Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
312/22.2T8CHV.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
PRESSUPOSTOS
IMPULSO PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A deserção não se produz de direito, posto que deva ser declarada oficiosamente; depende de ato do juiz, produz-se ´ope judicis`.
II- A sentença de deserção tem, pois, alcance constitutivo: enquanto não for proferida, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo, mesmo que já tenham transcorrido os seis meses inerentes à deserção.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I – Relatório

- No decurso da presente ação declarativa de condenação, que AA, Casado com BB move a CC, e DD, e mulher, EE, já todos identificados nos autos, foi, em 10-11-2022, proferido o despacho, dando sem efeito a data designada para a audiência de julgamento, com o seguinte teor:

“ Em face do comprovado óbito do A., declara-se suspensa a presente instância, por força do preceituado nos artigos 269.º, n.º 1, al. a) e 270.º, n.º 1 do CPC (sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, n.º1 do CPC).”.

- Foram as partes notificadas de tal despacho, em 11-11-2022.

- Em 25-05-2023, foi proferido o seguinte despacho: “ Notifique as partes fim de, no prazo de dez dias, querendo, se pronunciarem sobre a eventual extinção da presente instância, por deserção (artigo 281.º, n.º1 do CPC).”

- Após o que, em 31-05-2023, o mandatário da autora mulher, em nome do herdeiro do autor falecido, deu entrada de requerimento a requerer o incidente de habilitação e juntou prova documental e posteriormente juntou aos autos procuração outorgada a favor daquele herdeiro e ratificando o processado.

- Em 09-06-2023, a autora mulher veio requerer o prosseguimento dos autos, alegando vicissitudes várias para justificar a sua inércia nos autos durante mais de 6 meses.
- Em 11-09-2023 foi proferida a seguinte decisão:
A Autora BB veio requerer que seja ordenado o prosseguimento dos autos, olvidando a excecional causa do prolongamento da suspensão da instância.

Para tanto, alegou, em síntese, que, na sequência do óbito do Autor, seu marido, desenvolveu um quadro depressivo, com dificuldades de compreensão e de comunicação, o que tornou, aliado à circunstância de não ter email, o contacto com o Ilustre Mandatário impraticável. Em face disso, em ../../2023, o Mandatário solicitou o contacto do filho do falecido Autor a fim de o inteirar da necessidade de requerer a habilitação de herdeiros, contacto que apenas se tornou possível em Abril de 2023, por o filho residir nos ..., tendo aquele se deslocado a Portugal e logrado obter a referida habilitação.
Notificados as restantes partes para se pronunciarem, nada disseram.
Cumpre, então, apreciar, se a instância deve ser declarada extinta por deserção ou, ao invés, ser ordenado o seu prosseguimento, com a tramitação do incidente de habilitação de herdeiros.
Estabelece o artigo 281º nº 1 do CPC que “sem prejuízo do disposto no nº 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
Ora, a lei prevê que a instância se extingue quando o processo fique a aguardar o impulso das partes por um período de 6 meses, sendo essa falta de impulso imputável a negligência das partes.
Uma das situações em que a instância depende do impulso das partes respeita precisamente à apresentação de requerimento da habilitação de herdeiros da parte falecida na pendência da causa.
E quando não ocorre esse impulso, importa aferir se o mesmo se deve à negligência das partes, o que deve ser aferido “em face dos dados conferidos pelo processo” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, GPS, Almedina, 1I Vol., p. 330), sem prejuízo de se poder ouvir as partes sobre esse motivo antes de declarar a instância deserta.
   
