Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
990/03.1TABCL-A.G1
Relator: ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA
Descritores: PRAZO DE PRESCRIÇÃO
CRÉDITO RECONHECIDO
SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE O RECURSO PRINCIPAL E PROCEDENTE O RECURSO SUBORDINADO
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do Relator)

I- Em face do disposto no art. 311º, n.º 1, do C. Civil, mostra-se patente que o legislador veio prever uma maior proteção ao credor que, nos termos de uma sentença transitada em julgado ou de outro título executivo, possui o seu direito perfeitamente consolidado, o que é igualmente do conhecimento do devedor, pelo que a lei estabelece um prazo mais alargado para que exerça coativamente tal direito, independente do prazo a que estava inicialmente subordinado.

II- Sendo assim, uma vez obtida sentença que reconheça a indemnização, ainda que a mesma esteja dependente de liquidação, só a prescrição ordinária (20 anos – art. 309º, do C. Civil) pode extinguir a obrigação dessa forma reconhecida.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Na audiência de discussão e julgamento ocorrida no dia 02/10/2006 no âmbito do Processo Comum Singular nº (…), do então 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Barcelos, os demandantes civis José (…) e Maria (…), por si e como legais representantes do seu filho menor Jorge (…) e os demandados Domingos (…9, por si e em representação da demandada “D. (…), Lda.”, e João (…), transigiram sobre o pedido de indemnização civil que em tais autos havia sido deduzido pelos primeiros contra os segundos, nos seguintes termos:

1. Os demandados Domingos (…), por si e em representação da demandada “D. (…) Lda.”, e João (…), declaram reconhecer a obrigação de indemnizar os demandantes civis José (..) e Maria (…), por si e como legais representantes do seu filho menor Jorge (…), obrigação essa emergente dos factos descritos na acusação.
2. A indemnização assim confessada pelos demandados, atenta a circunstância de ainda não estarem nesta altura totalmente apurados os respectivos danos (emergentes daqueles factos), será liquidada em execução de sentença pelos demandantes.
3. Demandante e Demandados prescindem reciprocamente de procuradoria e custas de parte suportando a meio as custas em dívida a juízo”.

Apreciando tal transação, a Mmª Juíza, que presidiu à audiência, proferiu de imediato a seguinte decisão, que ficou consignada em ata:

José (…) e Maria (…), por si e em representação do menor Jorge (…), formularam pedido de indemnização civil contra Domingos (…), João (…) e D. (…), Lda.”, nos termos constantes de fls. 489 e ss, que aqui se dão por reproduzidos.
Em sede de julgamento demandante e demandados transigiram sobre o objecto do litígio nos termos supra referidos.
Atenta a disponibilidade do objecto da causa e a legitimidade dos sujeitos intervenientes homologo por sentença a transacção efectuada entre demandante e demandados, condenando e absolvendo as partes nos seus precisos termos e nesses mesmos termos fazendo cessar a causa e extinguir a instância – cf. arts.287º, al. D), 293º, nº 2, 294º, 299º, a contrario, e 300º, nº 4, do Código de Processo Civil.
Custas nos termos acordados, sem prejuízo do disposto no art. 66º, nº 1, da Lei nº 60-A/2005, de 30.12.
Notifique.”.

Entretanto, no dia 03/04/2017, no âmbito do aludido Proc. n.º 990/03.1TABCL, que ora corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Barcelos (Juiz 2), Jorge (..) deduziu contra Domingos (…) (por si e em representação da demandada “D. (…), Lda.” e João (…), o incidente de liquidação que consta de fls. 8/16, visando o apuramento dos danos aludidos naquela transação judicial, os quais computa na quantia global de € 553.500,00.

Notificados da dedução de tal incidente, apresentaram-se a contestar os Requeridos:

O requerido João (…) fazendo-o por exceção e por impugnação: por exceção invocando a prescrição do direito invocado pelo requerente; por impugnação refutando, em síntese, por desconhecimento, a factualidade alegada pelo requerente nos artºs. 4º a 80º da petição (cf. fls. 30/35).

Os requeridos Domingos (..) e “D.(…) Lda.” arguindo, também, a prescrição do direito invocado pelo requerente; sustentando que o valor – € 200.000,00 – dos danos não patrimoniais formulado pelo demandante no incidente de liquidação terá de ter sempre como limite a quantia de € 75.000,00, correspondente ao valor que o mesmo reclamou dos demandados em sede de pedido de indemnização civil formulado anteriormente nos autos; e, finalmente, impugnando, por desconhecimento, a factualidade alegada pelo demandante nos artºs. 5º a 47º, 49º a 74º e 76º a 80º da petição (cf. fls. 36/39).

