Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
995/14.7T8BRG-J.G1
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
CPEREF VERSUS CIRE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
INAPLICABILIDADE DO INSTITUTO DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Inexiste qualquer direito potestativo constitucionalmente consagrado do devedor, falido ou insolvente, a ver reconhecida a liberação do seu passivo.
2. A violação do princípio constitucional da igualdade, plasmado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, pressupõe que da aplicação de uma norma decorra tratamento desigual para situações iguais e sincrónicas.
3. A diferença de tratamento decorrente da sucessão temporal das leis decorre da ampla margem de liberdade concedida ao Legislador.
4. Não configura violação do princípio da igualdade a inaplicação do instituto de exoneração do passivo restante, introduzido pelo DL nº 53/2004, de 18 de março, que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a devedor declarado falido na vigência do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo DL nº 132/93, de 23 de abril.
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

Em 7 de dezembro de 2022 foi prolatado o seguinte despacho, objeto do presente recurso:

Veio o falido AA requerer que fosse determinada a cessação dos descontos/apreensões sobre os rendimentos por si auferidos, para o que aduziu que está previsto, nos arts. 235.º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), o regime da exoneração do passivo restante, regime este que permite um “fresh star” aos devedores, e do qual nunca pôde beneficiar dada a aplicação do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), estando objetivamente a ser discriminado em relação a todos os que beneficiaram de tal instituto, pelo que entende que a aplicação do CPEREF é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade previsto no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Cumpre decidir.

Olhado o requerimento em apreciação, verifica-se que o falido pretenderia que fosse determinado o fim dos descontos nos seus rendimentos por aplicação do regime que resulta da exoneração do passivo restante.
Ora, do art. 12.º, n.º 1, Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, resulta afirmado que o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência continua a aplicar-se aos processos de recuperação da empresa e de falência pendentes à data de entrada em vigor do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pelo que inexistam dúvidas de que, no caso, estando-se perante um processo de falência iniciado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 53/2004, não são aplicáveis as normas do CIRE, concretamente a exoneração do passivo restante, prevista nos arts. 235.º e ss..
É certo que a continuação da aplicação do regime do CPEREF acarreta para o falido um regime patrimonial menos favorável do que aquele que eventualmente lhe resultaria da aplicação do CIRE, onde se prevê a possibilidade de, mediante a verificação de certos pressupostos, ao devedor poder ser concedida a exoneração do passivo restante.

Mas será que pode afirmar-se, em face de tal, a inconstitucionalidade material pretendida pelo falido, por violação do art. 13.º da CRP?

Cremos que não.

Segundo o art. 13.º da CRP:
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Constitui entendimento reiterado do Tribunal Constitucional que o princípio da igualdade não proíbe ao legislador que faça distinções, mas apenas diferenciações de tratamento (e sua medida) sem justificação racional e bastante.
Diz-se a este propósito no Acórdão do TC n.º 362/2016:
“Numa perspetiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo
13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objetos que se comparam em função de um aspeto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar; é o pressuposto da respetiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objetos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum).
Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias.
Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88: «A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»
Por outro lado, não é função do princípio da igualdade garantir que todas as escolhas do legislador sejam racionais e coerentes ou correspondem à melhor solução. Nesse particular, justifica-se recordar a jurisprudência constitucional firmada no Acórdão n.º 546/2011:
«[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que contudo se não repercuta no trato diverso – e desrazoavlmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.»
Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”.
Feito este introito, há que concluir que, no caso, a opção do legislador de continuação da aplicação do regime legal do CPEREF aos processos de falência pendentes, como é o caso do presente processo, com a consequente diferenciação do tratamento a prestar aos falidos em relação aos devedores da insolvência, não se apresenta como arbitrária, estando aliás perfeitamente justificada com a circunstância de o regime dos referidos diplomas legais ser bastante díspar entre si, tendo-se procurado respeitar a harmonia processual e as diferentes finalidades e estrutura dos processos, a que presidem filosofias autónomas e  distintas, bem como respeitar as decisões já proferidas nos processos de falência e os efeitos jurídicos delas decorrentes, anotando-se que, no caso, foi já proferida nos autos, antes da entrada em vigor do Processo: 995/14.7T8BRG CIRE, decisão transitada em julgado que tomou posição a respeito dos descontos no vencimento do falido, tendo-se decidido que os mesmos haveriam de continuar, apesar da cessação dos efeitos decorrentes da falência relativos à pessoa do falido.
Como se afirma no Ac. da RC de 27/4/2017, processo n.º 1042/14.4T8VIS.C1, disponível in www.dgsi.pt: “Do preceituado no art.º 150º, n.º 1, do CPEREF não decorre que os rendimentos do trabalho não sejam suscetíveis de apreensão e inexiste norma ou princípio que obste ou limite a apreensão em processo de falência de qualquer bem penhorável por poder prolongar no tempo a pendência do processo”.
Em face do exposto, indefiro a requerida cessão dos descontos nos rendimentos auferidos pelo falido, não julgando inconstitucional a aplicação ao presente processo do regime processual resultante do CPEREF.
Notifique.

