Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
109/24.5T8VNF.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
JUSTO RECEIO
LESÃO JÁ CONSUMADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - São requisitos da concessão da providência cautelar não especificada, a probabilidade séria da existência do direito invocado, o receio fundado (em termos objetivos) de lesão grave e irreparável ou de difícil reparação, a adequação da providência à situação de lesão iminente e a inviabilidade de encontrar essa tutela através de procedimentos cautelares especificados.
2 – Estão excluídas da proteção cautelar comum as lesões de direitos já inteiramente consumadas.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

AA deduziu procedimento cautelar comum (preliminar de ação judicial a intentar oportunamente) contra BB e mulher CC, pedindo que seja decretada a providência cautelar e, em consequência:

1) Ordenar aos Requeridos que executem ou mandem executar, à sua custa, em prazo não superior a trinta dias, as obras necessárias a dotar o imóvel locado de condições de habitabilidade, de forma a que o Autor possa retomar a habitação do mesmo;
2) Declarar a suspensão da obrigação de o Requerente pagar aos Requeridos a renda convencionada pelo arrendamento desde ../../2023 e até que proporcionem novamente àquele o gozo do imóvel locado;
3) Ordenar aos Requeridos que assegurem provisoriamente ao Requerente um imóvel na mesma área geográfica, com semelhante tipologia e área, enquanto não forem concluídas as obras necessárias à reparação do imóvel identificado no artigo 1º ou, subsidiariamente, obrigar os Requeridos a pagar ao Requerente a quantia mensal de € 300,00 (trezentos euros) enquanto não forem concluídas as obras necessárias à reparação do imóvel identificado no artigo 1º, por forma a que possa arrendar outro imóvel para sua habitação.
4) Fixar a quantia de € 30,00 (trinta euros), a título de sanção pecuniária compulsória, a repartir, em partes iguais, pelo Requerente e pelo Estado, por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações que lhe forem impostas pela Sentença que vier a ser proferida nos autos, a contar da data do trânsito em julgado (artigo 365º, nº2 do Código de Processo Civil e artigo 829º-A do Código Civil.
Funda a sua pretensão na circunstância de ter celebrado com os requeridos um contrato de arrendamento para fins habitacionais relativamente a imóvel, mediante renda mensal no valor de € 80,00, que, por força de incêndio (ocorrido em 05/08/2023), ficou sem condições de habitabilidade (danos na cobertura, com a estrutura de madeira queimada e a telha parcialmente destruída), sendo que os requeridos se recusam a efetuar as obras de reabilitação, o que o impede de fruir do imóvel, não conseguindo arrendar outro de iguais características por igual valor, estando a viver de favor em casa de uma irmã. Os requeridos comunicaram ao requerente que o contrato de arrendamento tinha terminado por caducidade por força da perda da coisa locada e consequente impossibilidade objetiva da prestação, o que não traduz a realidade dos factos, pois o imóvel pode ser reconstruído, proporcionando habitação ao requerente.
Mais alegou que sem o decretamento da providência, a decisão judicial que venha a ser proferida na ação a intentar (para declaração da ilicitude da caducidade do contrato de arrendamento, bem como condenação dos senhorios no pagamento de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais), não terá qualquer efeito útil, uma vez que os requeridos poderão opor-se à renovação do contrato de arrendamento, fazendo-o cessar em 31/12/2025.
Foi proferida decisão de indeferimento liminar “porquanto não se encontram desde já, e independentemente da prova que pudesse vir a ser efetuada, reunidos os requisitos para a sua admissibilidade, nomeadamente, o periculum in mora, carecendo o Requerente de um receio que se afigure fundado, no sentido de os Requeridos lhe virem a causar uma lesão grave e dificilmente reparável”.

Discordando da decisão, dela interpôs recurso o requerente, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