Em 15.09.2017, procedeu-se à realização da audiência prévia (cf. fls. 41/44), no decurso da qual foi proferido despacho saneador, que, além do mais, conheceu da exceção de prescrição invocada pelos demandados, julgando a mesma improcedente; e, quanto ao valor dos danos não patrimoniais, anuindo à tese dos demandados Domingos (…) e “D. (…) Lda.”, reduziu-o para o montante de € 75.000,00, fixando o valor da causa em € 428.500,00.

Inconformado com aquele despacho saneador, na parte em que o tribunal a quo julgou improcedente a exceção da prescrição, dele recorreu o demandado João (…), nos termos que constam de fls. 45/52, apresentando as seguintes

CONCLUSÕES

I. O douto despacho recorrido violou o disposto no n.º 2 do art. 311º, no n.º 4 do art. 306° e no n.º 1 do art. 498°, todos do Cód. Civil.
II. A sentença que homologou a transação celebrada entre recorrente e recorrido tem o alcance de colocar o primeiro na obrigação de indemnizar, em montante a liquidar.
III. Enquanto não houver liquidação, a prestação não é devida, por facto imputável ao credor, pelo que o prazo da prescrição passa a ser de curto prazo, aplicando-se o disposto no n.º 2 do art. 311º e no n.º 1 do art. 498°, ambos do C.C.
IV. O devedor não pode ficar na situação de ter de esperar pelo decurso da prescrição ordinária, para fazer extinguir a obrigação, por pagamento da consignação em depósito, quando o credor não promove a liquidação da obrigação.
V. Na obrigação liquidada por sentença, o devedor sabe quanto deve e só não se exonera da obrigação porque não quer.
VI. Na obrigação em que a liquidação fica dependente da iniciativa, diligência, cooperação e boa-fé do credor, o devedor não pode exonerar-se da prestação e a injustificada demora na liquidação cria dificuldades de prova e eventual agravamento dessa prestação.
VII. Deve entender-se, face ao disposto no n.º 4 do art. 306° do C.C., que para obrigação líquida o prazo de prescrição é o ordinário, mas, para a obrigação ilíquida, a prescrição é curto prazo e de três anos.
VIII. Termos em que deve ser revogado o douto despacho recorrido e proferir-se aresto que julgue extinta, por prescrição, a obrigação que não foi liquidada dentro do prazo de três anos a contar do reconhecimento da obrigação de indemnizar, como é de Justiça.

De igual modo, inconformados com o aludido despacho saneador, também no segmento em que foi julgada improcedente a exceção da prescrição, dele recorreram os demandados Domingos (…) e “D. (…) Lda.”, nos termos que constam de fls. 53/58, formulando as seguintes