Inconformado com o referido despacho, o falido recorreu, formulando as seguintes conclusões:

a) Vem o presente recurso interposto do douto Despacho proferido em 07-12-2022, sob a referência ...04, que decidiu pelo indeferimento da requerida cessão dos descontos dos rendimentos auferidos pelo Recorrente, não julgando inconstitucional a aplicação ao presente processo do regime processual resultante do CPEREF, decisão com a qual o Recorrente, ora recorrente, discorda, e, por isso, propugna a sua revogação.
b) Entende o Recorrente que, in casu, a fundamentação do despacho recorrido se mostra contra a Lei e insuficiente, em termos tais que, não permitem ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da mesma, pelo que, o despacho recorrido é nulo, por força do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, que aqui se invoca para todos os efeitos legais
c) Sem prescindir, sempre se dirá que a decisão proferida pelo Tribunal a quo foi tomada sem razão ou fundamento material, contra a qual se insurge o ora Recorrente, entendendo que a mesma é injustificada e impunha decisão diferente, nos termos que doravante se tentarão demonstrar.
d) Decidiu o Tribunal a quo que a aplicação do regime do CPEREF ao caso concreto, que inviabiliza o acesso à exoneração do passivo restante, não viola o Principio da Igualdade preceituado no artigo 13º da CRP.
e) Em suma, desconhece-se nos seus termos essenciais o percurso lógico que foi feito pelo Mm.º Juiz a quo, no sentido de não julgar inconstitucional a aplicação ao presente processo do regime processual do CPEREF.
f) O que, por força do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, determina que o despacho judicial seja declarado nulo, o que aqui se requer para todos os efeitos legais.
g) Caso não se decida pela procedência da questão supra suscitada, sempre se dirá o seguinte quanto ao mérito da decisão sob recurso.
h) O Recorrente, no dia 18 de março de 2022, através do Requerimento refª ...43 alegou, em suma, a inconstitucionalidade da aplicação do CPEREF, por violação do princípio da igualdade, requerendo que fosse imediatamente determinada a cessação dos descontos dos rendimentos auferidos pelo Recorrente.
i) Ora, por despacho proferido a 07-12-2022, o Tribunal a quo entendeu não julgar inconstitucional a aplicação ao presente processo do regime processual resultante do CPEREF.
j) A exoneração do passivo restante, incidente do processo de insolvência, específico da insolvência das pessoas singulares, encontra-se regulado nos arts. 235º a 248º do CIRE, constituindo inovação no direito português já que não tinha paralelo no anterior CPEREF(Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência), por aquele revogado.
k) Este instituto, com a aplicação do regime do CPEREF, não tem cabimento legal na situação do Recorrente que, caso pudesse ter usufruído alguma vez da mesma, já não teria qualquer divida que lhe pudesse ser imputada.
l) Fundamentando esta figura jurídica, consignou o legislador, no preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03, que aprovou o CIRE, que este diploma "conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica", quando "de boa fé", transpondo, assim, para o nosso ordenamento a instituto do «fresh start» do direito Norte Americano.
m) Trata-se, portanto, de um benefício que constitui, para os insolventes pessoas singulares, uma medida de proteção, que se pode traduzir tanto num perdão de poucas como de elevadas quantias e montantes, exonerando-os dos seus débitos, com a contrapartida, para os credores, da perda correspondente dos seus créditos (assim, Acs. desta Relação de 23/10/2008, proc. 0835723, de 05/11/2007, proc. 0754986 e de 09/01/2006, proc. 0556158, todos publicados in www.dgsi.pt/jtrp, da Rel. de Lisboa de 13/02/2007, proc. 8767/2006-7, in www.dgsi.pt/jtrl e da Rel. de Évora de 31/05/2007, proc. 174/07-3, in www.dgsi.pt/jtre; no mesmo sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, in "Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado", Quid Juris, 2008, pg. 777 e segs. e Assunção Cristas, in "Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante", Themis, 2005, pgs. 165 e segs.).
n) Pois que decorridos que estejam 5 anos após o encerramento do processo a quase totalidade das obrigações do credor que não possam ser cumpridas nesse prazo extinguir-se-ão, tendo, assim, o devedor a possibilidade de começar de novo - fresh start - podendo ter esperança em recuperar a sua situação financeira e “libertar-se das suas obrigações vencidas” Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2009, 2ª edição.
