Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4070/23.5T8VNF.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR DE SUSPENSÃO DA DELIBERAÇÃO SOCIAL
DELIBERAÇÃO RENOVATÓRIA
VÍCIOS SUBSTANCIAIS
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Estando pendente um procedimento cautelar de suspensão de deliberação social, sobrevindo uma deliberação renovatória daquela, não há que proceder, no processo pendente, à apreciação dos eventuais vícios da deliberação renovatória, os quais terão de ser discutidos em processo autónomo.
II – Estando pendente um procedimento cautelar de suspensão de deliberação social, sobrevindo uma deliberação renovatória daquela, o desfecho do procedimento cautelar depende da atitude do requerente: i) invocando e demonstrando ter instaurado procedimento cautelar de suspensão da deliberação renovatória ou acção de declaração de nulidade ou anulação da mesma, deve o procedimento cautelar de suspensão da deliberação social inicial prosseguir; ii) não invocando o requerente do procedimento cautelar inicial ter instaurado procedimento cautelar de suspensão da deliberação renovatória ou, logo, acção de declaração de nulidade ou anulação da mesma, deverá o procedimento cautelar inicial ser declarado extinto por impossibilidade superveniente da lide.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

1. Relatório

AA intentou procedimento cautelar de suspensão de deliberação social contra EMP01.... Lda, pedindo que, com dispensa da audiência prévia da requerida, fossem suspensas todas as deliberações sociais tomadas na assembleia geral da requerida de 12/06/2023.

Em síntese, alegou que é sócia da requerida, sendo também sócias a mãe e três irmãs; as deliberações naquela assembleia geral são nulas por não ter sido convocada com a antecedência mínima de 15 dias.

Mais alegou, também em síntese, que o pai, BB, padece de doença que limita a sua capacidade para gerir a sua pessoa e bens; em virtude disso, a requerente intentou acção especial de acompanhamento de maior em relação ao pai; a 26/07/2022 o pai divorciou-se da mãe, representado por procurador, não tendo capacidade para tomar essa decisão, nem perceber o alcance das suas consequências legais; a 02/08/2022 o pai foi conduzido ao ..., a um Cartório Notarial, onde assinou uma escritura de partilha, tendo sido adjudicado todo o património à ex-esposa, sem que aquele recebesse qualquer prestação; o pai não tinha capacidade para entender a referida escritura; a 06/04/2023 foi proferida sentença, no processo de maior acompanhado, que declarou que BB beneficiará da medida de acompanhamento de representação geral com administração total de bens e fixou em 11/04/2022 o momento a partir do qual tal medida se tornou conveniente; da referida sentença foi interposto recurso; é intenção da requerente intentar todas as acções necessárias à anulação do divórcio e da partilha, acções essas que podem implicar a nulidade de todos os actos praticados posteriormente, mormente as deliberações tomadas na assembleia geral de 12/06/2023.

Foi ordenada a citação da requerida, que deduziu oposição, por excepção e por impugnação, e requereu até ../../.... para renovar as deliberações tomadas no dia 12 de Junho de 2023, nos termos do art.º 62º do CSC.

Foi proferido despacho a determinar que a requerente se pronunciasse sobre as excepções.

A requerente veio pronunciar-se quanto à questão da renovação da deliberação nula dizendo, em síntese, que, se o CSC permite a renovação de deliberação nula, no caso de violação de regra procedimental, tal não abrange decisões material e substancialmente nulas, tomadas por quem ilegalmente passou a figurar como sócio da sociedade e por quem passou a ter a maioria do capital, naquilo que vulgarmente se denomina por “teoria do fruto da árvore envenenada”, mormente das decisões de vontade, deliberações, negócios ou actos, como seja de divórcio e partilha realizado em momento em que BB já não se encontrava capaz de o fazer; ao contrário do alegado pela requerida, a nulidade de que padece a deliberação de 12/06/2023 não resulta apenas do incumprimento do prazo de antecedência para a convocatória da Assembleia, mas também dos actos anteriores de disposição das quotas através de acto de partilha, nulo por força da incapacidade de que padecia e padece BB e que inquina os actos praticados posteriormente; não existe motivo para ser concedido prazo nos termos do art.º 62º, n.º 3 do CSC.

