Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3247/22.5T8BRG-A.G1
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CAUSA DE PEDIR
ORGANISMOS INTERNACIONAIS
NORMAS EMANADAS PELOS ÓRGÃOS COMPETENTES
DIREITO INTERNACIONAL
NORMAS APLICÁVEIS À RELAÇÃO LABORAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Não obstante o autor ter sido lacónico na alegação que fez, não explicitando – como devia; cf. art. 552.º/1 d), 2.ª parte, do CPC -, sob o ponto de vista jurídico, porque razão o contrato firmado com o réu deve considerar-se (no seu ponto de vista) sem termo, se alegou os factos jurídicos essenciais, no casso a outorga do contrato de trabalho a termo certo pelo prazo de 4 anos, não é aquela circunstância que torna a petição inepta por falta de causa de pedir.
II - As normas emanadas dos organismos internacionais, de acordo com os tratados constitutivos e no âmbito das suas atribuições, e mesmo que destinadas a regular as relações entre as instituições e os seus trabalhadores, constituem direito internacional, devendo o Estado respeitar tais “ordenamentos” nos termos do artigo 8.º da CRP.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

AA, com os demais sinais nos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra EMP01..., também nos autos melhor identificada, pedindo que seja:

a.) Condenada a R. ao pagamento ao A. de uma indemnização pela prática de assédio, no valor de 100.000,00€ (cem mil euros);
b.) Condenar a R. a reconhecer que o contrato de trabalho do A. é sem termo.
c.) Condenar a R. a reconhecer ao A. a categoria profissional de Facility Manager e a atribuir-lhe as funções correspondentes e que exercia antes da prática de assédio pela R..
d.) Condenada a R. a restituir ao A. o direito a indemnização por ser trabalhador deslocado;
e.) Condenada a R. a reconhecer o direito do A. exercer a sua atividade num gabinete individual e, em consequência, ser condenada a atribuir ao A. um gabinete.
f.) Ser declarado nulo o processo disciplinar ...1 e, em consequência, ser a R. condenada a remover a sanção aplicada ao A. e a indemniza-lo pelos danos patrimoniais sofridos, no valor de 5.000,00€ (cinco mil euros);
g.) Ser declarado nulo o processo disciplinar ...21 e, em consequência, ser a R. condenada a remover a sanção aplicada ao A. e a indemniza-lo pelos danos patrimoniais sofridos, no valor de 5.000,00€ (cinco mil euros);
h.) Ser declarado nulo o processo de assédio 2021/01 e, em consequência, ser a R. condenada a remover a sanção aplicada ao A., e a indemniza-lo pelos danos patrimoniais sofridos, no valor de 20.000,00€ (vinte mil euros); (sublinhamos)

Alega para tanto, em síntese e cingindo-nos ao que ora importa atento o objecto do recurso:

O A. é trabalhador da R. desde ../../2018, data na qual foi contratado para o exercício de funções de Research Engineer, auferindo a remuneração e encontrando-se na categoria C2 da tabela de progressão da R., conforme definida pelas suas regras de organização internas, cfr. doc. n.º .... (artigo 3º)
O contrato supra mencionado tinha o prazo de dois anos, ocorrendo o seu termo a 31.01.2020, contudo, e uma vez que o trabalhador havia estado incapacitado para o exercício da atividade profissional durante um longo período de tempo, o contrato foi prolongado até junho de 2020, cfr. doc. n.º .... (4º)
O prolongamento supra referido ocorre de acordo com o regulamento interno da R. e, a par, dá-se o recálculo das férias do trabalhador. (5º)
Contudo, em 02.03.2020 a R. propôs ao A. a assinatura de um novo contrato pelo prazo de 4 anos, para o exercício das mesmas funções e permanecendo na mesma categoria C2, com o fundamento de que o contrato anterior não permitiria ao A. celebrar um contrato sem termo com a R. , cfr. doc. n.º .... (6º)
Com base em tal fundamento o A. aceitou resolver por mútuo acordo o contrato anteriormente celebrado com a R. e aceitar as condições impostas para a celebração deste novo contrato, cfr. doc. n.º .... (7º)
Com a assinatura deste contrato o A. perdeu – sem que tal lhe tenha sido explicado ou se retire do conteúdo do contrato – o direito à indemnização mensal por se tratar de cidadão deslocado, a qual, de acordo com as normas internas da R., é atribuída a todos os trabalhadores que se encontrem fora do seu país, cfr. art.º 202 das normas internas da R., que aqui se juntam sob o documento n.º .... (8º)
O A. assinou o referido contrato e a relação profissional com a R. ...)

A R. não conseguindo com os seus atos, conforme alega, que o A. se despedisse decidiu mover-lhe vários processos disciplinares como forma de lhe causar humilhação e o pressionar a denunciar o seu contrato.
Assim, tendo por base os factos relativos à desocupação do gabinete, a R. instaurou o processo disciplinar n.º ...01 ao A., cfr. doc. nº ...0 que junta.
O processo disciplinar e a sanção disciplinar aplicada, de repreensão, surge apenas em resultado das mencionadas queixas de assédio, através das quais o A. pretendeu apenas exercer e invocar os seus direitos e garantias, presumindo-se, nos termos do al. b), do n.º 2, do art.º 331.º e n.º 1, al. d), do Cód. do Trabalho, abusiva.

No dia 26/11/2021 a R. notificou o A. que contra ele tinha sido instaurado o processo disciplinar ...02, cfr. doc. n.º ...1 que junta e dá por integralmente reproduzido, em consequência de uma queixa apresentada pelo seu supervisor BB, que havia sido designado seu supervisor em decorrência da investigação por invocado assédio praticado pelo A..
A sanção aplicada, uma repreensão registada. e o processo disciplinar surgem apenas em resultado das mencionadas queixas do autor por assédio, presumindo-se, nos termos do al. b), do n.º 2, do art.º 331.º e n.º 1, al. d), do Cód. do Trabalho, a sanção abusiva.
Acresce que o A. não pôde deduzir a sua defesa de forma informada e esclarecida, o que coloca em causa a validade do processo disciplinar, nos termos do art.º 382.º, n.º 2, al. C), do Cód. do Trabalho.
Acrescendo ainda que entre a data da defesa apresentada pelo A. e a decisão do processo disciplinar decorreram 60 dias, o que, de acordo com as normas internas da R., designadamente o art.º 236, n.º 3, torna inválido o processo disciplinar, dado que entre a defesa apresentada e a decisão decorreram mais de 30 dias.
Tal decurso de mais de 30 dias entre a defesa apresentada e a decisão, uma vez que estava em causa a possibilidade de aplicação de uma decisão de despedimento, viola a norma constante do art.º 357.º, do Cód. do Trabalho.

O A. foi notificado pela R. em 14/06/2022 de que a R. se encontrava a desenvolver uma investigação interna em decorrência de queixas de conduta proibida que envolvem o A., nos termos da REG/HR/009/1.0, com a advertência de que a R. tem como regra investigar todas as queixas de conduta proibida e uma política de zero retaliação para com os denunciantes de assédio.
Decorridos 6 meses, a 14/12/2021, foi o A. notificado do relatório da investigação formal por queixa de assédio contra o mesmo, cfr. doc. n.º ...5 já junto.
Sucede que não são verdadeiras as s imputações de assédio constantes do processo de assédio movido ao A. e é manifesto que a conduta do A., ainda que se encontrasse provada, não configura uma situação de assédio.
A 10-02-2022, o A. foi notificado pela R. da decisão proferida no processo de assédio que lhe foi movido e, assim, das ações disciplinares e das ações de gestão, uma repreensão registada e a mudança de grupo de pesquisas para o grupo de pesquisa liderado por CC.