o) O instrumento que a lei, nesse sentido, põe ao dispor do devedor é a exoneração do passivo restante, mecanismo cujo objetivo final é a extinção das dívidas e a libertação do devedor  de parte de seu passivo, de forma mais breve e leve que a prescrição tradicional3 Igualmente nesse sentido veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 16.04.2013 (Desembargador José Avelino Gonçalves) “O incidente de exoneração do passivo restante opera, processualmente, do seguinte modo: após o património do devedor pessoa singular ter sido liquidado para pagamento aos credores, ou decorridos cinco anos após o encerramento do processo, as obrigações que, apesar dessa liquidação ou decurso desse prazo, não puderem ser satisfeitas, em lugar de subsistirem, vinculando o devedor até ao limite do prazo de prescrição – 20 anos -, são consideradas extintas.
p) A ideia é, mediante certos pressupostos, o devedor passar a poder apenas dispor de um pouco do seu património, durante o período de cessão e entregar o restante ao processo de insolvência, na pessoa de um fiduciário, destinado a solver os credores ainda não satisfeitos, bem como, manter a sua atividade com produção de riqueza, que possibilite “o acertar de contas” com os seus credores.”
q) Acontece que, não obstante este instrumento ter sido criado a pensar em TODOS os devedores, certo é que, com a aplicação do CPEREF, o Recorrente nunca pôde usufruir de tal instituto, estando a ser objetivamente discriminado em relação a todos os que beneficiaram deste instituto.
A verdade é que o Recorrente está sob tutela dos presentes autos há mais de 20 anos!
r) Se tivesse beneficiado do instituto da exoneração do passivo restante, já tinha beneficiado do “fresh start” que este instituto proporciona. Com a aplicação do CEPEREF ao invés do CIRE, o Recorrente continua com a sua situação patrimonial bastante limitada.
s) Entende o Recorrente que a aplicação do CEPEREF é inconstitucional, violando diretamente o Principio da Igualdade, que se encontra previsto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
t) Conforme resulta do texto, o Recorrente não está a ser tratado com igualdade perante a lei relativamente a todos os devedores ativos no nosso ordenamento jurídico. Aliás, está a ser tratado desumanamente de forma desigual perante a lei, estando a ser privado do direito ao “fresh start” que o legislador transpôs para a nossa Lei. Direito esse de que, caso tivesse ao alcance do arguido requerer a Exoneração do Passivo Restante, já há muito tinha beneficiado!
u) O Despacho aqui alvo de recurso, salvo devido respeito, limita-se a indicar que “estando-se perante um processo iniciado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº53/2004, não são aplicáveis as normas do CIRE, concretamente a exoneração do passivo restante, prevista nos arts. 235º e ss.
v) Contudo, também refere que “É certo que a continuação da aplicação do regime do CPEREF acarreta para o Recorrente um regime patrimonial menos favorável do que aquele que eventualmente lhe resultaria a aplicação do CIRE, onde se prevê a possibilidade de, mediante a verificação de certos pressupostos, ao devedor poder ser concedida a exoneração do passivo restante”.
w) Ou seja, o Tribunal a quo reconhece que a aplicação do regime do CPEREF importa um tratamento desigual e menos favorável a devedores em relação ao CIRE, contudo, limita-se  a dizer que não é aplicável o CIRE onde o devedor poderia usufruir da exoneração do passivo restante assim que decorrido o prazo legal para o efeito. A justificação do Tribunal a quo só demonstra que, claramente, estamos perante uma clara violação do artigo 13º da CRP.
x) Caso fosse aplicado o CIRE, em vez do CPEREF ao Insolvente ou, caso o instituto da exoneração do passivo restante tivesse aplicabilidade também no caso concreto, o Insolvente não veria a sua situação patrimonial condicionada por mais de 20 anos. A aplicação deste regime (já revogado) tão mais gravoso que o CIRE, é uma clara violação do Principio da Igualdade constitucionalmente plasmado, sendo desta forma o Recorrente prejudicado e privado de um direito, precisamente o que aquele Principio Constitucional visa proteger.
y) Motivo pelo qual se requer que seja declarada a inconstitucionalidade da aplicação do DL n.º 132/93, de 23 de abril, neste caso concreto, por violar o Principio da Igualdade previsto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impedindo o Recorrente de lançar mão do regime da exoneração do passivo restante, requerendo-se ainda que seja imediatamente determinada a cessação dos descontos/apreensões ordenadas por este Tribunal aos rendimentos auferidos pelo Recorrente
    
Nestes termos e nos melhores de direito: Deve o presente recurso ser procedente e, em consequência, ser declarada a inconstitucionalidade da aplicação do DL n.º 132/93, de 23 de Abril, neste caso concreto, por violar o Principio da Igualdade previsto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa e privar o Recorrente de usufruir da Exoneração do passivo restante, determinando-se ainda a cessação dos descontos ordenados por este Tribunal aos rendimentos auferidos pelo Recorrente. ASSIM FARÃO V/EXAS. INTEIRA JUSTIÇA.
Não houve contra-alegações.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.

