Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6499/15.3T8GMR.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: PROVA DOCUMENTAL
RECURSO
DIVÓRCIO
PATRIMÓNIO COMUM DO CASAL
EFEITOS PATRIMONIAIS
CONTA BANCÁRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Nos termos do disposto nos art.os 651.º, n.º 1 e 425.º, ambos do C.P.C., só excepcionalmente é admissível a junção de documentos na fase processual de recurso, sendo duas as situações que a podem justificar: i) impossibilidade da sua apresentação em tempo oportuno, seja por o documento ter sido elaborado em data posterior ao julgamento da 1.ª Instância, seja por o conhecimento da sua existência só ter sido adquirido por quem o apresenta posteriormente ao referido momento do julgamento; ii) quando uma decisão surpresa, imprevista, da 1ª. Instância justifique a junção dos documentos na fase de recurso, não servindo, porém, de pretexto a surpresa quanto ao resultado.

II - Uma das manifestações do princípio do dispositivo, na vertente do designado “princípio do pedido”, é a proibição de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do que tiver sido pedido (art.º 609.º, n.º 1 do C.P.C.) com o que o objecto da sentença terá de coincidir com o objecto do processo, não podendo o juiz ir além do que lhe foi pedido, nem decidir em termos manifestamente diversos do pedido.

III - O n.º 1 do art.º 1730.º do C.C., atribui a cada um dos cônjuges o direito a metade do valor do património comum, quer do activo, quer do passivo. Neste direito não há, porém, quotas pertencentes a cada um dos cônjuges, porque o património comum pertence em bloco a ambos.

IV - O divórcio dissolve o casamento, fazendo cessar as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges (art.os 1688.º e 1788.º do C.C.) e os seus efeitos produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da propositura da acção no que tange às relações patrimoniais entre os cônjuges. Retrotraindo os efeitos patrimoniais do divórcio à data da propositura da acção, entram na partilha todos os bens que integrem àquela data o património comum do casal.

V – O art.º 1680.º do C.C. confere o direito a qualquer dos cônjuges de gerir autonomamente os dinheiros que lhe pertençam como bens próprios. No entanto, se os valores depositados forem bens comuns, o ex-cônjuge, titular único da conta bancária, enquanto administrador de um bem comum, para além de estar, inequivocamente, obrigado a levá-los à partilha, fica ainda obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge, desde a data em foi instaurada a acção de divórcio, entrando nessas contas as vantagens económicas que tenha retirado dos depósitos efectuados.

VI - Diz-se litigante de má fé a parte (seja a vencedora, seja a vencida) que, com dolo ou negligência grave, tiver algum dos comportamentos tipificados nas quatro alíneas do n.º 2 do art.º 542.º do C.P.C.: a dedução de pretensão ou de oposição cuja falta de fundamento não devesse ignorar; a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa; a omissão grave do dever de cooperação; o uso do processo ou dos meios processuais manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- A. C., residente em Fafe, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra Maria, também residente em Fafe, pedindo que:

a) esta Ré seja condenada a reconhecer que a quantia de € 250.000 é um bem comum do ex-casal, composto por si, Autor, e por ela, Ré;
b) seja declarado e reconhecido que a Ré, em 26 de Fevereiro de 2007, se apropriou indevidamente da quantia de € 250.000, sem o seu consentimento e autorização, que nunca teve acesso a esse montante e não teve qualquer benefício;
c) a Ré seja condenada a restituir-lhe a quantia de € 168.136,99, sendo a quantia de € 125.000 correspondente à sua meação no património comum do casal e a quantia de € 43.136,99, referente aos juros calculados à taxa legal, contados desde 26 de Fevereiro de 2007 até 12 de Outubro de 2015 e nos juros vincendos desde 13 de Outubro de 2015 até efectivo e integral pagamento.

Alega, em síntese, que foram casados e encontram-se divorciados estando pendente inventário para partilha dos bens comuns, no qual desempenha as funções de cabeça de casal, tendo relacionado a quantia de € 250.000; perante a reclamação da Ré, foi decidido remeter os interessados para os meios comuns e manter essa verba na relação de bens. Esclarece que a Ré foi exclusiva titular da conta Banco A nº (...), conta esta que, em 1 de Julho de 2004, apresentava um saldo de € 250.000 e se encontra encerrada desde 22 de Maio de 2007; esse montante pertencia a ambos, na proporção de metade, e existia à data da instauração da acção de divórcio, mas a Ré fê-la sua em 26 de Fevereiro de 2007, retirando-a daquela conta e utilizando-a em proveito próprio sem a sua autorização.