O réu apresentou contestação, para, também em síntese e por reporte à matéria da petição inicial que acima destacamos:
Alegar a inaplicabilidade da Lei portuguesa à situação plasmada nos presentes autos, por necessária aplicação do regulamento interno do R. denominado “staff rules” (e demais regulamentação interna do INL), sendo esse o único direito aplicável ao caso dos autos.
Mais veio o R., relativamente à alínea b) do petitório, em que o autor pede ao Tribunal que reconheça que o seu contrato de trabalho é sem termo, alegar que tal pedido surge desprovido de qualquer causa de pedir, de qualquer facto, de qualquer argumento e de um qualquer contexto alegatório, o que se traduz na ausência de causa de pedir e configura ineptidão da petição inicial, a qual, por sua vez, determina a nulidade de todo o processo e configura exceção dilatória.
Em qualquer caso, o contrato de trabalho celebrado entre as partes é válido e regularmente celebrado ao abrigo do direito aplicável, nomeadamente as Staff Rules e, muito concretamente, o seu artigo 63.

O autor apresentou resposta em que, no fundamental, reafirma a posição já vertida no articulado inicial, alegando em específico que ao presente litígio terá de ser aplicada Lei portuguesa, sob pena de violação da Constituição da República Portuguesa, designadamente, do art.º 8.º, n.º 3, bem como dos pactos constitutivos da R., pugnando que se julgue improcedente a exceção invocada pela R. quanto à impossibilidade de aplicação da lei portuguesa ao litígio dos presentes autos.

O Tribunal proferiu, em 21.11.2022, o seguinte despacho
“Ref.ª ...83: - - -
O autor limitou-se a exercer o contraditório no que respeita à excepção inominada de inaplicabilidade da lei portuguesa à relação laboral mantida entre as partes, questão que apenas relevará em sede de decisão de mérito/sentença.
Sucede que, na contestação apresentada em juízo a 7.9.2022, o réu alegou outras excepções relativas à insusceptibilidade de impugnação do procedimento e das decisões proferidas no âmbito dos processos disciplinares n.º 2021/001 (esta por extemporaneidade do recurso interno interposto e não admitido) e n.º 2021/002 e do processo de assédio IPR n.º 2021/001 (estes dois por não terem sido sequer alvo de prévio pedido de revisão e/ou recurso interno).
Além disso, o réu invocou a ineptidão da petição inicial no que concerne ao pedido deduzido sob a al. b) do petitório final, por falta de causa de pedir, nos termos do art. 186.º, n.º 2, al. a) do C.P.Civil.
Compulsados os autos verifico que no despacho de 26.9.2022 apenas se referiu genericamente ter o autor direito de resposta à matéria de excepção articulada pela ré, o que poderá ter induzido em erro o autor, por não se ter identificado a matéria concreta a que o Tribunal se referia, uma vez que também ali se mencionava ficar sem efeito a audiência de julgamento agendada para o dia 12.10.2022.
Pelo exposto, concede-se ao autor o prazo de 10 dias, para se pronunciar sobre as outras excepções igualmente arguidas em sede de contestação, evitando-se assim a pronúncia verbal em sede de audiência prévia ou audiência final. – cfr. art. 3.º, n.º 4 do C.P.Civil.”

No seguimento, o autor apresentou requerimento em que se pronuncia “quanto às demais exceções invocadas pela R.” onde, a propósito, alegou:
“26º.
Invoca ainda a R. a exceção prevista no art.º 186.º, n.º 2, al. a), do Cód. de Proc. Civil, por ineptidão da petição inicial, no que respeita ao pedido formulado pelo A. em b.), por falta de causa de pedir.
27º.
Uma vez mais, entendemos não assistir razão à R..
28º.
Peticiona o A. que seja reconhecido que o seu contrato é um contrato sem termo.
29º.
A causa de pedir de tal pedido encontra-se devidamente alegada nos artigos 3.º a 8.º da Petição Inicial.
30º.
Contudo, caso o Douto Tribunal considere não suficientemente demonstrada a causa de pedir, deverá conceder ao A. a faculdade de aperfeiçoamento da petição inicial, relativamente a tal pedido, nos termos do art.º 590.º, n.º 4, do Cód. de Proc. Civil, ex vi, do art.º 1.º, n.º 2, al. a), do Cód. de Proc. de Trabalho.”

O Tribunal a quo proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento da PI – ao qual o autor acedeu -, mas que não abrangeu a matéria em questão (art.s 3.º a 9.º da PI).

Prosseguindo os autos, veio a proferir-se despacho–saneador contendo, nomeadamente, as seguintes decisões:
“Pelo exposto, por falta da causa de pedir, julgo procedente a arguida excepção de ineptidão da petição, no que respeita ao pedido deduzido sob a alínea b) do petitório final, pelo que, em consequência, vai desde já o réu absolvido da instância quanto ao mesmo pedido.”
E
“Por tudo o exposto, julgo de imediato improcedentes, por inadmissíveis, os pedidos de declaração de nulidade formulados nas alíneas f), g) e h) do petitório final de fls. 27 verso, bem como os pedidos de subsequente condenação do réu a pagar indemnização ao autor.”

Inconformado com estas decisões, delas veio o autor interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das conclusões.

O recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela rejeição do recurso e, caso assim não seja entendido, concluindo pela improcedência total do recurso.

Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação.

Foi então proferido despacho pelo relator a convidar o recorrente a apresentar novas conclusões, sintetizando-as e tornando-as mais claras/precisas.

Notificado deste despacho o recorrido veio, tempestivamente (requerimento/reclamação de 10.01.2024 - que o recorrido notificou directamente ao recorrente), “nos termos do n.º 3 do artigo 652.º do Código de Processo Civil, requerer que sobre a matéria do referido despacho recaia um acórdão”, conforme fundamentos que aduz.
O autor/recorrente não respondeu a este requerimento do réu/recorrido.

Acedendo ao convite formulado, o recorrente apresentou as seguintes conclusões aperfeiçoadas (transcrição):

“I. O Recorrente não foi convidado ao aperfeiçoamento do pedido formulado em b), da Petição Inicial, nos termos da exigência processual decorrente do preceituado no at.º 590.º, n.º 2, al. b), do Cód. de Proc. Civil, pelo que cumpre revogar a decisão proferida e proceder a tal convite.
II. Dos factos 3.º a 8.º da Petição Inicial resulta a causa de pedir do pedido formulado em b), da Petição Inicial, que é a celebração de dois contratos de trabalho, entre Recorrente e Recorrida, a termo certo de 2 e 4 anos, em violação do disposto no art.º 147.º, n.º 2, al. b), do Cód. do Trabalho.
III. Dos artigos 59.º a 77.º e 485.º, da Contestação, resulta que a causa de pedir do pedido formulado em b) foi inteligível pela Recorrida.
IV. À relação jurídica laboral entre Recorrente e Recorrida aplica-se a lei portuguesa, por força do disposto no art.º 5.º, n.º 1, al. d), do Acordo Sede da Recorrida, aprovado pela Resolução da Assembleia da República número 44/2008 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 53/2008.
V. A Recorrida não tem poder normativo interno em matéria de direito laboral, nem os Regulamentos que emanou foram publicados de modo a vincular o Estado português.
VI. O art.º 14.º, n.º 4, do Acordo Sede não concede poder normativo à Recorrida em matéria laboral.
VII. As Organizações Internacionais gozam de imunidade relativa e as suas normas não constituem jus cogens, nos termos do previsto no art.º 8.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, pelo que a sua aplicação imediata no ordenamento jurídico português viola aquele preceito constitucional.
VIII. A aplicação das normas de direito português determina a apreciação dos pedidos formulados em f), g) e h) da Petição Inicial, pelo que deverá ser proferido Acórdão que revogue a decisão do Tribunal a quo, pela qual a Recorrida foi absolvida da instância em relação àqueles.
IX. Foi feita uma incorreta aplicação das normas internas da Recorrida aos pedidos formulados pelo Recorrente nos pontos f), g) e h), da Petição Inicial, porquanto o Tribunal a quo aplica uma versão das normas internas da Recorrida que não existia à data dos factos.
X. A versão das normas internas da Recorrida – staff rules – aplicáveis à data dos factos não previa a necessidade de esgotamento das vias internas como requisito para que se apresentasse recurso junto do ILOAT (não competente por força do não reconhecimento de jurisdição entre a Organização Internacional, aqui Recorrida, e aquele Tribunal) e, na falta deste, os Tribunais comuns portugueses.
XI. O art.º 262.º, n.º 2 das Staff Rules viola o disposto no art.º 20.º, da Constituição da República Portuguesa.
XII. A não apreciação dos pedidos formulados em f), g) e h) da Petição Inicial, constitui violação do art.º 20.º, da Constituição da República Portuguesa.
XIII. O Tribunal ad quem deverá proferir Acórdão no qual revogue a decisão do Tribunal a quo e determine o prosseguimento dos autos quanto aos pedidos formulados em f), g) e h) da Petição Inicial.”