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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.

As questões a decidir são, assim, apurar da alegada nulidade do despacho recorrido e, na improcedência desta, apurar se a não aplicação, por força do artº 12º, nº 1, da Lei 53/2004, de 18 de março, do novo regime do CIRE (que contempla como novidade o instituto da exoneração do passivo restante) a processos que remontam ao CPEREF, nos quais se prolongam os descontos no vencimento, viola o princípio constitucional da igualdade plasmado no artº 13º da Constituição da República Portuguesa.

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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:

Os factos provados com relevância para a decisão do presente recurso são os constantes do relatório antecedente.
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B. Fundamentos de direito. 

O recorrente arguiu a nulidade do despacho, com base numa pretensa violação do disposto no artº 615º, nº1, alínea b), do CPC. Alegou que, no caso, a fundamentação do despacho recorrido se mostra contra a lei e insuficiente, em termos tais que não permitem a o destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito das mesmas.
As causas de nulidade da sentença (e dos despachos, ex vi artº 613º, nº3, do CPC) estão previstas no artº 615º do CPC:

Causas de nulidade da sentença:

1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.


As nulidades da decisão são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença, o que não é confundível com o erro de julgamento, ou sequer com um alegado erro na forma de processo.

Conforme se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17/12/2018, disponível em www.dgsi.pt:

Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC, e reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal.
Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronuncia ultra petitum.
Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” (Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.).
Diferentemente desses vícios, são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros ocorridos ao nível do julgamento da matéria de facto ou ao nível da decisão de mérito proferida na sentença/decisão recorrida, decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa.
Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, sendo que esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença (vícios formais), sequer do poder à sombra do qual a sentença é proferida, mas ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in iudicando, atacáveis em via de recurso (Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277).
Acresce precisar que conforme decorre do que se vem dizendo, os vícios da decisão da matéria de facto constituem erros de julgamento na vertente de “error facti” e como tal nunca constituem causa de nulidade da sentença com fundamento no art. 615º do CPC.
Na verdade, a matéria de facto encontra-se sujeita a um regime de valores negativos – a deficiência, a obscuridade ou a contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação -, a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação, não constituindo, por conseguinte, causa de nulidade da sentença, mas antes sendo suscetíveis de dar lugar à atuação pela Relação dos poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto operada pela 1ª Instância, nos termos do disposto nos n.º 1 e 2 do art. 662º do CPC (Ac. RC de 20/01/2015, Proc. 2996/12.0TBFIG.C1).”
Abrantes Geraldes (Recursos no novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª edição, página 139) refere que “É frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objeto do recurso que deve ser centrado nos aspetos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades-

Ora:
- A falta de especificação dos fundamentos de facto jamais pode confundir-se com a falta de prova ou mesmo com a falta de consideração de determinados factos; e mesmo a enunciação dos fundamentos de direito deve ajustar-se às concretas circunstâncias;
- A contradição entre os fundamentos e a conclusão e, mais ainda, a invocação de alegadas ambiguidades e obscuridades da sentença não pode servir para justificar a discordância quanto ao que foi decidido;
- A omissão de pronúncia deve limitar-se a questões que tenham sido alegadas ou que sejam de conhecimento oficioso, não servindo as alegações para introduzir novas questões que não foram submetidas ao tribunal a quo;
- O excesso de pronúncia, ao invés, terá que considerar se as questões foram ou não foram alegadas ou se são ou não de conhecimento oficioso;
- A condenação em quantidade ou em objeto diverso do pedido deve ser resultado de uma séria comparação entre o que consta da petição e da sentença.
A alegação do recorrente carece em absoluto de fundamento. A questão decidenda é estritamente de direito, não dependendo da concreta factualidade. O despacho recorrido explicitou as razões pelas quais entendeu que não havia violação do princípio da igualdade, e pelas quais concluiu que o regime da exoneração do passivo não era aplicável no caso concreto. A discordância com o decidido não se confunde com qualquer dos vícios referidos no artº 615º do CPC. A solução a que o tribunal recorrido chegou poderá, em tese, consubstanciar erro de julgamento, mas nunca nulidade do despacho nos termos em que o artº 615º do CPC configura a mesma.
Improcede, assim, a arguida nulidade.
Insurge-se o recorrente, depois, contra a aplicação do CPEREF, ao invés do CIRE, reputando tal aplicação de inconstitucional, por alegada violação do princípio da igualdade, dado que impede o apelante de lançar mão do instituto da exoneração do passivo restante.

