Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1818/19.6T8GMR-E.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: DÍVIDAS DA INSOLVÊNCIA
DÍVIDAS DA MASSA INSOLVENTE
MANDATO
HONORÁRIOS
SUCESS FEE APÓS A DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I A distinção entre créditos sobre a insolvência e créditos sobre a massa insolvente importa, quer para o modo de reclamação das mesmas, quer para efeitos de obtenção do seu reconhecimento e pagamento.
II O contrato de mandato celebrado pela devedora/insolvente antes da declaração de insolvência caduca com esta declaração, nos temos do art.º 110º, n.º 1, CIRE, sem prejuízo do n.º 2.
III Estando previsto num contrato de mandato celebrado pela devedora/insolvente como mandante, antes da declaração de insolvência, uma cláusula success fee ou “taxa de sucesso”, ainda que o resultado que conduz à sua aplicação ocorra após a declaração de insolvência, estamos perante uma dívida da insolvência.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I RELATÓRIO.

EMP01..., RL, contribuinte ...31, com sede na Avenida ..., ...,
intentou a presente ação por apenso aos autos de insolvência, contra
MASSA INSOLVENTE DE EMP02..., LDA, contribuinte ...11,
pedindo a condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de 8.075,59 €, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento.
Para tanto alegou que patrocinou a insolvente em dois processos judiciais mediante acordo prévio de honorários, no qual se definiram os montantes fixos relativos ao impulso e actividade processual, a levar a cabo pela Autora, e uma componente variável – success fee – em função do resultado a obter pela ora insolvente. Aquando da declaração de insolvência, um dos processos aguardava prolação de sentença após prévio recurso favorável, outro aguardava decisão na sequência de recurso apresentado pela Autora da sentença em 1ª instância que indeferiu o pedido. Nessa ocasião estavam regularizados, pela insolvente, todos os honorários por ela até à data devidos à Autora, estando por liquidar apenas os que viessem eventualmente a ser devidos a título de succes fee. A seu pedido, o sr Administrador de Insolvência (AI) veio a ser informado do estado dos autos e do acordo de honorários, ao que não respondeu.
Num dos processos foi dada procedência parcial ao recurso interposto pela Autora, pelo que tem direito aos respetivos honorários.
Não tendo o AI, interpelado, procedido ao seu pagamento, e porque se trata de uma dívida da massa insolvente, tem a ação cobertura no art.º 89º, n.º 2, CIRE.
Juntou documentos.
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A Ré contestou, aceitando a matéria alegada (“Corresponde à verdade o alegado, pela Autora, em 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º da douta PI.”), com exceção dos artigos 13º, 20º, 21º e 22º da p.i. ou seja:
“13º Face ao acordo prévio de honorários acima referido, a Autora tem direito a receber, a título de honorários, 6% daquele valor de 109.425,40 €, ou seja, o montante de 6.565,52 € que, acrescido do IVA devido, ascende ao montante global de 8.075,59 €.”;
“20º O resultado obtido pela massa insolvente, através do decidido no acórdão proferido pelo TCA Norte. no processo que correu termos sob o n.º 2867/11...., é resultado exclusivo da actuação processual da Autora.
21º A obrigação de pagamento dos honorários ora reclamados apenas se tornou exigível após o trânsito em julgado da decisão do TCA Norte, proferida em Março de 2023, pelo que está em causa uma dívida de massa insolvente.
22º Tendo a presente acção cobertura legal no n.º 2 do artigo 89º do CIRE.”
Refere que não aceitou a proposta de honorários da Autora, para patrocínio judicial dos processos em causa (após a caducidade dos mandatos, em virtude da declaração de insolvência), e contratou outros advogados para o efeito (em ambos os processos); a Autora em momento algum contratou ou prestou serviços jurídicos à Massa Insolvente de EMP02..., Ldª, pelo que, diz, a eventual dívida de honorários existente à Autora (o que não se concede) é, pois, uma dívida da insolvência e não uma dívida da Massa Insolvente.
Pede a improcedência da ação.
Juntou documentos.
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De seguida foi proferida decisão que julgou a ação improcedente, absolvendo a Ré do pedido, e imputou as custas à Autora.
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Inconformada com aquela decisão, a Autora (A.) interpôs recurso apresentando as suas alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

a) A sentença é absolutamente omissa quanto aos fundamentos de facto em que se estriba a sentença, o que constituiu manifesta causa de nulidade da sentença (artigo 615º, n.º 1, b) do CPC).
b) Deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade de advogados que, no exercício da sua actvidade, foi contratada pela sociedade EMP02..., Lda., ora insolvente, para a patrocinar em processos judiciais de natureza fiscal.
2. Na sequência de liquidações de que foi notificada, em sede de IRC e de IVA, subsequentes a procedimento de inspecção tributária, veio a Autora a patrocinar a insolvente em dois processos de impugnação judicial, um relativo a IRC e outro a IVA.
3. Que correram seus termos no Tribunal Administrativo e Fiscal ... sob os n.º 699/12.... e 2867/11...., respectivamente.
4. Patrocínio que assumiu mediante acordo prévio de honorários, no qual se definiram os montantes fixos relativos ao impulso e actividade processual, a levar a cabo pela Autora, e uma componente variável – success fee – em função do resultado a obter pela ora insolvente, correspondente a 6% sobre a vantagem patrimonial obtida em cada um dos processos.
