Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7084/19.6T8GMR–A.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO MORTAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
BENEFICIÁRIOS LEGAIS
HERDEIROS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - O que define a competência do juízo do trabalho é a determinação sobre se estamos ou não perante a reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho a que o trabalhador e os seus familiares têm direito nos termos do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho.
II – Os juízos do trabalho são competentes em razão da matéria quando está em causa a típica reparação por acidente de trabalho e nessas circunstâncias são igualmente competentes para conhecer de eventual indeminização por dano não patrimonial peticionado pelos beneficiários do sinistrado, situação que não se verifica no caso dos autos.
III - Não tendo os Autores a qualidade de beneficiários legais do sinistrado, nem estando em causa a atribuição de uma pensão por morte, teremos de concluir que os pedidos formulados saem fora do âmbito laboral, configurando uma típica ação de responsabilidade civil por factos ilícitos semelhante a tantas outras, com a particularidade dos danos resultarem da ocorrência de um acidente de trabalho com culpa do empregador, cuja apreciação e julgamento compete aos tribunais comuns.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

AA e BB, na qualidade de pais do falecido sinistrado CC, intentaram a presente ação especial para efetivação de direitos emergentes de acidente de trabalho contra a EMP01... – Companhia de Seguros, S.A., pedindo a sua condenação no pagamento de:
€ 2.624,50 a titulo de danos patrimoniais resultantes das despesas com o funeral;
€140.000,00 a titulo de indemnização por Dano morte do sinistrado CC;
€20.000,00 titulo de indemnização por Dano pré-morte do sinistrado, ou seja, danos não patrimoniais sofridos pela vítima imediatamente antes da morte;
€ 80.000,00 a titulo de danos não patrimoniais/morais sofridos pelos Autores com a morte do seu filho,
Juros de mora à taxa legal de 4% a contar desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Tal como se sintetiza na decisão recorrida, alegam em resumo que são pais e únicos herdeiros de CC, falecido em ../../2019 no âmbito de um acidente de trabalho ocorrido nessa data, causado por atuação culposa da sua entidade empregadora, “EMP02..., Lda.”, nomeadamente, pela violação grave e grosseira de normas de segurança e saúde no trabalho.
Na tentativa de conciliação realizada em 24.02.2022, participaram, entre os demais, os ora autores, com “Entidade Responsável: EMP01... - Companhia de Seguros, SA”, e “Entidade Empregadora: EMP02..., Lda.”, tendo os primeiros declarado que “o seu filho CC, no dia 11 de Dezembro de 2019, pelas 09:10 horas, em ..., ..., quando se encontrava na obra de construção de umas moradias, segundo lhes foi dito, uma parede de alvenaria que tinha sido construída, de uma forma imprevista, tombou e atingiu o seu filho e um colega, tendo o seu filho tido morte imediata no local”.
Face ao exposto e uma vez que não preenchem os requisitos previsto no artº 49º, nº 1, al. d), 2 do Lei 98/09 de 04/09, reclamam: a) As despesas com funeral que tiveram que suportar; b) a quantia ainda não valorizada a título de danos morais e patrimoniais, uma vez que entendem ter havido violação gravosa e culposa das regras de segurança higiene e saúde no trabalho por parte da entidade empregadora e, c) - a quantia de € 40,00 a título de despesas de transportes (…).”
“A entidade responsável aceita o pagamento por subsídio de despesas de funeral até ao máximo de € 1.917,34 mediante a imprescindível exibição do respetivo recibo”.
A entidade empregadora disse que “(…) não aceita o pagamento de qualquer quantia uma vez que não houve violação das regras de segurança e saúde no trabalho” da sua parte.”
Regularmente citada a Ré Seguradora apresentou contestação e invoca as exceções da ineptidão da petição inicial por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir e a incompetência absoluta em razão da matéria. Quanto a esta última exceção defende a Ré que os Autores não têm a qualidade de beneficiários legais do seu malogrado filho como sinistrado de acidente de trabalho, pelo que deveriam formular os seus pedidos no tribunal cível, comum ou, caso exista, no processo crime em que sejam arguidos a entidade patronal e seus legais representantes.
Conclui pela incompetência absoluta, em razão da matéria, deste Tribunal, e em decorrência da sua absolvição da instancia.
