota apenas quanto ao projeto.
O projeto em causa, aquele a que se faz referência na decisão, foi elaborado por um técnico, a solicitação de ambas as partes, após a transação que lograram alcançar no âmbito do procedimento cautelar.
Tal projeto não foi submetido para aprovação ao organismo competente, donde não se poder falar em “projeto aprovado”.
O facto 12 merece assim uma correção, devendo do mesmo ser excluída a expressão “aprovado”.
No mais, deverá manter-se.
Assim como é de manter o facto 1 não provado, pois que a obra foi embargada pela Câmara Municipal ... por falta de licenciamento e não por o projeto contender com as regras administrativas.
Em suma, a fundamentação exarada na sentença recorrida, assente no relatório pericial, é clara e consistente, tendo valorado a prova de forma objetiva, ponderada e crítica.
Não assiste, assim, razão às Recorrentes na impugnação dos factos, quer provados, quer não provados.
Improcede, assim, a impugnação da decisão da matéria de facto.
*
3.2.3. Da inexequibilidade da sentença

O enquadramento jurídico do caso passa por analisar o título executivo que fundamenta a execução, para de seguida valorar as obrigações que dele resultam para as executadas, pois que toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva, e finalmente apreciar da verificabilidade da invocada causa extintiva da obrigação (inexequibilidade).
A exequente visa a prestação de um facto, servindo de título executivo uma sentença judicial condenatória.
Atenta a natureza do título dado em execução, os fundamentos da oposição são os referidos no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que procede a um elenco taxativo de meios de defesa autorizados na oposição à execução fundada em sentença.
É, por conseguinte, indispensável que os fundamentos aduzidos se integrem na respetiva previsão normativa.
Tais fundamentos podem respeitar à falta de pressupostos processuais gerais ou específicos da ação executiva ou à inexistência atual da obrigação exequenda[7].
Dizem as embargantes que a obrigação não é liquida o que se traduz na inexequibilidade do título, ou melhor, na insuficiência do título.
A inexequibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução, são um dos fundamentos de oposição à execução baseada em sentença, previstos na lei (artigo 729.º, al. a) e e), do CPC).
Apreciemos, então, tais fundamentos.
A pretensão é exequível quando se incorpora num título executivo (exequibilidade extrínseca) e inexiste qualquer vício material ou exceção perentória que impeça a realização coativa da prestação (exequibilidade intrínseca)[8].
Assim, para que possa ter lugar a realização coativa de uma prestação há que satisfazer dois tipos de condição: (i) o dever de prestar deve constar de um título, o título executivo - pressuposto de carácter formal que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito -; (ii) a prestação deve mostrar-se certa, exigível e liquida -pressuposto de caracter material que intrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito na medida em que sem ele não é admissível a satisfação coativa da prestação[9].
No âmbito da ação executiva importa distinguir entre exequibilidade do título e exequibilidade da pretensão exequenda, isto é, entre exequibilidade da pretensão incorporada ou materializada no título (exequibilidade extrínseca) e validade ou eficácia do ato ou negócio nele titulado (exequibilidade intrínseca).
A inexequibilidade do título executivo decorre do não preenchimento dos requisitos para que um documento possa desempenhar essa função específica, a inexequibilidade da pretensão baseia-se em qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do dever de prestar[10].
Afigura-se que as Recorrentes confundem a exequibilidade do título executivo com o mérito da decisão judicial que serve de título executivo.
Como refere Marco Gonçalves[11], a inexequibilidade coincide com a não verificação dos pressupostos dos arts. 703.º a 708.º do Código de Processo Civil. Assim, será inexequível a sentença que: não contenha uma ordem de prestação ou condenação; não esteja assinada pelo Juiz; esteja pendente de recurso com efeito suspensivo; tenha sido revogada em recurso, ordinário ou extraordinário; sendo estrangeira não tenha sido revista e confirmada pela Relação.
Analisado o título dado à execução, conclui-se pela existência de título executivo, sentença condenatória, o qual contém todos os requisitos de exequibilidade.
Num outro prisma, interpretando a alegação das Recorrentes, o fundamento da oposição radica na iliquidez da prestação, advogando a sua prévia liquidação.
A obrigação é ilíquida quando o seu conteúdo tem caráter genérico, ou melhor, não está ainda fixado ou determinado. A indeterminação tanto pode dizer respeito ao quantitativo, como no caso da obrigação de dinheiro, como à natureza e espécie da prestação: é o caso da prestação de facto, quando não se sabe, com precisão e especificadamente, qual o facto que há-de ser prestado.
Analisada a sentença condenatória dada à execução, que constitui o título executivo, verificamos que a obrigação que ela encerra é exequível, pois a prestação a que as executadas foram condenadas encontra-se devidamente delimitada e todos os factos de suporte necessários à concretização dessa prestação estão compreendidos na sentença.
Reitera-se que a prestação a que a exequente tem direito foi definida na ação declarativa. Não é admissível, nesta sede executiva, reabrir a discussão sobre outra via de decisão dos direitos em conflito.