5. Aquando da declaração de insolvência da sociedade EMP02..., era o seguinte o estado daqueles processos judiciais:
a) Processo n.º 699/12....: aguardava-se a prolação de sentença pelo TAF ... após prévia decisão favorável do STA subsequente a recurso apresentado pela Autora;
b) Processo n.º 2867/11....: aguardava-se decisão do Tribunal Central Administrativo ... na sequência de recurso apresentado pela Autora a sentença em primeira instância que indeferiu totalmente o pedido.
c) Nessa ocasião estavam regularizados, pela insolvente, todos os honorários devidos à Autora, à data, estando por liquidar apenas os que viessem eventualmente a ser devidos a título de succes fee.
d) Na sequência de pedido expresso do senhor administrador de insolvência, por e-mail de 21-11-2019, a Autora veio a responder-lhe por e-mail de 22-11-2019, dando-lhe conta do estado dos processos e do acordo de prévio de honorários estabelecido com a constituinte.
e) Através desse e-mail, o senhor administrador de insolvência foi informado dos valores que seriam devidos à Autora a título de honorários, quer como parte fixa pela apresentação de recurso(s) em caso de decisões desfavoráveis, quer da componente variável, a título de succes fee, a qual corresponderia a 6% do ganho de causa, quantia a que acresceria o respectivo IVA.
f) O e-mail da Autora não recebeu qualquer resposta por parte do senhor administrador de insolvência.
g) Por acórdão de 02-02-2023, foi dada procedência parcial ao recurso interposto pela Autora, no processo n.º 2867/11...., correspondente a 109.425,40 € do valor total da acção de 109.983.99 € (doc. ...), montante a que acrescem juros indemnizatórios sobre as quantias pagas e penhoradas à impugnante, o qual transitou em julgado.
h) A Autora remeteu, em 29-06-2023, e-mail ao senhor administrador de insolvência, solicitando pagamento dos honorários devidos, no montante de 6.565,52 € que, acrescido do IVA devido, ascende ao montante global de 8.075,59 €, dela tendo feito constar: “… como pretende formalizar o valor dos honorários devidos mencionados abaixo”.
i) E-mail que não mereceu qualquer resposta por parte do senhor administrador de insolvência.
j) Pelo que a Autora interpelou o senhor administrador de insolvência ao pagamento dos honorários, por carta registada com aviso de recepção, que foi recebida em 07-07-2023.
k) A EMP02..., Ldª. foi declarada insolvente em 28-03-2019, por sentença proferida no processo principal de que o presente é apenso.
l) O administrador de insolvência pretendeu prosseguir com os processos identificados em e) tendo outorgado procuração forense a favor de outros advogados que não tiveram qualquer intervenção processual no processo n.º 2867/11.....
m) O resultado obtido pela massa insolvente no processo de impugnação judicial que o administrador judicial decidiu prosseguir, assentou exclusivamente no trabalho desenvolvido pela recorrente, pois apenas se aguardava o desfecho do recurso judicial apresentado junto do TCA Norte.
n) A junção de procuração forense a favor de novo advogado naquela impugnação judicial não passou do cumprimento de uma mera formalidade, não tendo nele tido qualquer intervenção processual.
o) Não é colocado em causa na sentença em crise, nem na contestação apresentada pela massa insolvente, a legitimidade da Autora ao seu crédito resultante de convenção prévia de honorários, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 105º do Estatuto da Ordem dos Advogados, sendo que a fixação da componente variável – success fee – em função do resultado a obter pela ora insolvente, correspondente a 6% sobre a vantagem patrimonial obtida em cada um dos processos é legalmente admissível, nos termos do n.º 3 do artigo 106º do mesmo diploma.
p) A insolvente não tinha, à data da declaração de insolvência, quaisquer honorários em dívida.
q) O processo de impugnação judicial apenas prosseguiu os seus termos face a uma intenção deliberada nesse sentido por parte do administrador de insolvência.
r) Na data da declaração de insolvência não existia qualquer facto ou fundamento que sustentasse o direito a honorários por parte da Autora. Este só surge, não em resultado de qualquer acção da insolvente, mas porque o administrador judicial entendeu que aquele processo judicial prosseguisse e se aguardasse o resultado da intervenção processual da Autora.
s) As dívidas da massa insolvente são geradas concomitantemente com o processo e respectiva administração.
t) Sendo o acórdão proferido pelo TCA Norte - e que constitui o fundamento da nota de honorários da Autora – muito posterior à data da declaração de insolvência, é indiscutível que o fundamento do crédito da Autora é posterior à declaração de insolvência, não só porque aquela decisão judicial – que constitui a fonte constitutiva de tal direito – é posterior à declaração de insolvência, mas também por que a sua exigibilidade só ocorreu depois dela.
u) O crédito da Autora constitui uma dívida da massa que estaria sempre enquadrada na alínea g) do artigo 51º do CIRE.
v) Tendo a impugnação judicial, apresentada pela Autora, ao abrigo de mandato sujeito a ajuste prévio de honorários, prosseguido, por decisão do administrador de insolvência, a situação é em tudo equivalente à manutenção do mandato após a declaração de insolvência.
w) A não ser assim, a dívida da massa insolvente constituiria o seu enriquecimento sem causa, com previsão na alínea i) do mesmo preceito legal e, por isso, exigível enquanto dívida da massa insolvente.
x) A sentença a quo fez uma indevida aplicação do disposto nos artigos 607º, n.º 3 do CPC, 51º, n.º 1 e 2, 89º, 110º e 146º do CIRE.”
Note-se que de 1 até à alínea l), se bem interpretamos, a recorrente indica os factos que, a seu ver, devem ser dados como provados, sendo que partir daí prossegue a argumentação conclusiva.
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Foram apresentadas contra-alegações pela Ré (R.)....
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal, mais se tendo esclarecido que sobe nos autos, como sucedeu.
Mais foi dito no despacho de admissão do recurso o seguinte:
“Não se verificam a nosso ver as nulidades invocadas porquanto a decisão recorrida contém o respetivo suporte fáctico e jurídico.
Fixa-se o valor da ação no indicado na p.i.”
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-se a decisão é nula, e, na afirmativa, se pode/deve ser sanada nesta instância;
-se deve ser alterada a decisão no sentido da procedência do pedido da A., face à classificação que se faça da dívida em causa (da massa ou da insolvência), e caso se conclua que há elementos factuais assentes para o efeito.