Vejamos então.
No caso, em 10 de Novembro de 2022, foi proferido despacho a declarar suspensa a instância, em face do falecimento do Autor marido, alertando-se para os efeitos do artigo 281º, nº 1 do CPC (refª ...48).
Decorridos mais de 6 meses a contar da notificação do referido despacho (refª ...84 – notificação ocorrida em 14.11.2022), foram as partes notificadas, em 25 de Maio de 2023, para se pronunciarem quanto à eventual extinção da instância, por deserção (refª ...11).
Nessa sequência, o filho do Autor, representado pelo mesmo Ilustre Mandatário, veio, em 31 de Maio de 2023, deduzir o incidente de habilitação de herdeiros, procurando também justificar a sua apresentação tardia, nos mesmos moldes apresentados pela Autora (refª ...92).
Ora, não obstante as razões invocadas, considera-se que o processo esteve parado a aguardar impulso das partes por mais de seis meses por negligência das mesmas (no caso da Autora e Requerente, interessados no prosseguimento da causa).
De facto, não obstante a Autora e o próprio Requerente do incidente invocarem que as dificuldades de comunicação quer com a Autora, por força da alegada debilidade de saúde, quer com o filho da Autora, por residir no estrangeiro, tornaram objetivamente impossível o contacto, o certo é que tal não pode justificar a total omissão de silêncio das partes.
É que se virmos em momento algum a Autora (também parte na ação), ou o seu filho (também conhecedor da pendência desta ação, como resulta, desde logo, do alegado no requerimento de 10.11.2022, com a refª ...42), vieram aos autos comunicar qualquer dificuldade na obtenção da informação ou até o próprio Ilustre Mandatário dar conta das alegadas dificuldades de comunicação.
E, como refere Abrantes Geraldes e outros, “sempre que o impulso processual dependa da parte, esta tem o ónus e o interesse em informar o tribunal acerca da existência de algum obstáculo e, se for o caso, solicitar a concessão de alguma dilação” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, GPS, Almedina, 1I Vol., p. 330).
Porém, no caso, nada disso foi feito, sendo certo que as partes se tinham dificuldades, como alegam, podê-las-iam ter perfeitamente comunicado aos autos, dentro do prazo de seis meses.
Mas ao invés, apenas após a notificação para o exercício do contraditório quanto à eventual deserção é que as partes voltaram a dar impulso aos autos, apresentando o respetivo incidente de habilitação de herdeiros, já tardiamente.
Foi o que se consignou no Ac. do STJ de 20.09.2016, proc. 1742/09 ao referir que “Deixando a Autora de impulsionar o processo por mais de seis meses, através da dedução do processo incidental de habilitação de sucessores, nem tendo apresentado dentro desse período de tempo qualquer razão impeditiva da não promoção, estamos perante uma omissão de impulso a qualificar necessária e automaticamente como negligente”.   
Por outro lado, não se pode ignorar que, no próprio requerimento de comunicação do óbito do Autor, é referido que se “promoverá de forma célere a habilitação, logo que a habilitação de herdeiros – que tem conhecimento de ter sido notarialmente outorgada – lhe seja apresentada” (refª ...42, de 10.01.2023).
Ora, já em Novembro de 2022, ainda antes de ser declarada suspensa a instância, já o representante dos Autores declarava ter conhecimento de que a escritura de habilitação estava outorgada, como até se verifica pela data da escritura – 29 de Julho de 2022 (cf. documento junto com o requerimento de 31.05.2023, refª ...92).
E nessa escritura consta que a Autora compareceu como outorgante e declarou quem eram os herdeiros, o que também revela que a mesma não estava totalmente impossibilitada de sair de casa, nem de comunicar, tendo, por isso, possibilidade de vir aos autos deduzir o correspondente incidente, ainda para mais sendo parte na ação e interessada no seu prosseguimento.
Como também o próprio Requerente do incidente poderia ter comunicado aos autos qualquer dificuldade em instaurar o incidente, ainda para mais se era conhecedor da existência da ação. É que, como resulta do requerimento de 10.11.2022, o filho foi contactado pelo Ilustre Mandatário (como se diz no requerimento “embora conheça o filho, (…), com o qual tem escasso contacto (…) o signatário contactou com urgência”) para confirmar o óbito, tendo-lhe sido solicitado a habilitação de herdeiros para juntar aos autos.
Por isso, não obstante as dificuldades de comunicação invocadas, o certo é que a falta de impulso resulta de uma negligência das partes em providenciar pelo andamento da ação, negligência que se reflete também na falta de comunicação, dentro do prazo.
Daí que, em face das circunstâncias do caso, exigia-se que as partes tivessem atuado de outro modo, não o tendo feito por negligência sua.
Assim, uma vez que o processo esteve a aguardar o impulso processual há mais de seis meses sem que nada tenha sido junto ou requerido pelas partes dentro desse período, declara-se extinta a instância por deserção, nos termos do artigo 281º, nº 1 do CPC.
Custas pela Autora.
Notifique.”
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Inconformados com esta decisão que declarou extinta a instância vieram a autora mulher e o habilitando interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