A Ré contestou contrapondo que a referida conta foi aberta em 1 de Julho de 2004 com o saldo inicial de € 250.000, ficando em seu nome exclusivo por insistência do Autor. Contudo, apesar de ser por si exclusivamente movimentada, foi-o em cumprimento de instruções do demandante, sendo usada para proceder ao pagamento de fornecedores da sociedade comercial que ambos detinham. Referiu ainda que em Fevereiro de 2007 as relações entre ambos estavam deterioradas devido a maus tratos que lhe eram infligidos pelo Autor e, quando este lhe exigiu o levantamento do saldo da referida conta, temendo que ele esbanjasse o dinheiro com a mulher com quem vivia, passou o saldo então existente para uma sua conta do Banco B, S.A., sem que aquele soubesse disso no imediato; porém, quando ele tomou conhecimento do levantamento, compeliu-a, mediante ameaça, a deslocar-se a esse Banco para proceder ao levantamento, em notas, da quantia aqui depositada, o que foi concretizado em Março desse ano, tendo entregue todo o dinheiro ao Autor, que o escondeu e deu o destino que quis, nunca mais ela, Ré, havendo sabido do seu paradeiro.

Deduziu reconvenção pedindo a condenação do Autor/Reconvindo a restituir-lhe a quantia de € 169.232,88, sendo € 125.000 correspondente à sua meação, € 44.232,88 a título de juros legais vencidos até 6 de Janeiro de 2016 e juros vincendos sobre a referida quantia desde essa data até efectivo e integral pagamento.

O Autor replicou aceitando a confissão quanto ao levantamento do dinheiro depositado na conta do Banco A e o seu depósito na conta do outro banco e pediu a condenação da Ré como litigante de má fé em multa e indemnização a seu favor, no mínimo de € 50.000, alegando que esta insiste em histórias rocambolescas com intuito apropriativo.
A Ré exerceu o contraditório, pedindo, por sua vez, a condenação do Autor como litigante de má fé em multa e indemnização a seu favor, em montante nunca inferior a € 50.000.

Os autos prosseguiram os seus termos vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que:

I - julgando a acção parcialmente provada e, nessa medida, procedente:

a) condenou a Ré a reconhecer que a quantia de € 250.000 é bem comum do ex-casal, que formou com o Autor;
b) declarou e reconheceu que a Ré se apropriou da quantia referida em a), sem autorização do Autor;
c) condenou a Ré a restituir ao património comum a quantia referida em a), acrescida de juros à taxa legal de 4% desde 26 de Fevereiro de 2007 até efetivo e integral cumprimento;
d) absolveu a Ré dos demais pedidos formulados.
II. Julgando a reconvenção não provada e improcedente, absolveu o Reconvindo dos pedidos formulados pela Reconvinte.
III. Julgando procedente o incidente de litigância de má fé suscitado pelo Autor e improcedente o suscitado pela Ré, condenou esta como litigante de má fé na multa 10 de UCs e na indemnização que vier a ser fixada relativamente a honorários e despesas que a lide implicou para aquele Autor.

Inconformada, traz a Ré/Reconvinte o presente recurso pedindo a revogação da supra transcrita decisão, e a sua suBanco Bituição por outra que julgue a acção improcedente, absolvendo-a do pedido contra si formulado, e julgue procedente a reconvenção, condenando o Autor/Reconvindo no pedido reconvencional.
Contra-Alegou o Autor propugnando para que se recuse provimento ao recurso e se mantenha integralmente a decisão impugnada.
O recurso foi recebido como de apelação com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II.- A Apelante/Ré formulou as seguintes conclusões:

O Tribunal recorrido errou na fixação da matéria de facto.
Os pontos 9, 10 e 12 dos factos provados, deveriam ter sido dados como não provados e os artigos 8º a 11º da contestação e 18º a 20º da reconvenção deveriam ter sido dados como provados.
As respostas referidas na conclusão anterior derivam da conjugação dos depoimentos de parte do Autor e da Ré e dos depoimentos das testemunhas M. C., Laura, António, José e M. S., todos prestados em audiência de julgamento ocorrida no dia 08/11/2017, com início às 14 horas, conforme consta da respetiva ata, dando-se aqui por reproduzidas todas as passagens e incongruências aludidas na alegação supra.
A sentença em recurso constitui decisão surpresa quanto à questão dos sinais de riqueza da Ré, em especial quanto à propriedade da loja Tons X, não tendo o tribunal a quo dado à Ré a oportunidade de exercer o contraditório e demonstrar que tal loja não era sua aquando da sua abertura em 2007, mas sim do seu filho e respetiva mulher, os quais dispunham de elevados rendimentos, o que se pretende agora suprir juntando aos autos, ao abrigo do disposto no art. 651º do Código de Processo Civil, diversos documentos, os quais, não constituindo documentos pessoais, foram fornecidos pelo filho e pela nora da Ré apenas após a prolação da sentença em recurso;
A loja hoje explorada pela Tons X, apenas foi vendida à Ré, mediante contrato de trespasse, outorgado em 31/12/2011, pelo valor de € 62.959,41, pagos em 6 prestações, valor este que a Ré pagou com o que foi amealhando com o salário auferido no período que mediou entre Agosto de 2007 e Dezembro de 2011, com o dinheiro que herdou da sua mãe falecida em Fevereiro de 2007 (€ 19.000) e com o lucro que a sociedade ia gerando após o trespasse;
Da certidão permanente resulta demonstrada à saciedade a propriedade das quotas da referida sociedade à data da sua constituição, demonstrando a falsidade do que foi vertido na sentença em crise.
O tribunal errou ao aplicar ao caso concreto o regime da responsabilidade civil por perdas e danos, afirmando, como se de uma ação de prestação de contas se tratasse, que “cabia à Ré demonstrar que o saldo então existente constituía o remanescente do valor inicial após aplicação do montante em falta em proveito comum do casal, o que não alcançou…”.
Ora de acordo com o disposto no artigo 1681º, n.º 1 do Código Civil cabia ao Autor carrear para o processo factos capazes de integrar o facto voluntário, ilícito, doloso (já que se exige intenção de causar prejuízo), lesivo e danoso e ainda o nexo de causalidade entre o facto, a lesão e o dano.
No caso concreto, o Autor não cumpriu o seu ónus nem de alegação nem de prova e, nessa medida, terá de ver a sua ação improceder por falta de prova (cfr. Acs do STJ de 26/01/2014, 2/5/2012, 22/2/2011 e 17/11/1994, todos disponíveis in www.dgsi.pt).
10ª No caso concreto, não houve qualquer facto ilícito pois que o levantamento do dinheiro pela Ré, única titular do depósito, é lícito ao abrigo do disposto no art. 1680º e a Ré quando levantou o dinheiro não o fez com intenção de o guardar para si, ficando com a metade do Autor, antes o levantou e entregou na totalidade ao Autor, como acima se pugnou.
11ª Mas, ainda que assim não fosse, sempre os factos dados por provados seriam insuficientes para considerar provado qualquer ato ilícito e muito menos uma intenção dolosa da Ré contemporânea com o momento do levantamento, como é a ratio do citado dispositivo legal.
12ª Na petição inicial o Autor fez um pedido, na alínea c), o qual consistiu na condenação da Ré a restituir-lhe a quantia de € 168.136,99, sendo a quantia de € 125.000,00 correspondente à sua meação no património comum do casal, e a quantia de € 43.136,99, referente a juros…”.
13ª Ao condenar a Ré na restituição ao património comum do casal dos € 250.000,00, a sentença condenou em valor muito superior ao pedido e em objeto diverso do pedido, o que viola flagrantemente o princípio do pedido, constituindo nulidade da sentença nos termos do disposto no art. 615º, n.º1, alínea e) do Código de Processo Civil.
14ª A sentença em crise condenou ainda a Ré no pagamento de juros de mora desde o dia 26 de fevereiro de 2007. Ora, inexiste fundamento legal para tal. É que os juros de mora apenas são devidos a partir do momento em que o devedor se constitui em mora na entrega da prestação, tal como vem estatuído pelo art. 804º do Código Civil.
15ª Ora, até ao momento em que foi citada para a presente ação jamais a Ré tinha sido interpelada para entregar ao Autor os peticionados € 125.000,00, seja judicial ou extrajudicialmente, pelo que, jamais a Autora poderá ser condenada no pagamento de juros de mora em data anterior à sua citação para presente ação.
16ª Sendo certo que a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, tem-se igualmente como certo que a Ré não pode, nesta ação, ser condenada como litigante de má-fé pois a circunstância de não ter provado o que alegou não implica a prova de que o que alegou é falso.
17ª A procedência da ação a favor do Autor, nos termos definidos na sentença em recurso, deveu-se apenas à existência de um documento de levantamento do dinheiro pela Ré, sem que se tenha apurado, sem margem para qualquer dúvida, se a Ré efetivamente mantém o dinheiro na sua posse ou o entregou ao Autor.
18ª Sem que se tenha apurado quem tem efetivamente a posse dos valores em discussão nos autos, não estão verificados os pressupostos para a condenação da Ré como litigante de má-fé. Estes pressupostos só estariam verificados se se demonstrasse cabalmente nos autos, sem margem para qualquer dúvida e sem recurso a presunções ou ilações lógicas, que a Ré ficou com o dinheiro que na sua contestação afirmou – embora o tribunal recorrido não tenha considerado provado – ter entregado ao Autor.
19ª A não prova de um facto não implica necessariamente a prova da sua falsidade. A Ré com a sua alegação não fez qualquer pedido sem fundamento, não omitiu ou alterou qualquer facto relevante para a decisão da causa, não omitiu, muito menos de modo grave, qualquer dever de cooperação (pois nada lhe foi pedido ou ordenado que não tenha sido junto aos autos), não fez qualquer uso manifestamente reprovável do processo pois não visou nenhum objetivo ilegal, não procurou impedir, atrasar ou protelar a descoberta da verdade pelo tribunal, apenas alegou factos que não conseguiu provar, não se tendo provado o oposto (cfr. Ac TRG de 10/9/2013 e Ac STJ de 18/2/2015, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
20ª Faltam elementos para a fixação da litigância de má-fé pois afirma-se que o dolo revelado pela conduta da Ré é intenso mas não se esclarece porquê; diz-se que resulta dos factos apurados que a sua situação patrimonial é confortável mas nos factos provados nada consta acerca desta matéria, pelo que a fixação de 10 UC’s sempre seria manifestamente exagerada, devendo ser reduzida e fixada segundo a equidade.
21ª Foram violados os arts. 487º, 804º, 1678º, 1680º e 1681º do Código Civil e os arts. 542º, 615º, 651º e 662º do Código de Processo Civil.
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III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Como se extrai das conclusões acima transcritas, cumpre:

- decidir sobre a admissibilidade da junção de documentos oferecidos pela Apelante;
- apreciar e decidir da nulidade arguida à sentença;
- reapreciar a decisão de facto;
- reapreciar a decisão de mérito;
- reapreciar a decisão de condenação da Apelante como litigante de má fé.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

IV.- DA ADMISSIBILIDADE DE JUNÇÃO DOS DOCUMENTOS:

A Apelante veio juntar diversos documentos com as suas alegações.
O Apelado opõe-se à junção.

Nos termos do disposto nos art.os 651.º, n.º 1 e 425.º, ambos do C.P.C., só excepcionalmente é admissível a junção de documentos nesta fase processual de recurso, sendo duas as situações que a podem justificar: i) impossibilidade da sua apresentação em tempo oportuno, nos termos definidos pelo art.º 423.º do C.P.C.; e ii) a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª Instância.

Na primeira situação a impossibilidade reconduz-se à superveniência do documento, tendo como referência o momento do julgamento em 1.ª Instância, superveniência que poderá ser objectiva se o documento foi feito em data posterior àquela em que ele devia ter sido apresentado, ou poderá ser subjectiva se o conhecimento da sua existência só foi adquirido por quem o apresenta posteriormente ao referido momento.

Quanto à necessidade motivada no julgamento da 1.ª Instância, no seguimento do que vinha sendo entendimento consolidado face ao artº. 706º., nº. 1 do C.P.C. velho, (na redacção anterior ao Dec.-Lei 303/2007, de 24 de Agosto), é pacífico que só uma decisão surpresa, imprevista, da 1ª. Instância justifica a junção de documentos nesta fase de recurso, não servindo de pretexto a surpresa quanto ao resultado” (cfr. ABRANTES GERALDES in “Recursos em Processo Civil” , 3ª. edição, pág. 254 e AMÂNCIO FERREIRA, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9ª. edição, pág.215/216).

Como referem ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA “É evidente que a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª. instância”, cabendo na intenção legislativa apenas os casos em que “pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida” (in “Manual de Processo Civil”, 1984, pág. 517).

A jurisprudência tem sido unânime neste sentido.

A Apelante, alegando que “a sentença constitui decisão surpresa” quanto à questão dos seus “sinais de riqueza”, e “em especial quanto à propriedade da loja Tons X”, e alegando ainda que o Tribunal a quo lhe não deu a oportunidade de “exercer o contraditório e demonstrar que tal loja” lhe não pertencia aquando da sua abertura, em 2007, mas sim do seu filho e da respectiva mulher, “os quais dispunham de elevados rendimentos” pretende sejam juntos aos autos diversos documentos, alegando que eles lhe foram fornecidos “pelo filho e nora apenas após a prolação da sentença” (conclusão 4.ª).

Os documentos que apresenta são:

- declarações de rendimentos para efeitos de IRS, relativos ao filho, Ricardo (fls. 275 a 283; 285; 286; e 288) e à nora, S. M. (fls. 284; 287 e 289);
- cópia de um “contrato de trespasse”, celebrado entre a “Y, Ld.ª”, representada por aqueles, e a “Tons X – Unipessoal, Ld.ª”, cuja sócia é a ora Apelante, datado de 31/12/2011 – fls. 289v.º a 292, incluindo os Anexos;
- seis cópias de, a atentar nos dizeres, recibos – fls. 292v.º a 294;
- cópias de cheques do “Banco C” – fls. 295;
- três documentos relativos ao IRS da ora Apelante.

Da listagem destes documentos logo se extrai não ser, pelo menos, precisa a afirmação da Apelante justificativa da junção – que os documentos que apresenta só lhe foram entregues pelo filho e nora posteriormente à sentença, dado que boa parte deles tem-nos consigo desde a data da sua elaboração.

A propriedade da loja e os rendimentos do seu filho foram questionados na sessão da audiência de julgamento ocorrida em 08/11/2017, julgamento que só veio a terminar em 06/12/2017 precisamente para que fossem juntos aos autos documentos solicitados pelo Tribunal a quo, pelo que a Apelante não pode invocar “surpresa” quanto a tais factos.
Sem embargo, e quiçá mais importante, é que os “sinais de riqueza” não integram a decisão nem a fundamentam, não são, sequer, “questão”, no sentido técnico-jurídico, que tenha sido tratada na sentença.
A expressão “Os sinais de riqueza revelados” surge na fundamentação da decisão de facto e traduzem uma realidade fáctica que se teve por demonstrada – e a fase de recurso já não é a fase processual adequada para tentar infirmar as provas que o Tribunal a quo considerou tê-la demonstrado.

