Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3570/22.9T9GMR.G1
Relator: ELISABETE COELHO DE MOURA ALVES
Descritores: COMPRA E VENDA DE BENS DE CONSUMO
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
CADUCIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DOS AUTORES PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- O juiz apenas deve conhecer do mérito da causa ou de alguma excepção peremptória, na fase intercalar dos autos, quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não apenas os elementos que segundo a sua visão da decisão são relevantes para a decisão da questão.
2- Em suma, existindo mais do que uma solução plausível para a questão de direito e factos controvertidos com relevância para alguma delas é prematuro o conhecimento do mérito no saneador, mormente de excepção peremptória que tenha sido invocada.
3 - Na compra e venda de bem defeituoso, o consumidor pretendendo fazer valer os seus direitos contra o vendedor, terá de denunciar a este a falta de conformidade do bem com o contrato, nos prazos legalmente previstos. Não obstante o citado dever, é ao vendedor que cabe o ónus de provar, como facto extintivo do direito invocado (art. 342º n.2 do C.Civil) que o comprador não efectuou a denúncia da falta de conformidade, que a fez para além do prazo e/ou que a acção judicial visando o exercício dos direitos não foi proposta no prazo legal.
4- A contagem do prazo para a denúncia apenas se inicia com a tomada de conhecimento suficiente da desconformidade (ou vício), não relevando a mera possibilidade de conhecimento ou o desconhecimento da extensão integral do defeito quando este revista uma natureza eminentemente técnica.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

i. Relatório

AA, e mulher, BB, residentes na Rua ..., freguesia ..., do concelho ..., intentaram em 30.06.2022 acção declarativa de condenação contra EMP01..., S.A, peticionando, na sua procedência:
« a) Ser a Ré condenada a proceder à reparação da coisa; ou no caso assim não se entender,
b) A proceder à sua substituição; ou
c) A proceder à redução do preço; ou
d) A proceder à resolução do contrato; e ainda
e) Ser a Ré condenada a pagar aos AA. uma indemnização nunca inferior a € 2.000,00.»
Alegam, em súmula, ter adquirido à ré um veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ... no estado novo (zero quilómetros), com garantia de 5 anos e sem limite de quilómetros, pelo preço de 27.749,99€, tendo celebrado um contrato de crédito automóvel (locação financeira ou ALD) com o Banco 1..., S.A., e a viatura sido entregue em 31/07/2017.
Desde a data da compra que notaram que a viatura apresentava comportamentos anormais, nomeadamente: (a) o veículo perdia potência em andamento; b) tirando o pé do acelerador o veículo acelerava sozinho, mesmo quando o veículo se encontrava parado, em ponto morto; e c) o veículo entrava num estado de solavancos após efetuado o arranque e quando circulava a baixa velocidade (cerca de 40/50 KM/Hora); pelo que por diversas vezes contactaram a oficina da ré a dar conta dessa situação, tendo recebido uma comunicação por parte desta em 8.2.2018, de que a viatura necessitava de proceder à correção de uma não conformidade técnica, o que foi feito, sem que lhes fosse explicada qual e que intervenção foi efectuada no veículo.
Por diversas vezes a viatura foi à oficina da ré com as mesmas queixas e apesar das intervenções e diagnósticos levados a cabo, o problema sempre se manteve e mantém, o que ocorreu, designadamente, em 5.3.2018; 6.04.2018, 08.04.2019, 11.02.2020, afirmando a ré, que nada resultava dos testes efectuados e que o comportamento assinalado do veículo era normal naquela série/modelo, sem que o confirmassem por escrito.
Dada a falta de solução e considerando as respostas da ré, os AA (através da sua filha) pediram num stand da EMP02... para efectuar um teste-drive de um veículo do mesmo modelo e características, o que fizeram em 2.03.2020, constatando então não existir nenhum dos comportamentos que a ré indicava como características de série, pelo que em 2.03.2020 e enviaram um email à ré expondo os factos aqui relatados, reenviado em 29.06.2020.
Em 28.07.2020 enviaram carta registada com AR a solicitar novamente a reparação. Surgiu, entretanto, um barulho na viatura que foi comunicado à ré.
Em 31.07.2020 a ré agendou uma reparação. Os AA. reiteraram todas as queixas, conforme folha de reparação, e mais uma vez a ré afirmou nada ter sido detectado. Os AA. efectuaram uma reclamação no Livro dada a incoerência de informações prestadas pela ré quanto à sinalização da falta de calços dos travões, ao que esta respondeu em 20.08.2020, nada mais tendo dito.
Por força das intervenções no veículo e considerando a perda de confiança neste os AA. vêm-se privados da sua utilização em pleno, o que lhes causa frustração.