I- Nos presentes autos, uma acção de preferência, foi declarada a deserção da instância por falta de habilitação processual, pela octogenária autora sobreviva, em consequência do óbito do primitivo autor, frustrando irremediavelmente o direito que se pretendia fazer valer, tendo em conta o prazo de caducidade inerente ao direito de preferência.

II. O direito de defesa, o princípio pro accione e do acesso à tutela jurisdicional, da primazia da justiça do Estado todos com assento constitucional, postulam o tempero dos princípios da preclusão e da autorresponsabilidade das partes por deveres de cooperação entre elas e o tribunal, para que o processo realize a sua função (de tutela dos direitos subjetivos e dos interesses legalmente protegidos) com brevidade e eficácia (art. 7.º-1, CPC), que aliás aparece acentuado no CPC de 2013 no que respeita aos deveres do juiz, entre os quais o dever de prevenção, devendo o tribunal mesmo quando falte um pressuposto processual, promover a sua sanação (art. 6.º-2, CPC), bem como dele prescindir quando, no momento da sua apreciação, nenhum outro motivo obste ao conhecimento de mérito e a decisão deva ser inteiramente favorável à parte cujo interesse a exceção dilatória se destine a tutelar (art. 278.º-3, CPC).
III.                                                                        A advertência às partes das possíveis consequências desvantajosas de certas atuações (cf. arts. 590.º-4, CPC e 591.º-c, CPC) e a própria garantia, pelo juiz, dum contraditório efetivo (art. 3.º-3, CPC) são manifestações também deste dever de cooperação.
IV.                                                                        Previamente à prolação de decisão que declare a deserção da instância, é pois indispensável prévio despacho judicial que advirta a parte para a possibilidade de a mesma ocorrer, quer se entenda que só a partir dele correm os seis meses do art. 281.º-1, CPC, quer se entenda que basta que o juiz o profira, no decurso desse prazo ou depois dele concluído, desde que a parte tenha a possibilidade de praticar seguidamente o ato omitido.
V. A decisão recorrida, está- os antípodas da jurisprudência que se tem formado em torno da interpretação do art. 281.º-1, CPC, na linha da anterior interpretação dominante do art. 285.º do CPC de 1961, que considera que o ato processual da notificação à parte constitui pressuposto do despacho de deserção e que é aquela que se conforma com a Constituição da República e com os princípios gerais do atual sistema do processo civil português.
VI. O Despacho recorrido, ao decretar a deserção da instância sem prévia advertência, nos termos supra referidos, violou o art.º 281º, nº1, do C.P.C., conferindo-lhe interpretação desconforme ao princípio da proporcionalidade, do contraditório, do acesso à justiça e tutela jurisdicional efectiva, violando, além do mais, o princípio da recíproca cooperação e dever de sanação da falta de pressupostos processuais (art. 6.º-2, CPC).
VII. Não tendo ocorrido a advertência judicial à parte, e limitando-se o Tribunal a dar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a possibilidade de vir a ser declarada deserta a instância, verifica-se a omissão de um ato que devia ser praticado antes dessa declaração, pelo que este é nulo nos termos do art. 195.º-1, CPC.
VIII. Como, de resto, resulta do próprio despacho sub judicio, o que deu lugar à “deserção”, foi a falta de promoção da habilitação do Autor falecido, cujo dever caberia, em primeira linha, à Autora, mulher, sobreviva, e não ao Habilitando, filho, nos termos que resultam implícitos na decisão.
IX. De resto, causa perplexidade, pela incoerência e porque rompe com as legítimas expectativas das partes, o facto de o Despacho que determinou a deserção, vir a ser proferido após, em 06.06.2023, ser ordenada a incorporação do requerimento de habilitação aos autos principais, por não dever correr por apenso, e ser o mandatário notificado para juntar uma procuração (com ratificação do processado – uma vez que o seu representado, habilitando, não se podia deslocar a Portugal previamente à apresentação do requerimento de habilitação), que já se encontrava junta aos autos…