Falecem, pois, todos os argumentos aduzidos para justificar a junção tardia aos autos dos supramencionados documentos.

Acresce que a Relação somente poderá ordenar a produção de novos meios de prova se tiver dúvida, que terá de ser séria, sobre a prova realizada, nos termos da alínea b), do n.º 2 do art.º 662.º do C.P.C..

Termos em que se indefere o pedido de junção dos apontados documentos, que deverão ser desentranhados e devolvidos à Apelante, que os apresentou.
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V.- DA NULIDADE DA SENTENÇA

Alegando que, na petição inicial, o Autor “fez um pedido, na alínea c)”, de condenação dela, Apelante, “a restituir-lhe a quantia de € 168.136,99, sendo a quantia de € 125.000 correspondente à sua meação …” ao condená-la “na restituição ao património comum do casal dos € 250.000 a sentença condenou em valor muito superior ao pedido e em objecto diverso do pedido”, o que constitui a nulidade prevista na alínea e) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C..
O n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C. enuncia taxativamente as causas de nulidade da sentença.
Trata-se de vícios formais, que afectam a sentença na sua estrutura (alíneas b) e c)), na sua inteligibilidade (2.ª parte da alínea b)), ou nos seus limites (alíneas d) e e)).

Apesar da evolução que se vem conhecendo, que vai no sentido da desformalização do processo, concedendo-se o primado à suBanco Bância em detrimento da forma com vista à prolação de decisões materiais, o princípio do dispositivo continua a ser um dos princípios enformantes do nosso processo civil, como decorre do estabelecido no n.º 1 do art.º 3.º do C.P.C..

Com efeito, continuam a ser as partes a disporem do processo, sendo elas que, pelo pedido e pela defesa, circunscrevem o thema decidendum, não cabendo ao juiz “saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa petendi”, como expressivamente escreveu MANUEL DE ANDRADE (in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 373-378).

Uma das manifestações do princípio do dispositivo, na vertente do designado “princípio do pedido”, é a proibição de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do que tiver sido pedido – cfr. art.º 609.º, n.º 1 do C.P.C..
O objecto da sentença tem, pois, de coincidir com o objecto do processo, não podendo o juiz ir além do que lhe foi pedido, nem decidir em termos manifestamente diversos do pedido.

Ora, na situação sub judicio, a condenação reporta-se aos pedidos formulados sob as alíneas a) e b), que foram julgados procedentes, e o pedido da alínea c) foi julgado improcedente, o que vem justificado nos seguintes termos, que são, de resto, lapidares: “Conforme resulta da exposição que antecede, nem o Autor nem a Ré são titulares de uma quota ideal do montante depositado, mas antes, contitulares de um direito unitário sobre a globalidade do património comum elencado na relação de bens do processo de inventário, que inclui a verba de € 250.000 por tal ter sido determinado em sede de recurso.

O comportamento da Ré consuBanco Banciou uma apropriação indevida de um montante que lhe cabia administrar – na medida em que estava depositado numa conta de que era exclusiva titular –, o que implica que, na sequência da dissolução do vínculo conjugal e da extinção da comunhão, tenha de restituir ao património comum o montante de € 250.000…”.

E ainda, “Realizada tal restituição à massa patrimonial indivisa a partilhar ou, na sua impossibilidade, operada a compensação da sua meação, a partilha dos concretos bens tomará em consideração o valor do quinhão de cada um e a escolha que fizerem no âmbito da conferência de interessados do inventário.”.

Esta fundamentação é coerente com o que então se sabia do estado do processo de inventário para separação das meações - que ele ainda se encontrava pendente, sendo, consequentemente aí que a partilha devia ser efectuada (a procedência do pedido da alínea c)), implicaria a partilha dos € 250.000, que constituem o objecto desta acção, e cuja relacionação foi determinada por decisão judicial transitada em julgado, sendo, por consequência, de respeitar.

Assim, improcede a arguida nulidade da sentença.
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VI.- A Apelante impugna a decisão de facto, identificando os factos que visa com a sua impugnação, e formula o projecto de decisão, indicando as provas em que fundamenta o seu dissenso, identificando os tempos na gravação dos excertos dos depoimentos testemunhais que, a seu ver, devem ser reconsiderados.
Destarte, mostram-se cumpridos todos os ónus enunciados no art.º 640.º do C.P.C., não havendo, assim, oBanco Báculo legal a que se reaprecie a decisão de facto, nos segmentos fácticos impugnados.
Como se sabe, o actual C.P.C. introduziu o duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto.
Na reapreciação desta decisão cumpre à Relação observar o que dispõe o art.º 662.º do C.P.C., tendo presente que, como consta da “Exposição de Motivos” acima referida, foi intenção do legislador reforçar os poderes da Relação, com o objectivo primordial de evitar o julgamento formal, apenas baseado no ónus da prova, privilegiando o apuramento da verdade material dos factos, pressuposto que é de uma decisão justa.
Não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto a Relação deve ponderar todas as provas carreadas para os autos, formando a sua própria convicção.
Os factos que integram a impugnação podem ser provados testemunhalmente e, concomitantemente, por presunções judiciais, nos termos admitidos pelo art.º 349.º do Código Civil (C.C.).
Os depoimentos das testemunhas são apreciados livremente pelo tribunal – cfr. art.º 396.º do C.C..