A 04/08/2023 a requerida requereu a junção aos autos da Acta da Assembleia de renovação das deliberações sociais, Acta essa onde consta que no dia 28/07/2023 reuniu a Assembleia Geral Extraordinária da sociedade EMP01..., Ldª, não foi admitida a presença do Ilustre mandatário da aqui requerente por aplicação do disposto no n.º 5 do art.º 249º do CSC e ainda o seguinte:
“Verificou-se estarem reunidas todas as condições para que a Assembleia reúna e delibere validamente sobre todas as matérias constantes da Ordem do dia para que foi convocada, a saber:
“1. Deliberar a renovação das deliberações constantes dos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 da Assembleia Geral da sociedade de Junho de 2023, em virtude do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais que corre termos sob o n.º 4070/23...., junto do Juízo do Comércio ... – J ..., por forma a renovar e conferir efeito retroativo às deliberações tomadas, com o propósito de:
(…)
Dando-se entrada no Ponto um da Ordem de trabalhos foi pelas sócias declarado nada terem a referir quanto ao ponto pelo que foi o mesmo colocado à votação e aprovado por unanimidade das sócias presentes, sendo assim aprovada a renovação das deliberações constantes dos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 da Assembleia Geral da sociedade de 12 de Junho de 2023, em virtude do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais que corre termos sob o n.º 4070/23...., junto do Juízo do Comércio ... – J ..., por forma a renovar e conferir efeito retroativo às deliberações tomadas
(…)”

Foi designada data para inquirição de testemunhas.

A requerente veio pronunciar-se quanto à junção da Acta da Assembleia Geral de 28/07/2023,dizendo, em síntese e no que releva à economia do recurso, que tal assembleia manteve intocados os vícios, de ordem material e substancial, que enfermavam a deliberação originária; tais nulidades não ficam sanadas com a renovação da deliberação tomada a 28/07/2023; a renovação das deliberações sociais não retira o efeito útil ao procedimento cautelar, por se manterem os vícios constantes da deliberação de 12/06/2023, à excepção do vício procedimental respeitante à convocatória; é sua intenção impugnar a deliberação de 28/07/2023, devendo sobrestar-se na prolação de uma decisão de extinção da instância nestes autos, procedendo-se antes à suspensão da instância, até que seja proferida decisão na acção em que será impugnada a deliberação renovadora.

Pronunciou-se a requerida dizendo que as deliberações tomadas na Assembleia geral de 28 de Julho de 2023 revogaram os efeitos das deliberações tomadas na Assembleia de 12 de Junho de 2023; uma vez que não foi requerida a sua suspensão ou anulação, nos prazos legais, tais deliberações são válidas e insusceptíveis de impugnação; a presente lide é agora inútil; a discussão sobre a validade das deliberações tomadas a 28 de Julho de 2023 já não é possível noutro processo, por ter caducado o direito da requerente para esse efeito, e não é possível nestes autos por consubstanciar uma alteração do pedido e causa de pedir, inadmissível em procedimento cautelar e a que a requerida se opõe expressamente.

Teve lugar a diligência designada na qual foi proferida a seguinte decisão:
“Nos presentes autos de providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, em que é Rqt.e AA e R.da EMP01... - Investimentos Imobiliários, Lda., uma vez que, conforme alegado na oposição, as deliberações postas em crise foram já renovadas, por AG de 28-7, cuja acta foi já junta aos autos, considerando que é jurisprudência unânime que a deliberação renovadora, na pendência duma instância processual cujo objeto consista na apreciação da validade da deliberação original, produz efeitos processuais sobre a instância pendente, tendo por consequência a renovação da deliberação, forçoso é declarar a extinção da instância, com fundamento em inutilidade (ou impossibilidade) superveniente da lide (cfr. art. 277.º, al. e), do CPC).
Custas pela Requerente.”