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III MÉRITO DO RECURSO.

QUESTÃO PRÉVIA: NULIDADE DE SENTENÇA.
A recorrente suscita a nulidade da decisão ao abrigo do art.º 615º, n.º 1, b), do C.P.C., uma vez que não enuncia qualquer facto.
Dispõe essa norma que “1 - É nula a sentença quando: (…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;” (…).
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente aos termos e aos limites da sentença.
De facto, as nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cfr. Acórdãos desta Relação de 4/10/2018, processo nº. 1716/17.8T8VNF.G1, e do STJ de 17/10/2017, www.dgsi.pt).
A falta de fundamentação de facto e de direito que justificam a decisão foi alvo de causa específica de nulidade.
O dever de fundamentação assenta no principio constitucional da obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente (art.º 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa). A sanção para o desrespeito desse dever é a cominação de nulidade.
A fundamentação tem de ser factual e jurídica. E, de acordo com o n.º 2 do art.º 154º, não pode ser através da mera adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou oposição em apreço, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade. O dever de fundamentação abrange todos os pedidos controvertidos e todas as dúvidas suscitadas no processo, mas também abrange o dever de explicitação dos motivos que levaram o julgador a dirimir a controvérsia em determinado sentido.
Concomitantemente com o dever geral de fundamentação, existem regras específicas que devem ser observadas na elaboração da sentença, elencadas no artº. 607º, do C.P.C.: na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção. Daí decorre a imposição do artº. 640º C.P.C. relativamente aos ónus de impugnação da matéria de facto.
Esta exigência de fundamentação da decisão referente à matéria de facto provada e não provada exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da Justiça, inerente ao ato jurisdicional (cfr. “Código de Processo Civil Anotado” de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, 2º vol., pag. 707 da 3ª edição, citando Fawcett, citado por Velu-Ergec, la convention européenne des droits de l’Homme, Bruxelas, Bruylant, 1990, nº. 478 (pag. 418)).
Conforme Ac. do STJ de 26/02/2019 (www.dgsi.pt) “…na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjectivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível”.
Pode divergir-se se a falta absoluta constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º – “a ausência total de fundamentos de direito e de facto” conforme refere José Alberto dos Reis “Código V cit., pág. 140, e Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª. ed., 1985, págs. 670 a 672; ou se a integra uma fundamentação apenas incompleta ou insuficiente.
Analisa criticamente estas posições, o Prof. Rui Pinto no texto “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC), 2019, https://www.linkedin.com.), publicado na Revista “Julgar” online de maio de 2020.
Conclui o autor do texto a sua posição no sentido que “(…) há que separar de um lado a sentença ou despacho não estarem fundamentados (de facto ou de direito), no todo ou em parte, e, do outro, a fundamentação estar presente, mas ser inadequada – não apresentar o mérito demonstrativo – para a parte dispositiva. A falta de fundamentação a que se refere a al. b) do n.º 1 do artigo 615.º ocorre, seja quando não há nenhuma fundamentação (de direito ou de facto) da parte dispositiva, seja quando falta, em termos funcionais e efetivos, algum segmento da fundamentação exigida pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º. Trata-se, em ambos os casos, de um vício grosseiro, grave e manifesto, como é próprio dos vícios arrolados nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 615.º. Um entendimento conforme ao artigo 205.º, n.º 1, da Constituição impõe esta interpretação de modo a garantir sempre um mínimo de impugnação de tipo de reclamatório, para as sentenças que não admitam recurso ordinário. Portanto, a falta de fundamentação não tem de ser total, pelo que subscrevemos na integra a conclusão do ac. RG 18-1-2018/Proc. 75/16.0T8VRL.G1 (ANTÓNIO BARROCA PENHA), na esteira do ac. RC 17-4-2012/Proc. 1483/09.9TBTMR.C1 (CARLOS GIL), de que “ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial”, assim, “não cumprindo o dever constitucional/legal de justificação” (STJ 2-3-2011/Proc. 161/05.2TBPRD.P1.S1 (SÉRGIO POÇAS). (…)
Situação diversa da falta de fundamentação, é a fundamentação existente não apresentar o mérito demonstrativo suficiente para justificar a parte dispositiva. Tal ocorre quando a fundamentação existe formalmente, mas padece de insuficiência, mediocridade ou erroneidade. Ora, uma coisa é a decisão não conter fundamentação e, outra, é “bem ou mal, o tribunal fundamenta[r] a decisão” (RP 11-1-2018/Proc. 2685/15.4T8MTS.P1 (FILIPE CAROÇO)). É como um tertium genus, “entre a fundamentação completa, total e indubitável e a falta de fundamentação” (TCAN 28-4-2016/Proc. 00385/08.0BEBRG (MÁRIO REBELO).
Aqui já não se trata de uma causa da nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º, mas de uma causa de recurso, por erro de julgamento.”
Nesta senda, para Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Processo Civil”, pág. 221) “…esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artigo 208.º, n.º 1 CRP e artigo 158.º, n.º 1 CPC) …o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível».
No mesmo sentido, Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, pág. 669.
Este autor e Isabel Alexandre, defendem ainda que, face à solução consagrada no CPC de 2013, de integrar na sentença tanto a decisão sobre a matéria de facto, como a fundamentação respetiva, só a falta da primeira integra a nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1, b), do C.P.C., e não também a falta da segunda, a que será aplicável o regime previsto no art.º 662º, n.º 2, d) e n.º 3, b) e d), do C.P.C. (“Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, pág. 736 da 3ª edição).
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No caso em apreço prima facie pode parecer que há total ausência de elenco de factos. No entanto, uma leitura interpretativa da decisão leva-nos a concluir que os factos que foram base da decisão são os constantes da sua parte inicial, referentes aos factos alegados pela A., por se ter entendido que esses são os relevantes e suficientes para a decisão a proferir, não estando impugnados pela R..