ALBERTO DOS REIS referindo-se ao princípio da liberdade de apreciação da força probatória dos depoimentos das testemunhas escreveu: “o tribunal julga segundo a sua consciência ou segundo a convicção que formou; a convicção forma-a, não em obediência a regras legais preestabelecidas, a quadros, critérios ou ditames impostos por lei, mas através da influência que no seu espírito exerceram as provas produzidas, avaliadas segundo o seu juízo e a sua experiência.”. Assim, acrescenta, “no sistema da prova livre nada oBanco Ba a que o julgador se determine, na formação da sua convicção, precisamente pelo testemunho de parente ou amigo da parte a quem esse testemunho aproveita” (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. IV, págs. 358-359).

Com efeito, se é inegável que, por vezes, os laços familiares estreitos ou até relações de amizade podem levar a que uma testemunha oculte saberes e ou dê uma versão dos factos com um sentido que julga ser mais favorável aos interesses do seu familiar ou amigo, também não deixa de ser certo que estas situações são as mais das vezes detectáveis pelas frases dúbias, pelas hesitações e até pelo nervosismo que manifestam.
Por sua vez, as presunções judiciais, porque baseadas nas regras da experiência comum, são também uma via para o apuramento dos factos.
Trata-se de ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

Como referem ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, “as presunções naturais, judiciais ou de facto são aquelas que se fundam nas regras práticas da experiência, nos ensinamentos havidos através da observação (empírica) dos factos” e, prosseguem, “É nesse saber de experiência feito que mergulham as suas raízes as presunções continuamente usadas pelo juiz na apreciação de muitas situações de facto” (in ob. cit. pág. 486).
Admitindo prova em contrário, como referem ainda os mesmos Autores, ela “dirige-se contra o facto presumido, visando convencer o juiz de que, não oBanco Bante a realidade do facto que serve de base à presunção, o facto presumido não se verificou …” (ob. cit., pág. 488).

Se, (re)apreciadas as provas subsistir a dúvida sobre a realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, decidir-se-á contra a parte a quem o facto aproveita, de acordo com o princípio plasmado no art.º 414.º do C.P.C.
**
VII.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:

i) julgou provado que:

1. No processo de inventário para separação de meações na sequência de divórcio que corre termos sob o n.º 1968/07.1TBFAF-B foi suscitado pela aqui Ré incidente de reclamação à relação de bens apresentada pelo aqui Autor na qualidade de cabeça de casal [alínea A) do despacho em referência e documento de fls. 101 a 115].
2. No processo identificado em 1), após produção de prova, em 7 de Outubro de 2013, foi proferida decisão, transitada em julgado, que fixou os seguintes factos:

a) Autor e Ré casaram no dia 20 de Fevereiro de 1977, com convenção antenupcial na qual se convencionou o regime de comunhão geral de bens.
b) Em 8 de Outubro de 2007 a Ré intentou contra o Autor ação especial de divórcio litigioso.
c) Por decisão de 20 de Novembro de 2008, transitada em julgado, foi declarado o divórcio do Autor e da Ré, por mútuo consentimento.
d) A Ré foi exclusiva titular da conta BANCO A nº (...), que se encontra encerrada desde 22 de Maio de 2007.
e) No dia 1 de Julho de 2004 a conta referida em d) apresentava um saldo de € 250.000 e no dia 26 de Fevereiro de 2007 não tinha qualquer saldo [alínea B) do despacho em referência e documento de fls. 101 a 115].
3. A decisão referida em 2) remeteu os interessados para os meios comuns no que concerne à verba nº 1 da relação de bens [alínea C) do despacho em referência e documento de fls. 101 a 115].
4. A verba nº 1 corresponde à quantia de € 250.000 [alínea D) do despacho em referência].
5. No âmbito de recurso interposto pelo Autor, o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu “revogar a decisão recorrida na parte em que determinou a exclusão da verba nº 1 da relação de bens, a qual se deve manter, mas sem a referência a quem está na posse da quantia aí mencionada” [resposta ao artigo 8º da petição inicial].
6. O montante de € 250.000 pertencia ao Autor e à Ré [alínea E) do despacho em referência].
7. Em Fevereiro de 2007 a Ré passou o saldo então existente na conta identificada em 2) d) para o Banco B, S.A. [alínea F) do despacho em referência].
8. Em 23 de Fevereiro de 2007, momento do depósito do saldo referido em 7), as relações entre Autor e Ré encontravam-se deterioradas [resposta aos artigos 24º da petição inicial e 6º da contestação].
9. O Autor não tinha acesso à conta referida em 2) d), sendo alheio às operações nela realizadas [resposta ao artigo 22º da petição inicial].
10. A Ré utilizou a quantia aludida em 6) em proveito próprio como lhe aprouve [resposta ao artigo 23º da petição inicial].
11. O Autor não autorizou os atos referidos em 7) e 10) [resposta ao artigo 23º da petição inicial].
12. Ao atuar da forma descrita em 7) e 10), a Ré teve o propósito de prejudicar o Autor [resposta ao artigo 25º da petição inicial].

