Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1824/22.3T8VCT.G1
Relator: RAQUEL BATISTA TAVARES
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
PRAZO
RENOVAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O erro na forma de processo decorre da circunstância de o autor ter usado uma via processual inadequada para fazer valer a sua pretensão e importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
II - Estamos, por regra (só não será assim nos casos em que é insanável), perante um vício não irá determinar a nulidade de todo o processado.
III - Nos arrendamentos para habitação permanente, a liberdade dos contratantes para modelarem o conteúdo do contrato sofreu significativas limitações com as alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, quer quanto à exigência de um prazo mínimo de um ano (cfr. artigo 1095º n.º 2 onde está em causa uma norma imperativa que não admite convenção em contrário) mas também quanto à sua renovação pois, ainda que as partes possam convencionar a exclusão da possibilidade de qualquer renovação, só terão liberdade para convencionar prazo de renovação igual ou superior a três anos, impondo o legislador um prazo mínimo, também imperativo, de três anos.
IV - Os contratos de arrendamento com prazo para habitação permanente renovam-se automaticamente, por períodos sucessivos de igual duração ou, se esta for inferior, de três anos, em conformidade com o estipulado no número 1 do artigo 1096º do Código Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA, residente na Rua ..., ..., ..., intentou contra BB, residente na Rua ..., ..., ..., ..., a presente ação declarativa, sob a forma comum, pedindo que:

a) Se declare a Autora como dona e legítima proprietária do imóvel melhor identificado no artigo 1º articulado inicial e se condene a Ré a reconhecer tal direito;
b) Se condene a Ré a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento por ter operado a oposição à renovação;
c) Se condene a Ré a restituir à Autora o imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;
d) Se condene a Ré no pagamento à Autora da quantia mensal de €200,00, desde abril de 2021 até efetiva entrega do ... do imóvel, a liquidar em sede de execução de sentença;
e) Se condene a Ré no pagamento de uma indemnização a título de eventuais danos causados pela utilização indevida e deterioração do mencionado imóvel, em quantia a determinar em execução de sentença.

Para tanto, e em síntese, alega ter sido celebrado um contrato de arrendamento para habitação de duração limitada entre a mãe da Autora e a Ré, no dia 3 de abril de 2006, que teve por objeto um prédio que agora pertence à Autora, o qual foi celebrado pelo prazo de um ano, sendo automaticamente prorrogável por sucessivos e iguais períodos de um ano.
Que por carta registada com aviso de receção datada de 22 de outubro de 2020, contendo como assunto “oposição à renovação do contrato de arrendamento”, a Autora endereçou uma missiva à Ré a comunicar que o contrato de arrendamento cessaria no dia 1 de abril de 2021.

A Ré recebeu a missiva no dia 26 de outubro de 2020, mas não procedeu à entrega do imóvel pelo que a Autora endereçou nova carta à Ré, no dia 9 de agosto de 2021, solicitando a entrega do imóvel no prazo de 10 dias.
Mais alega que a Ré tem permanecido no imóvel contra a vontade da Autora, apesar do contrato se ter extinguido no dia 1 de agosto de 2021, por via da oposição à renovação.
A Ré contestou invocando o erro na forma do processo e “o objeto impossível da pretensão”, alegando que a Lei n.º 13/2019 veio dar nova redação ao n.º 1, do artigo 1096º, do Código Civil, pelo que a renovação nunca poderia ser inferior a três anos e, na altura da entrada em vigor da lei (aplicável aos contratos de arrendamento então em vigor), caso houvesse oposição à renovação do contrato, nunca poderia ocorrer antes de 2022 (e nunca em 01 de abril, de 2021, como refere a Autora).

Veio a ser proferido saneador-sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:

“Nestes termos e perante o exposto, julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência:

- a) Declara-se a Autora dona e legítima proprietária do imóvel identificado em 1- dos factos provados;
- b) Condena-se a Ré a reconhecer tal direito;
- c) Condena-se a Ré a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento por ter operado a oposição à renovação;
- d) Condena-se a Ré a restituir à Autora o referido imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens;
- e) Condena-se a Ré no pagamento à Autora da quantia mensal de € 150,00 (cento e cinquenta euros), desde Abril de 2021 e até a efetiva entrega do ... do imóvel em causa, a liquidar em sede de execução de sentença;
- absolve-se a Ré do demais peticionado.
*
Custas a cargo da Ré e da Autora na proporção de 85% e 15%.
Registe e notifique.”

Inconformada, apelou a Ré concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“1ª – A sentença recorrida padece das nulidades previstas nas alíneas d) e c), segunda parte, do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil;
2ª – A sentença recorrida, não apenas constitui uma verdadeira decisão surpresa, como não fez uma análise crítica da prova;
3ª – Tendo dado por assentes factos que foram impugnados, bem como os documentos que lhes subjazem - docs. ..., ... e ..., que também o foram;
4ª – A própria sentença recorrida refere expressamente: “A Ré apresentou contestação, nos termos constantes de fls. 44 e seguintes. Invocou erro na forma de processo e “o objeto impossível da pretensão”. Aceitou parte da factualidade e impugnou a outra parte” (sublinhado nosso);
5ª – Pelo que, os factos constantes nos pontos 5 a 9, dos dados provados, não podem considerar-se como tal, atenta a prova documental, pericial e testemunhal requerida pela recorrente e sobre a qual a sentença recorrida nem sequer se pronunciou, bem como considerando assentes factos impugnados, sem fundamentação visível.
6ª – O acórdão proferido por este Tribunal sob o facto dado como provado nº 5, apenas constitui caso julgado formal e valendo tão só dentro do processo e não fora dele, o que foi esgrimido pela recorrente nos autos;
7ª – A sentença recorrida, todavia, não se pronunciou sobre tal, como deveria, não existido ainda qualquer pronúncia ou despacho que o tenham feito, pelo que o seu acolhimento nunca poderia constituir um facto assente e, como tal, acolhido nos factos dados como provados;
8ª – A recorrente entende que houve erro na forma de processo, pois que devia aplicar-se o previsto no artigo 15º, nº 2, alínea c), do NRAU, por oposição à acolhida ação de reivindicação;
9ª – A Lei 13/2019 veio dar nova redação ao nº 1, do artigo 1096º, do Código Civil, passando a referir o seguinte: “Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior...”;
10ª – A disposição transitória prevista no nº 3, do artigo 26º do NRAU, deverá considerar-se tacitamente revogada, pois tal preceito aplica-se aos contratos de arrendamento para habitação, é posterior à citada disposição transitória e esta apenas prevê a denúncia e não já a oposição à renovação;
11ª – E assim sendo, a renovação do arrendamento nunca poderia ser inferior a três anos e, atenta a data da entrada em vigor da Lei nº 13/2019, aplicável aos contratos de arrendamento para habitação em vigor, caso houvesse oposição à renovação do contrato de arrendamento, nunca o termo deste poderia ocorrer antes do ano de 2022 ( e nunca em 01 de abril, de 2021, como o considerou a sentença recorrida);
12ª – A sentença recorrida, para além de sofrer as apontadas nulidades, violou o artigo 1096º, nº1, do C. Civil, e incorre em erro de julgamento.”
Pugna a Recorrente pela revogação da sentença na parte recorrida, e sua substituição por acórdão que perfilhe o conteúdo das suas conclusões.
A Autora contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, são as seguintes:

1. Saber se a sentença é nula nos termos das alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC;
2. Saber se existe erro na forma de processo;
3. Saber se há erro no julgamento da matéria de facto e se o estado dos autos permitia conhecer do mérito;
4. Saber se a comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento efetuada pela Autora é válida e eficaz.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:
     