CONCLUSÕES

I. Em lugar da aplicação do prazo geral de prescrição previsto no artigo 309º do Código Civil, de 20 anos, o legislador optou por fixar um prazo reduzido para o direito de indemnização sustentado na responsabilidade civil extracontratual, regendo nessa matéria o artigo 498° do Código Civil.
II. Além da dificuldade de prova, razões de certeza e segurança jurídica fundamentam o estabelecimento do prazo especialmente curto de prescrição.
III. A prescrição, e em especial a prescrição de curto prazo, visa primacialmente tutelar os interesses do devedor, procurando acautelar o agente relativamente a situações de arrastamento excessivo geradoras de insegurança ou do maior risco de decisões materialmente injustas provocadas pelo funcionamento dos mecanismos probatórios.
IV. A aplicação dos prazos de prescrição estabelecidos no referido artigo 498° do Código Civil é afastada nas situações subsumíveis à previsão do artigo 311º do Código Civil.
V. Nos casos cobertos pelo artigo 311º, nº 1, do Código Civil o direito está definido e reconhecido, pelo que já não imperam as mencionadas razões determinantes da prescrição de curto prazo, o que não é, manifestamente, o caso dos autos.
VI. Em 02/10/2006, Demandante e Demandados nos presentes autos formalizaram transação, homologada por sentença da mesma data, transitada em julgado em 17/10/2006, que se limitou a reconhecer a validade formal do acordado entre as partes, não tendo conhecido do mérito da causa, nem emitido qualquer pronúncia sobre a relação substancial em litígio.
VII. Conforme é patente dos termos da transação em causa e da sentença homologatória, nenhuma indemnização foi então arbitrada ao Demandante, ora Recorrido, que, pois, tem ainda de obter a definição do seu direito de indemnização, que se mantém controvertido.
VIII. Ou seja, no caso dos autos, embora estejamos em presença de uma "sentença passada em julgado”, a mesma não reconheceu, não tornou "definitivamente certo" o direito indemnizatório do Demandante, ora Recorrido, não constituindo título executivo - conforme a expressa previsão do nº 5 do artigo 47° do Código de Processo Civil, tendo havido condenação genérica, a sentença só constitui título executivo após a liquidação.
IX. Contrariamente ao decidido pelo M.mo Juiz a quo, impor-se-á, pois, concluir que a situação sub judice não é enquadrável na previsão do nº 1 do artigo 311º do Código Civil - e isto quer se considere o respectivo teor literal, quer se atenda à respectiva ratio.
X. Em suma, transitada em julgado a sentença em liquidação, começou a correr novo prazo de prescrição (artigo 327°, nº 1, do Código Civil), de cinco anos, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 498° do Código Civil, e uma vez que é este o prazo prescricional do crime de ofensas à integridade física graves por negligência, em causa nos autos, pelo que, em 18/04/2017, quando os aqui Recorrentes foram notificados do presente Incidente de Liquidação, já há muito se havia completado o referido novo prazo prescricional de cinco anos.
XI. Ocorreu, pois, a prescrição do direito em causa o que implica a absolvição dos aqui Recorrentes do pedido (artigos 576º, nº 1 e nº 3, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal).
XII. Ao assim não decidir, o Tribunal a quo incorreu em erro de interpretação dos factos e em erro de interpretação e aplicação da lei, designadamente do disposto nos artigos 311º, nº 1, e 498° do Código Civil, pelo que a decisão recorrida não se pode manter.

Na sequência, veio o demandante Jorge (…) apresentar as suas contra-alegações relativamente aos aludidos recursos dos demandados, concluindo, quanto aos mesmos, que “o direito do demandante civil não se encontra prescrito, devendo, consequentemente, os recursos interpostos pelos demandados, ser julgados totalmente improcedentes”; e, concomitantemente, recorrer subordinadamente do despacho saneador preferido, na parte em que o tribunal reduziu o valor dos reclamados danos não patrimoniais para o montante de € 75.000,00, fixando o valor da causa em € 428.500,00, apresentando, neste particular as seguintes

CONCLUSÕES

1. Deve-se entender nos presentes autos, ao invés do decidido, que os termos da transacção substituem o peticionado, pois as partes são livres de transaccionarem como quiserem, incluindo por um valor acima do peticionado.
2. O Tribunal tem inteira razão quando refere "(...) que a condenação a proferir está limitada pelo valor fixado no pedido de indemnização civil”.
3. No entanto o limite em questão é o resultante do montante GLOBAL do pedido de indemnização civil e não os montantes parcelares desse pedido.

Termina, pugnando pela revogação do despacho saneador, na parte em que limitou a € 75.000,00, a indemnização que vier a fixar o dano não patrimonial do demandante.

O demandado João (…) apresentou as suas contra-alegações relativamente àquele recurso subordinado, tendo concluído pela improcedência do mesmo (cf. fls. 76/79).

Entretanto, o tribunal a quo havia proferido nos autos, em 07.02.2018, o despacho constante de fls. 75, com o seguinte teor:

Em complemento daquilo que se decidiu nos despachos proferidos a fls. 921, 926 e 928 dos autos, cujo teor aqui se reproduz para todos os efeitos legais, e face à inobservância do determinado no último dos aludidos despachos, ao abrigo do disposto no artigo 417º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil e artigo 27º, nº 1, do Regulamento das Custas Processuais, condeno o demandante Jorge na multa processual de 0,5 UC.
Notifique.
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Face à inércia do demandante e de modo a evitar mais delongas, notifique a parte contrária das alegações de recurso de fls. 904 e seguintes.