ii) julgou não provados os factos que constam:

- nos artigos 3º; 5º; 7º (desde o início até “vivia”); 8º a 13º; 19º e 21º, da contestação.
A alegação contida nos artigos 12º; 14º; 16º; 20º; 21º; 26 a 32º, da petição inicial, 20º; e 22º a 26º da contestação, e 11º a 14º da réplica constitui matéria conclusiva ou de Direito.
A alegação contida nos artigos 17º da contestação e 1º a 10º da réplica diz respeito ao cumprimento do ónus da impugnação especificada.
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VIII.- 1.- Pretende a Apelante ver invertido o sentido da decisão, julgando-se agora não provados, os factos transcritos sob os n.os 9; 10 e 12.

Mais pretende que, em contrapartida, sejam julgados os factos que alegou nos artigos:

- A verdade é que poucos dias volvidos, o Autor vem a ter conhecimento do levantamento feito pela Ré e logo a ameaçou contra a sua integridade física se não lhe dissesse de imediato o que tinha feito ao dinheiro”.
- Compelida, desse modo, a contar-lhe o sucedido, o Autor obrigou ainda a Ré a deslocar-se a agência do BANCO B e a proceder ao levantamento do dinheiro, em notas, para o que fez questão de a conduzir em veículo do casal”;
10º - A operação, de que a agência bancária foi previamente avisada a fim de ter disponível as notas de banco, viria a ser concretizada em Março de 2007, tendo o embrulho, contendo a totalidade do dinheiro ali depositado, sido entregue pela Ré ao Autor”,
11º- Que dele, assim, sem o consentimento ou autorização da Ré, se apropriou, escondendo-o no local que bem entendeu, gastando-o a seu bel-prazer ou dando-lhe o destino que aquele bem quis, na certeza de que a Contestante não mais soube do paradeiro do dinheiro”.
Refere ainda os artigos 18º e 19º da reconvenção, nos quais se dão por reproduzidos artigos da contestação (18.º), e se reproduzem factos já contidos nos acima indicados (o artigo 19.º reproduz o artigo 11.º).

No artigo 20º., também incluído, alega a Apelante que: “A quantia dos € 250.000 inclui não apenas os levantamentos e movimentos efectuados a mando do Autor acusados nos artigos 3º e 4º supra, bem como a totalidade do levantamento aludido nos artigos 7º e 10º desta contestação.”.

Nos artigos 3º e 4º da contestação alega a ora Apelante que a supramencionada conta, “apesar de ter sido movimentada única e exclusivamente pela Ré, foi-o, até 23-02-2007, em cumprimento de instruções do Autor nesse sentido, designadamente, segundo o mesmo deu conta à Contestante – cuja veracidade e fundamento, no entanto, a defendente desconhece e é obrigada a pôr em causa –, para proceder a pagamentos a fornecedores e, assim, no âmbito da atividade comercial prosseguida pela sociedade “M. – Ourivesaria e Relojoaria, Lda.”, de que Autor e Ré eram, e são, os únicos sócios” (artigo 3º), “Como, aliás, resulta dos movimentos respeitantes a levantamentos e cheques sobre a referida conta, constantes do respetivo extrato junto aos autos do Proc. n.º 1968/07.1TBFAF-B, cuja cópia se anexa sob o doc. n.º 1, e aqui se dão como reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos” (artigo 4º).
2.- Funda-se a Apelante, no essencial, na sua própria valoração dos depoimentos, atribuindo maior credibilidade àqueles que o Tribunal a quo considerou menos credíveis, incluindo a si própria, e na sua interpretação das afirmações produzidas pelas testemunhas em cujo depoimento o mesmo Tribunal fundou a sua convicção.

De resto, a Meritíssima Juiz, na longa e pormenorizada fundamentação da sua decisão, na qual faz uma súmula de cada um dos depoimentos, valorando-os depois individualmente, expõe claramente todo o iter decisorio.
Mau grado não dispormos da imediação que nos permitiria avaliar, pelos gestos, um estado de espírito contraditório com as afirmações que estavam a ser proferidas, prestou-se especial atenção às inflecções da voz, às contradições e hesitações percepcionáveis pela gravação e à razão de ciência apresentada pelas testemunhas.
E do que foi dado ouvir não pode deixar de se corroborar a apreciação dos referidos depoimentos, quer os de parte, quer os testemunhais, que fez o Tribunal a quo.
A seriedade e isenção manifestadas pelas testemunhas José e António, permitem alicerçar a convicção de que o Autor, após a saída da Apelante de casa, passou por dificuldades financeiras, queixando-se que esta lhe levou o dinheiro que havia em casa e mesmo no estabelecimento de ourivesaria que era de ambos.