Na verdade, não é lícito ao obrigado alterar o sentido da prestação. As embargantes foram condenadas numa prestação inequívoca: execução de um muro de suporte e contenção de terras em toda a extensão do limite dos prédios da Ré, de acordo com as regras e arte de bem construir, e a efetuar um aterro e compactação de terras nos prédios da Ré, tudo por forma a assegurar a estabilidade e a segurança do talude.
Definida a prestação com trânsito em julgado, esgota-se a possibilidade de redefinição da mesma, por a oposição apenas comportar uma dimensão declarativa na perspetiva da afetação dos efeitos normais do título.
Caso contrário, cairíamos na insegurança e incerteza jurídicas, inimigas da boa aplicação do Direito.
O fundamento em que as recorrentes alicerçam a oposição é este: não podem construir o muro porque não está definida a altura do mesmo.
Sustentam que a sentença (e o acórdão da Relação) não fixou a altura do muro.
Ora, ressalvado o devido respeito, a sentença não fixou nem tinha de fixar a altura do muro.
O muro a executar deverá servir a sua finalidade que é o suporte e contenção de terras, devendo para o efeito ter a altura que se mostre necessária.
Não decorre quer da sentença da primeira instancia quer do acórdão do Tribunal da Relação qualquer ambiguidade na determinação da prestação a cumprir.
"As decisões, como os contratos, como as leis, como, afinal, todos os textos, têm de ser interpretados e não lidos; ler não é o fim; é o princípio da interpretação"[12].
A apreensão do sentido e alcance decisivo de qualquer decisão apura-se por atividade hermenêutica, cujas regras são as estabelecidas nos artigos 236º e seguintes do Código Civil, ainda que tenham de ponderar-se igualmente as regras da interpretação legal.
O propósito de tal atividade hermenêutica não é reconstruir a intenção do julgador (a mens judicis), mas sim apreender "o sentido precetivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente"[13], havendo que ponderar a especificidade da decisão como ato jurídico – ato puramente funcional, coartado da característica da liberdade negocial comummente associada aos demais atos jurídicos –, exprimindo não uma declaração de vontade subjetiva, antes uma injunção aplicativa do direito ao caso concreto[14].
A interpretação deve ser feita de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário, possa deduzir do comando injuntivo, não podendo deixar de considerar-se, em atenção à particular natureza do ato interpretando, também as regras próprias da interpretação da lei e de se conformar especialmente a posição (carregada de significado e de sentido) do declarante.
A decisão judicial é "a necessária conclusão de um pré-ordenado procedimento", situando-se o seu autor "numa específica área técnico jurídica, investido na função de aplicador da lei, que, por sua vez, está obrigado a interpretar, em conformidade com as regras estabelecidas no artigo 9º do Código Civil, dirigindo-se a outros técnicos de direito"[15].
As afirmações decisórias contidas num pronunciamento judicial, não valem desgarradas do ato de aplicação do direito que as determinou ou, tão pouco, pela sua aparência semântica. Valem, isso sim, no quadro jurídico que a elas conduziu e na medida - e só nessa medida - em que nesse quadro adquiriram significado e são passíveis de uma reconstrução racional. Valem, pois, enfim, como afirmações decisórias de cariz técnico-jurídico cujo sentido passa pelo processo argumentativo que as justificou[16].
É neste sentido que os elementos objetivos, correspondentes ao ato de interpretação e aplicação do direito, se destacam na compreensão do sentido de uma decisão judicial, da pura afirmação, descontextualizada desse ato, que essa decisão pareça expressar, se isso (o que nela pareça) não obtiver uma efetiva comprovação, racionalmente expressa, no antecedente acto de interpretação e aplicação do direito[17].
Tendo como ponto de partida o texto da decisão, que circunscreve, no limite mínimo, as possibilidades interpretativas, ter-se-á de presumir que o juiz consagrou a decisão mais acertada, mais justa, mais conforme aos interesses a ponderar (art. 9º, do Código Civil).
Importante elemento de interpretação da decisão judicial é de que sempre, em cada uma delas, se impunha ao juiz que a proferiu ponderar que as partes queriam era a justiça do seu caso concreto e que, na aplicação do direito, ao juiz se impunha ‘alargar o campo da sensibilidade axiológica de direito ao facto concreto, com características naturalísticas, históricas, sociológicas e culturais próprias, numa apreciação dialéctica do facto à norma’, dialectizando a ratio legis e assim a superando pela ratio iuris, encerrando a jurisprudência um ‘pensamento normativo de realização do direito, correspondente às expectativas prático-sociais dos sujeitos, realizando o direito na solução do caso concreto com a consciência jurídica geral, com as expectativas sociais de validade e justiça’, em vista de alcançar uma coerência valorativa ou axiológica, enquanto projecção da ideia do direito, tradutora de uma concebida ordem social justa[18].
No caso de interpretação de decisão judicial a posição do declarante deve ser especialmente conformada, pois carregada de sentido e significado – ele (o declarante, juiz) aspira ao justo concreto, exigido pela consciência jurídica geral.