A requerente interpôs recurso, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos para produção de prova e demais termos até decisão final quanto à suspensão das deliberações sociais de 12/06/2023 e, caso a decisão recorrida seja mantida, seja a Requerida condenada nas custas, uma vez que a extinção da instância ocorreu por facto que lhe é imputável, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. A sentença recorrida viola, por erro de interpretação, as normas dos artigos 277.º, alínea e) do CPC e 62.º do CSC.
B. A declaração de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide teve como fundamento a deliberação renovadora, datada de 28/07/2023, que apenas
sanou o vício procedimental pelo facto de não ter sido cumprido o prazo de antecedência mínimo da convocatória, confirmando as demais deliberações e atribuindo efeito retroactivo a 12/06/2023.
C. A deliberação renovadora não sanou, nem podia, os vícios materiais e substanciais de que padeciam as deliberações de 12/06/2023, nomeadamente o facto de terem sido tomadas decisões por quem passou a figurar ilegalmente como sócio da sociedade e por quem passou a ter a maioria do capital.
D. Ilegalidade resultante do divórcio e partilha, respectivamente, em ../../2022 e ../../2022, entre BB, sócio maioritário da Requerida, e CC, efectuada quando BB já não dominava a sua vontade.
E. BB é requerido em processo especial de acompanhamento de maior no âmbito do processo n.º 626/22...., onde se apurou que desde o dia 11/04/2022 foi sujeito a internamento e em que a doença Alzheimer atingiu um pico crítico e que o funcionamento neurológico daquele encontrava-se prejudicado, devido à existência de défices significativos em áreas que limitam a sua capacidade para poder gerir a sua pessoa e bens, que a sua deficiência é de natureza psicológica, sendo que tais deficiências limitam o desempenho em termos volitivos e cognitivos e traduz-se em quadro irreversível e crónico, não havendo à data tratamentos curativos.
F. Os sócios representativos da maioria do capital social da Requerida resultante daqueles actos ilegais mantiveram-se na deliberação renovadora, não podendo sanar o vício material, mas somente o procedimental.
G. No entender de Menezes Cordeiro: “Deliberações nulas. O 62.°/1 admite a renovação apenas das deliberações nulas por vícios de procedimento – os contemplados no 56.°/l, d) e 6): desde que removidos os vícios em causa. A contrario e pela natureza das coisas, não é possível a renovação de deliberações nulas por vícios de fundo – 56.°/1, c) e d): a remoção do vício implicaria já deliberações diferentes.”
H. Veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 04/02/2021, processo n.º 949/20.4T8VNF-A.G1, disponível para consulta em www.dgsi.pt , onde se deixou sumariado: “As deliberações sociais afetadas por vício de conteúdo ou de fundo que determina a sua nulidade nunca podem ser objeto de deliberação social renovatória.”
I. A declaração de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, no caso concreto, não devia ter ocorrido, conforme entendimento sufragado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 04/12/2008, processo n.º 0836512, disponível para consulta em www.dgsi.pt , onde ficou decidido: “Não se verifica a inutilidade superveniente da lide numa acção de anulação de deliberação social, por ter sido adoptada uma nova deliberação, apelidada de renovatória da impugnada e sem sanar os vícios que à primeira eram assacados.”
Sem prejuízo,
J. A decisão recorrida, no caso de ser mantida, que apenas se admite por mero dever de patrocínio, deve ser alterada quanto à condenação em custas.
K. Se a instância for extinta por inutilidade superveniente da lide, é-o por facto
imputável à Requerida, que neste caso as deve pagar.
L. O facto que retirar utilidade à lide estava no domínio da Requerida, que aprovou deliberação renovadora, assumindo que a anterior deliberação padecia de vício que determinava a sua nulidade.
M. A decisão recorrida, se vier a ser mantida, deve ser alterada nesta parte, condenando a Requerida em custas de acordo com o artigo 536.º, n.º 3, parte final e n.º 4 do CPC.

A requerida contra-alegou dizendo que, quanto às custas do processo em 1.ª instância, nada tem a opor que a responsabilidade pelo seu pagamento lhe seja imputada, corrigindo-se, para esse efeito, a sentença e, no mais pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida.

Face às conclusões da recorrente são duas as questões que se colocam:
- a principal é saber se a decisão recorrida, que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, deve ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos;
- subsidiariamente, caso a referida decisão seja mantida, é saber se responsável pelas custas da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide é a requerida.