X. A falta desta promoção, foi de resto justificada (já após ser deduzida a habilitação!), previamente à prolação do despacho recorrido, com um conjunto de situações concorrentes e excepcionais:
a) o facto de a sobreviva Autora ter sérias dificuldades de comunicação, decorrentes da sua avançada idade, e bem assim, do facto de se encontrar num estado de depressão severa, na sequência do óbito do marido e companheiro de 50 anos de vida;
b) o facto de o pai do mandatário, doente oncológico, se encontrar internado, numa situação crítica, que culminou, aliás, na sua morte;
c) O facto de o filho do falecido Autor, a habilitar, trabalhar e residir (diga-se de passagem, com os dois filhos e sem qualquer outro apoio familiar, designadamente a mãe dos menores…) nos ....
XI. Portanto, e não há outra forma de o dizer, o Despacho recorrido padece do pior dos vícios: uma tecnicidade desumanizada do “processo”, que sustenta o indefensável entendimento sufragado, relativamente a uma actuação negligente da Autora, octagenária e com uma depressão severa.
XII. Aliás, o Tribunal a quo (Parece) olvida(r )que era esta A. sobreviva, octagenária, em sérias dificuldades que não contraria existirem, a quem caberia primeiramente o ónus da habilitação, tratando o tema como se o habilitando fosse já parte, antes de habilitado, olvidando, também, que esse habilitando reside e trabalha nos ..., razão pela qual aliás a habilitação foi apresentada protestando juntar a respectiva procuração forense.
XIII. Ao que acresce que, o Tribunal a quo, nem sequer se pronunciou sobre as dificuldades atravessadas, também apresentadas como justificação para o decurso do prazo, pelo próprio mandatário, cujo pai, à data da prolação do despacho que antecedeu a declaração de deserção, estava em fase terminal, e acabou por falecer, no dia 24 de julho de 2023, numa situação de horrível sofrimento, com metástases ósseas, que lhe causavam agonia para além do que os opiáceos conseguiam atenuar…
XIV. Como claramente resulta do preceito do artº 281º, nº 1 do nCPC, a deserção da instância, para que opere ope legis depende de a falta do impulso ser imputável a negligência activa ou omissiva da parte onerada, em termos de poder concluir-se que a falta de tramitação processual seja imputável a um comportamento da parte dependente da sua vontade.
XV. De resto, em requerimento prévio à suspensão da instância, o mandatário da A. informou que: 1º. O signatário tomou, nesta data, conhecimento do falecimento do A. marido, em ../../.... do presente ano.// 2º. O signatário foi no dia de ontem informado do facto pela Ilustre mandatária da parte contrária, Dr.ª (…). // O contacto do mandatário sempre foi efectuado através do A., embora o signatário conheça o filho deste, Sr. FF, com o qual tem escasso contacto, por se encontrar a residir e a trabalhar nos ...), // 4º. Não tendo por essa razão qualquer forma de celeremente contactar a Autora, que é pessoa de avançada idade (79 anos) e doente, não dispondo de email.
XVI. Sucede que, o tribunal socorreu-se de um argumento algo inexplicável, segundo o qual “as partes” não informaram os autos das dificuldades com que se confrontaram, o que conclui, depois de convocar o Requerimento apresentado em 10.11.2022, com a refª ...42), em que «vieram [em rigor – perdoa-se a insistência, veio o mandatário!) «aos autos comunicar qualquer dificuldade na obtenção da informação ou até o próprio Ilustre Mandatário dar conta das alegadas dificuldades de comunicação.».
XVII. Salvo o devido respeito, até o texto é incoerente, não se percebendo a razão pela qual ali figura o vocábulo “qualquer”, dando a impressão de que num primeiro momento o MM.º Juiz queria dizer que “não informaram os autos de qualquer obstáculo, constatando após que, afinal, existia tal informação, mas mantendo, ainda assim, o sentido da decisão tabelarmente tomada e ad hoc fundamentada…
Termos em que se requer a V.Exas. que se dignem revogar o Despacho recorrido e substituí-lo por outro que determine o prosseguimento dos autos, atenta a inexistência de qualquer obstáculo processual, nesta data, à realização do julgamento, assim se fazendo Sã e Serena
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido, após os vistos.
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II - Delimitação do objeto do recurso