O recorrido impugnou expressamente o aperfeiçoamento das conclusões, mantendo o já por si alegado e concluído nas contra-alegações apresentadas.

 Pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.

Tal parecer não mereceu qualquer resposta.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Questão prévia:
Como decorre do relatório supra, o recorrido apresentou reclamação do despacho de convite ao recorrente para aperfeiçoar as conclusões do recurso, requerendo que sobre a matéria do referido despacho recaia um acórdão que, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 3 e 4 do artigo 652.º do Código de Processo Civil, sobre a matéria do despacho de 4 de janeiro de 2024 recaia um acórdão e que se determine, a final, a imediata rejeição do recurso interposto pelo Recorrente.
Dispõe o art. 652.º/3 do CPC:
3 - Salvo o disposto no n.º 6 do artigo 641.º [6 - A decisão que não admita o recurso ou retenha a sua subida apenas pode ser impugnada através da reclamação prevista no artigo 643.º.], quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária.
Concordamos que o despacho em crise não é de mero expediente; o recorrido foi notificado da reclamação (sendo que nada disse).
Estão, pois, reunidos os requisitos para submeter o caso à conferência.
Sucede que, como decorre do n.º 4 do artigo citado e refere Abrantes Geraldes, a deliberação em conferência pode ser autonomizada, quando se impuser uma decisão imediata ou quando o recurso já tenha sido decidido, mas pode também “ser inserida no acórdão que vier a incidir sobre o objecto do recurso, seguindo a tramitação que for ajustada ao seu julgamento”.[1]
Parece-nos ser esta a modalidade adequada à situação presente, pelo que vai conhecer-se da reclamação no âmbito do presente acórdão, conhecendo, aliás, dessa questão em primeiro lugar, por imperativos de sequência lógica.

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enunciam-se então as questões que cumpre apreciar:
(Reclamação)
- (In)Admissibilidade do despacho que convidou o autor/recorrente a aperfeiçoar as conclusões do recurso;
(Recurso)
- Se é inepta a petição inicial quanto ao pedido formulado em b);
- Se é inadmissível a impugnação judicial das decisões proferidas no âmbito dos procedimentos disciplinares n.º 2021/001 e n.º 2021/002 e do processo de assédio 2021/01.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão da reclamação e do recurso são os que constam do relatório supra.

IV – APRECIAÇÃO DA RECLAMAÇÃO:

- Da admissibilidade do despacho que convidou o autor/recorrente a aperfeiçoar as conclusões do recurso:

Nas contra–alegações o réu/recorrido veio efectivamente suscitar “a questão [prévia] da rejeição liminar da apelação, em suma com os seguintes fundamentos:

1. Nos termos do n.º 1 do artigo 639.º do Código de Processo Civil, o recorrente suporta o ónus de formular conclusões de recurso, nas quais deve sintetizar, de forma necessariamente concisa e resumida, a argumentação apresentada na respetiva motivação recursiva.
2. Ora, nas conclusões de recurso em apreço, verifica-se que, com a exceção da irrelevante supressão de algumas expressões ou orações conectoras e da reprodução do que consta em algumas (poucas) peças processuais, bem como da anódina aglutinação de parágrafos ou frases, o Autor / Recorrente se limitou a reproduzir, ipsis verbis, palavra por palavra, parágrafo por parágrafo, o que consta da respetiva motivação.
3. Aliás, a extensão das conclusões corresponde praticamente à extensão da motivação, o que, por si só, é indicador de conclusões, desnecessária e desproporcionalmente, longas, prolixas e complexas.”

Foi, não obstante, proferido o seguinte despacho pelo Relator:
Estabelece o art. 639.º/1 do CPC, artigo que tem a epígrafe Ónus de alegar e formular conclusões, que O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Em conformidade, no n.º 3 determina-se que, Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada. (sublinhamos)
Escreve António Santos Geraldes que “as conclusões serão complexas quando não cumpram as exigências da sintetização a que se refere o n.º 1 (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse (inocuidade) ou que constituem pura repetição de argumentos anteriormente apresentados”1
Reportando ao caso dos autos, as conclusões – em 31 pontos – têm de considerar-se complexas, por, na economia do recurso, manifestamente prolixas/repetidas.
Assim, sendo as conclusões das alegações de recurso do autor complexas, por prolixas, convida-se o mesmo a sintetizá-las e a ser mais claro/preciso, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso.
Notifique e D.N.

O recorrente apresentou as conclusões aperfeiçoadas nos termos já acima transcritos.

O recorrido veio, tempestivamente (requerimento de 10.01.2024), “nos termos do n.º 3 do artigo 652.º do Código de Processo Civil, requerer que sobre a matéria do referido despacho recaia um acórdão”, conforme fundamentos que aduz e no fundamental a seguir se reproduzem:
1. Nas suas contra-alegações de recurso, o Recorrido assinalou o facto de, nas conclusões de recurso do Recorrente, e com a exceção da irrelevante supressão de algumas expressões ou orações conectoras e da reprodução do que consta em algumas (poucas) peças processuais, bem como da anódina aglutinação de parágrafos ou frases, aquele se ter limitado a reproduzir, ipsis verbis, palavra por palavra, parágrafo por parágrafo, o que consta da respetiva motivação.
2. O Recorrido chamou, ainda, a atenção do Digníssimo Tribunal para a circunstância de a extensão das conclusões corresponder praticamente à extensão da motivação, indicador de conclusões, desnecessária e desproporcionalmente, longas, prolixas e complexas.
3. Concluiu, assim, o Recorrido que o Recorrente incumpriu, grosseira e negligentemente, o ónus processual que lhe cabia de formular conclusões de recurso efetivamente sintéticas e concisas, o que, ao abrigo do princípio da autorresponsabilização, equivaleria à falta de conclusões de recurso e, nessa medida, implicaria a rejeição do recurso.
Ora,
2
4. Apesar de reconhecer a complexidade e a manifesta prolixidade e repetição das conclusões de recurso do Recorrente, o Digníssimo Tribunal entendeu, no despacho de 4 de janeiro de 2024, que o vício detetado - quer pelo Recorrido, quer pelo próprio Tribunal da Relação - poderia ser ultrapassado através do convite que acabou por formular ao Recorrente, ao invés de concluir, tal como lhe fora pedido pelo Recorrido, pela rejeição imediata do recurso.
5. Tomou, assim, uma posição efetiva sobre a natureza das conclusões apresentadas pelo Recorrente e o seu possível aproveitamento mediante convite ao aperfeiçoamento, com naturais e necessários impactos negativos na esfera de interesses processuais do Recorrido, o qual pretendia ver o recurso liminarmente rejeitado.
6. Para além de conter implícita uma decisão substantiva sobre o recurso e, ainda para mais, prejudicial aos interesses do Recorrido, a verdade é que o despacho que ora se coloca em crise parece colidir com a tendência da própria Ilustre Relação de Guimarães em casos semelhantes ao presente,
7. Razão pela qual se encontra reforçadamente justificado o apelo à intervenção da conferência, em benefício e salvaguarda dos princípios de certeza, previsibilidade e unidade enformadores do ordenamento jurídico português.
8. Com efeito, a Ilustre Relação de Guimarães tem vindo a entender que a flagrante, grosseira e reconhecida complexidade, prolixidade e repetição das conclusões de recurso não garante o cumprimento do ónus de apresentação de conclusões recursivas, pelo que tal comportamento processual, equivalendo à ausência de conclusões, dá lugar ao não conhecimento do recurso, não cabendo convite ao aperfeiçoamento no sentido do suprimento da inobservância desse dever processual.
(…)