3. Fundamentação de facto

As incidências fácticas relevantes para a decisão são as indicadas no antecedente relatório e que aqui se dão por reproduzidas, apenas cabendo acrescentar que:

a) A Assembleia Geral de 12/06/2023 tinha a seguinte ordem de trabalhos:
“1. Deliberar sobre os documentos de prestação de contas referentes ao exercício relativo ao ano de 2022.
2. Deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados.
3. Deliberar sobre a destituição do gerente BB.
4. Deliberar sobre a designação das sócias DD e EE como co-gerentes da sociedade e da fixação da sua remuneração.
5. Deliberar sobre a alteração do pacto social da sociedade com vista à sua harmonização com a actual repartição do capital social e gerência à alteração da forma de obrigar da sociedade, alterando-se em conformidade:
a. o artigo 3º, para o qual se propõe a seguinte redacção (…);
b. o artigo 6º, para o qual se propõe a seguinte redacção: (…)
c. o artigo 7º, para o qual se propõe a seguinte redacção: (…)
6. Deliberar sobre a contratação pela sociedade de financiamento, com garantia hipotecária, junto da Banco 1... (…)
7. Deliberar sobre a ampliação ou reforço das hipotecas a favor da Banco 1..., SA (…)
8. Deliberar conferir poderes à gerência da sociedade para, em representação da sociedade, e para os efeitos das deliberações aprovadas nos dois pontos anteriores, outorgar, celebrar ou assinar todos os documentos, contratos e escrituras que vierem a ser considerados necessários para os efeitos, bem como conceder à gerência, nesse âmbito, plenos poderes para, em nome e em representação da sociedade, acordar as condições que para o efeito vier a entender como mais convenientes, dentro os parâmetros e limites acima mencionados, praticando e assinando tudo quanto seja necessário aos aludidos fins.”
b) Todas as referidas propostas, apresentadas à votação, foram aprovadas.

4. Fundamentação de direito
4.1. Enquadramento jurídico – Deliberações renovatórias

Dispõe o art.º 62º, do CSC, sob a epígrafe “Renovação da deliberação”:
1 - Uma deliberação nula por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 56.º pode ser renovada por outra deliberação e a esta pode ser atribuída eficácia retroactiva, ressalvados os direitos de terceiros.
2 - A anulabilidade cessa quando os sócios renovem a deliberação anulável mediante outra deliberação, desde que esta não enferme do vício da precedente. O sócio, porém, que nisso tiver um interesse atendível pode obter anulação da primeira deliberação, relativamente ao período anterior à deliberação renovatória.
3 - O tribunal em que tenha sido impugnada uma deliberação pode conceder prazo à sociedade, a requerimento desta, para renovar a deliberação.

Como refere Carneiro da Frada, in Renovação das Deliberações Sociais, Separata do Vol. LXI (1985) do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, pá. 3-5, a “dúvida sobre a validade duma deliberação pode causar embaraços compreensíveis no desenrolar posterior da actividade social. Para já não falar de quando uma acção de declaração de nulidade ou de anulação vem a ser efectivamente interposta. O longo período de incerteza que então se instala até que sejam definitivamente julgadas essas acções pode gerar graves inconvenientes ao desenvolvimento e célere prossecução dos interesses e negócios da sociedade. (…)
(…)
Foi para obviar a estes inconvenientes que o Código das Sociedades Comerciais consagrou no seu art. 62º a possibilidade de reiteração de uma deliberação inválida por outra, tomada agora regularmente, que renova a definição de interesses por aquela outra.
(…)
Através da renovação, os sócios refazem a deliberação que antes haviam tomado, concluindo sobre o seu objecto uma nova deliberação destinada a absorver o conteúdo daquela e a tomar o seu lugar.
Se uma dada deliberação se apresenta ferida de nulidade, os efeitos a que tendia a título directo e principal e em vista dos quais foi tomada, não se produzirão. Podem, porém, os sócios, a quem continua a interessar a regulamentação de interesses (ou o comando) visada pelo acto nulo antecedente, tomar sobre a mesma nova deliberação com o mesmo conteúdo e agora validamente, a qual virá assim a constituir-se como única fonte dos efeitos jurídicos intentados. É como se a deliberação anterior não tivesse existido e fosse agora concluída pela primeira vez.”