1- A Autora é dona e legítima possuidora do prédio urbano, composto de ..., destinado a habitação, sito no Lugar ..., da União das Freguesias ... e ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...16.º (o qual proveio do artigo ...-urbano, da extinta freguesia ..., concelho ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...94/... – fls. 12 e 13 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
2- Tal prédio adveio à posse e propriedade da Autora através de procedimento simplificado de habilitação de herdeiros n.º 6812/2012, exarada em 21 de Junho de 2012 na Conservatória do Registo Predial ... – fls. 14 e 15 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
3- Por contrato de arrendamento para habitação de duração limitada, celebrado em 3 de abril de 2006, com início no dia 1 de abril de 2006 e termo no dia 1 de abril de 2007, automaticamente prorrogável por sucessivos e iguais período de um ano, a ainda mãe da Autora deu de arrendamento à Ré, que lhe tomou, o ... do referido prédio, nos termos constantes do documento junto a fls. 15v e 16 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
4- Mediante o pagamento da renda anual de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros), paga em duodécimos de € 150,00 (cento e cinquenta euros);
5- Correu os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível J..., sob o nº 1426/19.1T8VCT, uma ação comum instaurada por AA e marido CC contra BB, nos termos constantes de fls. 99v e seguintes e 17v e seguintes dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
6- A Autora endereçou uma missiva à Ré a comunicar que o contrato de arrendamento cessaria no dia 1 de abril de 2021, nos termos constantes do documento nº ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
7- Data em que o imóvel deveria ser entregue livre de pessoas e bens e no estado de conservação e limpeza que se encontrava à data da celebração do contrato e se faria a entrega das chaves;
8- Por intermédio dos aqui signatários, a aqui Autora endereçou uma carta registada à Ré [...], datada de 9 de agosto de 2021, contendo como assunto “Oposição à renovação de contrato de arrendamento – Entrega do imóvel dado em locação - Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...16.º e descrito na Conservatória na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...94”, nos termos constantes do documento n.º ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
9- Mais foi solicitado à Ré que procedesse à entrega do imóvel livre de pessoas e bens no prazo máximo de dez dias a contar da receção da carta que lhe havia sido remetida;
10- A Ré tem permanecido no ... daquele imóvel.
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3.2. Da nulidade da sentença

A Recorrente veio alegar que a sentença recorrida é nula nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (de ora em diante designado por CPC) na medida em que o tribunal a quo deixou de conhecer de questões suscitadas na contestação e conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, ao dar por assente o que se encontrava impugnado.
Sustenta que a sentença não apenas constitui uma verdadeira decisão surpresa, como não fez uma análise critica da prova, tendo dado como reproduzidos documentos que foram impugnados com a contestação e como assentes factos impugnados, não se tendo pronunciado fundadamente sobre o que lhe foi pedido e não se pronunciando se quer sobre a eventual desnecessidade da prova indicada pela Recorrente na sua contestação.
Alega ainda que, quanto ao facto n.º 5 (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães), defendeu o caso julgado formal, isto é, a decisão nele proferida apenas vale dentro do processo, inexistindo qualquer despacho sobre tal, sendo a sentença omissa, pelo que o seu acolhimento nunca poderia constituir um facto provado.
Invoca ainda a Recorrente a nulidade prevista na alínea c) do referido n.º 1 do artigo 615º, por ocorrer ambiguidade e obscuridade que torna a decisão ininteligível.

Dispõe o n.º 1 do referido artigo 615º que é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.

As causas de nulidade da sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas nesse artigo 615º, conforme se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2017 (Processo n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1, Relator Conselheiro Alexandre Reis, disponível em www.dgsi.pt), “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei”.
As decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respetiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respetiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido artigo 615º.
As nulidades da sentença não se confundem, por isso, com o chamado erro de julgamento.
No que agora aqui releva, importa decidir se se verifica a nulidade da sentença recorrida nos termos previstos nas alíneas c) e d).
Vejamos.
A nulidade prevista na referida alínea c) pressupõe que os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A este propósito pronunciou-se o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/02/2022 (Processo n.º 3504/19.8T8LRS.L1.S1, Relatora Conselheira Rosa Tching) considerando que “[N]o que concerne à causa de nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do citado art. 615º, vem a doutrina e a jurisprudência entendendo, sem controvérsia, que a oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da decisão. Dito de outro modo e na expressão do Acórdão do STJ, de 02.06.2016 (proc nº 781/11.6TBMTJ.L1.S1), «radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso». Ou seja, refere-se a um vício lógico na construção da sentença: o juiz raciocina de modo a dar a entender que vai atingir certa conclusão lógica (fundamentos), mas depois emite uma conclusão (decisão) diversa da esperada”.
No que se refere à alínea d) do n.º 1 do referido artigo 615º prende-se a mesma com a omissão de pronúncia (quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar) ou com o excesso de pronúncia (quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento).
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há-de resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas, cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Mas, a resolução das questões suscitadas pelas partes não pode confundir-se com os argumentos suscitados ou as considerações tecidas, e nem tão pouco com meios de prova, não se confundindo com o designado erro de julgamento.
Ora, analisado o saneador-sentença proferido pelo tribunal a quo, nele não vislumbramos qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, sendo certo que a Recorrente também a não especifica.
Por outro lado, entendemos que o saneador-sentença se pronunciou sobre as questões suscitadas, designadamente pela Recorrente, sendo que estas se não confundem, como referimos, com os argumentos invocados ou as considerações tecidas pelas partes.
Na verdade, o tribunal a quo conheceu das questões suscitadas na contestação.
Analisado o articulado apresentado pela Recorrente verificamos que foram suscitadas as seguintes questões: o erro na forma de processo e o “objeto impossível da pretensão”, que mais não é do que a questão da validade e eficácia da comunicação da oposição à renovação; para além destas questões, procedeu à impugnação de parte dos factos alegados pela Autora.
No saneador sentença foi expressamente conhecida a questão do erro na forma de processo, exceção que foi julgada improcedente, e da oposição à renovação que foi julgada válida e eficaz.
De referir que não vislumbramos no articulado da Recorrente a invocação da exceção de caso julgado; a Recorrente apenas veio mencionar, após a resposta apresentada pela Autora à matéria de exceção, que esta confundia o caso julgado formal e o caso julgado material.
Aliás, a Recorrente reconhece que não arguiu a exceção de caso julgado, considerando apenas que a invocação do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo n.º 14326/19.1T8VCT não tem força de caso julgado neste processo.
Temos, por isso, de concluir que foram conhecidas as questões suscitadas na contestação, não tendo sido conhecidas questões de que o tribunal a quo não podia tomar conhecimento.
Por último, não vemos de que forma o saneador-sentença constitui uma decisão surpresa, sendo certo que a Recorrente também o não diz.
A questão das “decisões surpresa” está intrinsecamente ligada ao principio do contraditório e à regra expressamente prevista no n.º 3 do artigo 3º do CPC onde se estabelece que “[O] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Como é consabido, o princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil, exigindo este preceito do juiz a observação e cumprimento ao longo do processo do princípio do contraditório, salvo os casos em que ressalte uma manifesta desnecessidade.
De facto, o princípio do contraditório materializa-se nas diversas fases do processo, tendo as partes, em todas elas, direito a de um modo ativo poderem influenciar a decisão, tentando convencer o julgador do acerto da sua posição.
Decisão-surpresa “é a solução dada a uma questão que, embora pudesse ser previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que esta tivesse obrigação de prever fosse proferida” (v. Acórdão da Relação do Porto de 02/12/2019, Processo n.º 14227/19.8T8PRT.P1, Relatora Desembargadora Eugénia Cunha, disponível em www.dgsi.pt) e a sua proibição é uma decorrência deste princípio do contraditório, com o qual se quis impedir que as partes pudessem ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções de direito inesperadas, por não discutidas no processo.
In casu, o tribunal a quo pronunciou-se sobre as questões já suscitadas pelas partes, procedeu à realização de audiência prévia na qual tentou a conciliação das partes (que mantiveram as posições vertidas nos articulados), facultou aos Ilustres Mandatários das partes a discussão das respetivas posições com vista à delimitação dos termos do litígio, tendo os Mandatários remetido para o que consta dos respetivos articulados e proferiu despacho, notificado às partes, no sentido de que “não existindo matéria controvertida de factos essenciais à boa decisão da causa, contendo os autos todos os elementos” o Tribunal já se encontrava em condições de proferir decisão, ordenando a conclusão dos autos para prolação de sentença.
Julgamos ser manifesta a inexistência de qualquer “decisão-surpresa”.
Importa salientar que, se atentarmos nos fundamentos invocados pela Recorrente, concluímos que os mesmos não se reportam, no essencial, a vícios formais decorrentes de erro de atividade (error in procedendo), a vícios de formação ou atividade referentes à inteligibilidade e à estrutura do saneador-sentença recorrido, mas a vícios de julgamento.
Contudo, o erro de julgamento (error in judicando), resultante de uma alteração/deformação da realidade factual ou na aplicação do direito, manifestando-se na apreciação da questão em desconformidade com a lei, não determina a nulidade da sentença.
O que entende a Recorrente é que o tribunal a quo não fez uma análise critica da prova, tendo dado como reproduzidos documentos que foram impugnados com a contestação e como assentes factos impugnados, que não se pronunciou fundadamente sobre o que lhe foi pedido e nem sobre a eventual desnecessidade da prova indicada pela Recorrente na sua contestação.
Questiona afinal a Recorrente (pelo menos assim o depreendemos) que os autos não contêm todos os elementos necessários à prolação de decisão e, como tal, deveriam prosseguir para produção de prova, designadamente da que foi por si indicada.
É incontornável que a lei processual civil permite efetivamente o conhecimento do mérito na fase do saneador.
Conforme decorre do preceituado no artigo 595º, n.º 1, alínea b) do CPC o despacho saneador destina-se a: “Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória”.
Assim, o juiz deve conhecer do pedido ou dos pedidos formulados quando não houver necessidade de provas adicionais, para além das já processualmente adquiridas nos autos, isto é, sempre que não exista matéria controvertida suscetível de justificar a elaboração de temas da prova e a realização da audiência final para produção de prova.
“A antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente de a mesma favorecer uma ou outra das partes” (António Santos Abrantes Geraldes&/Paulo Pimenta/Luis Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 696).
Mas, como já referimos, não podem confundir-se as causas de nulidade da sentença, com os vícios privativos da decisão sobre a matéria de facto e que podem determinar a sua anulação, modificação ou até o reenvio do processo à 1ª instância (cfr. artigo 662º do CPC).
O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido, não se traduzem na nulidade da sentença, designadamente em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608º n.º 2, do CPC, mas a erros de julgamento (v. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/03/2017, Processo n.º 7095/10.7TBMTS.P1.S1, Relator Conselheiro Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt).
In casu não ocorre, por isso, omissão ou excesso de pronúncia; como já referimos, as nulidades da sentença não se confundem com o chamado erro de julgamento, não padecendo a decisão recorrida das apontadas nulidades.
Questão distinta é a de saber se existe erro no julgamento da matéria de facto relativamente a alguns dos factos julgados provados e se o estado do processo legitimava o conhecimento imediato do mérito da causa ou se, num e noutro caso, se impunha a produção de prova, conforme sustenta a Recorrente, o que adiante iremos conhecer.
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3.3. Do erro na forma de processo