Uma vez notificado de tal decisão em 08.02.2018 (cf. ref.ª citius n.º 156807147 do processo principal), e não se conformando com a mesma, dela recorreu o demandante Jorge …), por recurso interposto a 15.03.2018 (cf. fls. 80/83), recurso esse cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório:

1. O artigo 255º do Código de Processo Civil, não tem aplicabilidade no processo penal, mesmo num incidente do pedido de indemnização civil,
2. porquanto, em processo penal, as notificações às partes, são feitas pela secretaria, nos termos do disposto no artigo 111º n° 2 do CPP, segundo o qual a comunicação de quaisquer atos processuais "(. . ) é feita pela secretaria, oficiosamente ou precedendo despacho da autoridade judiciária ou de polícia criminal competente, e é executada pelo funcionário de justiça que tiver o processo a seu cargo ( ... )"
3. O Código de Processo Civil apenas se aplica ao processo penal, nos casos omissos, o que não acontece no presente caso.
4. Assim sendo, a condenação do recorrente em multa, viola o disposto no artigo 111° nº 2 do CPP.

TERMOS em que deverá ser admitido e julgado procedente o presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, e a multa em que foi condenado o recorrido, com o que se fará inteira JUSTIÇA!”.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (artºs. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex. vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.

Neste âmbito, as principais questões decidendas traduzem-se nas seguintes:

- Como questão prévia, saber se o recurso de apelação interposto pelo demandante Jorge (…), a 15.03.2018, foi apresentado tempestivamente.
- Saber se ocorre a exceção perentória de prescrição do direito reivindicado pelos demandantes.
- Saber se o valor do pedido deverá coincidir com o pedido inicial proposto pelo demandante.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Factos Provados

Os acima consignados no Relatório.

IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A) Da tempestividade do recurso interposto pelo demandante a 15.03.2018

Resulta dos presentes autos que o recorrente Jorge (…), por despacho de 07.02.2018, foi condenado no pagamento da multa processual de 0,5 UC.

De tal decisão de condenação em multa ou sanção processual cabe recurso de apelação, a interpor no prazo de 15 dias, a contar da data da notificação da decisão, nos termos das disposições conjugadas dos artºs. 644º, n.º 2, al. e) e 638º, n.º 1, 2ª parte, do C. P. Civil.

Tendo em atenção que o respetivo despacho foi notificado ao recorrente em 08.02.2018, o prazo de 15 dias para interposição de recurso por parte do demandante iniciou-se a 13.02.2018 (art. 248º, do C. P. Civil), tendo expirado em 02.03.2018 (contando já com o prazo adicional previsto no art. 139º, n.º 5, do C. P. Civil).

Por sua vez, o recurso de apelação e respetivas alegações de recurso de tal despacho só foram apresentadas pelo demandante civil Jorge em 15.03.2018 (cf. fls. 80/83).

Pelo exposto, porque apresentado extemporaneamente, importa rejeitar o recurso de apelação apresentado pelo demandante civil a 15.03.2018, em conformidade com o disposto nos artºs. 638º, n.º 1, 2ª parte, 641º, n.º 2, al. a) e n.º 5 e 652º, n.º 1, al. b), do C. P. Civil.
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B) Da prescrição

Os demandados vieram recorrer do despacho saneador, na parte em que julgou improcedente a exceção de prescrição suscitada, sustentando, no essencial, que a sentença que homologou a transação alcançada entre as partes em 02.10.2006, transitada em julgado em 17.10.2006, não tornou “definitivamente certo” o direito indemnizatório do demandante, pelo que, sendo inaplicável in casu o disposto no art. 311º, n.º 1, do C. Civil, mas antes o n.º 2 do mesmo preceito legal, a partir do trânsito em julgado daquela decisão, começou a correr novo prazo de prescrição de cinco anos previsto no art. 498º, n.º 3, do C. Civil – e não o prazo prescricional geral de 20 anos – e, como tal, à data em que os demandados foram notificados do presente incidente de liquidação, já se havia completado aquele prazo prescricional mais curto de três ou de cinco anos, aplicável por via do disposto no art. 311º, n.º 2, do C. Civil.

O tribunal a quo entendeu, porém, ser de aplicar no caso em apreço, o regime emergente do disposto no art. 311º, n.º 1, do C. Civil, e, como tal, aplica-se ao direito que o demandante pretende exercer o prazo de prescrição (mais longo) de 20 anos (art. 309º, do C. Civil), prazo esse que, assim, não se encontra integralmente decorrido, considerando a data do acidente de que o demandante foi vítima (02.08.2003).

Vejamos então.

De acordo com o disposto no art. 306º, n.º 4, 1ª parte, do C. Civil, “se a dívida for ilíquida, a prescrição começa a correr desde que ao credor seja lícito promover a liquidação.