Vejamos se é assim.

O aqui recorrente foi declarado falido por sentença de 7 de abril de 2000, transitada em julgado, ainda no âmbito do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, doravante CPEREF, aprovado pelo DL nº 132/93, de 23 de abril.
O diploma preambular do DL nº 53/2004, de 18 de março, que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE, refere o seguinte:
45 - O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante’.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.                                                         .
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.


Esclareça-se que a aplicação deste regime é independente da de outros procedimentos extrajudiciais ou afins destinados ao tratamento do sobreendividamento de pessoas singulares, designadamente daqueles que relevem da legislação especial relativa a consumidores.

Sem embargo das alterações legislativas subsequentes (já 17), designadamente quanto ao encurtamento do período de cessão para 3 anos, e que para aqui são irrelevantes, verifica-se que este instituto, desconhecido do regime anterior, está aberto a todas as pessoas singulares (cfr. Luís Menezes Leitão, in A recuperação económica dos devedores, Almedina, 2019, pág. 125).
“A declaração da falência privava o falido da administração e da disposição dos seus bens, que passavam a constituir a massa falida. Se comerciante, implicava também o encerramento dos seus livros e a sua inibição para o exercício do comércio, assim como para a ocupação de órgãos administrativos em sociedades comerciais ou civis, associações privadas de atividade económica, empresas públicas ou cooperativas (artº 148º). Esses efeitos cessavam, por ordem judicial, nas hipóteses de celebração de acordo extraordinário, pagamento ou remissão total de todos os créditos reconhecidos, decurso de 5 anos da decisão que apreciar as contas do liquidatário (artº 238º). Levantados os efeitos legais da falência e extintos os efeitos penais das condenações eventualmente sofridas pelo falido, o juiz decretaria a sua reabilitação.” – Marcus Vinicius Alcântara Kali in “A evolução das falências e insolvências no Direito português”, Revista de Direito Comercial, 2017, nº2, página 378.
O revogado CPEREF já conhecia as soluções da cessação dos efeitos da falência em relação ao falido (artº 238º) e da reabilitação do falido (artº 239º), as quais já permitiam atenuar a severidade dos efeitos da falência em relação ao falido, tendo em vista a reinserção social deste (cfr. Maria do Rosário Epifânio in “os efeitos substantivos da falência”, pág. 163-182, 2000, das Publicações Universidade Católica).
O artº 12º do Código Civil consagra o princípio geral da aplicação das leis no tempo, estatuindo que “A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.”
Consagra-se na primeira parte deste artigo a solução geral da irretroatividade da lei, “sem prejuízo de que em favor da lei nova se poderá invocar, quase sempre, uma maior adequação, exigências de segurança inscritas no princípio do Estado de Direito e associadas à elementar tutela da estabilidade da vida social justificam a determinação legal de que, dispondo para o futuro, à lei não seja dado, em princípio, infletir sob o passado, imprimindo nova regulamentação a factos, situações ou efeitos já totalmente esgotados” – Maria João Matias Fernandes in  Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 59.
O artº 12º do DL 53/2004, de 18 de março, estabeleceu um regime transitório, nos termos do qual “o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência continua a aplicar-se aos processos de recuperação da empresa e de falência pendentes à data de entrada em vigor do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.
Baptista Machado in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, página 230, refere que “Estas disposições transitórias podem ter caráter formal ou material. Dizem-se de direito transitório formal aquelas disposições que se limitam a determinar qual das leis, a LA ou a LN, é aplicável a determinadas situações. São de direito transitório material aquelas que estabelecem uma regulamentação própria, não coincidente nem com a LA nem com a LN, para certas situações que se encontram na fronteira entre as duas leis”.
A consagração do instituto de exoneração do passivo restante, introduzida pelo CIRE, consubstanciou novidade legislativa.
Paulo Mota Pinto in “Exoneração do Passivo Restante: Fundamento e Constitucionalidade”, III Congresso de Direito da Insolvência, Coordenação de Catarina Serra, abril de 2015, refere que “Para as pessoas singulares, a exoneração do passivo restante tem como finalidade permitir a recuperação da liberdade económica do devedor em caso de sobre-endividamento, e, assim, mediatamente também ainda a proteção do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, desde que o devedor não tenha incorrido em condutas culposas relacionadas com a insolvência, e que esta não seja uma situação recorrente. Nessa medida, pode dizer-se que a exoneração do passivo restante serve ainda, da perspetiva do devedor, a realização de valores constitucionalmente consagrados, como a liberdade económica e o direito ao desenvolvimento da personalidade. É, efetivamente, essa a finalidade da liberação do devedor não culposo, para lhe permitir um “novo começo”. O que se compreende tanto mais quanto a insolvência pode ser devida a circunstâncias pelas quais o devedor não é censurável.”