A Recorrente veio invocar o erro na forma de processo por entender que devia aplicar-se o previsto no artigo 15º n.º 2, alínea c), do NRAU, por oposição à acolhida ação de reivindicação.

Vejamos se lhe assiste razão.

O erro na forma de processo, que decorre da circunstância de o autor ter usado uma via processual inadequada para fazer valer a sua pretensão (v. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, p. 245), encontra-se regulado na secção das nulidades processuais, estabelecendo o artigo 193º do CPC que o erro na forma de processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
Trata-se, por isso, de um vício sanável mediante a prática dos atos necessários à recondução do processo à forma adequada estabelecida pela lei; tal vicio só não será sanável quando não seja viável aproveitar os atos já praticados, sendo certo que não devem aproveitar-se os atos já praticados se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu (n.º 2 do referido artigo 193º).
Daqui se conclui que estamos, por regra (só não será assim nos casos em que é insanável), perante um vício não irá determinar a nulidade de todo o processado.
Quanto ao regime de arguição, estabelece o artigo 196º do CPC que é do conhecimento oficioso e só pode ser arguida até à contestação ou neste articulado (artigo 198º n.º 1 do mesmo diploma).
O tribunal a quo entendeu inexistir qualquer erro na forma do processo, sendo este processo o meio próprio e adequado para dirimir o litígio entre as partes, sendo as outras formas de processo mencionadas pela Ré na sua contestação mecanismos legais à disposição das partes para outras finalidades e pretensões.
Vejamos.
In casu, a Autora, pretendendo ver declarado que é dona e legítima proprietária do imóvel, condenando-se a Ré a reconhecê-lo, bem como a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento por ter operado a oposição à renovação e a restituir à Autora o imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições; e ainda no pagamento à Autora da quantia mensal de €200,00, desde abril de 2021 até efetiva entrega do ... do imóvel, a liquidar em sede de execução de sentença e no pagamento de uma indemnização, instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum.
Em face da preensão formulada pela Autora não podemos afirmar que usou uma via processual inadequada para a fazer valer; a ação declarativa de processo comum é a adequada para pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade, mas também para que seja reconhecida a cessação do contrato de arrendamento por ter operado a oposição à renovação e, consequentemente, seja determinada a restituição do imóvel, o que pode ser cumulado com a formulação de pedidos de indemnização.
A questão que se coloca (e julgamos ser a que pretende colocar a Recorrente) é a da obrigatoriedade de a Autora recorrer ao Procedimento Especial de Despejo previsto no artigo 15º do NRAU.
O Procedimento Especial de Despejo foi criado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, que procedeu à revisão do regime jurídico do arrendamento urbano, introduzindo significativas alterações em diversos diplomas, designadamente no Código Civil, no Código de Processo Civil e na Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, de entre as quais sobressai o Procedimento Especial de Despejo.

A Lei n.º 31/2012 veio aprovar medidas destinadas a dinamizar o mercado de arrendamento urbano, nomeadamente:

a) Alterando o regime substantivo da locação, designadamente conferindo maior liberdade às partes na estipulação das regras relativas à duração dos contratos de arrendamento;
b) Alterando o regime transitório dos contratos de arrendamento celebrados antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, reforçando a negociação entre as partes e facilitando a transição dos referidos contratos para o novo regime, num curto espaço de tempo;
c) Criando um procedimento especial de despejo do local arrendado que permita a célere recolocação daquele no mercado de arrendamento.

Um dos seus objetivos foi a criação de um processo de despejo que fosse rápido e eficaz, que ajudasse a recuperar a confiança dos senhorios e que permitisse a revitalização do mercado de arrendamento com a colocação de mais imóveis disponíveis para o arrendamento.
Com efeito, o artigo 15º, n.º 1, determina que o Procedimento Especial de Despejo serve para efetivar a cessação de um contrato de arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes; este Procedimento serve para tornar efetivos os efeitos da cessação do contrato de arrendamento, entre os quais a desocupação do locado por falta de título para lá continuar pelo menos a partir do momento legal em que os efeitos da cessação se produzem.