E mais adiante, pág. 9, refere que “se se trata de concluir ex novo sobre um mesmo objecto uma outra deliberação, à qual são de imputar em exclusivo os efeitos jurídicos pretendidos, trata-se também de substituir a anterior deliberação (pela posterior) enquanto fonte geradora desses efeitos. À renovação vai, pois, indissociavelmente ligada uma substituição.“

No mesmo sentido Jorge Coutinho de Abreu, in CSC em Comentário, Vol. I, 2ª ed., pág. 743, que afirma: ”A renovação de uma deliberação consiste, pois, na substituição desta por outra de conteúdo idêntico mas sem os vícios (de procedimento), reais ou supostos, que tornam aquela inválida ou de validade duvidosa.”

E na jurisprudência, o Ac. do STJ de 22.09.2021, proc. 675/10.2TBPTS.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt quando afirma: “A renovação da deliberação prevista no art. 62.º do CSC tem, na generalidade dos casos e como regra, um efeito substitutivo e só não dizemos que implica sempre uma substituição da deliberação anterior, uma vez que a lei admite a hipótese de uma renovação de deliberação sem eficácia retroativa, hipóteses em que não haverá uma (total) substituição, mas antes uma sucessão de deliberações.”

Podemos assentar, assim, que o requisito essencial para que uma deliberação seja considerada renovatória, é ter o mesmo conteúdo da deliberação inicial.

Neste âmbito importa ainda ter em consideração que o efeito revogatório da deliberação renovatória “pode operar ex tunc ou ex nunc. Opera ex tunc, se com ele se eliminam os efeitos jurídicos produzidos pelo acto revogado, ex nunc  se apenas são extintos os efeitos que esse acto era potencialmente apto a produzir in futurum.” (Carneiro da Frada, ob. cit., pág. 26).

O legislador admitiu no n.º 1 do art.º 62º, um efeito revogatório retroactivo ao dispor que “pode ser atribuída eficácia retroactiva à deliberação”, ou seja, com eficácia ex tunc, “ressalvados os direitos de terceiros”. Já no n.º 2, ao dispor que a “anulabilidade cessa”, o efeito é, em regra, ex nunc, ou seja, apenas para o futuro. Diz-se em regra porque na parte final prevê-se que “(...) o sócio, (…) que nisso tiver um interesse atendível, pode obter anulação da primeira deliberação, relativamente ao período anterior à deliberação renovatória.”

O “interesse atendível” não se confunde com mero interesse processual ou interesse em agir, tratando-se, antes de um interesse substantivo: “o sócio tem de fazer prova de que a anulação evita a ofensa de um direito seu ou a ocorrência de um prejuízo na sua esfera jurídica.” (cfr. Carneiro da Frada, ob. cit., pág. 40).
 
Definidos os efeitos substantivos do facto de ser aprovada uma deliberação renovatória – substituição da deliberação anterior, eliminando-a e passando a ocupar o seu lugar, tendo ainda efeitos retroactivos - coloca-se a questão de saber quais os efeitos processuais de tal realidade, ou seja, o que sucede no e ao eventual procedimento cautelar de suspensão de deliberação social inicial que esteja pendente (a questão é mais geral e abrange também uma acção que tenha por objecto a declaração de nulidade ou anulação da deliberação inicial).

Saber o que sucede no procedimento cautelar pendente tem em vista a questão de saber se é possível apreciar eventuais vícios da deliberação renovatória.

A resposta é negativa.
E isto porque a apreciação dos eventuais vícios que determinem a invalidade da deliberação social renovatória e, assim, coloquem em causa o seu efeito substitutivo da deliberação inicial, implica uma alteração do pedido e da causa de pedir (estamos perante uma nova e, diferente deliberação social, da antes impugnada e, eventualmente, com diferentes vícios).

Assim se afirma no Ac. do STJ já citado:
“O que significa que a deliberação de renovação – estando-se em presença de uma nova e distinta deliberação, que substitui a primeira e assim inutiliza o pedido e a causa de pedir duma ação que tinha sido exclusivamente dirigida contra a deliberação primitiva – tem ela própria que ser impugnada, envolvendo um novo e distinto pedido fundado numa específica e diferente causa de pedir, ou seja, a apreciação da invalidade da deliberação de renovação envolve a dedução dum pedido novo, assente em factos novos (nomeadamente, em deliberação distinta), o que, a acontecer na ação já pendente, importaria uma alteração do seu objeto (o pedido seria distinto – a invalidação de uma nova deliberação – assim como a causa de pedir seria diferente – sendo a causa de pedir constituída por factos, o efeito jurídico pretendido estaria assente em factos distintos daqueles que determinaram o pedido de invalidação da primeira deliberação).”