Os Autores vieram responder pugnando pela improcedência das invocadas exceções, sendo que no que respeita à incompetência material, a relação material controvertida, descrita na petição inicial, comporta os AA. (familiares da vítima mortal no acidente de trabalho) e a seguradora (responsável por transmissão obrigatória - artigo 79.º da Lei n.º 98/2009), cuja resolução jurídica a Lei n.º 62/2013, de 26.08, atribui aos Tribunais/Juízos do Trabalho, no exercício da sua competência especializada, citando a este respeito o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-02-2021, processo n.º 2547/20.3T8BRG.G1.
Foi proferido despacho saneador-sentença no qual se julgou o Juízo do Trabalho absolutamente incompetente para conhecer dos pedidos, com exceção do respeitante às despesas de funeral, tendo a Ré Seguradora sido absolvida da instância.

Inconformada com esta decisão, dela vieram os Autores interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães tendo terminado as suas alegações com as seguintes
 “CONCLUSÕES:
1. Interpõe-se o presente recurso, nos termos dos artigos 79.º, al. b), e 79.º - A, n.º 2, al. b), ambos do CPT, e 629.º do CPC, para impugnação do douto despacho proferido pelo Tribunal a quo, que julgou “este tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer dos identificados pedidos, absolvendo da instância a ré Seguradora EMP01... – Companhia de Seguros, S.A., relativamente aos mesmos.”
2. Segundo o Tribunal a quo, os Recorrentes poderão ter direito aos pedidos que deduziram na petição inicial - Danos patrimoniais resultantes das despesas com o funeral no montante de 2.624,50€; Dano morte do sinistrado CC num montante nunca inferior a 140.000,00€; Dano pré-morte do sinistrado, ou seja, danos não patrimoniais sofridos pela vítima imediatamente antes da morte, num montante nunca inferior a 20.000,00€; Danos não patrimoniais/morais sofridos pelos Autores com a morte do seu filho, num montante nunca inferior a 80.000,00 euros; Juros de mora à taxa legal de 4% a contar desde a data da citação da Ré Seguradora até efetivo e integral pagamento; E ainda ser condenada a Ré em custas -, mas entende que o Juízo do Trabalho não é o Juízo competente para conhecer deles, porquanto estes pedidos não se enquadram no âmbito das prestações reparatórias tipificadas no regime de reparação de danos emergentes de acidente de trabalho, estabelecido na Lei n.º 98/2009, de 04.09, na medida em que os Recorrentes não foram reconhecidos como beneficiários legais do sinistrado falecido - porque auferem rendimentos acima do valor da pensão social.
3. Contudo, e no nosso entendimento, é precisamente neste ponto que reside o equívoco da douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, pois, e ao contrário do defendido pelo Tribunal a quo, o facto de aos Recorrentes não ter sido reconhecido a qualidade de beneficiários legais do falecido sinistrado, em nada interfere com a determinação da competência material do Tribunal a quo para o conhecimento da presente ação.
4. Neste sentido, o Tribunal a quo procedeu a uma interpretação errada das normas que constituíram o fundamento da sua decisão, violando as seguintes normas jurídicas: artigos 38º, nº 1, e 126.º, n.º 1, al. c), ambos da LOSJ, e artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 04.09.
5. Nos termos do disposto no artigo 38º, nº 1, da LOSJ, a competência fixa-se no momento em que a ação é proposta, face aos contornos que o litígio apresente à data da propositura da ação.
6. É entendimento jurisprudencial pacífico que a competência dos tribunais em razão da matéria (ou jurisdição), como pressuposto processual que é, afere-se em função da relação material controvertida, ou seja, em função dos termos em que é formulada a pretensão do Autor, incluindo os seus fundamentos - cfr. Acórdãos do STJ de 18.11.2004 (Relator Salvador da Costa), 07.04.2005 (Relator Araújo de Barros), 28.02.2008 (Relator Fonseca Ramos), 13.03.2008 (Relator Sebastião Póvoas), 12.02.2009 (Relator Paulo Sá), 06.05.2020 (Relator Santos Bernardino), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
7. Dispõe o normativo inserto no artigo 64° do CPC (em consonância com o artigo 211º da CRP) que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”, acrescentando o artigo 65°, do mesmo diploma legal, que, “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.”.
8. Dito isto, preceitua o artigo 126º, n.º 1, al. c), da LOSJ, no que respeita à competência cível dos tribunais de trabalho, que “1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível: (…) c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;” (negrito e sublinhado nossos).