Estabelece o n.º 2 deste preceito que apenas podem servir de base ao procedimento especial de despejo, independentemente do fim a que se destina o arrendamento:

a) Em caso de revogação, o contrato de arrendamento, acompanhado do acordo previsto no n.º 2 do artigo 1082.º do Código Civil;
b) Em caso de caducidade pelo decurso do prazo, não sendo o contrato renovável, o contrato escrito do qual conste a fixação desse prazo;
c) Em caso de cessação por oposição à renovação, o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.º 1 do artigo 1097.º ou no n.º 1 do artigo 1098.º do Código Civil;
d) Em caso de denúncia por comunicação pelo senhorio, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista na alínea c) do artigo 1101.º ou no n.º 1 do artigo 1103.º do Código Civil ou da comunicação a que se refere a alínea a) do n.º 5 do artigo 33.º da presente lei;
e) Em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil, bem como, quando aplicável, do comprovativo, emitido pela autoridade competente, da oposição à realização da obra;
f) Em caso de denúncia pelo arrendatário, nos termos dos n.os 3 e 4 do artigo 1098.º do Código Civil e dos artigos 34.º e 53.º da presente lei, o comprovativo da comunicação da iniciativa do senhorio e o documento de resposta do arrendatário.
São, por isso, específicas as situações concretas que podem permitir o recurso a este Procedimento: só podem efetivar o despejo por esta via os locadores que disponham de certos documentos e apenas após a verificação da não desocupação do locado decorrido o prazo legalmente previsto para o efeito em cada forma de cessação ou o acordado pelas partes.

Estão em causa os casos em que a cessação do contrato de arrendamento opera extrajudicialmente, mas em que a desocupação não foi voluntariamente efetuada pelo locatário.
O Procedimento Especial de Despejo serve ainda para obter coercivamente o pagamento de rendas, encargos e despesas que corram por conta do arrendatário, desde que não tenha sido intentada e, portanto, esteja pendente, ação executiva para esse mesmo fim (artigo 15º, n.º 5).
A tramitação do Procedimento Especial de Despejo não é assegurada por um órgão jurisdicional, mas antes pelo Balcão Nacional de Arrendamento, o qual está na dependência da Direção Geral Administração da Justiça, e que tem competência em todo o território nacional para a tramitação do procedimento especial de despejo.
Assim, ao lado da ação de despejo prevista no artigo 14º do NRAU, destinada a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação, seguindo a forma de processo comum declarativo, passou a existir, nos casos já referidos, um meio de natureza extrajudicial (pois na sua formação não intervém o juiz) previsto no artigo 15º: o Procedimento Especial de Despejo que se destina a efetivar a cessação do contrato de arrendamento, nos casos em que o arrendatário não desocupe o locado na data, legal ou convencionalmente prevista (v. Edgar Alexandre Martins Valente, Procedimento Especial de Despejo com as Alterações Resultantes da Lei n.º 79/2014, Coimbra Editora, p. 25; Elizabeth Fernandez, “O Procedimento Especial de Despejo (Revisitando o Interesse Processual e Testando a Compatibilidade Constitucional)”, JULGAR - N.º 19 – 2013, p. 64 a 84).
O Procedimento Especial de Despejo, ao invés da ação de despejo que tem por finalidade fazer cessar o contrato de arrendamento, pressupõe que essa relação esteja extinta, e visa efetivar essa cessação quando “o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes” (artigo 15º do NRAU), por via extrajudicial.
Coloca-se então a questão de saber se o senhorio pode recorrer à ação judicial nos casos em que a cessação do contrato de arrendamento pode ocorrer por via extrajudicial, designadamente mediante comunicação ao arrendatário.
Importa referir desde logo que na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 38/XII, que esteve na origem da Lei n.º 31/2012, não se apreende “nenhum propósito restritivo dos direitos do senhorio nesta matéria, nem se expressou especial motivação no sentido do interesse público de poupança de recursos e de retirada dos litígios de arrendamento para fora dos tribunais” (v. Acórdão da Relação de Lisboa de 11/12/2018, Processo n.º 10901/17.1T8LSB.L1-2, Relator Desembargador Jorge Leal, disponível em www.dgsi.pt).
Aí se refere que “[N]o que respeita ao regime processual, reconhece-se a necessidade e a premência de reforçar os mecanismos que garantam aos senhorios meios para reagir perante o incumprimento do contrato, assim tornando o mercado de arrendamento e o investimento na reabilitação urbana para colocação no mercado de arrendamento uma verdadeira opção para os proprietários e, mais relevantemente ainda, uma opção segura. Esta medida, concretizada mediante a agilização do procedimento de despejo, é fundamental para recuperar a confiança dos proprietários.
Até à presente data, o senhorio tinha de recorrer a um processo de despejo apresentado junto de um tribunal. Mesmo dispondo de um título executivo nos termos previstos na Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, verificou-se que o tempo médio de duração da correspondente ação executiva é ainda de dezasseis meses. Tal longa espera, muitas vezes acompanhada pelo não recebimento das rendas, revelou ser um motivo de desincentivo para a colocação de imóveis no mercado do arrendamento pelos proprietários, ou ainda para a elevação do valor da renda como forma de controlo do risco.
Para tornar o arrendamento num contrato mais seguro e com mecanismos que permitam reagir com eficácia ao incumprimento, é criado um novo procedimento extrajudicial que permite que a desocupação do imóvel seja realizada de forma célere e eficaz, num prazo médio estimado de três meses, no caso de incumprimento do contrato por parte do arrendatário.
Promove-se, por esta via, a confiança do senhorio no funcionamento ágil do mercado de arrendamento e o investimento neste sector da economia.”
Esse novo procedimento é um “processo especial sincrético”, isto é, declarativo e executivo, que se inicia com uma fase injuntória a que poderá seguir-se uma fase contenciosa, tendo em vista a formação de um título executivo, prosseguindo, se for o caso, com uma fase executiva, destinada à realização coativa do direito à entrega do locado (v. Rui Pinto, Manual da execução e despejo, Coimbra Editora, 2013, p. 1160 e 1169).
A fase contenciosa deste Procedimento inicia-se se for deduzida oposição ao requerimento de despejo, constituindo um processo declarativo especial, a que se aplicarão, nos termos do artigo 549º n.º 1 do CPC, no que não estiver especialmente regulado, as regras gerais e comuns do Código do Processo Civil e, se for o caso, as regras do processo comum.
Daqui decorre que este novo regime (Procedimento) não acarreta ou visa, propriamente, poupança de recursos económicos, nem o afastamento dos tribunais: cria novas estruturas, que tenderão a servir com especial eficácia os legítimos interesses dos senhorios, mas sem se prescindir, se for necessário, da intervenção dos tribunais para dirimirem os litígios emergentes do legítimo acautelamento dos interesses dos arrendatários (v. neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa já citado, e ainda de 02/07/2019, Processo n.º  3707/18.2T8LSB.L1-7, Relatora Desembargadora Micaela Sousa, também disponível em www.dgsi.pt).
O procedimento especial de despejo não é, por isso, o único meio processual adequado a efetivar a cessação do arrendamento, podendo o senhorio, em alternativa, recorrer à via judicial (v. neste sentido, Soares Machado/Regina Santos Pereira, Arrendamento Urbano (NRAU), 3.ª edição revista e aumentada, Lisboa, Petrony, 2014, p. 283; e, entre outros, o Acórdão desta Relação de Guimarães de 31/01/2019, Processo n.º 103/18.5T8AMR.G1, Relator Desembargador Paulo Reis, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, quando o senhorio pretenda discutir judicialmente a cessação do contrato de arrendamento, incluindo as situações em que está prevista na lei a cessação extrajudicial (por comunicação), pode optar por intentar uma ação declarativa de despejo, podendo optar pelo meio judicial para prossecução da defesa da sua situação jurídica, na livre e independente apreciação dos seus interesses.
E pode fazê-lo, por lhe ser mais conveniente, desde logo, quando pretenda a apreciação de cumulativos fundamentos, por exemplo de resolução, que não possam operar extrajudicialmente (neste sentido, v. Laurinda Gemas, “Algumas questões controversas do novo regime processual de cessação do contrato de arrendamento”, in Revista do CEJ, 2013 – II, p. 35, e Albertina Maria Gomes Pedroso, “A resolução do contrato de arrendamento no novo e novíssimo regime do arrendamento”, Julgar, n.º 19, p. 61) ou quando pretenda cumular outros pedidos, como de indemnização.
Ora, no caso concreto, a Autora, não obstante ter procedido à comunicação da oposição à renovação, veio recorrer à via judicial mediante instauração da presente ação, na qual cumulou distintos pedidos; não só pediu seja declarado que é dona e legítima proprietária do imóvel, condenando-se a Ré a reconhecê-lo, bem como a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento por ter operado a oposição à renovação e a restituir à Autora o imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições, como pediu a condenação da Recorrente no pagamento à Autora de uma indemnização. Tanto basta, segundo entendemos, para que tenha de lhe ser reconhecida a faculdade de recorrer à via judicial e à presente ação.
Em face do exposto, improcede desde já, e nesta parte, o recurso.
***
3.4. Da existência de erro no julgamento da matéria de facto e da possibilidade de conhecimento imediato do mérito da causa