A. O Tribunal a quo indeferiu liminarmente o procedimento cautelar não especificado intentado pelo Apelante, por considerar que não se encontram desde já, e independentemente da prova que pudesse vir a ser efetuada, reunidos os requisitos para a sua admissibilidade, nomeadamente o periculum in mora.
B. Com tal decisão, o Tribunal recorrido incorreu em erro na aplicação do direito, pois é evidente que só o decretamento da providência, ordenando aos Requeridos que executem obras no arrendado que foi parcialmente destruído por um incêndio (em cumprimento do dever de as fazer que sobre eles impende na qualidade de senhorios), é adequado a evitar a violação do direito ao arrendamento para a habitação do Requerente.
C. Dos pressupostos de admissibilidade do procedimento cautelar comum, o único que o Tribunal a quo considerou não se encontrar preenchido in casu é o do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável, para o que considerou que o Requerente alegou a ocorrência de uma situação lesiva do seu direito já consumada e ainda que não se pode concluir que uma eventual lesão do direito do Requerente seria dificilmente reparável, nomeadamente por via indemnizatória.
D. Sucede que, a finalidade das providências cautelares é evitar a verificação de uma lesão grave e dificilmente reparável suscetível de ser originada, quer por uma lesão iminente, quer pela continuação de uma lesão já em curso, sendo esta última a que se verifica in casu.
E. Ademais, deve entender-se verificado o periculum in mora sempre que exista o fundado receio de que, quando o processo principal terminar, a decisão que vier a ser proferida já não venha a tempo de dar resposta às situações jurídicas carecidas de tutela.
F. No caso decidendo, a privação do direito ao arrendamento para a habitação do Requerente, aqui Apelante, constitui em si mesmo um dano de difícil reparação, sendo certo que uma indemnização que possa vir a ser atribuída ao Requerente na ação principal pode ter a virtualidade de compensar mas nunca de reparar o dano!
G. O Requerente justificou a apresentação do presente procedimento cautelar na contínua recusa dos Requeridos no cumprimento da obrigação contratual de proporcionar ao Requerente o gozo da coisa locada para os fins a que a mesma se destina, a que corresponde, no reverso, o direito do Requerente ao uso do imóvel locado para a sua habitação.
H. Essa obrigação, que recai sobre os senhorios/Requeridos, implica a realização das obras de reparação dos estragos causados pelo incêndio, obras essas que foram identificadas no auto de vistoria elaborado pelo Município ..., cuja execução é possível e foi determinada, naquele auto, aos proprietários/Requeridos, com carácter de urgência.
I. De facto, no Auto de Vistoria junto aos autos, concluiu-se que o Município deveria diligenciar e comunicar ao proprietário, aqui Requeridos, com carácter de urgência, no sentido de, entre o mais, “Demolir e/ou reconstruir a cobertura destas duas habitações, na forma semelhante ao existente (4 águas), devendo para o efeito fazer uma estrutura nova de madeira e aplicar telha nova”.
J. Ora, sem o decretamento da presente providência cautelar, a decisão judicial que venha a ser proferida na ação principal não terá qualquer efeito útil, porquanto, os Requeridos podem opor-se à renovação do contrato de arrendamento sub judice e, por essa via, aquele cessará em 31/12/2025, pelo que uma decisão judicial que declare a ilicitude da caducidade do contrato invocada pelos Requeridos e que os condene a proceder às obras de reparação do locado (de modo a assegurar-se o gozo do mesmo ao locatário/Requerente) não produzirá qualquer efeito útil se o Requerente já não envergar a qualidade de locatário.
K. Na verdade, a presente providência cautelar visa evitar a ocorrência dos danos continuados, verificando-se a necessidade de ser concedida a tutela cautelar que evite a persistência dos atos lesivos.
L. Assim, salvo o devido respeito por opinião contrária, o Tribunal a quo não devia ter indeferido liminarmente o procedimento cautelar, uma vez que não se verifica uma situação de manifesta improcedência nos termos previstos no nº1 do artigo 590º do Código de Processo Civil.
M. De facto, na petição encontram-se alegados factos que implicam, não só, a admissibilidade do procedimento, como também a procedência dos pedidos aí formulados.
N. Assim, o Tribunal a quo violou o disposto nos artºs. 157º, 362º, nº 1 e 2, 368º, nº1, 381º e 590º, do Código de Processo Civil, no artigo 70º, nº 1, do Código Civil, nos artigos 20º, nº 4, 25º, nº 1 e 65º da Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada a sentença recorrida, substituindo-a por outra que admita liminarmente o presente procedimento cautelar, com o consequente prosseguimento dos presentes autos.
Assim se fazendo, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!

O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos, com efeito suspensivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver traduz-se em saber se ocorrem os fundamentos para o indeferimento liminar do presente procedimento cautelar.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos a considerar são os constantes do relatório supra.