É certo que o regime do CPEREF, com base no qual o recorrente foi declarado falido, ao não contemplar a possibilidade de exoneração do passivo restante, como possibilita o CIRE, se traduz num regime menos favorável para o ora apelante. Mas, traduzir-se-á tal numa violação do princípio constitucional da igualdade?
O Tribunal Constitucional entendeu já que “Não oferece dúvidas que a alteração frequente das leis pode perturbar a confiança das pessoas, sobretudo quando as suas situações jurídicas sejam objetivamente lesadas pela entrada em vigor de uma nova lei que pretenda dispor sobre elas de forma retroativa. Todavia, a proteção da confiança dos particulares não pode conduzir à impossibilidade de qualquer alteração das leis em vigor, isto é, a segurança jurídica não pode caracterizar-se simplesmente pela imutabilidade e cristalização do direito legislado. (…)
Assim sendo, por um lado, o legislador ordinário não pode estar espartilhado por uma absoluta proibição de retroatividade de normas jurídicas; por outro lado, o legislador está obrigado a não desrespeitar arbitrariamente a confiança dos cidadãos quando decide modificar os regimes jurídicos.
Mas nem sempre é fácil delimitar o alcance prático da proteção da confiança nas situações de sucessão de leis no tempo fora dos casos em que existe uma norma da Constituição a estabelecer uma proibição expressa de retroatividade, como sucede no caso das leis penais (artigo 29º, nº1 a 4, da CRP), das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (artigo 18º, nº3, da CRP) e das leis fiscais (artigo 103º, nº3, na redação da LC 1/97).
De entre as várias hipóteses de retroatividade, as situações de retrospetividade (ou retroatividade inautêntica) – em que a norma jurídica incide sobre situações ou relações jurídicas já existentes embora a nova disciplina pretenda ter efeitos para o futuro – são das mais frequentes e as que colocam problemas mais difíceis de delimitação da margem de conformação que deve ser reconhecida ao legislador ordinário. “É que, do Código Civil ao Código Comercial, do Código do Trabalho ao Direito da Família, não há praticamente quaisquer hipóteses de alteração legislativa sem que, com isso, de alguma forma se afetem situações ou posições constituídas no passado e que permanecem à entrada em vigor da nova lei. Vedar a possibilidade de o legislador alterar a legislação em vigor ou obrigá-lo a considerar, excluir ou tratar diferenciadamente todas as situações provindas do passado seria fragmentar de uma forma praticamente inadmissível a ordem jurídica ordinária, incluindo à luz do princípio da igualdade (sublinhado nosso), e degradar inconstitucionalmente a própria posição do legislador democrático” – Jorge Reis Novais, em “Os princípios estruturantes da República Portuguesa”, páginas 266-267.” – vide Acórdão 335/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, tal como os demais infra citados.
“A lei nova, em princípio, só tem eficácia para o futuro, pelo que, como regra, apresenta eficácia prospetiva, constituindo exceção os casos de eficácia retroativa. O fundamento do princípio da não retroatividade é geralmente encontrado na necessidade de segurança jurídica, na proteção da confiança, na estabilidade do direito, podendo também encontrar apoio na ideia de que a lei só é obrigatória depois de regularmente elaborada e publicada. “Destruir o passado, fazer com que aquilo que existiu não tenha existido, é feito que, manifestamente, ultrapassa em muito as forças do homem” (E. Pires da Cruz, Da aplicação das leis no tempo, 1940, páginas 200 e seguintes).
Para o princípio da aplicação imediata da lei nova também se invocam vários fundamentos. Desde o império que dimana da lei nova, como a única vigente no momento da aplicação, passando pela superioridade das leis novas sobre as leis antigas (pelo progresso que, em princípio, revelam), pelo facto de a lei apenas proteger no presente os direitos dos indivíduos, de modo algum os garantindo no futuro, até à razão, decisiva para Paul Roubier, da unidade da legislação num dado país, sob pena de tudo se saldar numa confusão inextricável nas relações jurídicas (Le Droit transitoire, Dalloz e Sirey, 1060, 2ª edição, pág. 223).
Os grandes escolhos na aplicação das leis que se sucedem no tempo levantam-se nos casos de situações jurídicas duradouras, que perduram, de “trato sucessivo”, como lhes chama A. Rodrigues Queiró (Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, vol. I, página 516 e seguintes).
Escreve, a esse propósito, Galvão Telles: “Sucede, porém, que a lei nova, não raro, encontra diante de si situações da vida, relações sociais, que vêm já do passado, nele lançam as suas raízes. Isto pode pôr limites e condições à imediata aplicação da lei publicada, a fim de que se não perturbe a necessária estabilidade daquelas situações ou relações. Daí a possível sobrevivência do Direito anterior, que se prolonga na a sua aplicação mesmo para além do momento em que foi revogado. É o problema extremamente difícil do Direito intertemporal, ou da aplicação da lei no tempo, problema que consiste em saber, publicadas sucessivamente duas leis, a segunda das quais revoga a primeira, qual delas é a que se aplica a situações que se colocam, por assim dizer, na fronteira temporal entre as duas” (Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1988, vol. I, pág. 209). – vide Acórdão do Tribunal Constitucional 225/2003.