No procedimento cautelar inicial não tem qualquer cabimento uma alteração simultânea do pedido e da causa de pedir, atenta a sua estrutura processual, em que apenas estão previstos dois articulados – requerimento inicial e oposição – e o facto de o itinerário processual ser simplificado, por moldado pelas normas relativas aos incidentes.

Numa acção comum, existem duas possibilidades.

Mediante acordo das partes (dispõe o art.º 264º que havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1. ª ou 2. ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito).

Porém, serão raros, senão mesmo inexistentes, os casos em que tal acordo é susceptível de ocorrer.

Não havendo acordo das partes, dispõe o n.º 6 do art.º 265º que é “permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida.”

Mas, como se refere no Ac. do STJ já citado, num caso como o referido, não se pode afirmar que não implica convolação para relação jurídica diversa da controvertida “uma vez que seríamos colocados a apreciar e conhecer uma nova relação material, distinta da inicial (sendo que a segunda deliberação é precedida de um processo formativo autónomo, não reconduzível ao do da deliberação precedente, e de que tanto podem resultar vícios idênticos aos imputados à primitiva deliberação como novos e diferentes vícios).“

Em face do exposto, não tem cabimento, no procedimento cautelar ou acção pendentes, apreciar os eventuais vícios da deliberação renovatória.

Entendendo-se que a mesma está inquinada com algum vício que determina a sua nulidade ou anulabilidade, o requerente do procedimento cautelar de suspensão da deliberação social inicial deve intentar procedimento cautelar de suspensão da deliberação social renovatória ou acção de declaração de nulidade ou anulação da mesma.

Saber o que sucede ao procedimento cautelar em face de uma deliberação renovatória, tem em vista a questão de saber se o mesmo deve ser declarado extinto por impossibilidade superveniente da lide.

Dir-se-ia que, se a deliberação renovatória tende à substituição da deliberação anterior, eliminando-a e passando a ocupar o seu lugar, o eventual procedimento cautelar de suspensão da deliberação social inicial que esteja pendente (ou a acção de declaração de nulidade ou anulação que esteja pendente), em princípio, deixaria de ter objecto e, em função disso, verificar-se-ia uma impossibilidade superveniente da lide, o que determina a sua extinção – art.º 277º, alínea e) do CPC.

Este entendimento tem assentado, cremos, no pensamento de Pinto Furtado, in Deliberações dos Sócios, pág. 626, quando afirma:“(…) se a deliberação de renovação não se apresenta como um simples ato complementar ou de 2.º grau, sendo verdadeiramente uma nova deliberação que pretende erigir a mesma disciplina de interesses da anterior, mas isenta de mácula, não é de todo concebível a existência de uma ação da anulação ou de declaração de nulidade contra a deliberação anterior, contra uma deliberação que, afinal, foi riscada do mapa.”
 
E, mais adiante, pág. 631, quando afirma: “(…) se a renovação operou a substituição da deliberação que estava a ser impugnada, parece evidente que o pedido do autor deixa de poder ser atendido, pela impossibilidade lógica de vir a anular-se ou a decretar-se a invalidade ou inexistência jurídica de algo que, entretanto, cessou de existir”.

E finalmente, pág. 632, quando afirma: “ficamos em presença dos efeitos que jorram da nova deliberação – e esta, reproduzindo embora o conteúdo da anterior, nem por isso deixa de constituir uma nova deliberação, inteiramente distinta da primeira, que define uma ulterior vontade social sobre o mesmo objeto e, portanto, fica exclusivamente atida à sindicância da sua própria formação, não sendo lícito ao tribunal estabelecer se a renovação eliminou a precedente causa de invalidade.”

Tal entendimento, assentando em que, como afirma Pinto Furtado, a deliberação inicial foi “riscada do mapa”, tem subjacente a seguinte ideia: ainda que a deliberação renovatória venha a ser julgada inválida, a mesma não tem um efeito repristinatório da deliberação inicial.