Regularmente citada, a R. apresentou contestação, na qual, para além de excepcionar a sua ilegitimidade, invocou a caducidade da acção por ultrapassado o prazo previsto no artigo 921º n.4 do CCivil, sustentada em súmula na alegação de que decorrendo da petição inicial que a última denuncia efectuada pelos autores, foi-o em 31.07.2020 passaram mais de seis meses até a acção ser por aqueles proposta.
Mais impugnou na sua generalidade os factos invocados pelos autores, dando conta que em todas as intervenções e testes efectuados ao veículo não foi detectada nenhuma anomalia no seu normal funcionamento.
Sustenta, por cautela, que existe uma graduação dos direitos dos AA. que apenas poderiam exigir a reparação e que a sua actuação ao fazer uso diário do veículo durante 5 anos é abusiva.
Requer a intervenção principal provocada da EMP02... e, em caso de assim não se entender, a sua intervenção acessória.
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Responderam os autores, pugnando pela improcedência das excepções arguidas.
Sustentam que está em causa um contrato de compra e venda de consumo e que a acção foi intentada dentro do prazo de garantia de 5 anos concedido pela ré aos AA.
Que a ré na sequência das reclamações dos AA. sempre lhes garantiu que o comportamento do veículo era normal naquela gama de veículos, o que apenas foi contrariado efectivamente pelos AA. na sequência do teste drive feito em 2.03.2020, altura em que tomaram efectivo conhecimento de que o que lhes era garantido pela ré não correspondia à realidade, o que de imediato comunicaram à ré.
Concluem ter denunciado e intentado a acção no prazo de dois anos porquanto tal prazo esteve suspenso por força dos diplomas publicados no contexto da pandemia Covid-19, suspensão que ocorreu num total por 160 dias, pelo que o seu direito apenas caducaria em 9.8.2022.
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Após convite de correcção da petição inicial e resposta da ré, foi proferido despacho a indeferir a intervenção principal provocada e a admitir a intervenção assessória provocada da EMP02... SA., a qual apresentou articulado de contestação, aderindo no essencial ao articulado da ré.

Foi proferido despacho de saneamento dos autos – refª elec. ...66, no âmbito do qual, para além de julgar improcedente a excepção de ilegitimidade passiva, conheceu da excepção peremptória de caducidade invocada pela ré e concluiu pela sua procedência.
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Inconformada com a decisão que apreciou a excepção da caducidade invocada, dela recorreram os autores, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. Apelantes e Apelado celebraram entre si um contrato de compra e vende de consumo do veículo ..., modelo ...0, ...... ..., com a matrícula ..-TJ-.., e chassis ...92 em 28/07/2017, tendo os Apelantes destinado aquele veículo ao seu uso pessoal, familiar e doméstico, seu e do seu agregado familiar;
2. Tendo a Apelada concedido aos Apelantes uma garantia voluntária de 5 anos e sem limitação de quilómetros;
3. Os Apelantes foram dando a conhecer à Apelada, por diversas vezes, os comportamentos do veículo que consideravam anómalos, sendo que a Apelada sempre justificou os mesmos dizendo que eram comportamentos normais em carros daquela gama;
4. Pelo que, só no dia 02/03/2020, quando a filha dos Apelantes fez um test-drive num veículo dessa gama, não tendo detetado qualquer um daqueles comportamentos descritos na presente acção, é que os Apelantes tomaram conhecimento dos vícios do veículo vendido pela Apelada.
5. Data em que, por email dirigido à Apelada, os Apelantes reforçaram junto daquela, os vícios identificados no veículo desde a data da sua compra;
6. Ora, ao consumidor basta alegar e provar os factos base da presunção e que eles se manifestaram dentro do prazo da garantia legal imposta pelo Dec. Lei n.º 67/2003 (no caso, tratando-se de um bem móvel, 2 anos);
7. In casu, o dies a quo do prazo de caducidade, e porque nos encontramos perante um defeito oculto que não era exigível que os Apelantes detetassem aquando do uso do veículo, apenas ocorreu aquando do test-drive efectuado pela filha dos Apelantes em 02/03/2020;
8. Ora, para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade no prazo de 2 meses (art. 5ºA, nº2, do DL nº 67/2033, de 08/04), prazo que os Apelantes respeitaram e até o prazo de denúncia de trinta dias previsto no artº 916º do CC;
9. E, os direitos atribuídos ao consumidor caducam decorridos 2 anos da data da denúncia (art. 5ºA, nº3, do DL nº 67/2033, de 08/04;
10.Sucede que, os prazos de caducidade estiveram “suspensos” desde ../../2020 até ../../2020 (Lei nº 1-A/2020, de 19/03, alterada pela Lei nº 4-a/2020, de 06/04 e Lei nº 16/2020, de 29/05), assim como ... até ../../2021 (Lei nº 4-B/2021, de 01/02), sendo 86 dias no primeiro período e 74 dias no segundo, num total de 160 dias;
11.Assim, somando aqueles 160 dias de suspensão dos prazos de caducidade aos 2 anos que os Apelantes tinham para intentar a ação, é forçoso concluir que o seu direito só caducaria em 09/08/2022;
12.Pelo que, tendo a presente acção entrado em juízo em 30/06/2022, temos de concluir pela tempestividade da mesma.
13.Assim, não poderá manter-se a douta sentença recorrida, que viola os art.os 329.º, do Código Civil, art. 4.º e 5º-A, nºs 2 e 3, do DL 63/2003;
14.Devendo proferir-se douto acórdão que, revogando a douta sentença recorrida, julgue tempestiva a presente ação.
Termos em que deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, ser revogada a douta sentença apelada, substituindo-se por outra que julgue tempestiva a presente acção, com as legais consequências.»
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Apenas a interveniente EMP02... contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