Nessa medida, improcede a invocada nulidade, sem prejuízo de se corrigir tal elenco, com aplicação do disposto no art.º 607º, n.º 4, 2ª parte, ex vi art.º 663º, n.º 2, C.P.C..
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Face à posição das partes, porque aceite por acordo, temos por assente que:
1) A Autora é uma sociedade de advogados que, no exercício da sua atividade, foi contratada pela sociedade, ora insolvente, para a patrocinar em processos judiciais de natureza fiscal, na sequência de liquidações de que foi notificada, em sede de IRC e de IVA, subsequentes a procedimento de inspeção tributária.
2) Veio, então, a Autora, a patrocinar a insolvente em dois processos de impugnação judicial, um relativo a IRC e outro a IVA, que correram seus termos no Tribunal Administrativo e Fiscal ... sob os n.ºs 699/12.... e 2867/11...., respetivamente.
3) Patrocínio que assumiu mediante acordo prévio de honorários, no qual se definiram os montantes fixos relativos ao impulso e atividade processual, a levar a cabo pela Autora, e uma componente variável – success fee – em função do resultado a obter pela ora insolvente.
4) Aquando da declaração de insolvência da sociedade EMP02..., era o seguinte o estado daqueles processos judiciais: - Processo n.º 699/12....: aguardava-se a prolação de sentença pelo TAF ... após prévia decisão favorável do STA subsequente a recurso apresentado pela Autora; - Processo n.º 2867/11....: aguardava-se decisão do Tribunal Central Administrativo ... na sequência de recurso apresentado pela Autora a sentença em primeira instância que indeferiu totalmente o pedido.
5) Nessa ocasião estavam regularizados, pela insolvente, todos os honorários por ela até à data devidos à Autora, estando por liquidar apenas os que viessem eventualmente a ser devidos a título de succes fee.
6) Na sequência de pedido expresso do senhor administrador de insolvência, por e-mail de 21-11-2019, a Autora veio a responder-lhe por e-mail de 22-11-2019, dando-lhe conta do estado dos processos e do acordo de prévio de honorários estabelecido com a constituinte.
7) Através desse e-mail, o senhor administrador de insolvência foi informado dos valores que seriam devidos à Autora a título de honorários, quer como parte fixa pela apresentação de recurso(s) em caso de decisões desfavoráveis, quer da componente variável, a título de succes fee, a qual corresponderia a 6% do ganho de causa, quantia a que acresceria o respetivo IVA.
8) O e-mail da Autora não recebeu qualquer resposta por parte do senhor administrador de insolvência.
9) Entretanto, por acórdão de 02-02-2023, foi dada procedência parcial ao recurso interposto pela Autora, no processo n.º 2867/11...., correspondente a 109.425,40 € do valor total da ação de 109.983.99 €, montante a que acrescem juros indemnizatórios sobre as quantias pagas e penhoradas à impugnante.
10) Acórdão que transitou em julgado.
11) A Autora remeteu, em 29-06-2023, e-mail ao senhor administrador de insolvência, solicitando pagamento dos honorários devidos.
12) E-mail que não mereceu qualquer resposta por parte do senhor administrador de insolvência.
13) Pelo que a Autora interpelou o senhor administrador de insolvência ao pagamento dos honorários, por carta registada com aviso de receção.
14) A qual foi por ele recebida em 07-07-2023.
15) Interpelação que não mereceu qualquer resposta por parte do senhor administrador de insolvência.
16) A EMP02..., Lda. foi declarada insolvente por decisão proferida a 27/3/2019 (–e não 28, como certamente por lapso refere a R.; cfr. consulta dos autos principais).
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DECISÃO DE DIREITO.

Após facultar às partes a discussão de facto e de direito, o juiz pode “Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.” –art.º 595º, n.º 1, b) do C.P.C..
Ultrapassada a fase de pré- saneamento –art.º 590º, nº. 2, do C.P.C.-, e se a matéria de facto relevante para apreciar os fundamentos da ação e da defesa já se encontrar provada por efeito legal de acordo das partes (art.º 574º do C.P.C.), dada a força probatória plena de documentos (art.ºs 371º e 376º do C.C.) ou da confissão (art.º 358º do C.C.); ou caso toda matéria controvertida careça de prova documental e seja a parte notificada para proceder à junção da referida prova para conhecimento imediato do mérito da causa, nos termos do art.º 590º, nº. 2, c) do C.P.C., sem que a parte o faça; ou caso a matéria de facto controvertida não for relevante para a decisão da causa de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito passíveis de apreciação; nesses casos pode ser proferido saneador sentença –cfr. Ac. de 5/5/2022 desta Relação (processo n.º 2322/20.5T8VCT.G1, www.dgsi.pt).
Havendo matéria controvertida relevante para apreciar os fundamentos da ação ou da defesa, deve identificar-se o objeto do litígio e enunciar-se os factos controvertidos relevantes que integram o objeto da prova em audiência (art.º 596º do C.P.C.), e, realizada audiência de julgamento, será proferida sentença final, com fundamentação de facto e de direito (art.ºs 607º a 609º do C.P.C.).
Também pode suceder que a matéria que se possa naquela fase dar por assente seja insuficiente para a apreciação e resolução de todos os pedidos, mas seja o bastante para o conhecimento parcial do mérito. Nesse caso, tendo por orientação o princípio da economia processual, deve ser conhecido parte do objeto, e remetida a restante parte para conhecimento em sede de sentença, percorridos os trâmites seguintes.
No caso, mediante a opção que se tome quanto à natureza da dívida aqui pretendida cobrar, questão jurídica que divide as partes e em relação à qual o Tribunal recorrido tomou uma posição, e nomeadamente se secundarmos a mesma, os factos assentes permitirão o conhecimento imediato da ação.