9. No caso dos acidentes de trabalho, a Lei n.º 98/2009, de 04.09, tem plasmada a regulamentação do regime de reparação dos acidentes de trabalho e de doenças profissionais, encontrando-se impresso no artigo 18.º n.º 1 que, “Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.” (negrito e sublinhado nossos).
10. Os Recorrentes invocam, como causa de pedir, um acidente que vitimou o filho de ambos, quando prestava trabalho por conta, sob as ordens, direção e fiscalização da entidade empregadora, ou seja, quando a vítima prestava trabalho subordinado, o que constituí um acidente de trabalho, na qualificação que lhe é dada pelo artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 04.09, fundamentando a presente ação na responsabilidade civil subjetiva da entidade empregadora, que não cumpriu com as regras de segurança e saúde no trabalho.
11. Tanto a factualidade alegada como o pedido de condenação com que os Recorrentes finalizam o seu articulado inicial traduz, a nosso ver, e sem dúvida, que o direito reclamado pelos Recorrentes se constituiu a partir do sinistro ocorrido no âmbito de uma relação de trabalho e por causas imputáveis, a título de culpa, à entidade empregadora.
12. Estando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil subjetiva, não está vedado ao trabalhador ou aos seus familiares, em caso de morte daquele, a possibilidade de se verem ressarcidos nos termos gerais, designadamente, quanto aos danos não patrimoniais/morais, estando,  inclusivamente, tais danos cobertos pela Lei dos Acidentes de Trabalho (artigo 18.º da LAT), sendo, para tal, materialmente competente o Tribunal a quo, nos termos conjugados dos artigos 18.º da Lei n.º 98/2009, de 04.09, e al. c), do n.º 1, do artigo 126.º, da LOSJ.
13. Assim tem decidido, de forma maioritária, a nossa jurisprudência. Da análise feita às decisões que foram sendo proferidos pelos nossos Tribunais superiores ao longo dos últimos anos relativamente a situações idênticas à dos presentes autos, verificou-se que existem duas correntes jurisprudenciais.
14. Uma primeira, em que não sendo os Recorrentes, enquanto pais do sinistrado falecido, considerados beneficiários legais deste, nos termos da Lei dos Acidentes de Trabalho, por não preencherem os  requisitos aí previstos, nomeadamente em termos de rendimentos, a competência para julgar a ação em que se peticiona o pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo sinistrado falecido, e por eles próprios, com fundamento na inobservância das regras sobre saúde e segurança no trabalho, pertence ao tribunal comum.
15. E uma segunda, que é a corrente jurisprudencial maioritária, e a perfilhada pelos Recorrentes, que, nestas mesmas situações, e independentemente de ter sido reconhecido, ou não, aos familiares do sinistrado falecido a qualidade de beneficiários legais deste, vai no sentido de atribuir a competência os juízos de trabalho, sustentando, para tal, e regressando à letra da lei, que as normas do regime dos acidentes de trabalho sobre a limitação de danos indemnizáveis, e que de resto prevêem expressamente a atendibilidade de danos não patrimoniais de familiares (cfr. artigo 18.º, n.º 1, LAT), não são normas que tenham sequer a intenção indireta de regular a competência dos tribunais.
16. Segundo esta corrente jurisprudencial, que se adere, um pedido de indemnização por danos não patrimoniais resultantes de acidente de trabalho é sem dúvida uma questão emergente de acidente de trabalho, que implica, necessariamente, a análise do acidente de trabalho e das consequências que dele resultaram para os Recorrentes, análise que, inequivocamente, cai ainda dentro da alçada atribuída aos tribunais de trabalho.
17. Em bom rigor, estando expressamente previsto no artigo 18.º, n.º 1, da LAT, a ressarcibilidade de danos não patrimoniais como os reclamados, julgamos um exercício um pouco forçado retirar de normas que limitam o âmbito da indemnização por acidentes de trabalho uma interpretação restritiva de um enunciado legal que aponta um sentido muito mais amplo.