«I. O Douto Tribunal assentou a sua convicção, quanto à existência de caducidade dos direitos dos Autores, nos factos trazidos a juízo, tendo concluído pela procedência da exceção invocada, à luz dos elementos temporais indicados, contrapostos com o normativo legal aplicável.
II. Destarte, vêm os Autores, aqui Apelantes, recorrer de tal decisão, alegando a tempestividade da ação intentada.
III. Naturalmente, não poderá a aqui Apelada concordar com tal pretensão, não apenas porquanto o normativo legal aplicável é claro, mas também porque a versão trazida pelos Apelantes não se coaduna com a verdade material, sendo uma visão deturpada dos factos em juízo.
IV. Os Apelantes iniciam as suas alegações fazendo referência ao contrato de compra e venda celebrado; in casu, este contrato diz respeito à compra venda de um veículo já descrito nos presentes autos, de matrícula ..-TJ-...
V. Num complemento ao exposto pelos Apelantes, este negócio foi celebrado na data de 28/07/2017 (pois que será esta a primeira data relevante para a resolução da querela).
VI. Sendo certo que, no que se reporta ao conhecimento dado pelos Apelantes, resulta dos autos (nomeadamente da P.I. apresentada pelos Apelantes, nos seus artigos 10.º e 13.º) que, pelo menos nas datas de 05/03/2018 e 06/04/2018, os Apelantes deram ordens de diagnóstico da viatura, baseadas em alegadas anomalias.
VII. Apenas para no parágrafo imediatamente seguinte, referir: “Assim, só no dia 02/03/2020, (…) é que os Apelantes tomaram conhecimento dos vícios do veículo vendido pela Apelada.”
VIII. Os Apelantes vão ainda mais longe no parágrafo imediatamente seguinte, atestando que: “(…) nesse mesmo dia 02/03/2020, por email dirigido à Apelada, os Apelantes reforçaram junto da Apelada, os vícios identificados no veículo desde a data da sua compra.” (sublinhado e negrito nossos.)
IX. O reforço implica uma repetição, o que exclui a possibilidade de os terem descoberto naquela data; mas também, são os próprios Apelantes quem assume que os vícios estavam identificados desde a data da sua compra.
X. Ora, verdade é que a compra ocorreu na data de 28/07/2017, pelo que, será desde essa data que os Apelantes lograram identificar os alegados vícios da coisa.
XI. A querela dos presentes autos prende-se com o procedimento a adotar em situações de vícios ou desconformidades, bem como os prazos atinentes ao mesmo.
XII. Assim, resulta óbvia a existência de dois prazos diferentes: i) o prazo para denúncia; e ii) o prazo em que a ação deveria ter sido instaurada.
XIII. Ora, o Douto Tribunal, na sentença proferida, naturalmente verte a posição assumida pelos Apelantes desde o início da lide, quando aponta: “São os AA. quem afirma no art. 4.º que “desde a data da compra do veículo” que “notaram comportamentos anormais naquele, (…)”;
XIV. A busca da certeza quanto ao momento em que os Apelantes detetaram as desconformidades é, neste caso, vital.
XV. E é também detetável, nas suas alegações, a tentativa dos Apelantes de criação de dúvida, suspeita e incerteza quanto a esse momento, no Tribunal.
XVI. A Apelada não sucumbe esta tentativa, e descarta a existência de mera possibilidade ou suspeita de defeito, estando perfeitamente convicta que a atuação dos Apelantes belisca qualquer mera suspeita, sendo antes a concretização de certezas inabaláveis que estes alegadamente teriam quanto à alegada existência dessas anomalias, às datas respetivas.
XVII. Pelo menos em dois momentos, em duas datas distintas, os Apelantes referem ter detetado desconformidades.
XVIII. Tendo por referência os dois prazos a respeitar, i) o prazo de dois meses para efetuar a denúncia dos depois após o conhecimento; e ii) o prazo de dois anos até à caducidade dos direitos, contado desde a data da denúncia; vejamos:
XIX. Desde logo, reiterando, alegam os Apelantes que imediatamente aquando da compra do veículo, detetaram comportamentos anormais.
XX. Por referência à data de 28/07/2017, data da celebração do negócio, deveriam os Apelantes ter denunciado essas desconformidades até ao final do mês de setembro desse ano, como bem refere o Douto Tribunal na sentença recorrida, e, cumulativamente, a respetiva ação deveria ter dado entrada, em princípio, até ao dia ../../2019,
XXI. Respeitando-se assim o prazo de dois meses para a denúncia, e de dois anos para dar entrada da respetiva ação.
XXII. Face ao facto de que a ação em apreço foi intentada na data de 30 de junho de 2022, esta terá sempre que ser considerada intempestiva.
XXIII. À semelhança do Douto Tribunal, é este o entendimento da Apelada, motivo pelo qual entende terem caducado os direitos dos Apelantes, porquanto foram exercidos, praticamente três anos após terem caducado.
XXIV. Mas voltando as nossas atenções para hipóteses meramente académicas, ainda que se considerasse que a denúncia foi feita na data de 05 de março de 2018 com a entrega da viatura nas instalações da Ré, (e não em data anterior, o que se repete, apenas se concebe por mero exercício académico), significaria isso que a caducidade de tais direitos operaria na data de 05 de março de 2020, volvidos dois anos após a denúncia, denúncia essa feita com a remessa do veículo para aquelas instalações.
XXV. Ora, a ação foi instaurada em 30 de junho de 2022, pelo que, nem essa construção académica acautelaria a efetivação dos direitos dos Apelantes, direitos esses, já caducados há mais de dois anos também nesta problematização teórica.
XXVI. Ao longo das suas alegações, os Apelantes vêm reiterar a obrigação constante do decreto-Lei, nomeadamente a de denunciar a inconformidade num prazo de dois meses, a contar da data da sua deteção.
XXVII. E efetivamente os Apelantes, na sua ótica, fizeram-no!
XXVIII. Não deram foi o passo seguinte, não foi observada a tramitação subsequente estabelecida nesse diploma legal e não procederam no sentido de dar entrada da ação no prazo respetivo, o de dois anos a contar da data da denúncia.
XXIX. Com efeito, vertem os Apelantes considerações bastante acertadas nomeadamente quanto às presunções existentes sobre esta temática, bem como relativamente ao facto da dispensa de prova em caso de defeito, ou ainda sobre quem recairia a responsabilidade de tal “reparação / substituição”.
XXX. Sucede que tais considerações poderiam relevar para a decisão do mérito da causa. Contudo, não é esse o busílis dos presentes autos, mas sim a eventual caducidade, o que não sai minimamente beliscada face à fundamentação apresentada pelos Apelantes, porquanto esta nada releva para a análise da caducidade.
XXXI. Por sua vez, insistem os Apelantes que se encontram “perante um defeito oculto que não era exigível que os Apelantes detetassem aquando do uso do veículo (…).”
XXXII. Assim, virem agora os Apelantes alegar um defeito oculto, é claramente descabido, pois que, pela quantidade de vezes que alegadamente se queixaram, o mesmo não seria oculto, e os Apelantes tinham bem dele conhecimento.
XXXIII. Sendo que é precisamente o mesmo defeito que é apontado desde a sua compra até aos dias de hoje, pelo que não existe sequer aqui o fator novidade, ou tratar-se de anomalia diferente detetada num momento posterior.
XXXIV. Face a  tudo     o exposto, deverá sempre considerar-se como extemporânea a entrada da ação dos Apelantes, tendo andando o Douto Tribunal sobre a linha retilínea que é o Direito aplicável, apresentando assim uma fundamentação inabalável e desprovida de lacunas, que sustenta de forma hercúlea, a decisão de julgar procedente a exceção invocada e, assim, absolver a Ré do pedido, mantendo-se, por consequência, a Douta sentença colocada em causa, inalterada.
Conclui pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objecto do recurso