Vejamos, trazendo também à colação – e por isso reproduzindo-as infra – as alegações com as conclusões inicialmente apresentadas pelo recorrente....

........

Uma das funções atribuídas ao relator é a de convidar as partes a aperfeiçoar as conclusões das respectivas alegações – art. 652.º/1 a) do CPC.
E estabelece o art. 639.º/3 do CPC que “Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior [Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.], o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.”

Ora, contrapondo-se as alegações do recurso às conclusões formuladas pelo apelante constata-se efectivamente, e nessa medida concorda-se com o reclamante, que a par e passo as conclusões seguem, com meras aglutinações e diferenças de redacção de pormenor, as alegações de recurso.

Mas consta-se outrossim, em nosso entender, que até pela (relativa, ao que a nossa experiência nos diz) pouca extensão das próprias alegações do recurso (por isso que se disse no despacho de convite ao aperfeiçoamento que as conclusões eram prolixas, na economia do recurso), as conclusões, malgrado evidenciem ausência de esforço de síntese, não assumem uma extensão e complexidade tais que impeçam a compreensão das questões suscitadas e assim justifiquem a rejeição imediata do recurso, rejeição esta a que subjazem, diga-se, “exigentes considerações de proporcionalidade, reservando-se para casos flagrantes, isentos de qualquer dúvida.”[2]

E também não é pacífica nem unânime a orientação jurisprudencial de que o reclamante dá nota.
Veja-se, a título de exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Novembro de 2018, onde se escreveu:
“Com efeito, mesmo em um caso como o dos autos, não se pode genuinamente dizer que não existem Conclusões. E, como se afirma no Acórdão deste Tribunal de 13/07/2017 (FONSECA RAMOS), processo 6322/11.8TBLRA-A.C2.S1, “[a]s conclusões das alegações que, inquestionavelmente, reproduzem o texto das alegações, dão a conhecer o objeto do recurso – art. 635.º, n.º 3, do Código do Processo Civil – o que não pode deixar de ser tido em consideração no juízo de ponderação que importa convocar quanto a saber se, por tal procedimento, é como se não existissem”, acrescentando que “[a] equivalência que o Acórdão recorrido faz, considerando não haver conclusões, pelo facto delas serem a reprodução das alegações, parece excessiva”, pelo que deverá o Tribunal recorrido convidar o Recorrente ao aperfeiçoamento das alegações.
No mesmo sentido se pronunciou, anteriormente, o Acórdão proferido em 09-07-2015 (ABRANTES GERALDES) no processo n.º 818/07.3TBAMD.L1.S1, em cujo sumário se pode ler que “[a] reprodução nas “conclusões” do recurso da respetiva motivação não equivale a uma situação de alegações com “falta de conclusões”, de modo que em lugar da imediata rejeição do recurso, nos termos do art. 641.º, n.º 2, al. b), do NCPC, é ajustada a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, nos termos do art. 639.º, n.º 3, do NCPC.”
E idêntica solução tem sido, de resto, adotada por esta mesma Secção: sirva de exemplo, o Acórdão de 06/04/2017 (GONÇALVES ROCHA), proferido no processo n.º 297/13.6TTTMR.E1.S1, em cujo sumário se pode ler que “[a] reprodução nas conclusões do recurso da respetiva alegação não equivale a uma situação de falta de conclusões, estando-se antes perante um caso de conclusões complexas por o recorrente não ter cumprido as exigências de sintetização impostas pelo n.º 1 do artigo 639.º do CPC” e “[a]ssim, não deve dar lugar à imediata rejeição do recurso, nos termos do artigo 641.º, n.º 2, alínea b) do CPC, mas à prolação de despacho de convite ao seu aperfeiçoamento com fundamento na apresentação de conclusões complexas ou prolixas, conforme resulta do n.º 3 do artigo 639.º do mesmo compêndio legal”.
A solução – afirmar que em casos como o dos autos não há, em rigor, uma falta ou omissão das Conclusões – é também a mais coerente com o direito de acesso aos Tribunais e com o próprio papel do Juiz como “gestor” do processo.”[3]

Ante o exposto, e concluindo, improcede a reclamação apresentada pelo recorrido.

IV - A – A APRECIAÇÃO DO RECURSO

- Da ineptidão da petição inicial quanto ao pedido formulado em b):