Porém, não é certo nem seguro que assim seja pois, como se afirma no Ac. do STJ de 22.09.2021, proc. 675/10.2TBPTS.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt (sublinhado nosso), sendo a deliberação inválida, “ não será idónea a produzir os efeitos (designadamente, o efeito substitutivo) a que tendia: sendo a renovação uma deliberação em si mesma e estando, naturalmente, sujeita às vicissitudes a que está sujeita qualquer deliberação, a invalidação desta repercute-se na primeira deliberação e, sendo destruída a segunda deliberação, renascerá a anterior in totum.”

Ou seja: se a deliberação renovatória vier a ser impugnada e considerada inválida, não se produz o efeito substitutivo da deliberação inicial, pelo que não é possível afirmar, de forma imediata e automática, que a acção onde era pedida a declaração da sua nulidade ou anulação deixou de ter objecto, havendo impossibilidade da lide.

Nessa medida, a jurisprudência tem vindo a entender que, se a deliberação renovatória vier a ser impugnada, a acção de declaração de nulidade ou anulação da deliberação social inicial deve ser suspensa até que haja decisão na acção de declaração de nulidade ou anulação da deliberação renovatória (neste sentido o Ac. da RP de 04/12/2008, proc. 0836512, consultável in www.dgsi.pt/jtrp, o já citado Ac. do STJ de 22.09.2021, proc. 675/10.2TBPTS.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt, e o Ac. desta RG de 26/10/2023, proc. 487/22.0T8VCT.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, em que o aqui Relator foi 2º adjunto)

Mas se o autor da primeira acção não invocar e demonstrar ter intentado procedimento cautelar de suspensão da deliberação social renovatória ou acção de declaração de nulidade ou anulação da mesma, a consequência não poderá deixar de ser a impossibilidade da lide (neste sentido o Ac. do STJ de 22.09.2021, já citado).

Porém, aquela primeira possibilidade – suspensão por pendência de causa prejudicial – não é susceptível de ser aplicada aos procedimentos cautelares.

E isto porque, como decidiu o STJ no Ac. de 24/09/2020, proc 1898/17.9T8SNT.L1.S2, consultável in www.dgsi.pt/jstj, a suspensão da instância por alegada pendência de causa prejudicial, prevista no art.º 272º do CPC, é incompatível com a natureza dum procedimento cautelar e, como tal, inaplicável a estes procedimentos, entendimento que acompanhamos.

Neste contexto e na referida situação, sobrevindo uma deliberação renovatória, que tem em vista substituir a deliberação anterior, eliminando-a e passando a ocupar o seu lugar, tendo ainda efeitos retroactivos, das duas uma:
i) foi instaurado procedimento cautelar de suspensão da deliberação renovatória ou acção de declaração de nulidade ou anulação da mesma – neste caso, e prevenindo a possibilidade de os mesmos serem julgados procedentes, deve o procedimento cautelar de suspensão da deliberação social inicial prosseguir;
ii) não tendo sido instaurado procedimento cautelar de suspensão da deliberação renovatória, nem acção de declaração de nulidade ou anulação da mesma, deverá o procedimento cautelar inicial ser declarado extinto por impossibilidade superveniente da lide, quer porque não pode ser suspenso por pendência de causa prejudicial, quer porque neste caso não se verifica a necessidade de prevenir a possibilidade de algum daqueles ser julgado procedente.

4.2. Em concreto
Resumidamente, verifica-se que a 12/06/2023 realizou-se uma assembleia geral da requerida em que foram aprovadas um conjunto de deliberações.

A aqui requerente deduziu procedimento cautelar de suspensão daquelas deliberações sociais, que constitui os presentes autos, invocando a sua nulidade.

A 28/07/2023 reuniu a Assembleia Geral Extraordinária da sociedade, em que foi aprovada a renovação das deliberações constantes dos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 da Assembleia Geral da sociedade de 12 de Junho de 2023, com efeitos retroactivos.

A decisão recorrida, considerando “que é jurisprudência unânime que a deliberação renovadora, na pendência duma instância processual cujo objeto consista na apreciação da validade da deliberação original, produz efeitos processuais sobre a instância pendente, tendo por consequência a renovação da deliberação”, declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

A recorrente entende que a sociedade pode renovar deliberações com vícios procedimentais, mas não pode renovar deliberações que padeçam de vícios substanciais.