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objecto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou relativas à qualificação jurídica dos factos, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b) e 5º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil (C.P.C.).
A questão a decidir é a da verificação dos pressupostos de facto para o conhecimento de mérito da excepção de caducidade no despacho saneador e no caso da sua verificação, da procedência ou improcedência da mesma.
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III – Fundamentação fáctica.

Os factos a ter em consideração na apreciação da apelação são os já constantes do teor do relatório.
 Na sentença recorrida não se mostram fixados quaisquer factos provados.
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IV. Fundamentação de Direito:

No caso vertente estamos perante uma acção de responsabilidade civil contratual por venda de coisa defeituosa, um veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ... no estado novo (zero quilómetros), com garantia de 5 anos e sem limite de quilómetros, pelo preço de 27.749,99€, tendo a entrega do veículo ocorrido em 31.07.2017, peticionando os autores, em primeira linha, a reparação dos defeitos.
Na sua contestação, a ré arguiu a excepção da caducidade do direito invocado pelos autores, sustentada, em síntese, no disposto no artigo 916º e segs. do C.Civil (arguindo, que na petição inicial foi confessado que a viatura automóvel era utilizada no exercício da atividade profissional de transporte rodoviário de mercadorias),   considerando que a última denuncia efectuada pelos autores o foi em 31.07.2020 e que a acção apenas foi intentada em 30.06.2022 e, portanto, para além do prazo de seis meses da denúcia.
Na decisão recorrida, embora considerando aplicável à situação dos autos o regime previsto no DL 62/2003, de 08.04, por considerar tratar-se de um lapso a alegação da ré quanto ao uso profissional do veículo por parte dos AA. (vide art. 11 da contestação), acolheu a excepção peremptória de caducidade invocada e julgou improcedente a acção, aduzindo, após breve incursão no citado diploma, que: «São os AA. quem afirma no art. 4.º que “desde a data da compra do veículo” que “notaram comportamentos anormais naquele, nomeadamente:
a) O veículo perde potência em andamento, sem qualquer comportamento por parte do condutor;
b) Tirando o pé do acelerador, o veículo acelerava sózinho, obrigando o condutor a abrandar a marcha através do accionamento dos travões, e mesmo quando o veículo se encontrava parado, em ponto morto, começava a acelerar; e
c) O veículo entrava num estado de solavancos após efectuado o arranque e quando circulava a baixa velocidade (cerca de 40/50 km/h).”
Sendo assim, deveriam ter denunciado esses defeitos até ao final do mês de Setembro de 2018, ante o preceituado no art. 5.º-A/2 DL67/2003.
Do doc. n.º ... junto pelos AA. com a sua p.i. (fls. 26) parece que assim o terão feito: efectivamente, ali se escreveu que “Logo após a entrega da viatura, a 31 de Julho, com o andar da viatura este corta-se em processo de aceleração e quando está em ponto morto acelera-se sozinho.
As queixas foram todas transmitidas ao consultor de vendas, que direccionou ao reparador Autorizado da EMP02... (...)”.
Sendo assim, a presente acção deveria ter sido instaurada, em princípio, até ao dia 30 do mês de Setembro de 2019.
Tendo a acção sido instaurada em 30.06.2022, há muito se encontrava esgotado o prazo de que os AA. dispunham para verem judicialmente reconhecidos os seus direitos.
Ainda que assim se não entenda, são os próprios AA. quem afirma, nesse mesmo doc. n.º ..., que no dia 05.03.2018 ao entregarem o veículo nas instalações da R. voltaram a denunciar as acima mencionadas faltas de conformidade. Esta alegação consta do art. 10.º da p.i..
Considerando este o dies a quo do prazo previsto no art. 5.º-A/3 DL67/2003, o dies ad quem desse prazo foi o dia 05.03.2020.
Não tendo sido alegado que a R. alguma vez tenha reconhecido as faltas de conformidade denunciadas nesta acção (pelo contrário, do teor da p.i. ressalta que a demandada nunca as terá reconhecido), a conclusão que se impõe é a de que à data da respectiva propositura o direito dos AA. já se encontrava caducado.
Não poderá, assim, deixar de ser julgada procedente a excepção em análise.».

Os recorrentes insurgem-se contra o decidido, arguindo em súmula:
- foi dada uma garantia de 5 anos pela ré, aquando da venda do veículo;
- foram sendo dados a conhecer à Apelada, por diversas vezes, os comportamentos do veículo que consideravam anómalos, sendo que a Apelada sempre justificou os mesmos dizendo que eram comportamentos normais em carros daquela gama;
- só no dia 02/03/2020, quando fizeram um teste-drive num veículo dessa gama, e não tendo detetado qualquer um dos comportamentos descritos na acção, é que os recorrentes tomaram efectivo conhecimento dos vícios do veículo;
- data em que, por email reforçaram junto da apelada, os vícios identificados no veículo desde a data da sua compra;
- ao consumidor basta alegar e provar os factos base da presunção e que eles se manifestaram dentro do prazo da garantia legal imposta pelo Dec. Lei n.º 67/2003 (no caso, tratando-se de um bem móvel, 2 anos);
- In casu, o dies a quo do prazo de caducidade, e porque nos encontramos perante um defeito oculto que não era exigível que os Apelantes detetassem aquando do uso do veículo, apenas ocorreu aquando do test-drive efectuado pela filha dos Apelantes em 02/03/2020;
- os direitos atribuídos ao consumidor caducam decorridos 2 anos da data da denúncia (art. 5ºA, nº3, do DL nº 67/2033, de 08/04;
- os prazos de caducidade estiveram “suspensos” desde ../../2020 até ../../2020 (Lei nº 1-A/2020, de 19/03, alterada pela Lei nº 4-a/2020, de 06/04 e Lei nº 16/2020, de 29/05), assim como desde ../../2021 até ../../2021 (Lei nº 4-B/2021, de 01/02), sendo 86 dias no primeiro período e 74 dias no segundo, num total de 160 dias;
- somando aqueles 160 dias de suspensão dos prazos de caducidade aos 2 anos que os Apelantes tinham para intentar a ação, é forçoso concluir que o seu direito só caducaria em 09/08/2022;
- pelo que, tendo a presente acção entrado em juízo em 30/06/2022, a mesma é tempestiva.

Vejamos então:

Antes de avançarmos importa salientar que a decisão proferida em sede de saneador de apreciação de mérito sobre a excepção peremptória de natureza preclusiva da caducidade, omitiu, contrariamente ao que era exigível, face ao disposto no art. 607º n.3 do CPC, a enunciação dos factos que o tribunal teve como provados[1] bem como a sua motivação e que serviriam de base à sua apreciação, o que, com todo o respeito, não constitui uma boa prática ou sequer se mostra conforme com os ditames legais, já que decorre do disposto nos artºs 205, nº1, da Constituição, 154 e 607, nº 3 do C.P.C., a imposição de um dever de especificar os fundamentos de facto e de direito das decisões que são proferidas, de forma a assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo (cfr. artº 20 da C.R.P.) mormente o direito ao contraditório, designadamente através da sua sindicância.  
Não obstante, extraindo-se do enquadramento jurídico da decisão os factos a que se fez apelo para concluir do modo descrito, avancemos no objecto do recurso tendo em consideração, para além do mais, que na sua maioria os factos alegados pelos AA. foram impugnados pela ré (cfr. artigo 32º da contestação).
Deste modo, a nossa análise iniciar-se-á pela aferição da verificação dos pressupostos para que pudesse ser conhecida, em sede de despacho saneador, a excepção de caducidade invocada, já que, como decorre do disposto no artigo 595º n.1 al. b) do C.P.C. «O despacho saneador destina-se a: (…) b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção perentória».
Do exposto, decorre que o juiz apenas deve conhecer do mérito da causa ou de alguma excepção peremptória quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não apenas os elementos que segundo a sua visão da decisão são relevantes.
Por outras palavras, como se salienta no sumário do Ac. R.P. de 24.05.2021, in www.dgsi.pt  « I - O conhecimento de mérito no despacho saneador apenas deve ter lugar quando o processo fornecer já em tal fase processual, antecipadamente relativamente à normal - a da sentença -, todos os elementos de facto necessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
II - Assim, e pela negativa, nunca é legitimo ao julgador enveredar, antecipadamente, pela sua solução definitiva do litígio, sem que garantida esteja a presença de todos os factos necessários a que as outras visões possíveis possam, também, ser logo, sustentadas.
III – (…)  IV - E controvertida estando matéria relevante para efetuar a subsunção jurídica do caso a um instituto convocado, nunca pode ser considerado consolidado estado dos autos que permita ao juiz antecipar a decisão, com o adiantar da solução por si perfilhada, pois que necessária se torna (após instrução) a condensação - como provados e não provados - dos factos que permitam, na interpretação, concatenação e ponderação de todos eles, adotar justa solução que se desenhe no leque das possíveis.
V - Deve, pois, o juiz proceder à recolha dos factos da causa (cfr. art. 5º, do CPC) que se mostrem dotados de relevância jurídica, garantindo a condensação de todos, por forma a acautelar anulações de julgamento.»
Em suma, existindo mais do que uma solução plausível para a questão de direito e factos controvertidos com relevância para alguma delas é prematuro o conhecimento do mérito no saneador, mormente de excepção peremptória que tenha sido invocada.
Como decorre do que vem exposto a questão em apreciação no recurso centra-se na aferição dos requisitos, de facto e de direito, para a procedência da excepção peremptória da caducidade invocada, considerando os factos alegados pelas partes e que se mostram provados nesta fase processual, em que não foi feita ainda a produção de prova.
Na decisão recorrida, o tribunal a quo começou a sua apreciação pela expressa referência a que sendo a utilização do veículo aquela que é afirmada pelos autores (veja-se, todavia, se bem vemos, a alegação feita pela ré na sua contestação, reiterada na resposta ao articulado corrigido dos AA, que ainda que não corresponda ao que foi alegado pelos AA., não deixará de constituir uma impugnação do uso do veículo que estes vieram a alegar), o regime que considerou aplicável foi o do D.L. 67/2003 de 08/04, que, diremos, procedeu à transposição para o direito português da Directiva n.º 1999/44/CE e visou reforçar a protecção dos interesses dos consumidores no que diz respeito a determinados aspectos da venda de bens de consumo e das garantias desses bens (cfr. art.1.º/1 desse diploma legal).
De facto segundo a alegação dos AA, estamos perante um contrato de compra e venda que teve por objeto um veículo novo (0 Km/s) com garantia de 5 anos e sem limite de quilómetros, pelo preço de 27.749,99€, alegadamente defeituoso (cuja falta de conformidade se manifestou posteriormente à entrega), compra e venda essa realizada entre os recorrentes, como compradores, e a Ré/recorrida, como vendedora.
Ora, como subtipo do contrato de compra e venda, surge o contrato de compra e venda para consumo, que se regula, pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (que estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores), e de outros diplomas de proteção dos consumidores, designadamente o Dec. Lei n.º 67/2003, de 08.04, alterado posteriormente pelo Dec. Lei. n.º 84/2008, de 21.05 (vigente à data dos factos, considerando a data da venda ocorrida em julho de 2017), sendo que as normas do código Civil sobre venda de coisas defeituosas, e designadamente em matéria de caducidade de direitos, só seriam aplicáveis se mais favoráveis[2].
O n.º 1, do art. 1º-A regula o âmbito do D.L. n.º 67/2003, dispondo: “O presente decreto-lei é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores”, encontrando-se a definição de consumidor no seu art. 1º-B, que assim reza: “a) «Consumidor», aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho;”.

Dispõe o art. 3.º do citado diploma:

“1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.
2 - As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade”.