A sentença constitui um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deve ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Se na fundamentação do despacho o juiz seguiu determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, o segmento decisório deve ser interpretado em conformidade com essa direção.
O que vem de dizer-se assume particular importância no caso dos autos, considerando a consistência e orientação da fundamentação jurídica da decisão interpretanda, que serve de título executivo, em correlação com o seu comando injuntivo (ou seja, do dispositivo), pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.
Assim, na parte que agora interessa, o dispositivo da decisão tem o seguinte teor:
«condenar as rés a executarem um muro de suporte e contenção de terras em betão armado, constituído por estrutura em ferro e betão, em toda a extensão do limite dos prédios da Ré, pelo nascente, com fundações e sapatas resistentes, com travamentos a desenvolverem-se para o interior da propriedade das Autoras, de acordo com as regras e arte de bem construir, e a efetuar um aterro e compactação de terras nos prédios da Ré, tudo por forma a assegurar a estabilidade e a segurança do talude”.
Da decisão judicial decorre com meridiana clareza que às recorrentes compete a construção de um muro de suporte e contenção de terras de acordo com as regras e arte de bem construir e a efetuar um aterro e compactação de terras nos prédios da ré, tudo por forma a assegurar a estabilidade e a segurança do talude, e é com vista ao cumprimento deste desiderato que tem de ser lido e interpresado o segmento inserto no acórdão ao afirmar que “a sua projecção e execução terão ser avaliadas por técnicos competentes para o efeito, desenvolvendo o respectivo projecto, tendo em conta as características do terreno e o seu destino”.
Pelo que se deixa exposto, impõe-se concluir pela improcedência de todos os fundamentos de recurso deduzidos pelas Apelantes e pela consequente improcedência da presente apelação, com a confirmação da sentença recorrida.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - Sendo o título dado à execução uma sentença, os fundamentos da oposição são os referidos no art.º 729.º do CPC., que procede a um elenco taxativo de meios de defesa autorizados na oposição à execução fundada em sentença.
II - Tais fundamentos podem respeitar à falta de pressupostos processuais gerais ou específicos da ação executiva ou à inexistência atual da obrigação exequenda.
III - No âmbito da ação executiva importa distinguir entre exequibilidade do título e exequibilidade da pretensão exequenda. A inexequibilidade do título executivo decorre do não preenchimento dos requisitos para que um documento possa desempenhar essa função específica, a inexequibilidade da pretensão baseia-se em qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do dever de prestar.
IV - Não é admissível, em sede executiva, reabrir a discussão sobre outra via de decisão dos direitos em conflito. Definida a obrigação com trânsito em julgado, esgota-se a possibilidade de redefinição da mesma, por a oposição apenas comportar uma dimensão declarativa na perspetiva da afetação dos efeitos normais do título.
V - A apreensão do sentido e alcance decisivo de qualquer decisão apura-se por atividade hermenêutica, cujas regras são as estabelecidas nos artigos 236º e seguintes do Código Civil, ainda que tenham de ponderar-se igualmente as regras da interpretação legal. O propósito de tal atividade hermenêutica não é reconstruir a intenção do julgador (a mens judicis), mas sim apreender "o sentido precetivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente", havendo que ponderar a especificidade da decisão como ato jurídico, exprimindo não uma declaração de vontade subjetiva, antes uma injunção aplicativa do direito ao caso concreto.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelas Recorrentes (artigo 527.º, do Código de Processo Civil).
Guimarães, 14 de Março de 2024

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º - Adj. - Des. Anizabel Sousa Pereira



[1] In “Direito Processual Civil”, Vol. III, p. 308.
[2] In “Manual de Processo Civil”, p. 686.
[3] In “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, páginas 139 e 140.
[4] Disponível em www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, o acórdão do STJ de 26.1.2017, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Lições de Processo Civil Executivo, 4.ª Edição, Almedina, 2020, pag. 257.
[7] Neste sentido, Lebre de Freitas, “A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 7ª Edição, pag. 197.
[8] cfr. M. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pag. 607.
[9] Lebre de Freitas, ob. Cit. pag. 39 e sgs.
[10] Neste sentido, pode ver-se o acórdão da Relação de Lisboa de 11/01/2018, acessível em www.dgsi.pt.
[11] In “Lições de Processo civil executivo”, págs. 58 a 64.
[12]  Acórdão do S.T.J. de 28.07.1994, CJ, Ano II; Tomo 2, p. 166.
[13] Acórdão da Relação de Coimbra de 15/01/2013 (Henrique Antunes), no sítio www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/02/2011 (Lopes do Rego), no sítio www.dgsi.pt.
[15] Citado acórdão do STJ de 3/02/2011 (Lopes do Rego), no sítio www.dgsi.pt.
[16]  Acórdão da Relação de Guimarães de 18/12/2017 (Maria João Matos), no sítio www.dgsi.pt.
[17] Acórdão da Relação de Coimbra de 22/03/2011 (Teles Pereira), no sítio www.dgsi.pt.
[18] Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/99, de 12/01/99, no sítio www.dgsi.pt (publicado na Série I do DR de 13/02/1999).