Contendendo com a questão supra enunciada, na decisão recorrida discorreu-se nos termos seguintes:
Nos arts. 482.º a 485.º da contestação arguiu o réu, por via de excepção, que o pedido formulado sob a alínea b) do petitório final – de que o seu contrato de trabalho é sem termo - não tem qualquer facto que o fundamente, é desacompanhado de qualquer argumento ou contexto alegatório, por não ter sequer causa de pedir, pelo que é inepto e deve desde já ser absolvido da instância quanto ao mesmo.
O autor pronunciou-se a 5.12.2022 pela improcedência desta excepção, alegando, em suma, que a causa de pedir está invocada nos arts. 3.º a 8.º da petição.
Cumpre decidir. O art. 577.º, al. b) do C.P.Civil, tipifica como excepção dilatória a nulidade de todo o processo. A ineptidão da petição inicial implica, por força do disposto no art. 186.º, n.º 1, do C.P.Civil, a nulidade de todo o processo, cognoscível ex officio (art. 196.º do C.P.Civil), e importa a absolvição da instância, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, nos termos dos arts. 278.º, n.º 1, al. b) e 576.º, n.º 2, do C.P.Civil.
Estatui o art. 186.º do C.P.Civil que: «1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. 2. Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. 3. Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial. 4. No caso da alínea c) do n.º 2, a nulidade subsiste ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo.».
Ao instaurar a acção, o autor tem, de acordo com o disposto no art. 552.º, n.º 1, al. e) do C.P.Civil, o ónus de formular um pedido, requerendo ao tribunal o meio de tutela pretendido para efectivar o direito por si alegado, e tem ainda, nos termos da al. d) desse preceito, o ónus de expor os factos que servem de fundamento à acção, isto é, a indicação dos factos concretos constitutivos do direito que alega, não se podendo limitar “à indicação da relação jurídica abstracta”. - cfr. Anselmo de Castro in Direito Processual Civil Declaratório, volume 1.º, Almedina, 1982, pág. 208.
O pedido circunscreve, desta forma, o âmbito da decisão final, pois que desenha “o círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir”. - cfr. art. 609º, n.º 1 do C.P.Civil e Anselmo de Castro, obra citada, volume 1.º, pág. 201.
O pedido, para além de ser deduzido, deve ser formulado de forma clara e inteligível, precisa e determinada, de modo a que possa ser compreendido pelo réu e pelo juiz, pois que só assim a decisão judicial a proferir irá resolver aquele conflito de interesses.
Entende-se por ininteligibilidade do pedido a impossibilidade de conhecer qual é a providência judicial que o autor pretende com a acção.
Alberto dos Reis já afirmava que se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, se se serviu “da linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretende obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.”
Como bem refere o mencionado autor, “podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou factos, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir”. Mais afirma que “importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente… Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a ação naufraga” (situação de manifesta inviabilidade). – in Comentários ao Código de Processo Civil, 2.º, págs. 364 e 371.
Ora, o n.º 4 do art. 581.º define a causa de pedir como sendo o facto jurídico de que o autor faz proceder o efeito pretendido, precisando que a causa de pedir nas acções reais é o facto de que deriva o direito real e que nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito jurídico pretendido.
Causa de pedir é assim o facto jurídico concreto ou específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão.
A causa de pedir deve estar para com o pedido na mesma relação lógica em que, na sentença, os fundamentos hão-de estar para com a decisão. O pedido tem, como a decisão, o valor e significado duma conclusão: a causa de pedir, do mesmo modo que os fundamentos de facto da sentença, é a base, o ponto de apoio, uma das premissas em que assenta a conclusão. Isto basta para mostrar que entre a causa de pedir e o pedido deve existir o mesmo nexo lógico que entre as premissas dum silogismo e a sua conclusão.
Apenas será inepta a petição, por ininteligibilidade, quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir.
No tocante à contradição entre pedido e causa de pedir, esta tem de se evidenciar entre o pedido, enquanto concreta pretensão jurídica formulada pelo autor, e a causa de pedir, enquanto facto ou factos jurídicos que se invocam para sustentar o efeito jurídico ou pedido, deduzido. De acordo com a tese da substanciação, que o actual Código de Processo Civil acolhe, a causa de pedir é formada por factos sem qualificação jurídica, ainda que com relevância jurídica.
A mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omite a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas podendo implicar a improcedência, no plano do mérito, se o autor não tiver aproveitado as oportunidade de que beneficia para fazer adquirir processualmente os factos substantivamente relevantes, complementares ou concretizadores dos alegados, que originariamente não curou de densificar em termos bastantes.
Ora, lidos os arts. 3.º a 8.º da petição é forçoso concluir que embora o autor aluda a dois contratos de trabalho celebrados com o réu, um a 1.02.2018 e outro a 2.03.2020, para a mesma função/categoria, assumindo que fez a resolução do primeiro por mútuo acordo, nada mais invoca que justifique que o Tribunal pudesse considerar a conversão do 2.º contrato (a termo, por 4 anos), com início a 2.03.2020, em contrato por tempo indeterminado, quer à luz da lei portuguesa, quer à luz das Staff Rules.
A petição é absolutamente omissa a respeito dessa matéria, porque o autor não definiu factualmente o núcleo essencial da causa de pedir que serve de base à pretensão que formula na alínea b) do petitório final, obstando tal deficiência a que a acção tenha um objecto inteligível quanto a tal segmento do pedido final. Tal equivale a dizer que se verifica ininteligibilidade do aludido pedido, por falta de concretização da causa de pedir ou dos factos que fundamentam o mesmo pedido. E arguida a dita excepção pelo réu, o autor limitou-se a afirmar que a causa de pedir está explicitada nos mencionados artigos da petição, para os quais remeteu, sem cuidar de densificar outra matéria a tal respeito.

Concordamos com os considerandos genéricos feitos pelo Tribunal a quo.
Porém, já não assim com a sua aplicação, sustentada nos dois últimos parágrafos da citação efectuada, à situação em apreço.

As nossas reservas não se baseiam, consigna-se já, na argumentação do recorrente de que dos artigos 59.º a 77.º e 485.º da contestação (em que o recorrido, e em resumo, impugna de forma motivada o alegado pelo autor de 6.º a 10.º da PI, dando a sua própria versão dos factos, sendo que no art. 485.º se limita o recorrido a afirmar a validade do contrato de trabalho) resulta que a causa de pedir do pedido formulado em b) foi inteligível para o recorrido, pois que não foi essa a deficiência assacada à petição na decisão recorrida, sim a da omissão de causa de pedir e, sendo este o ponto, é aqui que discordamos da decisão recorrida.

Sendo a causa de pedir o facto jurídico concreto ou específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão, como se afirma, e bem, na decisão recorrida, no caso, o facto jurídico (contrato de trabalho que celebrou com o réu) de que o autor pretende extrair fundamento para que se declare que o contrato de trabalho que celebrou com o réu é sem termo está efectivamente alegado nos pontos da matéria da petição inicial posteriormente indicados pelo autor no requerimento em que respondeu às “outras excepções”, nomeadamente nos artigos 6.º e 7.º da PI: Contudo, em 02.03.2020 a R. propôs ao A. a assinatura de um novo contrato pelo prazo de 4 anos, para o exercício das mesmas funções e permanecendo na mesma categoria C2, com o fundamento de que o contrato anterior não permitiria ao A. celebrar um contrato sem termo com a R. , cfr. doc. n.º .... (6º)
Com base em tal fundamento o A. aceitou resolver por mútuo acordo o contrato anteriormente celebrado com a R. e aceitar as condições impostas para a celebração deste novo contrato, cfr. doc. n.º .... (7º)

A causa de pedir é integrada pelos chamados factos essenciais, precisamente aqueles que têm de ser alegados pelas partes (no caso, tratando-se de facto constitutivo da causa de pedir, pelo autor) – cf. art. 5.º/1 do CPC.

Ora, “Factos essenciais são os factos constitutivos dos elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo, ou seja, os factos que permitem a substanciação do pedido, independentemente de poderem ser indiciados por factos instrumentais de conhecimento oficioso, ou de serem complementados ou concretizados pelo que resulte da discussão da causa (n.ºs 2 als. a) e b) do art.º 5.º).”[4]

Não oferece dúvida que o autor alegou que celebrou com a ré um contrato de trabalho a termo/pelo prazo de 4 anos, factualidade em que assenta o pedido de que se declare esse contrato sem termo.

É certo que o autor foi lacónico na alegação que fez, não explicitando – como devia; cf. art. 552.º/1 d), 2.ª parte, do CPC -, sob o ponto de vista jurídico, porque razão o contrato firmado com o réu deve considerar-se (no seu ponto de vista) sem termo.

Mas esta situação não apaga a alegação dos ditos factos essenciais/causa de pedir, nem torna inepta a petição inicial, sem prejuízo de poder justificar um convite ao aperfeiçoamento da petição inicial/prestação de esclarecimentos quer ao abrigo do art. 54.º/1 do CPT e do art. 590.º /2 b) do CPC quer do art. 7.º/2 do mesmo Código (ex. vi dos art.s 61.º/1 e 1.º/2 a) do CPT), sendo que este último permite já o convite ao esclarecimento sobre a matéria de direito.

Em conclusão – e sem prejuízo de por alguma outra razão que caiba apreciar poder o Tribunal a quo entender que se deve manter a absolvição da instância ou até do pedido -, não se verifica a ineptidão da petição inicial no que respeita ao pedido deduzido sob a al. b) do petitório.