Acrescenta o art. 4º, que: “1 - Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato. (…)
5 - O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais. (…)
E sob o art. 5º, com a epígrafe “Prazo da Garantia”: “1 - O consumidor pode exercer os direitos previstos no artigo anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel.(…)”
Por último, importa ter em atenção o disposto no art. 5.º-A do DL n.º 67/2003, de 8.04, aditado pelo DL n.º 84/2008, de 21.05, que, com a epigrafe “Prazo para exercício de direitos”, consagra: “1 - Os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer dos prazos referidos no artigo anterior e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detetado.
3 - Caso o consumidor tenha efetuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar desta mesma data”.
A tutela do comprador está ainda particularmente assegurada sempre que haja sido convencionada garantia de bom funcionamento. Nestes casos, o vendedor – no prazo da garantia e nos precisos termos convencionados – é obrigado a reparar a coisa ou a substitui-la, independentemente de culpa sua, ou de erro do comprador – art. 9º do DL n.º 67/2003, de 8.04 e 921ºdo CC.
Neste caso, bastará ao comprador provar o mau funcionamento durante o período de duração da mesma, sem necessidade de identificar a respectiva causa ou demonstrar a respectiva existência no momento da entrega, cabendo ao vendedor que pretenda subtrair-se à responsabilidade (obrigação de reparação, troca, indemnização) opor-lhe e provar que a concreta causa de mau funcionamento é posterior à entrega da coisa (afastando a presunção de existência do defeito ao tempo da entrega que justifica e caracteriza a garantia de bom estado e funcionamento) e imputável a acto do comprador, de terceiro ou devida a caso fortuito. [3]
A responsabilidade do vendedor, no regime da venda de bem de consumo, aproxima-se assim de uma responsabilidade objectiva, no âmbito da qual, perante o consumidor, será irrelevante a responsabilidade que o vendedor tenha tido na desconformidade, bastando a prova desta.
Decorre dos normativos citados que o consumidor pretendendo fazer valer os seus direitos contra o vendedor, terá de denunciar a este a falta de conformidade do bem com o contrato, nos prazos acima referidos. Não obstante o citado dever, é ao vendedor que cabe o ónus de provar, como facto extintivo do direito invocado (art. 342º n.2 do C.Civil) que o comprador não efectuou a denúncia da falta de conformidade, que a fez para além do prazo e/ou que a acção judicial visando o exercício dos direitos não foi proposta no prazo legal[4].E, portanto, era ao réu que tendo invocado a caducidade do direito dos autores, cabia alegar e provar os factos constitutivos da mesma.
Numa última nota é ainda importante referir, que: “A contagem do prazo para a denúncia apenas se inicia com a tomada de conhecimento suficiente da desconformidade (ou vício), não relevando a mera possibilidade de conhecimento ou o desconhecimento da extensão integral do defeito quando este revista uma natureza eminentemente técnica”[5]. Acresce, com relevância ao que diremos infra, que impede a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido (artigo 331º n.2 do C.Civil).
Dos normativos citados na sua contraposição com o regime geral do Código Civil de compra e venda de coisas defeituosas, previsto nos artigos 913º e segs., linearmente se constata que o regime geral é menos favorável ao comprador, desde logo porque os prazos para denúncia e caducidade da acção são mais curtos (trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa – artigo 916º n.2 do CC – e seis meses após a denuncia – art. 917º do CC) assim como quanto aos meios que o comprador tem ao seu dispor  para reagir contra a venda de bem defeituoso, que no regime geral têm uma hierarquização ou precedência de escolha- cfr. conjugação do disposto nos art.ºs 913 nº1 a 915 do C. Civil.  