18. Outra razão que subjaz à atribuição da competência material ao Juízo do Trabalho, é o reconhecimento da maior preparação técnico-jurídica de que o magistrado de um juízo especializado estará dotado, porque mais vocacionado para conhecer de causas que, por lhe estarem a priori atribuídas e com elas diariamente se ocupar, lhe aumentarão o saber advindo da experiência, em detrimento de um juízo de competência residual e genérica –neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 22.06.2023, que remete para os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2019 e 05.04.2022, Acórdão da Relação de Coimbra, datado de 22.06.2021, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 23.03.2023, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
19. Mas mais, também razões de economia processual, de eficiência e eficácia do sistema, bem como de harmonia no julgar, aconselham esta solução – de se consideraram materialmente competentes os juízos do trabalho -, até porque “…mal se compreenderia que tivesse o trabalhador/tomador/beneficiário do seguro de lançar mão de duas ações em duas jurisdições distintas para obter o total ressarcimento dos danos que entende ter sofrido. Tal incongruência seria ainda maior quando se verifica que a decisão da ação na qual fosse pedir apenas os danos não patrimoniais estaria totalmente dependente da decisão a proferir na ação de reparação do acidente de trabalho, uma vez que para aferir da existência do dano se teria primeiramente de apurar quando ocorreu a alta, se deve ou não sero autor sujeito aos tratamentos que reclama e que a ré se terá negado aprestar e qual a incapacidade de que se mostra afetado.“ – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 15.06.2023.....
20. Sendo certo, que não só se encontra previsto no Código de Processo Trabalho a tramitação do processo relativo ao acidente laboral, como também, todos os procedimentos destinados a ultimar a extinção e/ou a efetivação de direitos de terceiro conexos com o acidente de trabalho, prevendo que essas ações corram por apenso ao processo resultante do acidente, caso o haja – cfr. artigo 154º do CPT. 21. No fundo, e seguindo o entendimento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 30.04.2019, ...processo com o n.º.100/18.0T8MLG-A.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, .....
22. ...).
23. ....
24. Por fim, refira-se ainda o seguinte, defende o Tribunal a quo que a competência material do Tribunal de Trabalho, prevista no artigo 18.º, n.º 1, da LAT, é uma típica competência por conexão e não uma competência própria e direta em função da matéria da causa - o que como se viu acima, não é o entendimento maioritariamente seguido quer pela jurisprudência, quer pela doutrina -, e, por via disso, o Tribunal de Trabalho só será competente, por conexão, se a parte quiser fazer valer, para além do seu direito à indemnização por danos morais, o direito à reparação especialmente prevista na lei laboral.
25. Ora, seguindo este entendimento – o que apenas aqui se equaciona por mero dever de patrocínio -, então sempre a referida competência por conexão se verificaria, na medida em que, como o próprio Tribunal a quo considerou, na parte final do douto despacho de que se recorre, “Quanto ao pedido deduzido contra a ré de pagamento da quantia de €2.624,50 a título de danos patrimoniais resultantes das despesas com o funeral suportadas pelos pais do sinistrado, salvo melhor opinião, este Tribunal de Trabalho é competente em razão da matéria para sua apreciação (…)”.
26. Ou seja, se o Tribunal a quo é materialmente competente para julgar o pedido relacionado com as despesas suportadas pelos Recorrentes com o funeral do sinistrado falecido, então, e por conexão, sempre seria materialmente competente para julgar os restantes pedidos deduzidos pelos Recorrentes contra a Recorrida, pois os Recorrentes pretendem fazer valer um direito à reparação tipicamente contemplado na lei laboral – pagamento despesas funeral -, e cumulativamente, e por conexão, o direito à indemnização por danos morais (também contemplado na lei laboral – artigo 18.º da LAT).
27. Em suma, tendo presente todo o supra exposto, dúvidas inexistem que a competência material para a apreciação da presente ação pertence ao Tribunal a quo, e não aos tribunais comuns, porquanto, e como oportunamente se referiu, no presente caso, o pedido e a causa de pedir, que é o que define a competência material de um tribunal, têm quer a montante quer a jusante um acidente de trabalho, determinando a competência material do Tribunal a quo para julgar a presente ação, nos termos conjugados dos artigos 18.º da Lei n.º 98/2009, de 04.09 e al. c) do n.º 1 do artigo 126.º da LOSJ, entendimento que, reitere-se, é o maioritariamente seguido pela nossa jurisprudência, inclusive, o do douto e mui nobre Tribunal ad quem.
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que declare o Juízo do Trabalho ... competente para conhecer da totalidade dos pedidos formulados pelos Recorrentes.
A Ré, apresentou contra-alegação sustentando a manutenção do julgado.   
*
Admitido este recurso na espécie própria, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.
Foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do C.P.T., tendo a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitido douto parecer, no qual conclui pela improcedência da apelação.