O conhecimento do mérito no despacho saneador, conforme já referimos, pressupõe que o estado do processo possibilita tal decisão sem necessidade de mais provas, isto é, que qualquer produção probatória ulterior seria inútil, por não conduzir a diverso resultado.
O direito à prova e à possibilidade de a produzir (englobados no direito à tutela jurisdicional efetiva contido no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa) apenas releva se a prova tiver interesse para a decisão a proferir.
Por isso, entendendo o tribunal ser possível conhecer do pedido do autor sem necessidade de produção de mais provas, não se impõe que se pronuncie de forma expressa sobre a desnecessidade de produção dos específicos meios de prova indicados pelas partes, designadamente pelo réu.
A questão a debater é se efetivamente o estado do processo permite o imediato conhecimento do mérito da causa, designadamente se permitia dar já como provados os pontos 5) a 9), ou se se mostra necessário determinar o prosseguimento dos autos conforme pretende a Recorrente.
Sustenta a Recorrente que foram dados por reproduzidos documentos impugnados e que, quanto ao ponto 5), defendeu o caso julgado formal do Acórdão proferido pelo Tribunal da relação de Guimarães, pelo que o seu acolhimento nunca poderia constituir um facto assente.

Vejamos.

Consta do ponto 5) dos factos provados o seguinte:

“5- Correu os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível J..., sob o nº 1426/19.1T8VCT, uma ação comum instaurada por AA e marido CC contra BB, nos termos constantes de fls. 99v e seguintes e 17v e seguintes dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido”.
Analisada a contestação apresentada pela Recorrente constatamos que a mesma no artigo 35º apenas impugnou a interpretação feita pela Autora do Acórdão proferido por este Tribunal da Relação na referida ação n.º 1426/19.1T8VCT (de 21/05/2020, Relator Desembargador José Amaral).
A questão da verificação de caso julgado, formal ou material, nada tem a ver com o que consta do ponto 5) dos factos provados, que se limita a dar como reproduzido, de forma objetiva, o teor dos documentos juntos aos autos referentes à ação n.º 1426/19.1T8VCT (petição inicial, contestação, saneador-sentença e acórdão).

Os pontos 6), 7), 8) e 9) têm a seguinte redação:

“6- A Autora endereçou uma missiva à Ré a comunicar que o contrato de arrendamento cessaria no dia 1 de abril de 2021, nos termos constantes do documento nº ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
7- Data em que o imóvel deveria ser entregue livre de pessoas e bens e no estado de conservação e limpeza que se encontrava à data da celebração do contrato e se faria a entrega das chaves;
8- Por intermédio dos aqui signatários, a aqui Autora endereçou uma carta registada à Ré [...], datada de 9 de agosto de 2021, contendo como assunto “Oposição à renovação de contrato de arrendamento – Entrega do imóvel dado em locação - Prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...16.º e descrito na Conservatória na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...94”, nos termos constantes do documento n.º ... junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
9- Mais foi solicitado à Ré que procedesse à entrega do imóvel livre de pessoas e bens no prazo máximo de dez dias a contar da receção da carta que lhe havia sido remetida.”
Também, aqui está em causa a reprodução do teor de documentos, comunicações efetuadas pela Autora à Ré, que constam dos autos; se efetivamente a Ré na contestação refere de forma genérica impugnar os documentos, a verdade é que também a qui o faz apenas no que toca às consequências que a Autora pretende retirar dessas comunicações, designadamente quanto à validade da oposição à renovação, já que a Ré não colocou em causa o recebimento das mesmas.
Não há, por isso, fundamento para eliminar os pontos 5) a 9) dos factos provados.
Por outro lado, estando em causa apenas o teor de documentos, nos termos que já referimos, também não entendemos que seja de impor ao tribunal a quo que na motivação tivesse de referir algo mais para além de que assentou a sua convicção no teor da prova documental apresentada pela Autora.
Mantendo-se inalterada a matéria de facto julgada provada importa agora determinar se o estado dos autos permite conhecer do mérito no despacho saneador ou se se impõe o prosseguimento dos autos para elaboração do despacho a enunciar os temas da prova e realização da audiência final, designadamente com a produção da prova indicada pela Recorrente.
Ora, analisada a petição inicial e os factos alegados pela Autora entendemos que o estado do processo permitia efetivamente ao tribunal a quo conhecer de imediato e no despacho saneador do mérito da causa, sendo certo que no presente recurso apenas vem colocado em causa o decidido nos pontos c), d) e e)  [a menção à alínea f) decorrerá de lapso manifesto de escrita porquanto não só a Recorrente aceitou expressamente o aí decidido, como está em causa a absolvição da Recorrente do demais peticionado], ou seja, o que respeita à validade da cessação do contrato de arrendamento por ter operado a oposição à renovação e a consequente condenação da Ré a restituir à Autora o imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens e o pagamento da quantia mensal de €150,00 desde abril de 2021 e até a efetiva entrega.
A factualidade apurada mostra-se, por isso, bastante para conhecer destes pedidos; questão distinta, é se efetivamente a oposição à renovação do contrato de arrendamento é válida e eficaz.
Improcede, por isso, também nesta parte o recurso.
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3.3. Reapreciação da decisão de mérito da ação