Volvendo à situação dos autos constata-se que os AA., na petição inicial, alegaram que após a entrega da viatura (0 Km/s) pela ré- em 31.07.2017- notaram comportamentos anormais no desempenho do veículo (perda de potência, aceleração autónoma mesmo em ponto morto, solavancos em baixa velocidade) situação que os levou a dirigirem-se, por diversas vezes, com o veículo à oficina da ré com tais queixas para que fosse efectuado o diagnóstico (designadamente em 5.3.2018; 6.04.2018; 8.04.2019; 11.02.2020; 31.07.2020, sendo que a primeira foi a solicitação da ré para proceder a uma correcção de uma não conformidade técnica no veículo, sem que lhes fosse dito qual o erro que seria corrigido e qual a intervenção efectuada). Na sequência das mesmas foi-lhes dito que realizados testes, não havia registo de avarias e que “aquele comportamento era normal daquela série/modelo”, não o confirmando por escrito. Desse modo, volvidos vários meses de queixas e sem que pudessem fazer qualquer intervenção noutra oficina para as confirmar, devido à garantia, resolveram pedir um test-drive a um veículo do mesmo modelo e com as mesmas características do que adquiriram à ré, o que realizaram no dia 2.03.2020, não tendo ao longo dos Kms percorridos detectado nenhum dos comportamentos que apresenta o veículo dos AA e para os quais a ré indica como “características de série”. Nessa data 2.03.2020 expuseram à ré a situação e não obtendo resposta em 28.07.2020 enviaram nova carta registada dado o silêncio desta. O veículo voltou à oficina em 31.07.2020 onde, para além de outras, foram reportados novamente as referidas anomalias do veículo.
 Perante o acervo fáctico da alegação dos AA., diga-se, impugnada na sua quase totalidade- veja-se o artigo 32º e segs. da contestação-, o que podemos concluir é que o conhecimento da questão decidenda, designadamente da excepção de caducidade aqui em causa, não é tão linear como o que vem exposto na decisão, impondo no âmbito da sua apreciação e face às diversas soluções plausíveis da questão de direito evidenciadas, desde logo, do enquadramento jurídico que poderá vir a ser efectuado em face dos diversos regimes aplicáveis (sendo certo que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação das regras de direito- art. 5º n.3, do CPC), que seja feita a produção de prova quanto aos factos alegados na acção segundo as regras do ónus da prova aplicáveis ao caso (e a que acima fizemos alusão).
Na verdade, é imperioso apurar os factos atinentes às condições contratuais da compra e venda efectuada, mormente no que se refere à garantia concedida e respectivo prazo, que os AA. alegam ser de 5 anos ( o que faria reportar a mesma a 27.07.2022); ao destino do veículo, de modo a efectuar o enquadramento legal do contrato, se na venda de bens de consumo ou no regime geral; apurar os factos que relevam para o efectivo conhecimento das desconformidades/vícios apresentadas pelo veículo por parte dos AA. e seu momento/ data (para o que é relevante, a nosso ver, desde logo, aferir do comportamento/resposta da ré perante as diversas queixas dos A.A., circunstâncias de momento e modo destas queixas e das intervenções efectuadas pela mesma na sua sequência, nomeadamente e para além das demais, a que foi efectuada por iniciativa da ré; saber se as queixas dos AA. foram por esta “aceites”/”reconhecidas”, mas asseguradas como um comportamento normal dos veículos daquela série/modelo; circunstâncias em que ocorreu o test-drive efectuado e seu resultado) tudo traduzido em factos que influem indiscutivelmente na decisão a proferir sobre a excepção de caducidade arguida pela ré, e até mesmo sobre eventual conhecimento oficioso de actuação abusiva na sua invocação.
Em suma, face à relevância jurídica que a facticidade alegada e impugnada pela ré pode assumir no contexto das várias soluções plausíveis da questão de direito e de um enquadramento legal que pode ser diferenciado em função da mesma, resta concluir que a decisão de conhecimento de mérito da excepção de caducidade no saneador foi prematura e não atendeu a factos que foram alegados e que se mostram controvertidos, relevantes para a sua decisão.
Em suma, não existiam à data da prolação da decisão recorrida factos provados suficientes para que se pudesse, nesta fase dos autos, apreciar a excepção de caducidade invocada.
  Deste modo, e considerando o disposto pelo artigo 662º n.2 alínea c) do C.P.C., impõe-se a anulação da decisão proferida quanto ao conhecimento da excepção de caducidade, a qual deverá ser apreciada na sentença final, após a produção de prova dos factos alegados na acção e que se mostram essenciais à referida apreciação de acordo com as várias soluções plausíveis da questão de direito, ficando, desse modo, prejudicada a apreciação das demais questões equacionadas.

V- Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em anular a decisão recorrida quanto à apreciação da excepção da caducidade, determinando que os autos prossigam os seus ulteriores termos, incluindo, salvo se outra razão o vier a obstar, a realização da audiência de discussão e julgamento e prolação da sentença final.
Custas do recurso pela parte vencida a final.
*
Guimarães, 29.02.2024

Elisabete Coelho de Moura Alves (Relatora)
Jorge dos Santos
Maria da Conceição Barbosa de Carvalho Sampaio
(assinado digitalmente)
  

[1] Como se salienta no sumário do Ac. da R.C. de 16-09-2014, in www.dgsi.pt «I - Nas decisões que conheçam do mérito da causa, proferidas em sede de despacho saneador, uma vez que ainda não houve lugar a um juízo sobre a demonstração da veracidade dos factos alegados que se encontram controvertidos, por não ter havido oportunidade de produzir prova sobre eles, não é possível indicar-se os factos que não se provaram.
II - A possibilidade de proferir uma decisão de mérito nessa fase baseia-se na circunstância da matéria de facto relevante para a decisão da causa já se encontrar definida ao findar a fase de apresentação de articulados, pelo que, nesses casos, para que a fundamentação de facto esteja completa, é suficiente indicar-se os factos que integram essa matéria.
III - Na altura do despacho saneador os factos que podem ser considerados na decisão de mérito, além dos factos notórios e daqueles que o juiz tem conhecimento em virtude das suas funções, são aqueles que resultam de confissão judicial, de acordo expresso ou tácito das partes nos articulados, do funcionamento de presunção legal inilidível, ou de documento com força probatória bastante.
IV – A demonstração desses factos não resulta do exercício da livre apreciação da prova pelo julgador, mas sim do funcionamento de disposições legais que constituem um justificado resíduo do sistema da prova legal, pelo que nesta fase não tem lugar uma análise crítica das provas produzidas, nem a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, uma vez que a prova não resulta da formação de uma convicção, mas da aplicação de disposições legais, podendo apenas ser útil para a verificação da correcção da sua aplicação ao caso a indicação donde resultou a prova da matéria de facto que fundamentou a decisão de mérito.
[2] Cfr. Ac. R.C. de 10.12.2020, do relator Emídio Santos, in www.dgsi
[3] Como se salienta no Ac. R.P. de 5.4.2022,in www.dgsi  citando CALVÃO DA SILVA, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 4ª ed., 65; ac. STJ, de 03/4/2003 – proc. 03B809)”.
[4] Cf. Entre outros, Acórdão citado em nota 2.
[5] Como se salienta, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 25-03-2019, processo 1159/17.3T8GDM.P1;  no Ac. R.P. de de 10.05.2021, Processo: 2873/18.1T8VNG.P1; R.P. de 24-01-2022;  R.G. 30.03.2023, todos in www.dgsi.pt