A recorrida entende que, tendo as deliberações de 12 de Junho de 2023 sido revogadas pela deliberação de 28 de Julho de 2023, aquelas deixaram de estar em vigor; para que a validade das deliberações tomadas na Assembleia de 28 de Julho de 2023 fossem avaliadas pelo Tribunal, a Recorrida teria de as impugnar em acção própria, na medida em que os presentes autos apenas tinham por objeto as deliberações tomadas na Assembleia de 12 de Junho de 2023.

Como decorre do enquadramento jurídico constante do ponto 4.1., e no que especificamente respeita ao caso concreto, estando pendente um procedimento cautelar de suspensão de deliberação social, sobrevindo uma deliberação renovatória daquela:
- em primeiro lugar, não há que proceder, no processo pendente, à apreciação dos eventuais vícios da deliberação renovatória, os quais terão de ser discutidos em processo autónomo;
- em segundo lugar, o que sucede ao procedimento cautelar depende da atitude do requerente: i) invocando e demonstrando ter instaurado procedimento cautelar de suspensão da deliberação renovatória ou acção de declaração de nulidade ou anulação da mesma, deve o procedimento cautelar de suspensão da deliberação social inicial prosseguir; ii) não invocando o requerente do procedimento cautelar inicial ter instaurado procedimento cautelar de suspensão da deliberação renovatória ou, logo, acção de declaração de nulidade ou anulação da mesma, deverá o procedimento cautelar inicial ser declarado extinto por impossibilidade superveniente da lide.

No caso, estamos perante uma deliberação renovatória, na medida em que a mesma tem o mesmo conteúdo que a deliberação inicial.

A recorrente entende que a sociedade pode renovar deliberações com vícios procedimentais, mas não pode renovar deliberações que padeçam de vícios substanciais, colocando, assim, em crise a validade da deliberação renovatória.

Ora, como vimos, esta é uma questão que não pode ser apreciada no processo pendente, pelas razões que já deixámos explicadas.

Entendendo o requerente que a deliberação renovatória padecia de algum vício que a invalidasse, cabia-lhe intentar procedimento cautelar de suspensão ou acção de declaração de nulidade ou anulação da mesma.

Não tendo invocado e demonstrado que o tenha feito, impunha-se a extinção da instância por impossibilidade da lide.

Tendo o tribunal a quo decidido nesse sentido, a decisão deve ser mantida e, nesta parte, o recurso deve ser julgado improcedente.

4.3. Custas da acção
A decisão recorrida considerou responsável pelas custas a requerente.

Mas não é assim como, aliás, refere a requerida.

Dispõe o art.º 536º, n.º 3 do CPC:
Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas.

À luz do referido normativo, as custas da extinção do procedimento cautelar por impossibilidade da lide devem ficar a cargo da requerida, porquanto o facto determinante daquela é a deliberação renovatória, a qual é imputável à requerida.

Assim, a decisão recorrida, na parte em que determinou “Custas pela Requerente.” deve ser revogada e substituída por outra com o seguinte teor: “Custas a cargo da requerida.”

4.4. Custas da apelação
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.

Tendo o recurso sido julgado improcedente no que diz respeito à questão da extinção da instância por impossibilidade da lide e procedente no que diz respeito à responsabilidade pelas custas, mas sem oposição da contraparte, é a recorrente a responsável pelas custas no primeiro caso segundo o critério do vencimento e no segundo caso segundo o critério do proveito.

5. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 1ª Secção da Relação de Guimarães:
- em manter a decisão recorrida, na parte em que julgou extinta a instância por impossibilidade da lide e, em consequência e nesta parte, julgar improcedente o recurso;
- revogar a decisão recorrida, no segmento em que determinou “Custas pela Requerente”, a qual se substitui por outra com o seguinte teor: “Custas a cargo da requerida.”

Custas da apelação pela recorrente.

Notifique-se
*
Guimarães, 29/02/2024
(O presente acórdão é assinado electronicamente)

Relator: José Carlos Pereira Duarte
1º Adjunto: Maria João Marques Pinto de Matos
2º Adjunto: Gonçalo Oliveira Magalhães