3.3.1. Da validade da oposição à renovação do contrato de arrendamento

Tendo-se mantido a matéria de facto, tal como decidida pelo tribunal a quo, importa agora decidir se deve ou não manter-se a decisão de mérito que, julgando a ação parcialmente procedente condenou a Ré, na parte que aqui releva, a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento por ter operado a oposição à renovação e a restituir à Autora o imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, e no pagamento à Autora da quantia mensal de €150,00 desde abril de 2021 e até a efetiva entrega.
O tribunal a quo considerou válida a oposição à renovação do contrato efetuada à Recorrente, entendendo que a Autora, na qualidade de senhoria, impediu a renovação do contrato de arrendamento em causa, mediante a comunicação escrita que enviou à Ré no dia 22 de outubro de 2020 e que, na sequência da comunicação o contrato de arrendamento se extinguiu no dia 1 de abril de 2021.
É contra este entendimento que se insurge a Recorrente sustentando que a Lei n.º 13/2019 veio dar nova redação ao artigo 1096º do Código Civil e que, caso houvesse oposição à renovação do contrato, nunca poderia ocorrer antes de 2022 e nunca em 1 de abril de 2021 pois a renovação nunca poderia ser inferior a três anos.
Vejamos então.
O contrato de arrendamento em discussão nos presentes autos foi celebrado no dia 3 de abril de 2006, pela mãe da Autora, na qualidade de senhoria, e pela Recorrente, enquanto arrendatária.
Tal como se refere no saneador-sentença, e ao contrário do que entende a Recorrente, o contrato de arrendamento foi celebrado antes da entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (de ora em diante designado por NRAU), ou seja, ainda na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro.
Com a entrada em vigor do NRAU (120 dias após a sua publicação, ou seja, em 28 de junho de 2006), e nos termos do disposto no seu artigo 59º, n.º 1, o novo regime passou a aplicar-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.
O artigo 26º (respeitante às normas transitórias) estabeleceu que os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como os contratos para fins não habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades aí previstas, designadamente que quando não sejam denunciados por qualquer das partes, os contratos de duração limitada renovam-se automaticamente no fim do prazo pelo qual foram celebrados, pelo período de dois anos ou, quando se trate de arrendamento não habitacional, pelo período de três anos, e, em ambos os casos, se outro prazo superior não tiver sido previsto (n.º 3).
Na sua redação original o n.º 3 deste artigo 26º estabelecia que “[O]s contratos de duração limitada renovam-se automaticamente, quando não sejam denunciados por qualquer das partes, no fim do prazo pelo qual foram celebrados, pelo período de três anos, se outro superior não tiver sido previsto, sendo a primeira renovação pelo período de cinco anos no caso de arrendamento para fim não habitacional”.
O tribunal a quo teve em consideração o decidido pelo Acórdão desta Relação de 21/05/2020, no processo 1426/19.1T8VCT, respeitante ao mesmo contrato de arrendamento, designadamente quanto ao facto de na redação que vigorava à data da primeira renovação do contrato (em 01-04-2007) o n.º 3 do artigo 26º prever que ela operava pelo período de três anos, se outro superior não fosse previsto, uma vez que a previsão do período de dois anos, para aquele efeito, tinha por base a redação da norma conferida, apenas, pelo artigo 4º, da Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto.
Tal como se afirma no referido Acórdão desta Relação “como convencionado tinha sido o período de um ano e as normas respeitantes ao arrendamento têm carácter imperativo e não supletivo, tal significa que o contrato se renovou trianualmente em 01-04-2007 e 01-04-2010.
E significa também que, vigorando já, na data do termo deste último período (01-04-2013), a nova redação introduzida pela referida Lei 31/2012 e não tendo entretanto, havido denúncia ou oposição à renovação, ele passou a renovar-se mas agora por períodos de dois anos: 01-04-2015, 01-04-2017, 01-04-2019”.
Assim, e tal como decidido pelo tribunal a quo, tendo sido convencionado no contrato de arrendamento o período de um ano, a primeira renovação ocorreu no dia 1 de abril de 2007; após, atenta a entrada em vigor do NRAU, o contrato renovou trianualmente em 1 de abril de 2010 e em 1 de abril de 2013 e, após, considerando a alteração introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14 de agosto, o contrato passou a renovar-se por períodos de dois anos, ou seja, em 1 de abril de 2015, 1 de abril de 2017 e 1 de abril de 2019.
In casu, por carta datada de 22/10/2020, a Autora, na qualidade de senhoria, comunicou à Ré que se opunha à renovação automática do contrato de arrendamento e que o arrendamento cessaria no dia 1 de abril de 2021.
Pelo tribunal a quo foi também considerado que o contrato se renovaria em abril de 2021, tendo a Autora manifestado a sua oposição à renovação do contrato para essa data.

Porém, em 1 de abril de 2019, data da renovação do contrato, encontrava-se já em vigor a Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro (entrada em vigor no dia seguinte) que veio estabelecer “medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade” (cfr. artigo 1º) e veio dar nova redação ao artigo 1096º do Código Civil que passou a estabelecer que:

“1 - Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - Salvo estipulação em contrário, não há lugar a renovação automática nos contratos previstos n.º 3 do artigo anterior.
3 - Qualquer das partes pode opor-se à renovação, nos termos dos artigos seguintes”.