A questão decidenda a apreciar é delimitada pelas conclusões do recurso: é a de saber se se verifica a extinção da instância por deserção, nomeadamente no caso em que a parte pratica o ato processual em falta após o exercício do contraditório prévio à prolação daquela decisão: deverá o tribunal considerar deserta a instância, não obstante o impulso referido ou ficará pelo contrário inutilizado o efeito da inércia durante o período legalmente necessário para se operar a deserção?

Assim, a questão a decidir consiste em aferir se a sentença supra descrita deve ser revogada e substituída por outro despacho, nos termos pedidos pelos recorrentes.
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III – Fundamentação

O contexto processual relevante é o que consta do relatório supra.

IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA

Prima facie, importa desde já dizer que atenta a notificação feita pelo tribunal em 25.05.2023 não se põe em causa que o tribunal a quo não tivesse cumprido o princípio do contraditório, tendo efetivamente ouvido as partes acerca da eventual decisão da deserção da instância.
Nessa sequência, e decorridos mais de 6 meses, veio a autora mulher, por requerimento, apresentar as suas justificações para a sua inércia e, simultaneamente, veio a ser suscitado o incidente de habilitação de herdeiros, indubitavelmente ónus da autora mulher.
Portanto, estamos perante um caso em que objetivamente já decorreu há muito o prazo dos ditos 6 meses previstos na lei e na sequência da audição oficiosa das partes, veio a ser suscitado o incidente de habilitação de herdeiros.
Após, foi proferida sentença de extinção por deserção da instância.
Na decisão recorrida, analisando-se os pressupostos do art. 281º do CPC, considerou-se que, nesta altura, a instância já estava deserta, em função do que não se considerou tal requerimento de incidente de habilitação de herdeiros, com o fundamento em que, nesta data, já havia decorrido o prazo de 6 meses, que a lei, agora, fixa para que se considere deserta a instância, independentemente de decisão judicial que o declare, por se entender que a deserção da instância opera automaticamente, pelo simples decurso do prazo, para além de analisar a negligência da conduta da parte pela sua inércia e ter concluído pela inércia negligente.
Contrapõem os recorrentes que assim não é porque, ainda antes de ser proferida qualquer decisão a declarar a deserção, impulsionaram os autos, através do requerimento em que a autora alegou dificuldades e vicissitudes várias para justificar a sua inércia e ainda foi suscitado o incidente de habilitação de herdeiros em falta ( anteriormente por apenso e posteriormente foi ordenada a sua tramitação nos próprios autos). Por tudo, entendem que impulsionaram os autos antes de ser proferida qualquer decisão de deserção, devendo assim os autos prosseguir os seus termos.

Antes de mais, analisemos quais os requisitos previstos no art. 281º, nº 1, do CPC.