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O processo de insolvência é tido como um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores ou pela forma prevista num plano de insolvência, ou, quando este se não se mostre possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores –art.º 1º do DL nº. 53/2004 de 18/3 com as respetivas alterações (CIRE).
A declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência –art.º 81º, nº. 1, CIRE.
A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência -art.º 88º, n.º 1, CIRE
Os credores do devedor/insolvente, durante a pendência do processo de insolvência, apenas podem exercer os seus direitos contra o devedor nos termos previstos no CIRE –art.º 90º do mesmo.
Mais: dentro do prazo fixado na sentença declaratória da insolvência, todos os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, devem reclamar a verificação dos seus créditos, incluindo aqueles que tenham o seu crédito reconhecido por decisão definitiva -art.º 128º, n.ºs 1 e 3, CIRE; a sentença de verificação e graduação de créditos autoriza o administrador de insolvência a proceder ao pagamento dos créditos reconhecidos e graduados aos credores do devedor/insolvente, no âmbito do processo de insolvência -art.ºs 172º a 185º, CIRE. Este é o regime vigente para as dívidas da insolvência.
Noutra categoria, temos as dívidas da massa insolvente, elencadas no art.º 51º a título exemplificativo, cujo reconhecimento pode ser peticionado ao abrigo do art.º 89º, n.º 2, CIRE, que a recorrente invoca.
Assim, temos (e com auxílio da leitura feita no Ac. desta Relação de 24/10/2019, processo n.º 1218/12.9TJVNF-A.G1, www.dgsi.pt):
-os créditos sobre a insolvência, que são todos os créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, com constituição e fundamento anterior à declaração da insolvência, e dívidas da insolvência as que correspondem aos créditos sobre a insolvência, ou seja, cujo fundamento existisse à data da declaração de insolvência, bem como aos créditos que lhes sejam equiparados (art.º 47º, n.ºs 1 e 2, CIRE); vencem-se imediatamente com a declaração de insolvência, salvo se estiverem subordinados a uma condição suspensiva (art.º 91º, n.º 1, CIRE); são equiparados a estes os créditos adquiridos na pendência do processo (art.º 47º, n.º 3, CIRE; situação, nomeadamente, prevista no art.º 110º, n.º 2, b), CIRE, a que voltaremos), salvo se estiverem classificados no CIRE como créditos e dívidas da massa;
- são dívidas da massa insolvente aquelas expressamente previstas no CIRE - quer na norma geral do art.º 51º, nº. 1, a) a j), CIRE, quer em normas especiais (cfr. art.ºs 84º, n.º 1, 110º, n.º 2, a), CIRE), salvo preceito expresso em contrário -, e créditos sobre a massa os que lhes correspondem.
Citando o mesmo acórdão e inserindo as notas no texto, e relativamente às dívidas da massa: “Estes créditos e dívidas têm como fundamento: a própria situação de insolvência na sua generalidade (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 10ª edição, 2018, nota 1 ao art.51º, pág.136.) ou a sua exigência cautelar pelo administrador judicial provisório no início do processo (art.51º/1-g) do CIRE; Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, nota 6 ao art.51º do CIRE: “Dívidas resultantes de contratos que tenham por objecto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório (tratando-se de atos anteriores à declaração de insolvência, o regime geral levaria a que fossem considerados créditos sobre a insolvência, mas o facto de terem sido causados por um ato do administrador judicial provisório conduz a que as obrigações correspondentes devam ser consideradas responsabilidade da massa.”); a sua constituição após o início do processo de insolvência (Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, in obra citada em 4, nota 3 ao art.51º, pág.170.), tendo em conta o previsto expressamente na exposição de motivos do preâmbulo do DL nº53/2004, de 18 de março (“21 - Distinguem-se com precisão as ‘dívidas da insolvência’, correspondentes aos créditos sobre o insolvente cujo fundamento existisse à data da declaração de insolvência e aos que lhes sejam equiparados (que passam a ser designados como ‘créditos sobre a insolvência’, e os respectivos titulares como ‘credores da insolvência’), das ‘dívidas ou encargos da massa insolvente’ (correlativas aos ‘créditos sobre a massa’, detidos pelos ‘credores da massa’), que são, grosso modo, as constituídas no decurso do processo.”) e as próprias previsões legais que prevêem dívidas da massa insolvente (nomeadamente, do art.51º/1-a) a f), j), 112º/2 em referência ao art.81º/6 e 7, 110º/2-a) do CIRE), quer na sua formulação positiva, quer na sua formulação negativa (quando exclui expressamente, nos contratos bilaterais, as dívidas por prestações do período anteriores à declaração insolvência- 51º/1- e) e f) do CIRE).”
Esta distinção importa desde logo para efeitos do seu pagamento.
As dívidas da insolvência serão pagas de acordo com as regras prevista nos art.ºs 173º a 182º, CIRE, ou seja, tendo em conta as garantias de pagamento que lhes assistem e em função do princípio da igualdade entre as diversas categorias de créditos; as dívidas da massa insolvente, as quais se constituem, por norma, após a declaração da insolvência do devedor, serão pagas pelo administrador de insolvência de acordo com as regras previstas no art.º 172º, CIRE.
Para efeitos de pagamento, as dívidas da insolvência são unicamente as que se constituíram antes da declaração da insolvência do devedor e são exclusivamente as que foram reconhecidas no âmbito do processo de insolvência, isto é, que tenham sido nele julgadas verificadas e graduadas na respetiva sentença de verificação e graduação de créditos transitada em julgado – art.º 173º (cfr. Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, pág. 293 da 2ª edição).