Os Recorrentes responderam ao parecer, manifestando a sua discordância e pugnando pela procedência do recurso.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II – DO OBJECTO DOS RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente (artigos 608º n.º 2, 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, que aqui se não detetam, a única questão que se coloca à apreciação deste Tribunal da Relação consiste em apurar se o Juízo da Trabalho é o competente para julgar o litígio.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade que releva é a que consta do relatório que antecede.

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Da competência material do Juízo do Trabalho ...
Insurgem-se os Recorrentes quanto ao facto de o Tribunal a quo ter concluído que por os autores não serem beneficiários do sinistrado/falecido nos termos da Lei dos Acidentes de Trabalho, não se enquadram, os pedidos em causa no âmbito das prestações reparatórias tipificadas no regime de reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho, não sendo, assim, o juízo do trabalho o competente para deles conhecer.
No entendimento dos Recorrentes o facto de ser ou não reconhecida a qualidade de beneficiários legais do falecido em nada interfere com a determinação da competência material do Tribunal.
Vejamos se lhes assiste razão:
Como é sobejamente sabido a competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, determina-se pelo pedido conjugado com os factos jurídicos que fundamentam a pretensão deduzida, não estando o tribunal vinculado às qualificações jurídicas do autor (cfr. art.º 5.º n.º 3 do CPC.). Assim, para aferir da competência material do tribunal tem apenas de se atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.[1]
Tal como resulta do prescrito no art.º 38.º n.º 1 da Lei n.º 62/2013 de 26.08, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei”
Por outro lado, estatui o artigo 126.º n.º 1 al. c) da Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 40-A/2016, de 22.12 (doravante (LOSJ), que compete aos juízos do trabalho conhecer em matéria cível “das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.” Trata-se de redação idêntica ao anterior art.º 85.º al. c), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Com efeito, desde da Lei n.º 82/77, de 06.12 (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), que a resolução dos litígios emergentes de acidentes de trabalho está atribuída à jurisdição laboral – cfr. artigo 56.º, al. f) e art.º 66.º al. c) da referida lei.
Contudo, importa referir que para definir a competência dos juízos do trabalho, referente às questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, não basta que o acidente em causa seja qualificado como de trabalho, pois também é necessário, designadamente, nos casos de morte, que os autores sejam reconhecidos como beneficiários nos termos prescritos na Lei dos Acidentes de Trabalho e que esteja em causa a típica reparação dos danos emergente de acidente de trabalho, ou seja, a pensão anual, como compensação pela perda de capacidade de ganho da vítima.
A competência dos juízos do trabalho com fundamento na al. c) do citado art.º 126.º da LOSJ, pressupõe que esteja em causa a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho a que os trabalhadores ou os seus familiares tenham direito nos termos previstos no regime de reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Assim, a competência dos Juízos do Trabalho impõe-se sempre que esteja em causa a típica reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho, sendo estes juízos também competentes para conhecer da indemnização por danos não patrimoniais peticionada pelo sinistrado ou pelos seus beneficiários do sinistrado, nas situações a que reporta o art.º 18.º da Lei n.º 98/2009, de 04.09 (doravante NLAT).
Por outro lado, o artigo 40.º da LOSJ estatui que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, consagrando assim, tal disposição legal, o princípio da competência residual dos tribunais judiciais, estendendo-se a competência dos tribunais comuns a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais.
Por fim, prescreve o art.º 18.º n.º 1 da NLAT que “quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão de obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais”.
Em suma, apesar de ser atribuída aos Juízos do Trabalho a competência para apreciar as questões emergentes de acidentes de trabalho, ou seja, as relativas à reparação dos danos deles decorrentes, importa ter presente quer a especificidade prevista no regime de reparação de acidentes de trabalho, quer a titularidade do direito à reparação, quer ainda os sujeitos passivos dessa obrigação.
A questão que cumpre apreciar é a de saber se face à causa de pedir – acidente de trabalho ocorrido no dia 11 de Dezembro de 2019, por violação das regras de segurança, higiene e saúde no trabalho imputada ao empregador - e aos pedidos formulados pelos Autores (a quem não foi reconhecida a qualidade de beneficiários legais da vítima) contra a Ré, ao abrigo do art.º 18.º n.º 1 da NLAT (€140.000,00 a titulo de indemnização por Dano morte do sinistrado CC; €20.000,00 titulo de indemnização por Dano pré-morte do sinistrado; e € 80.000,00 a titulo de danos não patrimoniais/morais sofridos pelos Autores com a morte do seu filho), o Tribunal recorrido tem  competência em razão da matéria para apreciar as concretas questões que lhe são colocadas.