Por sua vez, estabelece o disposto no n.º 1 do art. 311º, do C. Civil, que: “O direito para cuja prescrição, bem que só presuntiva, a lei estabelecer um prazo mais curto do que o prazo ordinário fica sujeito a este último, se sobrevier sentença passada em julgado que o reconheça, ou outro título executivo.

Neste caso, mostra-se patente que o legislador veio prever uma maior proteção ao credor que, nos termos daquela sentença transitada em julgado ou de outro título executivo, possui o seu direito perfeitamente consolidado, o que é igualmente do conhecimento do devedor, pelo que a lei estabelece um prazo mais alargado para que exerça coativamente tal direito, independente do prazo a que estava inicialmente subordinado.

Explicitando a razão de ser do alargamento do prazo prescricional, salientou-se no Ac. STJ de 19.02.2004 (1) que:

A conversão do prazo de prescrição explica-se pela nova certeza e estabilidade do direito derivado da sentença, e porque o seu titular se sente mais à vontade para o não exercer com a prontidão com que o faria valer antes do reconhecimento judicial.
Ademais, deixa-se de verificar um dos fundamentos do instituto: penalizar a inércia do titular do direito. (2)
Por outro lado, não é pressuposto da aplicabilidade deste regime jurídico, a existência de uma sentença de condenação, cabendo aplicá-lo mesmo relativamente a sentenças de mera declaração ou apreciação. (3)
Porém, quando “a sentença ou o outro título se referir a prestações ainda não devidas, a prescrição continua a ser, em relação a elas, a de curto prazo” (art. 311º, n.º 2, do C. Civil).

A este propósito, cumpre igualmente trazer à colação a anotação a este preceito legal elaborada por Pires de Lima e Antunes Varela (4), designadamente ao considerarem que:

A sentença, ou outro título executivo, transforma a prescrição a curto prazo, mesmo que só presuntiva, numa prescrição normal, sujeita ao prazo de vinte anos (…) Para tanto é necessário que a sentença já tenha transitado em julgado.
Pode, porém, acontecer que haja condenação em prestações ainda não vencidas, como se se condena o devedor a pagar, para futuro, certa prestação alimentar. Em relação às prestações vincendas já não vale a regra do n.º 1. (…)
É necessário, porém, distinguir entre as prestações ainda não devidas e as prestações que são já devidas, que constituem já objecto dum direito actual, embora só devam ser efectuadas no futuro.

Volvendo ao caso em apreço, cumpre referir novamente os termos da transação alcançada, em 02.10.2006, entre os demandantes e os demandados, em sede do referido pedido de indemnização civil formulado no identificado processo penal.

Assim, do clausulado na referida transação consta que:

1. Os demandados Domingos (…), por si e em representação da demandada “D. (…) Lda.”, e João (…), declaram reconhecer a obrigação de indemnizar os demandantes civis José (,) e Maria (…), por si e como legais representantes do seu filho menor Jorge (…), obrigação essa emergente dos factos descritos na acusação.
2. A indemnização assim confessada pelos demandados, atenta a circunstância de ainda não estarem nesta altura totalmente apurados os respectivos danos (emergentes daqueles factos), será liquidada em execução de sentença pelos demandantes.
3. Demandante e Demandados prescindem reciprocamente de procuradoria e custas de parte suportando a meio as custas em dívida a juízo”.

Apreciando tal transação, a Mmª Juíza, que presidiu à audiência, proferiu de imediato, decisão homologatória de tal transação, “condenando e absolvendo as partes nos seus precisos termos …”.

Temos então como demonstrado que, na ocasião, os pais do ora demandante, em representação deste, então menor, deduziram pedido de indemnização civil, no âmbito do identificado processo-crime, sendo certo que, demandantes e demandados lograram chegar a acordo quanto ao mesmo pedido de indemnização civil, declarando expressamente os demandados reconhecerem a obrigação de indemnizar os demandantes, por si e como representantes do seu filho menor, ora requerente, obrigação essa emergente dos factos descritos na acusação, os quais vêm melhor descritos no art. 2º do requerimento de incidente de liquidação de sentença (cf. fls. 8 verso e 9).

Para, logo em seguida, consignarem que a correspondente indemnização assim confessada pelos demandados, atenta a circunstância de ainda não estarem, na ocasião, totalmente apurados os respetivos danos, emergentes daqueles factos, seria liquidada em sede de liquidação de sentença por parte dos demandantes.