Quanto às dívidas sobre a massa insolvente, devem ser pagas imediatamente no seu vencimento, qualquer que seja o estado do processo -art.º 172º, n.º 3, CIRE; podem ser pedidas em ação executiva, por apenso ao processo de insolvência, depois de decorridos três meses após a declaração de insolvência, e desde que não constituam créditos tributários, se o credor estiver munido de título executivo e o administrador da insolvência não proceder ao seu pagamento voluntariamente -art.º89º, CIRE; e podem ser pedidas em ação declarativa, quando a dívida for contestada e o administrador da insolvência não proceder ao seu pagamento voluntário (art.º 89º, nº. 2, CIRE); são pagas com prioridade em relação aos créditos da insolvência (arts.172º e 219º do CIRE) -cfr. o mesmo acórdão.
Daí decorre que a massa insolvente destina-se, em primeiro lugar, à satisfação dos credores da massa insolvente, e, em segundo lugar, à satisfação dos credores da insolvência. Nos termos do n.º 1 do art.º 46º, “A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo”.
Catarina Serra (agora a págs. 63 e 64) destaca duas circunstâncias a ter em conta ao proceder à classificação das dívidas.
Em primeiro lugar, quanto aos créditos sobre a massa não existe propriamente uma definição, pelo que, por mais que seja tentador, ela não deve ser retirada a contrario da definição de créditos sobre a insolvência que é dada pela lei, sob pena de se incorrer em erros. Não é possível dizer que os créditos sobre a massa são os créditos restantes, isto é, que são aqueles cujo fundamento é posterior à data da declaração de insolvência. Se é verdade que todos os créditos com fundamento anterior à declaração de insolvência são créditos sobre a insolvência, não é verdade que todos os créditos sobre a insolvência sejam créditos com fundamento anterior à declaração de insolvência; existem créditos sobre a insolvência cujo fundamento é posterior a esta data.
E acrescenta que é possível concluir que a classificação como dívidas da massa assenta na existência de uma espécie de nexo causal (ou nexo de derivação) entre as dívidas e o processo de insolvência (…). Também é possível concluir que a classificação como dívidas da massa assume um caráter marcadamente excecional (…).
Isto posto, e relativamente a alguns casos concretos, nomeadamente o caso do contrato de mandato no caso da insolvência do mandante, o CIRE consagrou normas a seu propósito.
Indiscutível o seu caráter oneroso, bem como o prévio acordo quanto ao valor de honorários.
Relativamente ao mandato, prevê o CIRE (-novamente recorremos à exposição feita no acórdão desta Relação):
-como regra, a sua caducidade com a declaração de insolvência, ainda que constituído no interesse de mandatário ou terceiro, sem que o mandatário tenha direito a indemnização sobre o dano sofrido (art.º 110º, CIRE); esta norma introduz mais uma causa de caducidade ao contrato de mandato em relação à regra geral do art.º 1174º do C.C., decorrente da privação de poderes de administração e disposição do insolvente, e uma restrição à operância do direito geral indemnizatório; esta regra geral da caducidade tem como paralelo, também, a regra da caducidade das procurações que digam respeito ao património integrante da massa insolvente (art.112º do CIRE) e serve de remissão para o regime dos contratos duradouros (art.111º do CIRE);
-como exceção, não caduca em duas situações circunscritas, respeitantes a um período temporário de tempo (mesma obra, nota 6 ao art.º 110º, CIRE, pág.335) e com consequências diferentes quanto às dívidas geradas com a atuação do mandatário:
a) pelo período de tempo estrito que mediar entre a declaração de insolvência e a tomada de providências pelo administrador da insolvência, quanto a atos concretos que tenha sido necessário praticar para evitar de forma adequada prejuízos previsíveis para a massa (art.º 110º, nº. 2, a), CIRE), previsão que acautela situações de urgência de proteção da massa insolvente dos efeitos da caducidade do mandato que pudessem causar prejuízo para a massa insolvente enquanto o administrador não tem tempo para agir em sua proteção;
b) pelo período de tempo estrito em que o mandatário exerceu funções, ignorando sem culpa a declaração de insolvência do mandante (art.º 110º, n.º 2, b), CIRE.
E citando “Qualquer uma destas previsões acautela apenas os serviços prestados após a declaração de insolvência, e num período limitado de vigência, serviços estes cujos créditos correspondentes foram classificados pelo legislador de forma distinta: crédito sobre a massa insolvente quando o mandatário praticou atos concretos e urgentes, com vista a evitar prejuízo para a massa insolvente; crédito sobre a insolvência, em paralelo com o regime do art.47º/3 do CIRE, quando o mandatário praticou atos por desconhecimento não culposo da declaração de insolvência e da caducidade do mandato, atos esses que, a contrario com a al. a), não foram atos urgentes e destinados a evitar causalmente prejuízo para a massa (art.110º/3 do CIRE).”
Nesta fase temos de nos concentrar no que está em causa nestes autos, já que não se discute:
-que o mandato caducou por força de norma expressa;
-que não estamos perante uma atuação positiva posterior, tendo em vista salvaguardar casos urgentes em prol da massa até a atuação do AI;
-que não estamos perante o exercício de funções posterior, na ignorância da situação de insolvência;
-que os honorários exigidos até à declaração de insolvência estavam pagos e não estão aqui em causa;
-que os processos nos quais a mandatária patrocinava a insolvente e aqui em causa, sem prejuízo daquela caducidade, aguardavam a prolação de decisões;
-que num desses processos foi dada procedência parcial ao recurso interposto pela A. (correspondente a 109.425,40 € do valor total da acção de 109.983.99 €, montante a que acrescem juros indemnizatórios sobre as quantias pagas e penhoradas à impugnante);
-que está a ser peticionado a taxa da parte variável do valor de honorários, a título de success fee, relativa a esta decisão.
De facto, a título de remuneração foi estabelecida uma parte fixa e uma parte variável a título de success fee.
Conforme Ac. do STJ de 13/3/2008 (relator Cons. Santos Bernardino) “1. A sucess fee, clausulada num contrato de prestação de serviços, é uma taxa de performance, de sucesso por um desempenho, uma comissão variável indexada à taxa de sucesso de uma operação.