Nos termos desta norma, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de 6 meses.
“A deserção da instância radica no princípio da autorresponsabilidade das partes, encontrando a legitimação legal no facto de não ser desejável, numa justiça que se pretende célere e cooperada, que os processos se eternizem em tribunal, quando a parte se desinteressa da lide ou negligencia a sua atuação, não promovendo o andamento do processo quando lhe compete fazê-lo” ( in AC da RP de 10.12.2019 e AC STJ de 14.05.2019).
Num processo cada vez mais marcado pelo impulso oficioso do juiz (art. 6.º, n.º 1), a promoção da habilitação de herdeiros é um dos casos emblemáticos de impulso processual que só à parte cabe (vejam-se, neste sentido, o acórdão do STJ, de 03 de maio 2018, revista n.º 217/12.5TNLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt; e Paulo Ramos de Faria, “O julgamento da deserção da instância declarativa – Breve roteiro jurisprudencial”, in Julgar on line, 2015, p. 4, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/04/O-JULGAMENTO-DA-DESER%C3%87%C3%83O-DA-INST%C3%82NCIA-DECLARATIVA-JULGAR.pdf).
É que, constituindo a deserção um efeito direto do tempo sobre a instância, que pressupõe uma situação jurídica pré-existente – a paragem do processo – a extinção da instância só se justificará quando o impasse processual não possa e não deva ser superado oficiosamente pelo tribunal. O mesmo é dizer, citando Paulo Ramos de Faria (ob. cit., p. 4), que a “paragem qualificada do processo” que empresta relevo ao decurso do tempo é apenas a que seja o efeito ou, dito de outro modo, o resultado (causalmente adequado) de uma conduta típica integrada por dois elementos: a omissão de um ato que só ao demandante cabe praticar; e a negligência deste.
Em suma: defrontamo-nos, assim, para além daquela exigência do prazo, ainda com duas exigências cumulativas: uma de natureza objetiva (falta de impulso processual das partes, máxime do A., para o prosseguimento da instância) e outra de natureza subjetiva (inércia causada por negligência).
Por outro lado, segundo a mesma previsão legal, a instância declarativa não se poderá considerar deserta independentemente de qualquer decisão judicial ( ao contrário do que ocorre no processo de execução).
No entanto, há quem retire do nº4 do art. 281º do CPC “ que o tribunal se limita a verificar a inobservância, por negligência, do ónus de impulso processual e, consequentemente, a declarar que a deserção ocorreu, embora entendendo que essa decisão, meramente declarativa, pode ser antecedida por uma notificação à parte para que esclareça que o processo aguarda o seu impulso” ( Paulo Ramos de Faria-Luísa Loureiro- Primeiras Notas, anotação ao art. 281 e Julgar on line de 2015, p. 14).
Sem embargo, cremos não ser esta interpretação a única nem a melhor que o preceito consente.
Como observam O prof. Lebre de Feitas e Isabel Alexandre ( in CPC anotado, Vol I, p. 572, 4ªed.) “ A norma do nº4 provém ipsis verbis do CPC de 1961 e não se vê que tenha hoje sentido mais forte do que tinha então”.
O Prof. ALBERTO DOS REIS, à luz do art. 296.º do Código de Processo Civil de 1939, já defendia que o ato útil praticado após o decurso do prazo de deserção impede que esta venha a ser declarada pelo tribunal – cfr. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Comentário, III, p. 439 e segs..
Também, assim,  defende o Prof. Teixeira de Sousa, em anotação ao art. 281º, on line-Blog IPPC : “A deserção da instância só produz efeitos em processo depois da decisão do tribunal ou do a.e. (RC 17/5/2016 (2/14); dif. Ramos de Faria, Jg o. 04/2015, 9 s.). O tribunal ou o a.e. não declaram que a instância se extinguiu (no passado), antes determinam que a instância se extingue (agora). (b) Isto significa que, antes da decisão que considerara a instância extinta, todos os actos das partes são admissíveis ou válidos, mesmo que o acto seja praticado depois dos seis meses de inactividade que teriam justificado uma decisão de extinção da instância com base em deserção (id. AR Com III (1946), 440 e 445).” ( sublinhado nosso).
No fundo ocorre o que o Professor Alberto dos Reis, a propósito de idêntica disposição do CPC de 1939, ensinava ( in Com III (1946), 440 e 445) :
A deserção não se produz automaticamente, ´ope legis`; depende de acto do juiz, produz-se ´ope judicis`, visto que demanda uma sentença de declaração. Suponhamos então que, tendo passado o lapso de tempo marcado no artigo 296º, uma das partes dá impulso ao processo antes de o juiz ter declarado a deserção; deverá o tribunal considerar deserta a instância, não obstante o impulso referido, ou ficará, pelo contrário, inutilizado o efeito da inércia durante o período legalmente necessário para se operar a deserção?
Entendemos que a inércia fica sem efeito e que deve admitir-se o seguimento do processo.
Atenda-se, por um lado, a que o efeito da inactividade das partes não se produz ´ipso jure`. A nossa lei não declara (…) que a deserção opera ´de direito` os seus efeitos; pelo contrário, segundo o artigo 296º, não basta o facto da inércia, é necessário uma sentença de extinção.
(…) Enquanto a instância não for declarada extinta, as partes podem dar impulso ao processo, pouco importando que tenha estado parado durante mais de (…).”
“ (…) A deserção não se produz de direito, posto que deva ser declarada oficiosamente; depende de acto do juiz, produz-se ´ope judicis`. A sentença de deserção tem, pois, alcance constitutivo. Enquanto não for proferida, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo.”
“ (…) A deserção não existe enquanto o juiz a não declara no processo respectivo.”.
Esta posição, cremos, é maioritária também na jurisprudência- vide, entre outros, AC STJ de 09-11-2017, relator Vitor Távora; AC TRG de 30-04-2015, Estelita de Mendonça; Ac RC de 16-03-2016, Arlindo Oliveira; Ac RC de 17-05-2016, Fonte Ramos.
Ou seja, tudo depende do alcance que se considera quanto à decisão de extinção: se tem alcance constitutivo e não simplesmente declarativo.
Em suma: dúvidas não restam, pois, que a deserção da instância declarativa opera, necessariamente, mediante decisão judicial e pressupõe a negligência das partes no impulsionamento do processo (carece de ser imputável às partes), pelo que até ser proferida (tal decisão) não pode, pois, a instância ser considerada deserta.
Pretendeu-se que o arquivamento do processo por deserção ficasse dependente do controlo jurisdicional, designadamente no que toca à verificação da negligência da parte em promover os seus termos.