Importa, então, apurar se em 1 de abril de 2019 o contrato de arrendamento se renovou ou não pelo período de três anos conforme pretensão formulada pela Recorrente, e não pelo período de dois anos conforme pugnado pela Autora e decidido pelo tribunal a quo, tendo por base a redação do artigo 1096º introduzida pela já referida Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto.
E importa começar por referir que tal questão não foi, como não tinha de ser, apreciada pelo Acórdão da Relação de Guimarães proferido em 21/05/2020, no processo n.º 1426/19.1T8VCT.
Neste processo estava em causa a notificação judicial avulsa da aqui Ré, de 22 de fevereiro de 2016, efetuada pela aqui Autora comunicando a denúncia do contrato de arrendamento em causa com efeitos a partir de 1 de março de 2018.
Como já vimos, a renovação do contrato ocorreu apenas em abril de 2019, e não em 2018, pela aplicação da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, que determinou que o contrato de arrendamento passasse a renovar-se por períodos de dois anos, o que esteve subjacente acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que apenas teve por objeto a questão da pretendida cessação do contrato com efeitos em 2018, quando a renovação do mesmo apenas ocorria em 2019, pela aplicação da referida Lei n.º 31/2012; não curou aquele acórdão de qualquer eventual renovação após 2019 e nem da aplicação da Lei n.º 13/2019 e, por força desta, do prazo de renovação após aquela data.
Questão distinta, e que importa apreciar nos presentes autos, é qual o período de tempo pelo qual se renovou o contrato em abril de 2019: se pelo período de dois anos nos termos decididos pelo tribunal a quo ou se pelo período de três anos previsto na Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, entretanto entrada em vigor antes de abril de 2019, conforme defende a Recorrente, ou ainda se pelo período de um ano nos termos convencionados pelas partes no contrato de arrendamento.
Regressemos então à questão já colocada: ao caso dos autos aplica-se a redação dada ao artigo 1096º do Código Civil pela Lei n.º 13/2019?
Importa salientar que a Lei n.º 13/2019 não contém qualquer norma de direito transitório para aplicação da nova redação do referido artigo 1096º aos contratos em curso, pelo que a questão terá de ser solucionada com recurso ao princípio geral de aplicação das leis no tempo previsto no artigo 12º do Código Civil.
Prevê este preceito que a lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular (n.º 1) e que quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (n.º 2).
Estabelece o n.º 1 deste preceito o princípio geral da não retroatividade da lei, consignando que as leis só se aplicam para o futuro.
Já o n.º 2 “distingue dois tipos de leis ou de normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos (1.ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas relações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2.ª parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relações jurídicas (melhor: Ss Js [situações jurídicas]) constituídas antes da LN mas subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência” (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 233).
Assim, “dispondo a nova redação do art. 1096º, do CC, introduzida pela Lei 13/2019, de 12.2, sobre o conteúdo da relação jurídica de arrendamento, e abstraindo a mesma do facto que lhe deu origem, é de concluir que a situação se enquadra na 2ª parte do art. 12º do CC, sendo a nova redação aplicável às relações já constituídas e que subsistam à data da sua entrada em vigor” (Acórdão da Relação de Guimarães de 08/04/2021, Processo n.º 795/20.5T8VNF.G1, relatora Desembargadora Rosália Cunha, disponível em www.dgsi.pt; é também neste sentido o entendimento de Maria Olinda Garcia, “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019, Revista Julgar Online, março 2019, considerando que “no que respeita à aplicação da lei no tempo, tais alterações aplicam-se não só aos contratos futuros, mas também aos contratos em curso, como decorre da regra geral do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil”).
Do exposto decorre que ao contrato de arrendamento em discussão nos presentes autos é aplicável a redação do artigo 1096º introduzida pela Lei 13/2019, a qual se encontrava em vigor aquando da renovação do contrato ocorrida em 1 de abril de 2019.
Podemos, por isso, concluir desde já, salvo melhor opinião, que em 1 de abril de 2019 o contrato não se renovou por dois anos, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo.
A questão que aqui se pode colocar, tendo-se renovado o contrato em 01 de abril de 2019 é se o mesmo se renovou pelo prazo de um ano nos termos contratualmente fixados pelas partes ou pelo prazo de três anos.
Conforme já escrevemos no acórdão que relatamos no processo n.º 1423/20.4T8GMR.G1 (disponível em www.dgsi.pt) a interpretação do n.º 1 do artigo 1096º, na redação dada pela Lei n.º 13/2019, nomeadamente quanto ao alcance da possibilidade de “estipulação em contrário” na parte respeitante ao prazo de renovação não tem merecido consenso.
Segundo Jéssica Rodrigues Ferreira (Análise das principais alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, aos regimes da denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, Revista Eletrónica de Direito, fevereiro 2020, página 82, https://cije.up.pt/client/files/0000000001/5-artigo-jessica-ferreira_1584.pdf) “[A] nova redação do art. 1096.º suscita várias dúvidas interpretativas, desde logo relacionadas com o alcance da expressão “salvo estipulação em contrário”. Reportar-se-á apenas à possibilidade de as partes afastarem a renovação automática do contrato, ou permitirá também a estipulação de um prazo de renovação diferente do aí previsto?
Parece-nos que o legislador pretendeu que as partes fossem livres não apenas de afastar a renovação automática do contrato, mas também que fossem livres de, pretendendo que o contrato se renovasse automaticamente no seu termo, regular os termos em que essa mesma renovação ocorrerá, podendo estipular prazos diferentes – e menores – dos supletivamente fixados pela lei (…)”.
No mesmo sentido, de que o prazo da renovação admite estipulação em contrário, afirma Jorge Pinto Furtado (Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, Almedina, 2019, p. 579) que se pode “validamente estabelecer, ao celebrar-se um contrato, que este terá, necessariamente, uma duração de três anos, prorrogando-se, no seu termo, por sucessivas renovações de dois, ou de um ano, quatro ou cinco, como enfim se pretender” (v. ainda neste sentido Isabel Rocha, Paulo Estima, Novo Regime do Arrendamento Urbano – Notas práticas e Jurisprudência, 5.ª Edição, Porto Editora, 2019, p. 286).
Em sentido contrário, defendendo que o legislador fixou um prazo mínimo de renovação, Maria Olinda Garcia (Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019, http://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/03/20190305-JULGAR-Altera%C3%A7%C3%B5es-em-mat%C3%A9ra-de-arrendamento-Leis-12_2019-e-13_2019-Maria-Olinda-Garcia.pdf, Revista Julgar Online, março 2019) entende que “ao estabelecer o prazo de 3 anos para a renovação, caso o prazo de renovação seja inferior, parece ser de concluir que o legislador estabeleceu imperativamente um prazo mínimo de renovação. Afigura-se, assim, que a liberdade das partes só terá autónomo alcance normativo se o prazo de renovação estipulado for superior a 3 anos”; no mesmo sentido se pronunciam José França Pitão e Gustavo França Pitão (Arrendamento Urbano Anotado, 2.ª Edição, Quid Iuris, 2019, p. 376) e Márcia Passos (Boletim da Ordem dos Advogados, setembro de 2019, http://boletim.oa.pt/project/set19-a-duracao-nos-contratos-de-arrendamento-com-prazo-certo/).
Também nós entendemos, não obstante o respeito que nos merece o entendimento contrário, ter sido intenção do legislador em 2019, estabelecer um prazo mínimo de renovação, nos casos em que as partes não tenham convencionado a exclusão da renovação.
Não obstante consagrar esta possibilidade de exclusão da renovação, em prol da liberdade contratual das partes, cremos ter sido intenção do legislador a de, não cessando o contrato no fim do prazo acordado, garantir a maior estabilidade possível dos arrendamentos habitacionais e dos agregados familiares.
Neste sentido, na Exposição de Motivos constante da Proposta de Lei n.º 129/XIII, que esteve na base da Lei n.º 13/2019, (disponível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=42542) consta que é “necessário estimular a oferta de habitação para arrendamento que constitua uma alternativa habitacional efetiva, proporcionando a estabilidade, a segurança e a acessibilidade em termos de custos, necessárias ao desenvolvimento da vida familiar e aos investimentos realizados com a conservação desses edifícios (…) Pretende-se que estas medidas contribuam para minorar uma vulnerabilidade histórica e estrutural de competitividade da habitação permanente face aos outros usos potenciais, e responder à necessidade imperiosa de salvaguardar a segurança e estabilidade dos agregados familiares que permaneceram ao longo de décadas numa habitação arrendada, sobretudo, das pessoas de idade mais avançada, perante o risco de cessação de contratos de arrendamento decorrente da superveniência de opções mais rentáveis para os mesmos espaços. Para tal é essencial promover um conjunto de alterações ao enquadramento legislativo do arrendamento habitacional visando corrigir situações de desequilíbrio entre os direitos dos arrendatários e dos senhorios resultantes das alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, em particular, proteger os arrendatários em situação de especial fragilidade, promover a melhoria do funcionamento do mercado habitacional e salvaguardar a da segurança jurídica no âmbito da relação de arrendamento (…).”
Também no artigo 1º da Lei n.º 13/2019 se enuncia que a mesma vem estabelecer medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios e a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano.
Assim, concluímos que o legislador teve como objetivo a proteção da estabilidade do arrendamento habitacional, limitando os direitos extintivos do locador e limitando a liberdade das partes para modelarem o conteúdo do contrato.