2. Não releva, pois, para a atribuição da respectiva remuneração, o volume, a expressão quantitativa dos serviços prestados, mas sim o resultado alcançado”.
É da leitura desta cláusula, e daí da classificação desta dívida, que reside a solução do caso.
No Ac. da Relação do Porto de 25/2/2021 (processo n.º 45388/19.5YIPRT.P1, www.dgsi.pt) analisou-se esta cláusula deste modo (negrito nosso): “Como a sua designação indica a success fee ou “taxa de sucesso” é uma cláusula de condição para efeitos de retribuição – de acordo com o artigo 270.º do Código Civil “As partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se suspensiva a condição; no segundo, resolutiva”. Deste modo, estabelecendo-se para efeitos remuneratórios uma cláusula de success fee (“taxa de sucesso”) para efeitos retributivos à verificação de um certo resultado positivo, apenas será devida essa componente remuneratória se o resultado do evento esperado for positivo, caso contrário não haverá esse pagamento. Assim e nos contratos de consultoria de negócio, no qual foi estabelecido uma cláusula de success fee (“taxa de sucesso”) para efeito de retribuição e atendendo que tal contrato consiste essencialmente na prestação de um trabalho intelectual de aconselhamento, o que releva é se o resultado obtido se insere na estratégia de orientação negocial que foi sugerida e implementada e não tanto “o volume, a expressão quantitativa dos serviços prestados” (…)”.
Ora, em primeiro lugar não estamos claramente perante uma dívida da massa como tal prevista –justificaremos mais à frente esta afirmação face às remissões que se fazem no recurso para alíneas do art.º. 51º, n.º 1, CIRE.  
O art.º 91º, n.º 1, CIRE que já citámos, ressalva o vencimento imediato do crédito sob condição. Reporta-se à sua exigibilidade, no entanto dá-nos clara indicação de que o trata como dívida da insolvência já que se enquadra no exercício dos créditos sobre a insolvência.
O art.º 50º, CIRE, indica-nos igualmente essa qualificação, dada a sua inserção, dizendo em conformidade que “1 - Para efeitos deste Código consideram-se créditos sob condição suspensiva e resolutiva, respetivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico.”, e exemplificando no seu n.º 2 créditos dessa natureza.
Por sua vez o art.º 181º, CIRE, indica-nos a sua forma de pagamento, inserindo-os claramente nas dívidas da insolvência (cfr. o que já vimos supra): “1 - Os créditos sob condição suspensiva são atendidos pelo seu valor nominal nos rateios parciais, devendo continuar, porém, depositadas as quantias que por estes lhes sejam atribuídas, na pendência da condição.
2 - No rateio final, todavia, não estando preenchida a condição:
a) Não se atenderá a crédito que seja desprovido de qualquer valor em virtude da manifesta improbabilidade da verificação da condição, hipótese em que as quantias depositadas nos termos do número anterior serão rateadas pelos demais credores;
b) Não se verificando a situação descrita na alínea anterior, o administrador da insolvência depositará em instituição de crédito a quantia correspondente ao valor nominal do crédito para ser entregue ao titular, uma vez preenchida a condição suspensiva, ou rateada pelos demais credores, depois de adquirida a certeza de que tal verificação é impossível.”
Isto posto, parece-nos não poderem restar grandes dúvidas quanto à sua classificação como dívida da insolvência.
Mas vejamos melhor, face aos argumentos da recorrente, e muito embora se devesse começar primeiro por verificar se a dívida cabia no elenco exemplificativo do art.º 51º, nº. 1, CIRE, que na afirmativa colmataria quaisquer dúvidas, e só depois partir para o alcance dos conceitos.
Diz a recorrente que está em causa uma dívida superveniente à declaração de insolvência; que o processo de impugnação judicial apenas prosseguiu os seus termos face a uma intenção deliberada nesse sentido por parte do administrador da insolvência, e que, nessa ocasião, não existia qualquer facto ou fundamento que sustentasse o direito a honorários por parte da Autora; este só surge, não em resultado de qualquer acção da insolvente, mas porque o administrador judicial entendeu que aquele processo judicial prosseguisse e se aguardasse o resultado da intervenção processual da Autora, por isso, as dívidas da massa são geradas concomitantemente com o processo e respectiva administração; o acórdão proferido pelo TCA Norte - e que constitui o fundamento da nota de honorários da Autora - é muito posterior à data da declaração de insolvência. Por isso concluiu que o fundamento do crédito da Autora é posterior à declaração de insolvência, não só porque aquela decisão judicial – que constitui a fonte constitutiva de tal direito – é posterior à declaração de insolvência, mas também porque a sua exigibilidade só ocorreu depois dela.
Ora, a sua constituição, a nosso ver, decorre do prévio acordo de mandato, portanto constituiu-se em momento anterior à declaração de insolvência; o seu fundamento também, já que se baseia numa atividade levada a cabo antes dessa mesma declaração, pois que, a nosso ver, tal reconduz-se antes à verificação da condição (e não ao fundamento), a qual tem efeitos sobre a exigibilidade e modo de pagamento.
Mas, caso se entenda que o fundamento é a prolação da decisão favorável à insolvente, ocorrido depois da declaração, ainda assim esse argumento, como notou Catarina Serra, não é decisivo.
Valem então as regras interpretativas que esta autora propôs: a do nexo causal e a do caráter excecional dos créditos sobre a massa.
Ora, a instauração dos processos e o respetivo patrocínio foram da iniciativa da insolvente antes desse estado, e não da administração da massa. O argumento da vontade de continuação dos processos não colhe já que, se fosse preciso atuar em fase posterior, já o AI tinha salvaguardado a situação com a constituição de novo mandatário (como a recorrente aceita, em sede de alegações, que sucedeu). Não podemos ver aqui qualquer declaração (ainda que tácita) de manutenção do primitivo mandato, que caducou por força da lei. Tratou-se apenas de aguardar um resultado (a verificação da condição), não havendo qualquer atuação posterior, seja da A., seja da administração da massa. Não há uma relação entre uma situação atuante, decorrente da administração da massa, e a dívida.