Perante o disposto no art.º 281º, o descrito entendimento e a factualidade mencionada supra, apenas se poderá concluir que, ao suscitar-se nos autos o incidente de habilitação de herdeiros em falta, em 31-05-2023, ou seja, antes de declarada a deserção da instância, ainda que pelo próprio habilitando ( e não pela A.) não podemos deixar de dizer que não se deixou de promover utilmente o seguimento do processo, pelo que ficou desde logo sem efeito, nos termos expostos, a pretensa e eventual inércia da autora, razão pela qual já não seria sequer possível analisar a pretérita atuação ( ou omissão) da autora  no que pudesse consubstanciar negligência na promoção do regular andamento dos autos.
Dito de outro modo: estando o processo a ser impulsionado, não havia que considerar deserta a instância, ainda que pudessem porventura estar já transcorridos os seis meses inerentes à deserção da instância.
Fica desta forma prejudicada a apreciação, nomeadamente, da relevância do requerimento da A. de 09-06-2023 e que foi apreciado também na decisão recorrida.
Impõe-se, pois, a revogação da decisão recorrida e o consequente prosseguimento dos autos.

V. Decisão:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, devendo o processo prosseguir os seus termos.
Custas pelo decaimento a final.

Notifique.
Guimarães, 29 de fevereiro de 2024

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira (relatora)
Conceição Sampaio e
Jorge dos Santos