- Da inadmissibilidade de impugnação judicial das decisões proferidas no âmbito dos procedimentos disciplinares n.º 2021/001 e n.º 2021/002 e do processo de assédio:

Discorreu-se, a propósito, na decisão recorrida:
Para fundamentar estas excepções alega o réu, em síntese, partindo da afirmação de que é aqui aplicável o seu corpo normativo próprio, mormente as Staff Rules e demais regulamentos e normas internas do INL, sendo que às questões disciplinares se aplicam os concretamente os arts. 226.º a 276.º, depois de explicar o procedimento interno despoletado após verificação da conduta susceptível de desencadear a aplicação de sanção, o seguinte:
(…)
A este respeito respondeu o autor alegando, em síntese, que não só as Staff Rules não estabelecem a necessidade de esgotar as vias internas para depois se poder recorrer à via judicial, como o art. 262.º, n.º 2 das Staff Rules não se aplica aos processos de assédio, que se regem por um regulamento próprio.
Cumpre decidir.
A resposta às questões supra identificadas depende, desde logo, da decisão a proferir sobre o direito aplicável ao caso.
Ora, o aqui réu, ..., foi constituído no âmbito de um tratado internacional celebrado entre Portugal e ... no dia 25 de Novembro de 20061. Trata-se de uma organização internacional de carácter intergovernamental, dotada de personalidade jurídica e de capacidade judiciária, que está sujeita a um regime legal específico que decorre da sua própria natureza. Este regime legal consiste num estatuto que foi aprovado no âmbito do seu tratado de constituição.
Tal Laboratório tem a sua sede em Portugal, mais concretamente em ..., sendo que o seu estatuto em território português é regulado por um acordo de sede celebrado entre o INL e o Estado da República Portuguesa, que foi aprovado pela Assembleia da República através da Resolução n.º 44/2008, de 27 de Junho.2
E, para o que ao caso interessa, o dito acordo sede estabelece que no «âmbito das suas actividades oficiais, o Laboratório e os seus bens gozam de imunidade de jurisdição e de execução» (cfr. respectivo art. 5.º).
Acresce que, para além da já referida imunidade de jurisdição, o mencionado acordo sede estabelece, ainda, que «as condições de trabalho do Director-Geral e dos funcionários deverão obedecer ao disposto nas normas e regulamentos aplicáveis ao pessoal do Laboratório. O director-geral e os funcionários não podem exigir mais direitos para além dos previstos nas normas e nos regulamentos referidos» (cfr. n.º 4 do art. 14.º).
Ora, alega o autor que, pelo menos desde ../../2018. é trabalhador do réu, com quem celebrou um contrato de trabalho a termo certo com a duração de dois anos, ocorrendo o termo a 31.01.2020. Mais alega que por ter estado incapacitado para o exercício da sua actividade profissional, o réu veio a prolongar tal contrato até ../../2020, de acordo com o art. 140.º do seu regulamento interno/Staff Rules. E, já a 2.02.2020, foi celebrado entre as partes novo contrato de trabalho, agora com a duração de quatro anos, com início a 2.03.2020, onde lhe foi atribuída a categoria de “Research Engineer”.
Daqui resulta de imediato que tais contratos de trabalho foram assim celebrados de acordo com o regime legal do réu, designadamente de acordo com o estabelecido nas denominadas Staff Rules que decorrem do estatuto, tal como ambas as partes aceitam.
Ora, em consequência da especial natureza do réu, foi estabelecido um regime interno de disciplina (arts. 226.º a 251.º) e de resolução de litígios (arts. 252.º a 276.º), de cuja conjugação decorre que os conflitos de natureza laboral (decorrentes de decisão de despedimento, não renovação ou não prorrogação do contrato, decisão tomada no seguimento de recomendação do Conselho Consultivo Comum para a Disciplina, entre outros) serão submetidos ao Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho e, tratando-se de litígios de outra natureza que envolvam cidadãos ou entidades portuguesas, serão submetidos a Tribunal Administrativo Independente constituído “ad hoc” (arbitragem).
As aludidas Staff Rules, que se mostram juntas ao processo de fls. 192 a 253 (cfr. doc. 4.º-B da contestação, traduzido para a língua portuguesa), são assim o conjunto de normas e regras que regem a relação laboral mantida entre o réu e os seus trabalhadores.
De tudo decorre, pois, de forma inequívoca, que se impõe a aplicação daquele corpo normativo próprio, o que excluí a aplicabilidade dos preceitos do Código do Trabalho invocados pelo autor em suporte da sua pretensão.
Neste sentido discorreu o Sr. Prof. Dr. Rui Moura Ramos no parecer datado de 24.01.2022, junto à contestação como doc. ... (cfr. fls. 184 a 191), onde se vinca que o réu se trata de um sujeito de direito internacional que, além da imunidade de jurisdição e execução que abrange os processos relativos a contratos de trabalho celebrados com o próprio, beneficia de outras prerrogativas e privilégios, pelo que, «As cláusulas inseridas em contratos de trabalho celebrados entre o Laboratório e o Director-Geral ou o pessoal que nele presta trabalho e que estipulem a sujeição destes contratos, como dos modos de sujeição de litígios deles decorrentes, às denominadas Staff Rules são válidas e produzem efeitos na ordem jurídica portuguesa, por obedecerem e constituírem a execução de um quadro normativo (o Acordo de Sede) recebido no nosso ordenamento por força do artigo 8.º, n.º 2 da Constituição (…) devendo os problemas postos na interpretação e execução de tais contratos ser solucionados nos termos previstos nas referidas Staff Rules.».
A questão não é assim de conflito de leis, mas de hierarquia das fontes de direito. Por força do princípio do primado do direito internacional, os tratados internacionais sobrepõem-se ao direito ordinário interno, o que inclui a legislação laboral3.
O respeito pelas imunidades impõe-se naturalmente aos Estados membros da organização, desde logo por força das responsabilidades mutuamente assumidas no acto da sua constituição.
Pelo exposto, entendemos que a relação laboral mantida entre as partes é efectivamente regulada pelas normas previstas nas Staff Rules (e demais regulamentação interna do réu INL), pelo que as aludidas pretensões do autor não podem proceder dada a regulamentação ali prevista.
Ou seja, sendo aplicável o disposto nas ditas Staff Rules é forçoso concluir, que as decisões aplicadas nos processos disciplinares n.º 2021/001 e n.º 2021/002, bem como no processo de assédio movido ao autor, respectivamente de repreensão, repreensão e repreensão registada (além medidas de gestão), tudo na sequência das averiguações/processo de investigação desenvolvidos internamente, e secundadas pelo teor das conclusões carreadas nos respectivos relatórios finais, não podem ser fiscalizadas por este Tribunal.
De facto, atento o disposto nos arts. 254.º (procedimentos de resolução de litígios), 255.º (revisão), 256.º (recurso interno), 259.º (prazos) e 262.º, n.º 2 (admissibilidade), entendemos que:
3 A este propósito, pode ver-se DIOGO FREITAS DO AMARAL, in Manual de Introdução ao Direito, pág. 567, que, referindo-se à hierarquia das fontes de direito, afirma que 'em primeiro lugar, no topo da hierarquia, vêm as fontes do direito internacional. Todas elas: costume, tratado, princípios gerais, jurisprudência, etc'. No mesmo sentido pode ver-se ainda JOÃO BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 167.
- a decisão impugnada por via de recurso interno, no âmbito do processo disciplinar n.º ...01, tornou-se definitiva, consolidou-se, uma vez que o aquele recurso foi apresentado fora de prazo nos serviços do réu e assim não admitido, e bem, por ser extemporâneo;
- a decisão proferida no âmbito do processo disciplinar n.º ...02, após ter sido notificada ao autor, não foi pelo mesmo impugnada internamente, através dos procedimentos previstos nas Staff Rules, o que significa que aquele com ela se conformou, tendo-se a mesma consolidado na sua esfera jurídica, sendo por isso insusceptível de impugnação judicial;
- a decisão proferida no âmbito do processo de assédio, após ter sido notificada ao autor, não foi pelo mesmo impugnada internamente, através dos procedimentos previstos nas Staff Rules, o que significa que igualmente com ela se conformou, tendo-se a mesma consolidado na sua esfera jurídica, sendo por isso igualmente insusceptível de impugnação judicial.
Qualquer vício formal dessas decisões ou dos processos que as precederam deveriam ter sido questionadas internamente, assim como o deveria ter sido qualquer vício material.
E não se argumente com o facto de estar o autor impedido de recorrer para o Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho (“ILOAT”), como previsto no art. 257.º, n.º 2 das Staff Rules, e por força da cláusula 24.ª do contrato celebrado a ../../2020 (ou cláusula 21.ª do contrato de1.02.2018), porque o réu não reconheceu aquela jurisdição. Do “site” https://www.ilo.org/tribunal/membership/lang--en/index.htm, resulta efetivamente que o réu não consta da lista de organizações que reconhecem essa jurisdição.
No entanto, não só o art. 257.º, n.º 2 das Staff Rules prevê que das decisões que não podem ser objecto de recurso interno, que não é o caso das ora sindicadas, podem ser objecto de apreciação no ILOAT, como tem sido unanimemente entendido que se a “imunidade de jurisdição” de certa organização tiver por efeito a privação do demandante/autor de acesso a um Tribunal, ou a meios alternativos de resolução de litígios, ela pode ser afastada ou relativizada, se estão em causa direitos fundamentais.
Pelo que, no caso, se o autor tivesse exercido o seu direito de sindicar aquelas decisões por via de recurso interno (tempestivo) ou por via de revisão, e o INL mantivesse as decisões finais, sempre seria de aceitar a análise das questões suscitadas quanto aos aludidos processos disciplinares e processo de assédio por este Juízo do Trabalho ..., relativizando-se a imunidade do INL, na estrita medida em que, caso contrário, resultaria violado o direito fundamental do autor ao recurso a meios judiciais de dirimição de litígios, por não reconhecimento do réu da jurisdição do ILOAT.
Contudo, contrariamente ao que o autor defende, não é este o caso, já que o autor prescindiu internamente de sindicar aquelas decisões, seja porque no âmbito do processo n.º ...1 o recurso que interpôs era extemporâneo e não foi por isso admitido, seja porque no âmbito dos outros dois processos o autor nem interpôs recurso ou pedido de revisão internos, o que equivale a dizer que se conformou com as decisões proferidas e sanções aplicadas, não podendo já sindicar as mesmas pela via judicial.
Além disso, como já antes referimos, a questão da imunidade de jurisdição não interfere com a lei aplicável ao caso, que é a lei que resulta do ordenamento próprio “da organização internacional” em causa, o réu INL, no caso as Staff Rules aprovadas nos termos dos respectivos estatutos, pois mesmo que o Juízo do Trabalho fosse competente para apreciar as decisões disciplinares, sempre teria de aplicar o direito interno do réu.