Acompanhamos, por isso, a posição de Maria Olinda Garcia quando refere que nos arrendamentos para habitação tendencialmente duradoura, a liberdade dos contratantes para modelarem o conteúdo do contrato sofreu significativas limitações com as alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2019.
Tais limitações evidenciam-se desde logo na exigência de um prazo mínimo de um ano (cfr. artigo 1095º n.º 2), onde está em causa uma norma imperativa que não admite convenção em contrário, pois ainda que as partes convencionem duração inferior, o prazo considera-se automaticamente ampliado para um ano; mas também na própria renovação do contrato pois, ainda que as partes possam convencionar a exclusão da possibilidade de qualquer renovação (a lei refere “salvo estipulação em contrário”) só terão liberdade para convencionar prazo de renovação superior a três anos, impondo o legislador um prazo mínimo de três anos, também imperativo.
E ainda ao estipular no artigo 1097º n.º 3 do Código Civil que a oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo, mantendo-se o contrato em vigor até essa data (excetuando a necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau, caso em que se aplicam, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 1102.º e nos n.ºs 1, 5 e 9 do artigo 1103.º - cfr. n.º 4 do artigo 1097º).
Sufragamos, por isso, o entendimento de que, no seu termo, os contratos de arrendamento com prazo para habitação permanente se renovam automaticamente, por períodos sucessivos de igual duração ou, se esta for inferior, de três anos, em conformidade com o estipulado no número 1 do artigo 1096º do Código Civil. O que significa que se o contrato de arrendamento foi celebrado por prazo inferior a três anos, e não foi excluída a renovação, o contrato se irá renovar automaticamente sempre por períodos mínimos sucessivos de três anos, em face do prazo mínimo imperativo previsto na referida disposição legal.
Este regime introduzido pela Lei n.º 13/2019 tem aplicação ao contrato dos autos, não obstante o mesmo ter sido celebrado em data anterior à sua entrada em vigor pois, no que respeita à aplicação da lei no tempo, conforme já vimos, estas alterações aplicam-se não só aos contratos futuros, mas também aos contratos em curso, em conformidade com a regra geral do artigo 12º n.º 2 do Código Civil.
Assim, o prazo mínimo de três anos para a renovação do contrato de arrendamento previsto no número 1 do artigo 1096º do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2019, que entrou em vigor em 13 de fevereiro de 2019, aplica-se ao contrato de arrendamento que se renovou em 01 de abril desse ano, pelo que o contrato, decorrido esse prazo de três anos, renovava-se não em 1 de abril de 2021, mas em 1 de abril de 2022.
A comunicação efetuada pela Autora à Ré, datada de 22/10/2020, de que não pretendia a renovação do contrato de arrendamento, e este cessaria a 19 de abril de 2021, não respeita aquele prazo de renovação, não produzindo efeitos contra a Ré, uma vez que, nessa data se encontrava ainda em curso o prazo decorrente da renovação ocorrida em 01 de abril de 2019.
Poderia questionar-se se a oposição à renovação comunicada pela Autora em outubro de 2020 operou, ainda assim, na altura da renovação em abril de 2022, uma vez que a Autora apenas instaurou a presente ação em 24 de maio de 2022.
Como se pode ler no Acórdão da Relação de Lisboa de 24/05/2022 (Processo n.º 7855/20.0T8LRS.L1-7, Relatora Desembargadora Micaela da Silva Sousa, também disponível em www.dgsi.pt) a oposição à renovação é um poder (potestativo), livre (discricionário) e unilateral, dependente apenas da manifestação de vontade do senhorio e sua comunicação, nos termos e condições legalmente definidos, ao inquilino (declaração reptícia), enquanto meio de impedir que, por via da renovação automática tácita, a vigência do contrato se perpetue, mas a vontade do senhorio e a sua manifestação formal devem ser certas, inequívocas e seguras, sobremaneira no que diz respeito ao momento visado para a produção de efeitos, a fim de que o inquilino fique vinculado ao efeito desejado e para que lhe seja exigível o seu acatamento, com a consequente entrega do locado.
E tal deve ocorrer quanto ao momento pretendido para a produção de efeitos, designadamente em casos, como o dos autos, onde não se mostra inequívoca a interpretação do regime legal a aplicar, com reflexos no prazo da renovação do contrato (in casu renovação anual, ou renovação bianual, ou trianual).
Deve, por isso, ser exigível que o senhorio seja expresso e inequívoco relativamente à data em que pretende a cessação do contrato, e não apenas quanto à intenção de se opor à renovação.
No caso sub judice a Autora comunicou à Ré apenas a cessação do contrato no dia 1 de abril de 2021; contudo, nessa data, ainda se encontrava em curso o período de renovação iniciado em 01 de abril de 2019.
Dos autos e do presente recurso também se não retira qualquer intenção da Autora de se opor à renovação e fazer cessar o contrato em outra data que não o dia 1 de abril de 2021; se analisarmos as contra-alegações apresentadas a recorrida sustenta sempre que deve ser mantida na integra o saneador-sentença proferido, sem nunca abordar a questão ou sequer mencionar a possibilidade de considerar a oposição à renovação e a cessação do contrato em qualquer outra data, designadamente em abril de 2022.
Ora, sendo de considerar a data da renovação como um elemento necessário da comunicação a efetuar ao arrendatário, entendemos também que se trata de um elemento essencial para garantir a salvaguarda dos direitos deste, de maneira a estabelecer, com segurança, a sua obrigação de restituir o locado, não podendo esta ficar, bem como o respetivo cumprimento ou as consequências da recusa, dependente de qualquer facto de aleatoriedade, emane ele da comunicação emitida, da interpretação do recetor ou das divergências interpretativas  do sistema legal; é também neste sentido o entendimento perfilhado no acórdão desta Relação proferido no referido processo n.º 1426/19.1T8VCT, onde se afirma que a "inequivocidade e certeza da vontade do senhorio em impedir a renovação do contrato parece que deverá, pois, exigir-se também quanto à data da mesma e, consequentemente, caso o não seja e sobretudo numa situação cujas dúvidas a própria autora despoletou (ao invocar regime legal inadequado e uma data impossível) e em que o regime legal nada tem de cristalino para o comum dos cidadãos [29], não poderá justamente pressupor-se que o inquilino, por sua parte, confrontado com uma data insuscetível de relevar (01-03-2018), teria o dever de, não obstante, esperar e contar com uma próxima data futura, assumir nela como certa a desvinculação, e exigir-lhe que, em razão de tal vaticínio, adequasse a sua conduta [30]. Como dizem reputados autores [31]: “Em princípio, a comunicação do senhorio para se opor à renovação deverá ser efetuada por carta na qual identifique o locado, a renda, a data do início do contrato e o respetivo prazo, contendo uma manifestação inequívoca de que pretende opor-se à renovação. Para que não se levantem dúvidas a este respeito, é aconselhável referir precisamente que «se vem opor à renovação», indicando a data da cessação do contrato. A carta deverá ser enviada com a antecedência necessária para acautelar possíveis vicissitudes”.
Assim, tendo a Autora comunicado à Ré, expressamente, que o contrato devia cessar em 01/04/2021, data que não pode ser atendida por ainda se encontrar em curso o prazo de renovação, e não tendo a Autora considerado por qualquer modo, outra data para a sua cessação, tendo reiterado em nova comunicação enviada à Autora em agosto de 2021 a oposição à renovação e a entrega do imóvel já anteriormente comunicada, será de concluir que quer na perspetiva da Autora (senhoria), quer da Ré (arrendatária) a data de 21 de abril de 2021 era certa e inequívoca, não se impondo à Ré que contasse com uma outra.
De todo o modo, analisada a petição inicial é perentório que a Autora instaura a presente ação no pressuposto da extinção do contrato, por via da oposição à renovação, em 1 de abril de 2021, sendo a partir desta data que pede a condenação da Ré no pagamento da quantia mensal de €200,00 até efetiva entrega do ... do imóvel.
Entendemos, por isso, que devem improceder, os pedidos de reconhecimento da cessação do contrato e de condenação da Ré na restituição e no pagamento, sendo de revogar nessa parte o saneador-sentença recorrido.
As custas do presente recurso são da responsabilidade da Recorrente e da Recorrida na proporção de 1/3 e 2/3, respetivamente, atento o seu decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
As custas da ação são da total responsabilidade da Recorrida pois não obstante a procedência dos pedidos de declaração da Autora como dona e legítima proprietária do imóvel identificado em 1) dos factos provados e condenação da Ré a reconhecer tal direito (improcedendo todos os demais), os quais não fazem parte do objeto do recurso, a verdade é que os mesmos tinham sido já objeto de pronuncia na ação anterior n.º 1426/19.1T8VCT, movida contra a Ré, na qual fora já declarado que o prédio pertence à aqui Autora e condenada a aqui Ré a reconhecer tal direito, entendendo-se que a Autora deu integralmente causa à presente ação devendo, consequentemente, suportar as custas (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, e consequentemente, em alterar o saneador-sentença recorrido no sentido de absolver a Ré também dos pedidos da sua condenação a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento por ter operado a oposição à renovação, a restituir à Autora o imóvel, devoluto e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições e a pagar à Autora a quantia mensal de €200,00, desde abril de 2021 até efetiva entrega do ... do imóvel, a liquidar em sede de execução de sentença, mantendo, no mais a decisão recorrida.
As custas da ação são da integral responsabilidade da Autora/Recorrida e as custas do presente recurso são da responsabilidade da Recorrente e da Recorrida na proporção de 1/3 e 2/3, respetivamente, sem prejuízo do beneficio do apoio judiciário que lhes foi concedido.
Guimarães, 23 de março de 2023
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Afonso Cabral de Andrade (2º Adjunto)