No caso em apreço os autores fundam a sua pretensão no acidente de trabalho ocorrido no dia ../../2019, que causou a morte do seu filho, que tal como alegam, foi provocado pela inobservância de regras de segurança por parte do empregador.
Fundamentam a sua legitimidade no facto de serem pais da vítima (herdeiros), não sendo detentores da qualidade de beneficiários legais e peticionam indemnizações pelo dano morte do sinistrado, pelo dano pré-morte do sinistrado e pelos danos não patrimoniais sofridos com o falecimento de seu filho.
Daqui resulta inequívoco que os Autores sustentam o seu pedido na ocorrência de um típico acidente de trabalho, mas não visam neste processo exercer o direito à reparação prevista no Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho, ou seja, não pretendem obter a reparação típica destes casos – a pensão anual -, aliás, porque não lhes assiste direito. Ao invés, apenas pretendem ser ressarcidos dos danos não patrimoniais. Em causa estão os danos não patrimoniais sofridos pelo lesado como a perda da própria vida e o seu sofrimento antes do seu decesso, bem como os danos sofridos por terceiros, como o sofrimento provocado aos pais.
Na verdade, com a presente ação os Autores apenas peticionam o pagamento de indemnização fundada na responsabilidade civil geral que radica num acidente de trabalho, ou seja, estamos perante uma ação em que se peticiona a indemnização pelos danos não patrimoniais que alegadamente resultaram de um acidente de trabalho cuja produção se ficou a dever à culpa do empregador por violação das normas de segurança saúde no trabalho.
Acresce referir que o citado art.º 18 da NLAT, permite que no processo resultante de acidente de trabalho, no caso em que o acidente tiver sido provocado pelo empregador ou resultar da falta de observância de regras sobre segurança e saúde no trabalho, para além da atribuição de uma pensão anual, sejam tidos em consideração a totalidade dos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo trabalhador e seus familiares.
Entendemos que esta extensão da competência dos juízos do trabalho, não pode deixar de ser considerada como um caso de competência por conexão e não de competência própria, como tem vindo a ser entendido pela jurisprudência[2], já que apenas existe quando se quer fazer valer a pretensão principal de exercer o direito à reparação especialmente prevista na lei laboral e se pretende obter também uma indemnização por danos não patrimoniais.
 Como se refere no Ac. da RP de 12.01.2016 a este propósito “Com efeito, se para além desse direito, o sinistrado ou os seus familiares beneficiários pretendem ainda obter uma indemnização por danos não patrimoniais, sendo o tribunal de trabalho o competente em razão da matéria para conhecer o pedido principal, não se vislumbra razão válida, até por motivos de economia processual, para obrigar a parte a recorrer ao fora comum a fim de ver ressarcidos tais danos não patrimoniais, o que explica a extensão, nestas situações, da competência do tribunal do trabalho.”
O que importa reter é que a extensão da competência pressupõe sempre o reconhecimento da qualidade de beneficiário do sinistrado, o que como já deixamos suficientemente expresso, não se verifica quanto aos autores no âmbito destes autos.
Voltamos a salientar os autores propuseram a presente ação não na qualidade de beneficiários, com o fito de receberem a reparação típica da reparação dos acidentes de trabalho – a pensão anual -, mas sim na qualidade de herdeiros do sinistrado, reclamando o pagamento de montantes indemnizatórios devidos pelo ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos em consequência do falecimento de seu filho, fundando o seu pedido não no direito laboral, mas sim na responsabilidade civil geral.
Aqui chegados facilmente se conclui que a ação proposta pelos autores não tem o seu enquadramento jurídico na legislação especial aplicável aos acidentes de trabalho, mas sim estamos perante uma ação de responsabilidade civil que radica na ocorrência de um acidente de trabalho, não reunindo os autores nem a qualidade de sinistrado, nem a qualidade de beneficiários legais do sinistrado nos termos prescritos na legislação laboral.
Nem sequer aqui tem grande relevância o princípio da especialização, em razão da matéria a apreciar, porquanto, no que respeita aos peticionados danos morais, o Juízo do Trabalho teria de decidir de acordo com os critérios gerais da responsabilidade civil, tal como o tribunal comum.