1 A este propósito pode ver-se a Resolução da Assembleia da República n.º 59/2007 de 20 de Setembro, publicada no Diário da República, 1.ª Série, n.º 255, de 22 de Novembro de 2007.
2 Publicada no Diário da República, 1.ª Série, n.º 250, de 5 de Agosto de 2008.

Concordamos inteiramente com a posição sustentada pelo Tribunal a quo.

O recorrido é uma organização internacional, de base convencional, dotado de autonomia jurídica – cf. artigos 4.º e 5.º dos seus Estatutos.[5]

O art. 5.º dos Estatutos prevê que:
“1 - O Laboratório tem a sua sede em ..., Portugal.
2 - O estatuto do Laboratório no território do Estado da sede é regulado por um acordo de sede entre o Laboratório e o Estado da sede, a ser concluído com a maior brevidade possível após a entrada em vigor do presente Estatuto.” (sublinhamos)

Relativamente ao pessoal do INL, consta do artigo 18.º, n.º 4, dos Estatutos que “O Diretor-geral, agindo sob delegação de poderes pelo Conselho, nomeia e despede todo o pessoal de acordo com regras adotadas pelo Conselho”.

E do n.º 4 do artigo 14.º do Acordo Sede[6] consta:
Director-geral e pessoal
(…)
4 - As condições de trabalho do Director-Geral e dos funcionários deverão obedecer ao disposto nas normas e regulamentos aplicáveis ao pessoal do Laboratório. O director-geral e os funcionários não podem exigir mais direitos para além dos previstos nas normas e nos regulamentos referidos.”

Estas normas autorizam a criação de uma ordem jurídica própria respeitante à contratação de pessoal e regulamentação dos vínculos profissionais daí advenientes, inclusive quanto à sua cessação.

Esse corpo de normas veio o recorrido a adoptar sob a forma de Regulamentos (aprovados pelo Conselho), assumindo aqui especial relevância as Staff Rules/Regulamento do Pessoal, juntas aos autos pelo recorrido – Doc.s 4-A e 4-B.

Como se diz, e concordamos, no ponto 15. do parecer[7] junto aos autos, “15. Como se deixou já referido25, o Laboratório aprovou, através do Conselho, as normas relativas às condições de trabalho do pessoal a ele vinculado (Staff Rules) que constituem assim o direito regulador das relações de trabalho que se desenvolvem no âmbito daquela organização internacional26. A opção corporizada pela aprovação destas regras afasta assim a aplicação às relações de trabalho entre o Laboratório e o seu pessoal (Staff)27 de quaisquer outras normas de fonte estadual, sejam as do Estado da Sede sejam as de qualquer outro Estado. Tal é aliás claramente afirmado no n.º 4 do artigo 14.º do Acordo de Sede, onde se dispõe que «o director-geral e os funcionários não podem exigir mais direitos para além dos previstos nas normas e regulamentos referidos28».”

Por isso que nos revemos no entendimento perfilhado no acórdão desta Relação de ../../2022[8], já aludido nos autos (e em que foi Relator o aqui 2.º Adjunto), nomeadamente quando aí se escreveu:
As normas “criadas” pelos organismos internacionais, no âmbito das suas atribuições, constituem direito internacional, devendo o Estado respeitar tais “ordenamentos” nos termos do artigo 8º da CRP. A não sujeição ao direito nacional pode ser essencial ao objeto legítimo das imunidades, tendo em vista garantir a autonomia e independência da organização em relação ao Estado em que tem a sede.
(…)

Refere o TEDH, caso WAITE E KENNEDY, considerando 72;
“… bearing in mind the legitimate aim of immunities of international organisations (see paragraph 63 above), the test of proportionality cannot be applied in such a way as to compel an international organisation to submit itself to national litigation in relation to employment conditions prescribed under national labour law. To read Article 6 § 1 of the Convention and its guarantee of access to court as necessarily requiring the application of national legislation in such matters would, in the Court’s view, thwart the proper functioning of international organisations and run counter to the current trend towards extending and strengthening international cooperation.” (tendo em conta o objetivo legítimo das imunidades das organizações internacionais (n° 63 supra), o critério da proporcionalidade não pode ser aplicado de forma a obrigar uma organização internacional a submeter-se a um litígio nacional em relação às condições de emprego prescritas pela legislação trabalhista nacional. Ler o artigo 6 § 1 da Convenção e sua garantia de acesso ao tribunal como necessariamente exigindo a aplicação da legislação nacional em tais matérias seria, na opinião da Corte, contrariar o bom funcionamento das organizações internacionais e contrariar a tendência atual de extensão e fortalecimento da cooperação internacional.)»
Ao contrário do que defende o recorrente, posto que os Estatutos e o Acordo Sede atribuem poderes normativos ao INL, as normas emanadas pelos seus órgãos competentes são as que regem a situação, conforme estabelece a CRP no seu art. 8.º, n.º 3.