Na sentença recorrida, considerou-se que, para além de não se verificar o requisito resultante de uma necessidade de proporcionalidade, no sentido de o prejuízo resultante do decretamento da providência não superar o que com a mesma se pretende acautelar expresso no artigo 387º, nº 2, do C. Processo Civil e de adequação da providência à lesão iminente “(pois embora a resposta se intua, a verdade é que se desconhece se a reparação imediata do imóvel pelos requeridos, como pretendido, acarreta em si mesma uma lesão aos requeridos superior àquela que o requerente visa obter)”, não se encontra indiciada a existência de um fundado receio numa lesão grave e dificilmente reparável do direito do requerente, uma vez que não está alegada a existência de qualquer dano ou lesão iminente ou futura do seu direito, “antes se configurando a factualidade por si alegada, como reveladora da ocorrência de uma situação lesiva do seu direito, mas consumada”.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 362.º, n.º 1 do CPC “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”
São requisitos da concessão desta providência a probabilidade séria da existência do direito invocado, o receio fundado (em termos objetivos) de lesão grave e irreparável ou de difícil reparação, a adequação da providência à situação de lesão iminente e a inviabilidade de encontrar essa tutela através de procedimentos cautelares especificados – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, CPC Anotado, vol. I, pág. 419.
Tal como referido na obra citada, o recurso a esta tutela cautelar é compatível com a invocação de qualquer direito, mas não se pode confundir com a tutela definitiva que se pretende obter através da ação ou execução, não se substituindo à ação principal. “Devem os tribunais estar atentos ao eventual uso abusivo de instrumentos provisórios para resolução de litígios, na medida em que seja de intuir que aquilo que o requerente pretende é beneficiar de uma medida que, ainda que provisória, sirva para alavancar exigências irrazoáveis contra a parte contrária, provocando um desequilíbrio que prejudique, a final, a justa composição da lide” – autores e obra citada, pág. 419.
E, como também no mesmo local se pode ler, a situação de perigo contra a qual se pretende defender o lesado deve ser atual, exigência que leva a excluir da proteção cautelar comum as lesões de direitos já inteiramente consumadas.
No caso dos autos a lesão do direito do requerente – direito de habitar o imóvel em questão por via de contrato de arrendamento – já se consumou, pois a casa ficou sem condições de habitabilidade e o senhorio fez caducar o contrato por força da perda da coisa locada e consequente impossibilidade objetiva da prestação.
A discussão sobre a ilicitude de tal caducidade não pode fazer-se num procedimento cautelar, mas sim na ação própria. Se a ação se estender para além do prazo de renovação do contrato (caso em que mesmo que fosse decretada a ilicitude da caducidade do contrato, o mesmo não seria renovado pelo senhorio), ficará sempre o requerente com a possibilidade de pedir a indemnização correspondente aos danos por si sofridos.
Não pode é, através desta providência cautelar, substituir-se à ação principal, obtendo aqui o resultado que eventualmente conseguiria acolá.
Como bem se salienta na decisão recorrida: “A mera circunstância do Requerente estar a sofrer um prejuízo, afigura-se como insuficiente para merecer a tutela de uma providência cautelar, pois, no rigor dos princípios, o legislador não entendeu que o periculum in mora se bastasse com um simples receio fundamentado de uma qualquer consequência, mas sim este receio de verificação de lesões graves e dificilmente reparáveis. Ora, a existir neste caso este receio fundado, sempre cumpriria determinar quais os danos graves e irreparáveis que adviriam da conduta do requerido que não se compadecessem com a sua resolução num processo comum (…) da factualidade alegada, também não se pode concluir que uma eventual lesão do direito do Requerente seria dificilmente reparável, nomeadamente, por via indemnizatória”.
Se faltar o periculum in mora, isto é, se o requerente não estiver, pelo menos, na iminência de sofrer qualquer lesão ou dano, falta a necessidade da composição provisória e a providência não pode ser decretada, porque o periculum é um elemento constitutivo da providência requerida, obstando a sua inexistência ao respetivo decretamento (Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, LEX, p. 232)
Note-se que qualquer providência tem cariz excecional e apenas pode ser usada em situações de urgência e cabal necessidade, quando a ação de que é dependente não possa, atempadamente, apreciar e tutelar – pelas vias normais e com plena igualdade de armas dos litigantes – o pedido do autor (cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 01/02/2011, in www.dgsi.pt, de que fomos relatora).
Ou seja, como bem se decidiu em primeira instância não está alegada nos autos uma situação de lesão do requerente irreparável ou de muito difícil reparação que justifique o recurso a um procedimento cautelar, que deve, na medida do possível, conciliar o interesse da celeridade com o da ponderação e nunca devendo ser o substituto da ação comum, apenas como uma forma rápida de realização dos interesses dos requerentes.
A citação que vem feita nas alegações de recurso, de acórdão por nós proferido neste Tribunal da Relação, processo n.º 3207/20.0T8BRG.G1, disponível em www.dgsi.pt, está desenquadrada da questão fática dos presentes autos, pois nesse acórdão foi apreciada uma situação de lesões continuadas em que era urgente prevenir a continuação ou a repetição dos atos lesivos (infiltrações nas frações do requerente, através de partes comuns do prédio, designadamente nas fachadas frontal e traseira e na faixa inferior junto ao passeio e entrada do prédio), danos ou lesões que tendiam a agravar-se, com risco de ruína de partes do teto da marquise, com iminente perigo para a integridade física do arrendatário que vive na fração em causa. Neste caso, atenta a urgência da situação carecida de tutela, o tribunal pode antecipar a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal (providência de natureza antecipatória), efeito que acabará por ter um caráter definitivo.
Não é esse, como já vimos, o caso dos autos em que não está alegada a existência de qualquer dano ou lesão iminente ou futura do direito do requerente, mas apenas uma situação lesiva do seu direito, já consumada, uma vez que o imóvel arrendado ficou sem condições de habitabilidade, na sequência do incêndio, tendo o senhorio comunicado a caducidade do contrato de arrendamento, por perda da coisa locada.
Improcede, assim, a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
***
Guimarães, 22 de fevereiro de 2024

Ana Cristina Duarte
Eva Almeida
Alcides Rodrigues