Pelo exposto, não tendo os Autores a qualidade de beneficiários legais do sinistrado, nem estando em causa a atribuição de uma pensão por morte teremos de concluir que os pedidos formulados saem fora do âmbito laboral, configurando uma típica ação de responsabilidade civil por factos ilícitos semelhante a tantas outras, com a particularidade dos danos resultarem da ocorrência de um acidente de trabalho com culpa do empregador[3], cuja apreciação e julgamento  compete aos tribunais comuns.
O que define a competência do juízo do trabalho é a determinação sobre se estamos ou não perante a reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho a que o trabalhador e os seus familiares têm direito nos termos do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho, ou seja, não basta estarmos perante a ocorrência de um acidente de trabalho, pois estando em causa a morte do trabalhador é ainda necessário que os autores sejam reconhecidos como beneficiários legais e que esteja em causa a compensação pela perda de capacidade de ganho da vítima sob a forma de pensão, já que esta é a típica reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho[4]
Os juízos do trabalho são competentes quando está em causa a típica reparação por acidente de trabalho e nessas circunstâncias são igualmente competentes para conhecer de eventual indeminização por dano não patrimonial peticionado pelos beneficiários do sinistrado, situação que não se verifica no caso dos autos.
Assim sendo, é de concluir que o juízo do trabalho não é competente para o conhecimento dos pedidos indemnizatórios de reparação do dano não patrimonial formulados nesta ação, já que é em função dos pedidos que se determina a competência do tribunal e estes nada têm a ver com o direito do trabalho, pois a sua apreciação será feita nos termos da lei geral.
Uma última nota para dizer que os juízos do trabalho são competentes para conhecer o pedido de pagamento de despesas de funeral, tal como decidiu o Tribunal a quo, já que o subsídio por despesas de funeral é uma prestação prevista no regime dos acidentes de trabalho, destinada a compensar as despesas com o funeral, sendo o direito ao seu reembolso reconhecido a quem comprovadamente tenha efetuado o pagamento de tais despesas (cfr. art.º 66.º da NLAT). Contudo, não é de acolher nesta situação a competência por extensão para conhecer dos restantes pedidos, pois como refere a recorrida, tal implicaria uma alteração inadmissível das regras de competência material.

DECISÃO

Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 87.º do C.P.T. e 663.º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recuso de apelação e consequentemente é de manter a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Recorrentes.
29 de Fevereiro de 2024

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Antero Veiga


[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 91
[2] Neste sentido ver entre outros Ac. RP de 12.01.2016, proc. n.º 917/14.5TBVCD.P1; Ac. RP de 21.10.2020; Ac. RP de 23.06.2021, proc. n.º 2019/20.6T9PNF.P1; Ac. RG de 18.01.2024, proc. n.º 4765/23.3T8BRG.G1, e Ac. do STJ de 24.09.2013, proc. n.º 2796/10.2TBPRD.P1.S1 (todos acessíveis in www.dgsi.pt) constando deste último o seguinte sumário:                    
I - A extensão da competência material do Tribunal de Trabalho, prevista no n.º 2 do art. 18.º da LAT, é uma típica competência por conexão e não uma competência própria e directa em função da matéria em causa.
II - Tal extensão de competência só funcionará quando a pretensão principal que se quer fazer valer tenha em vista exercitar o direito à reparação especialmente prevista na lei laboral.
III - Se a parte não pretende fazer valer o direito à reparação tipicamente contemplado na lei laboral, mas apenas quer exercitar o direito à indemnização por danos morais, nos termos da lei geral, não se vê qualquer razão para ter de intentar a acção no Tribunal de Trabalho, que não tem competência directa para apreciar tal matéria a não ser por via da conexão acima referida.
[3] Cfr. Ac. RL de 26.02.2008, proc. n.º 546/2008-7 e Ac RP de 28.11.2022 proc. n.º 24427/19.5T8PRT.P1, (acessíveis in www.dgsi.pt.), este último com o seguinte sumário:
“II - Não sendo a Autora, mãe do trabalhador/falecido, considerada beneficiária deste, nos termos da Lei dos Acidentes de Trabalho, a competência para julgar a acção em que a mesma peticiona o pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo sinistrado e por ela, com fundamento na inobservância das regras sobre saúde e segurança no trabalho, pertence ao Tribunal comum.”
[4] Neste sentido Ac. RP de 9.10.2012, proc n.º 2796/10.2TBPRD.P1, acessível in www.dgsi.pt