Note-se que já no artigo 1.º do Acordo Sede se prevê:
Objecto
O presente Acordo tem por objectivo proporcionar ao Laboratório todas as condições necessárias ao cumprimento integral, eficiente e independente dos seus objectivos e obrigações, bem como ao exercício pleno, eficiente e independente das respectivas funções na sua sede, e regular a relação entre o Laboratório e a República Portuguesa enquanto Estado da Sede.”

Sendo que no artigo 16.º dos Estatutos se estabelece, quanto ao Carácter internacional do INL:
1 - As responsabilidades do Director-Geral e do pessoal para com o Laboratório são de carácter exclusivamente internacional e, como tal, no exercício das suas funções não devem solicitar nem receber instruções de qualquer governo ou autoridade externa ao Laboratório.
2 - Cada Estado membro deve respeitar o carácter internacional das responsabilidades do Director-Geral e do pessoal e não os influenciar no exercício das suas funções.”

Como se dá nota no Parecer junto aos autos, a possibilidade das organizações internacionais poderem, de acordo com os respectivos tratados constitutivos, emanar normas a que fica sujeito o seu pessoal é, de resto, generalizada, não assumindo o caso presente, neste aspecto, nenhuma inovação.
A título de ex. e pela dimensão da organização em causa, refira-se o Estatuto Jurídico dos funcionários das Nações Unidas e das suas Agências, enquanto funcionários internacionais, que contemplam matéria laboral, encontrando-se os funcionários internacionais “(…) sujeitos a um estatuto disciplinar complexo inspirado em diversas fontes normativas, das quais, se destacam as Normas de Conduta do Serviço Civil Internacional (soft law), as normas contidas no art. 101.º da Carta das Nações Unidas (…) e, finalmente, as contidas na nova ST/AI/2017/1 que contém, inter alia, o elenco das condutas suscetíveis de serem consideradas infracções disciplinares, contempla as sanções aplicáveis e define a tramitação do procedimento disciplinar.”[9]

O recorrente pretende que é aplicável a Lei Portuguesa à relação laboral estabelecida entre si e o recorrido por força do disposto no art. 5.º/1 d) do Acordo Sede. [Artigo 5.º 1 - No âmbito das suas actividades oficiais, o Laboratório e os seus bens gozam de imunidade de jurisdição e de execução, excepto quando: (…) d) Se trate de um processo relacionado com um contrato de trabalho, celebrado entre o Laboratório e uma pessoa, que tenha por objecto a prestação de trabalho, no todo ou em parte, no território da República Portuguesa, e desde que essa pessoa tenha nacionalidade portuguesa ou residência permanente nesse território.]
Não tem razão.
A norma a que recorre não regula a lei aplicável ao caso mas antes a imunidade de jurisdição e execução – a não sujeição do INL à jurisdição dos Tribunais Portugueses -, questão esta que nem sequer se levanta.

Alega o recorrente que o Tribunal a quo aplicou, erradamente, uma versão das staff rules que não existia à data dos factos.
Sucede que o recorrido defendeu-se na contestação, nomeadamente por excepção, invocando as staff rules que identificou, e que juntou aos autos (Doc.s 4-A e 4-B), tendo o autor/recorrente apresentado resposta sem que tenha questionado a aplicabilidade de tal regulamentação emanada pelo réu em razão de não vigorarem à data dos factos, questão esta que, naturalmente, não foi tratada na decisão recorrida.
A questão apresenta-se, pois, como questão nova, e como tal não pode ser agora conhecida em recurso.[10]

Defende ainda o recorrente que o art. 262.º/2 do Regulamento do Pessoal [262. Admissibilidade da revisão ou do recurso interno
MP
(…)
2. Se o Diretor-Geral rejeitar um pedido de revisão ou de recurso interno com fundamento em inadmissibilidade, deve fundamentar a sua decisão por escrito. A decisão impugnada passa então a ser definitiva.] viola o disposto no art. 20.º da CRP.

O art. 20.º da CRP regula sobre o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, estatuindo no seu n.º 1 que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)”.

A propósito deste princípio, escrevem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que “Apesar de ser uma garantia de natureza universal e geral, o direito de acesso aos tribunais não exclui (…) a obrigatoriedade de meios preventivos de resolução extrajudicial, como, por exemplo, a conciliação ou mediação ou o recurso administrativo (não jurisdicional).[11]

A situação em apreço cai na hipótese por último figurada [existência de recurso administrativo (não jurisdicional)].

De qualquer forma, sendo aplicáveis os Regulamentos emanados dos órgãos competentes do INL, como supra se procurou demonstrar, afigura-se, com apelo ao art. 22.º/1 do CC, que só não seria aplicável a norma em questão se essa aplicação envolvesse ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português, o que entendemos não ser o caso, nem o recorrente intentou, sequer, demonstrar.
             
V - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em:
 Julgar improcedente a reclamação apresentada pelo recorrido INL.
 Julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a decisão na parte em que julgou procedente a excepção de ineptidão da petição, no que respeita ao pedido deduzido sob a alínea b) do petitório final e absolveu o réu da instância quanto ao mesmo pedido, ordenando o prosseguimento dos autos também quanto a este pedido a não ser que, por outros fundamentos, seja entendido em sentido diferente.
 Quanto ao mais, confirmar a decisão recorrida.
 Custas da reclamação apresentada pelo recorrido, por este.
 Custas da apelação 2/3 a cargo da recorrente 1/3 a cargo do recorrido.
 
 Notifique.
 Guimarães, 14 de Março de 2024

Francisco Sousa Pereira (relator)
Vera Maria Sottomayor
Antero Veiga

           

[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017 – 4.ª Edição, pág. 247.
[2] Cf. Ac. STJ de 12-01-2023, Proc. 16978/18.5T8LSB.L2.S1, Mário Belo Morgado, www.dgsi.pt
[3] Proc. 28107/15.2T8LSB.L1.S1, Júlio Gomes, www.dgsi.pt
[4] Ac. do STJ 13-7-2022, Proc. 17909/17.5T8PRT-A.P2.S1, www.dgsi.pt
[5] Aprovados por Resolução da Assembleia da República n.º 59/2007, de 22 de Novembro, Diário da República n.º 225/2007, I Série.
[6] Aprovado por Resolução da Assembleia da República n.º 44/2008, de 05-8-2008, Diário da República n.º 150/2008, I Série.
[7] Parecer subscrito pelo Prof. Rui Manuel Moura Ramos, junto com a contestação como doc. n.º ....
[8] Proc. 6604/21.0T8BRG.G1, Antero Veiga, www.dgsi.pt
[9] Teresa Bravo, O sistema de justiça interna das Nações Unidas e as garantias de defesa dos funcionários internacionais, Revista do CEJ, 1.º Semestre 2018 / Número 1, pág. 258.
[10] Cf., a título de ex., Ac. RP de 03-10-2022, Proc. 517/19.6T8MTS.P1, Nelson Fernandes “(…) IV- A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma importante limitação ao seu objeto, decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.” www.dgsi.pt; em idêntico sentido: Ac. RP 14-11-2022, Proc. 1711/19.2T8PNF.P1, Ac. RC de 24-02-2023, Proc. 3213/21.8T8VIS.C1, Paula Maria Roberto, Ac. RC de 02-05-2023, Proc. 2903/20.7T8CBR.C1, Henrique Antunes Ac. RP de 26-06-2023, Proc. 20081/21.2T8PRT.P1, Jerónimo Freitas, todos em www.dgsi.pt
[11] CRP Anotada, Coimbra Editora, Vol. I, 4.ª Edição Revista. Pág. 409.