Até por uma questão de paralelismo com as previsões do art.º 110º, n.º 2, CIRE (em que, não obstante o contrato não caduca), concluiríamos tratar-se de uma dívida da insolvente, pois que, na alínea a) trata-se de uma circunstância inerente à massa, logo tratado como dívida da massa; na alínea b) já se trata de uma circunstância inerente ao mandatário, logo integra dívida da insolvência –cfr. n.º 3.
Ainda o paralelismo com o art.º 111º, n.º 2, CIRE.
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Como já enunciámos, a recorrente, por fim, baseia a sua pretensão recursiva na integração da situação ora na alínea g) do n.º 1, do art.º 51º, ora na sua alínea i).
Estas hipóteses não foram cogitadas na p.i..
Conforme António Santos Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., pág. 109) “…A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.”
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não analisar questões novas, salvo quando (...) estas sejam de conhecimento oficioso (...). Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente termos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”. Igualmente se pronunciou o Acórdão desta Relação de 8/11/2018 (www.dgsi.pt); não pode o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas ao tribunal recorrido e que apenas passam a integrar o processo em sede de alegações –cfr. entre muitos os Acs. do STJ de 28/06/2001, de 30/10/2003, de 20-07-2006, de 04/12/2008, todos em www.dgsi.pt.
Todavia, no caso em apreço, podemos facilmente considerar que em causa está apenas a qualificação jurídica (sempre) dos mesmos factos alegados, o que por força do art.º 5º, n.º 3, C.P.C. (ex vi art.º 17º, n.º 1, CIRE) está na disponibilidade do Tribunal, incluindo o de recurso, sendo seu dever oficioso a correta integração.
Quanto à primeira situação, não estamos perante uma prestação duradoura (alínea g) do art.º 51º. n.º 1, citado pela recorrente), o que, desde logo, pressupunha que tivesse sido opção do AI a manutenção do contrato (cfr. art.º 111º, n.º 1, CIRE), o que já vimos não resultar.
E não estamos perante uma dívida que tenha por fonte situação de enriquecimento sem causa da massa, conforme alínea i) da mesma norma.
Esta figura está prevista nos art.ºs 473º e segs. do C.C. a que se tem de recorrer e daí resulta indubitável o caráter subsidiário da figura.
Este instituto está regulado no art.º 473º, do C.C. que dispõe que «Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou» (n.º 1) e que «A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou» (n.º 2).
Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (“Código Civil Anotado”, Vol. I, 3ª ed., págs. 427/431), a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à coisa alheia pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes três requisitos:
. haja um enriquecimento; este enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, tanto podendo traduzir-se num aumento do ativo patrimonial, como numa diminuição do passivo, como, inclusive, na poupança de despesas;
. o qual careça de causa justificativa (quer porque nunca a tenha tido, quer porque, tendo-a inicialmente, a haja entretanto perdido); o enriquecimento carecerá de causa sempre que o direito não o aprove ou consinta;
. e tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduz-se, como regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro. O benefício obtido pelo enriquecido deve resultar de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido tendo de existir um nexo (causal) entre a vantagem patrimonial auferida por um e o sacrifício sofrido por outro.
Tem-se acrescentado um outro requisito ainda: que a vantagem económica do enriquecido deve ser obtida imediatamente à custa do empobrecido já que a deslocação patrimonial para o enriquecido tanto pode ocorrer por via direta ou por via indireta, pelo que se vem entendendo que se deve exigir que entre o ato gerador do prejuízo do empobrecido e a vantagem conseguida pela outra parte não deve existir qualquer ato jurídico – veja-se Ac. da Rel. de Coimbra de 02/11/2010 (www.dgsi.pt).
Assim, é necessário que a vantagem de um (enriquecido) e o prejuízo do outro (empobrecido) estejam em imediata conexão e que aquela e este derivem do mesmo facto; assim, o autor da prestação só pode dirigir-se contra aquele a quem, com base numa causa jurídica suposta, inexistente ou desaparecida, prestou, não contra um terceiro a quem não prestou –Menezes Cordeiro, “Direito das Obrigações”, II, pág. 54.
Relativamente a esta hipótese do enriquecimento sem causa, esta figura subsidiária, não tem aplicação no caso concreto, porque a situação é tutelada pelo regime jurídico do mandato, nomeadamente no âmbito do CIRE, o qual não confere à recorrente o efeito por si pretendido por esta via. Não se verifica “a inexistência de causa” –a causa é o mandato, válido. A pretensa dívida tem fundamento, apenas se suscita quem é o responsável, e em que termos é que devia ser peticionado/exigido o seu reconhecimento.
Esta figura só tem aplicação quando não há outro regime jurídico específico que se aplique e tutele o litígio sub judice, ou seja, quando inexiste qualquer relação ou facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso ordenamento jurídico, justifique a transferência patrimonial –o que se deriva da subsidiariedade prevista no artº. 474º do C.C. –cfr. Ac. do STJ de 28/6/2018 (wwwdgsi.pt), a título exemplificativo dada a abundante jurisprudência.
Por isso, o benefício obtido pela massa não releva, como não releva para efeitos da sua classificação.
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Nada mais resta do que considerar que estamos perante uma dívida da insolvência (um crédito sob condição suspensiva), o que impunha que a recorrente tivesse lançado mão da faculdade de reclamação de créditos em processo de insolvência, para desse modo poder ver reconhecida a mesma e obter o seu pagamento, tudo nos termos já assinalados.  
Pelos fundamentos expostos, deve a apelação improceder.
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IV DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso da A. totalmente improcedente, e em consequência, negam provimento à apelação, mantendo a decisão recorrida.
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Custas a cargo da A. (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 14 de março de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte
2º Adjunto: Rosália Cunha