Mas a questão continua a colocar-se, ou seja, a solução legislativa de considerar aplicável o CPEREF, conforme resulta do artº 12º do DL 53/2004, de 18 de março, que estabeleceu um regime transitório, nos termos do qual “o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência continua a aplicar-se aos processos de recuperação da empresa e de falência pendentes à data de entrada em vigor do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, não configurará uma violação do princípio da igualdade, consagrada no artº 13º da Constituição da República Portuguesa?
E a resposta é negativa, como bem decidiu o tribunal recorrido.
O Tribunal Constitucional tem reiteradamente entendido que a sucessão de leis no tempo, e concretamente a existência passada ou futura de regimes mais favoráveis, não acarreta ofensa do princípio da igualdade, pela circunstância de originarem regimes diversos, decorrentes dessa sucessão temporal de leis – vide Acórdão do Tribunal Constitucional 99/2004.
“(...) o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, impede que uma dada solução normativa confira tratamento substancialmente diferente a situações no essencial semelhantes. No plano formal, a igualdade impõe um princípio de ação segundo o qual as situações pertencentes à mesma categoria essencial devem ser tratadas da mesma maneira. No plano substancial, a igualdade traduz-se na especificação dos elementos constitutivos de cada categoria essencial. A igualdade só proíbe, pois, diferenciações destituídas de fundamentação racional, à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais [cf., nomeadamente, os Acórdãos n.ºs 39/88, 186/90, 187/90 e 1888/90, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol. (1988), pp. 233 e segs., e 16.º vol. (1990), pp. 383 e segs. 395, e segs. e 411 e segs., respetivamente].
Contudo, no caso em apreciação, a desigualdade invocada pela recorrente não resulta de um qualquer critério considerado em si discriminatório acolhido por uma norma jurídica. Com efeito, a desigualdade no presente processo decorre, na perspetiva da recorrente da sucessão no tempo de regimes legais relativos à fixação da pensão de aposentação requerida (ou seja, do critério legal relativo à aplicação da lei no tempo). A recorrente sustenta que, dado ter requerido a pensão no domínio da vigência de um determinado regime que lhe é mais favorável (e que foi aplicado a colegas de profissão na mesma situação), a pensão a atribuir só poderia ser fixada de acordo com tal regime, não sendo, portanto, aplicável a lei vigente (desfavorável em comparação com aquele regime) no momento em que o despacho que reconheceu o direito à pensão foi proferido.
Colocada a questão neste plano, importa ter presente que o legislador tem uma ampla liberdade no que respeita à alteração do quadro normativo vigente num dado momento histórico. Na verdade, o legislador, de acordo com opções de política legislativa tomadas dentro de uma ampla zona de autonomia, pode proceder às alterações da lei que se lhe afigurarem mais adequadas e razoáveis, tendo presente, naturalmente, os interesses em causa e os valores ínsitos na ordem jurídica.
Uma alteração legislativa para operar, consequentemente, uma modificação do tratamento normativo conferido a uma dada categoria de situações. Com efeito, as situações abrangidas pelo regime revogado são objeto de uma valoração diferente daquela que incidirá sobre as situações às quais se aplica a lei nova. Nesse sentido, haverá situações substancialmente iguais que terão soluções diferentes.
Contudo, não se pode falar neste tipo de casos de uma diferenciação verdadeiramente incompatível com a Constituição. A diferença de tratamento, decorre, como resulta do que se disse, da possibilidade que o legislador tem de modificar (revogar) um quadro legal vigente num determinado período. A intenção de conferir um diferente tratamento legal à categoria de situações em causa é afinal a razão de ser da própria alteração legislativa.
O entendimento propugnado pela recorrente levaria à imutabilidade dos regimes legais, pois qualquer alteração geraria sempre uma desigualdade. Ora, tal posição não é reclamável pelo princípio da igualdade no quadro constitucional vigente.” – vide Acórdão nº 580/99 do Tribunal Constitucional.
No acórdão 39/88, o mesmo Tribunal Constitucional havia decidido que “O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo constitucionalmente relevantes.
Porém, o Tribunal Constitucional também tem afirmado que só poderá haver violação do princípio da igualdade quando da fixação do tempo de aplicação de uma norma decorrerem tratamentos desiguais para situações iguais e sincrónicas, ou seja, que o princípio da igualdade não opera diacronicamente.” – Acórdão do Tribunal Constitucional 303/2009.