Por conseguinte, forçoso é concluir que se mostram integralmente aceites, mormente pelos demandados, ora apelantes, todos os pressupostos legais de que emerge o direito de indemnização devida ao demandante, com base na responsabilidade civil delitual ou aquilina, mais concretamente: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano e e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano. (5)

No fundo, os demandantes, com o trânsito em julgado da sentença homologatória de tal transação, que condenou os demandados a cumprirem integralmente o acordado, viram o seu direito de indemnização perfeitamente consolidado e aceite por todos, apenas restando apurar o valor dos danos (patrimoniais e não patrimoniais) que compreendem tal indemnização, em sede de incidente de liquidação de sentença, que é exatamente aquilo que se traduz o presente processo.

Neste caso, tal como afirma Menezes Cordeiro “obtida sentença que reconheça a indemnização, só a prescrição ordinária pode extinguir a obrigação dessa forma reconhecida – art. 311º, n.º 1.(6)

Este mesmo Autor, enumerando alguns dos exemplos contemplados no art. 311º, n.º 1, do C. Civil, refere-se exatamente ao caso da “condenação em indemnização a liquidar em execução de sentença, em que o prazo passa dos 3 (artigo 498º/1) para os 20 anos (artigos 309º e 311º/1)”. (7)

Também a jurisprudência tem vindo uniformemente a sufragar esta mesma posição, salientando-se designadamente o Ac. RL de 13.01.2016 (8), onde se pode ler do seu sumário que:

Fica sujeito ao prazo ordinário de prescrição, o crédito reconhecido por sentença transitada em julgado, ainda que a obrigação seja ilíquida e, por consequência, o título executivo não seja suficiente para fundamentar uma execução (art. 311º, n.º 1, do C. Civil).(9)

Porque assim é, o prazo de prescrição do titular de tal direito, reconhecido e homologado por sentença, deverá ser considerado o prazo geral (mais longo) de 20 anos (art. 309º, do C. Civil) e não o prazo mais curto de prescrição de três ou cinco anos do direito fundado em responsabilidade civil extracontratual (art. 498º, nºs 1 e 3, do C. Civil).

Nesta medida, no caso em apreço, em que há um reconhecimento expresso do direito do demandante civil em ser indemnizado pelos danos que lhe advieram do sinistro retratado nos factos ilícitos constantes da acusação deduzida no referido processo penal, pretendendo o demandante civil ser ressarcido de tais danos, sem que se coloque qualquer dúvida que os mesmos danos tiveram a sua origem naqueles factos ilícitos, torna-se ingente concluir que não é aplicável in casu o disposto no n.º 2 do art. 311º, do C. Civil, mas antes o n.º 1 do mesmo preceito legal.

Destarte, porque à data da propositura da presente ação e, concomitantemente, da subsequente notificação dos demandados, ainda não havia decorrido o referido prazo ordinário de prescrição de 20 anos (art. 309º, aplicável ex. vi do art. 311º, n.º 1, do C. Civil), teremos necessariamente que concluir que ainda não ocorreu a prescrição do direito reivindicado pelo demandante e, como tal, é de manter a decisão do tribunal a quo que decidiu julgar improcedente a referida exceção perentória de prescrição.

Conclui-se, pois, pela improcedência de ambas as apelações interpostas pelos demandados.
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C) Do valor da causa

Em recurso subordinado, o demandante insurgiu-se contra o despacho saneador proferido pelo tribunal a quo, na parte em que decidiu reduzir para o valor de € 428.500,00 o valor da causa.

Neste circunspeto, o tribunal a quo consignou mormente o seguinte:

No presente incidente o Autor liquidou o seu pedido no valor global de € 553.500:00, subdividido em € 3.500,00 por danos patrimoniais, € 350.000,00 pela incapacidade permanente resultante do incidente que o vitimizou e € 200.000,00 por danos não patrimoniais resultantes desse incidente.

Reportando-nos agora ao pedido de indemnização anteriormente deduzido a fls. 489 e seguintes dos autos verifica-se, efectivamente, que a indemnização pelos danos não patrimoniais resultantes do apontado incidente foi definitivamente liquidada em € 75.000,00, apenas se relegando para execução de sentença o apuramento dos danos da incapacidade parcial permanente que também resultou para o Autor daquele incidente.

Nessa medida, assiste, neste segmento, inteira razão aos Réus, uma vez que no presente incidente de liquidação, no que respeita aos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor, a condenação a proferir está limitada pelo valor fixado no pedido de indemnização civil, sendo certo que a sentença que condenasse em quantidade superior a esse montante estaria a violar o disposto no artigo 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Importa, porém, considerar que, conforme melhor resulta dos termos da dita transação alcançada entre as partes no âmbito do pedido de indemnização civil deduzido no referido processo penal, os intervenientes decidiram relegar, na sua totalidade, a liquidação dos “respectivos danos”, emergentes dos factos ilícitos em causa; portanto, sem fazer qualquer menção à natureza (patrimonial ou não patrimonial) dos danos a indemnizar e, bem assim, sem imporem qualquer limite ao valor dos danos anteriormente reclamados, designadamente de natureza não patrimonial.

Por outro lado, como é uniformemente aceite, os limites de condenação contidos no art. 609º, n.º 1, do C. P. Civil, entendem-se referidos ao pedido global e não às parcelas em que, para demonstração do quantum indemnizatório, há que desdobrar o cálculo do prejuízo.

No nosso caso, sequer temos como demonstrado qual o valor do pedido indemnizatório global inicialmente formulado pelos demandantes no âmbito daquele pedido de indemnização civil (10); pelo que, a ser assim, o mesmo sempre se deverá entender como variável, à luz do disposto no art. 299º, n.º 4, do C. P. Civil.

Termos em que, sem necessidade de maiores delongas, se conclui, pela procedência do recurso subordinado apresentado pelo demandante, devendo, consequentemente, fixar-se o valor da causa na quantia global inicialmente apresentada pelo demandante (€ 553.500,00), sem prejuízo da possibilidade de correção prevista no disposto no art. 299º, n.º 4, in fine, do C. P. Civil.
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V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:

A) Rejeitar o recurso interposto pelo demandante Jorge … em 15.03.2018 (cf. fls. 80 a 83).
B) Julgar improcedentes as apelações apresentadas pelos demandados.
C) Julgar procedente o recurso subordinado apresentado pelo demandante e, consequentemente, fixar o valor da causa em € 553.500,00.

Custas pelo demandante no que se refere à apelação autónoma por si deduzida.
Custas das demais apelações pelos demandados respetivamente.
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Guimarães, 07.02.2019

Este acórdão contem a assinatura digital de:
Relator: António José Saúde Barroca Penha.
1º Adjunto: Desembargadora Eugénia Marinho da Cunha.
2º Adjunto: Desembargador José Manuel Alves Flores.


1. Proc. n.º 04A095, relator Afonso de Melo, disponível em www.dgsi.pt.
2. Neste sentido, vide Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, Anotação aos artigos 296º a 333º do Código Civil, Coimbra Editora, 2008, pág. 88.
3. Neste sentido, cfr. Vaz Serra, Prescrição extintiva e caducidade, BMJ 106, pág. 139.
4. Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 4ª edição, pág. 281.
5. Neste sentido, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Vol. I, pág. 471.
6. Direitos das Obrigações, 2º Volume, AAFDL, 2001, pág. 431.
7. In Tratado de Direito Civil, Vol. V, Parte Geral – Exercício Jurídico, Almedina, 2ª edição, pág. 211.
8. Proc. n.º 2342/14.9TTLSB-C.L1-4, relatora Paula Santos, disponível em www.dgsi.pt.
9. No mesmo sentido, cfr., por todos, Ac. STJ de 08.04.2008, relator Fonseca Ramos; Ac. STJ de 16.06.2009, proc. n.º 43/07.3TBPTL.S1, relator Urbano Dias; Ac. STJ de 09.06.2016, proc. n.º 190/98.0TBCMN-B.G1.S1, relator Oliveira Vasconcelos; Ac. RG de 02.02.2017, proc. n.º 1151/12.4TTGMR-B.G1, relatora Vera Sottomayor; e Ac. RP de 15.09.2014, proc. n.º 881/13.8TTBRG-A.P1, relatora Paula Leal de Carvalho, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
10. Não sendo, portanto, aqui de aplicar os fundamentos da jurisprudência que impõe como limite da liquidação o valor do pedido inicialmente formulado em sede declarativa: por todos, cfr. Ac. RG de 26.11.2009, proc. n.º 5796/05.0TBBCL.G1, relatora Conceição Saavedra, acessível em www.dgsi.pt.