Na sua mais recente orientação em matéria de controlo da liberdade de conformação do legislador à luz do princípio da igualdade, tem este Tribunal separado dois níveis de análise e graus diferenciados quanto à intensidade do escrutínio. Segundo a síntese do Acórdão nº 157/2018:
No primeiro nível, o princípio da igualdade surge convocado como condição da possibilidade de estabelecer a distinção introduzida pela norma questionada, decorrendo a sua violação da ausência de um fundamento racional suficientemente justificativo da própria opção de diferenciar […].
No segundo nível, resultante da integração na estrutura do princípio da igualdade de dimensões típicas do princípio da proibição do excesso, tem-se especialmente em vista o escrutínio da medida ou da extensão em que a diferenciação estatutária entre as duas categorias em causa surge concretizada [no regime diferenciador: assumindo a respetiva ratio, importará verificar se o legislador não demonstra] que a prossecução de tal desiderato tornasse necessário o afastamento integral [do regime comum].[A configurar-se] uma medida menos diferenciadora, propiciadora de um tratamento mais igualitário entre as duas categorias […] sob comparação, e suscetível de alcançar o mesmo desiderato, a extensão em que a diferenciação surge concretizada no [regime em análise] será, em vista dos próprios fins que lhe subjazem, desnecessária, tornando-se, nesta aceção, incompatível com o “princípio da proporcionalidade, enquanto decorrência do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição)”. – Acórdão do Tribunal Constitucional 733/2021.
Preliminarmente, importa salientar que, tal como se entendeu no Acórdão nº 487/2008, o devedor insolvente não é titular de um direito fundamental, constitucionalmente reconhecido, de liberação do seu passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência. Diferentemente, trata-se de uma matéria em que o legislador ordinário goza de uma ampla margem de conformação  legislativa, posto que, a esse respeito, e no que ora particularmente releva, não consagre soluções normativas que se revelem arbitrárias – por implicarem diferenciações de tratamento sem uma justificação razoável ou a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais – ou discriminatórias, por traduzirem diferenciações de tratamento assentes em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias. (…) Não existindo, em qualquer caso, uma imposição constitucional no sentido de o legislador consagrar aquela possibilidade, este é livre de optar por prever ou não tal mecanismo e, prevendo-o, de fazer depender a efetiva concessão da exoneração do passivo restante da verificação de determinados requisitos e fundamentos.
As considerações supra expostas têm plena aplicação ao caso concreto, e subscrevemos as mesmas. Com efeito, “Não se verificando neste domínio normativo qualquer exigência constitucional de retroatividade da lei nova, a opção pela disposição só para o futuro - que confirma o entendimento intuitivo de “que em todo o preceito jurídico está implícito um “de ora avante”, um “daqui para o futuro” (J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, página 225) – apresenta-se como uma solução racional e, de qualquer forma, situada dentro da margem de liberdade concedida ao legislador.” – acórdão 99/2004 do Tribunal Constitucional.
Em síntese conclusiva, diremos que o excurso antecedente demonstra a sem razão do recorrente à luz do pacífica e reiteradamente decidido pelo Tribunal Constitucional. Com efeito, o devedor não é titular de um direito fundamental, constitucionalmente reconhecido, de liberação do seu passivo que não seja integralmente pago no processo de falência ou de insolvência, tratando-se de uma matéria em que o legislador ordinário goza de uma ampla margem de conformação  legislativa; só poderá haver violação do princípio da igualdade quando da fixação do tempo de aplicação de uma norma decorrerem tratamentos desiguais para situações iguais e sincrónicas, ou seja, o princípio da igualdade não opera diacronicamente; a sucessão de leis no tempo, e concretamente a existência passada ou futura de regimes mais favoráveis, não acarreta ofensa do princípio da igualdade, pela circunstância de originarem regimes diversos, decorrentes dessa sucessão temporal de leis; a diferença de tratamento, decorre, como resulta do que se disse, da possibilidade que o legislador tem de modificar (revogar) um quadro legal vigente num determinado período. A intenção de conferir um diferente tratamento legal à categoria de situações em causa é afinal a razão de ser da própria alteração legislativa; a aplicação do instituto de exoneração do passivo restante exclusivamente a processos iniciados na vigência do CIRE situa-se dentro da margem de liberdade concedida ao legislador.
Bem andou, pois, o tribunal recorrido ao decidir pela inexistência de violação do princípio constitucional da igualdade.

Improcede, assim, o recurso interposto.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
Guimarães, 2 de março de 2023.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1ª Adjunta: Maria Eugénia Pedro.
2º Adjunto: Pedro Maurício.