Neste campo as “acusações” são, de resto, mútuas. Contudo, pouco relevam para a decisão, tanto mais que as declarações de parte da Apelante e do Autor praticamente se anulam, não sendo possível, num juízo de valoração equidistante, privilegiar um deles em detrimento do outro.

O que consta documentalmente comprovado nos autos é que os € 250.000 que constituem o objecto do litígio, foram depositados numa conta bancária da qual era, e sempre foi, titular única a Apelante. Em 23/02/2007 a conta foi debitada, através do desconto de um cheque, pela importância de € 231.068,10, e em 26/02/2007, foi creditada com a quantia de € 175.000,00, em resultado de uma “venda”, crê-se que de títulos, que cobriu o saldo negativo do mesmo valor, ficando a conta a zeros - cfr. documentos de fls. 205 (informação prestada pelo BANCO A), e 206 e 207 (cópia dos movimentos ocorridos nessa conta).
Em 22/02/2007 a Apelante abriu uma conta, em seu nome individual, no Banco B, agência de Vizela, utilizando o cheque acima referido.
E em 03/05/2007 a mesma Apelante efectuou um levantamento, recebendo em dinheiro € 230.500,00 – cfr. fls. 208 a 210 (informação prestada pelo Banco).
Posto que todas as descritas operações foram realizadas pessoalmente pela Apelante, as regras da experiência comum permitem presumir que o dinheiro que esta levantou o guardou, já que lhe foi entregue, e ela actuou sozinha.

Cabia à Apelante provar que, apesar da realidade daqueles factos, não se verificou o facto presumido – foi o que intentou com a alegação do episódio da coacção do então ainda seu marido, que lhe “exigiu que procedesse ao levantamento referido, e lhe exigiu a entrega de todo o dinheiro recebido”, tendo-se deslocado de Fafe a Vizela, no carro conduzido por este. Enquanto ele “ficou cá fora” afirma a Apelante que «entrou sozinha no Banco», procedeu ao levantamento da quantia acima referida, após o que, saindo, «entregou-lhe o dinheiro».
Este episódio só “aparece” contado a uma testemunha: Laura, já após a saída da casa de morada de família da ora Apelante – o que terá acontecido na véspera do “dia da mãe” (primeiro domingo de Maio) de 2007.

A testemunha M. C., à altura empregada doméstica na casa de morada de família, veio dizer que a Apelante lhe contou que «o marido a obrigou a ir ao Banco levantar o dinheiro». Contudo, para além de não ter conseguido situar este episódio no tempo, acrescentou que a mesma Apelante não lhe referiu nem o Banco onde procedeu ao levantamento nem a quantia. A não indicação destes elementos, pela manifesta importância que assumem, e as hesitações que manifestou, retiram consistência àquela afirmação, fragilizando a sua credibilidade.
Se o referido episódio tivesse, na realidade acontecido, ainda se poderia ter alguma compreensão do seu “calar” sobre ele enquanto a Apelante permaneceu na casa de morada de família. Contudo, já não se entenderiam as suas motivações para não referir um tão grave episódio quando requereu o arrolamento dos bens do casal, prévio ao divórcio, já que descreveu no requerimento inicial o comportamento agressivo do ora Autor, as injúrias que lhe dirigia, a infidelidade conjugal deste, etc., tudo como consta dos artigos 11º a 14º, a fls. 189 e 190 destes autos. E também se não conseguiriam descortinar as razões por que, tendo listado todos os bens do casal, não refere especificamente a quantia acima referida, limitando-se a um genérico “e dinheiro (em notas de euro) guardado pelo Requerido em cofres existentes na casa de morada de família e no estabelecimento de ourivesaria…”.

A acrescer a esta, outra incongruência se manifesta na reclamação da relação de bens – porque é que não expôs todos os acontecimentos que agora traz para esta acção, limitando-se a referir no artigo 2º que o ora Autor, antes de ela própria “ter sido forçada a fugir” dele, “abandonando a casa de morada de família e o estabelecimento de ourivesaria … o próprio cabeça-de-casal apoderou-se e escondeu na antiga residência do casal ou/e no referido estabelecimento de ourivesaria” os reclamados € 250.000,00. É que por esta altura o casal já estava divorciado e as testemunhas que agora vieram depor – referida M. C. e M. S. – também foram arroladas e depuseram no incidente de reclamação.

Não menos importante, é a ausência das motivações que terão levado a Apelante a não apresentar os elementos bancários que agora foram juntos aos autos e a não contestar o valor do montante reclamado, de 250.000 euros.

Tudo o que vem de ser referido retira o mais leve indício de credibilidade ao episódio agora trazido pela Apelante, que, consequentemente, não conseguiu convencer da veracidade dos factos que consubstanciariam a excepção ao normal do acontecer.

Persiste, assim, a presunção para a qual apontam inequivocamente aqueles factos que saíram provados – o depósito em contas unicamente tituladas pela Apelante, e o levantamento que fez em numerário, escassos dias após aquele depósito, actuando sempre sozinha.
Ora como, com acerto, refere o Tribunal a quo, feita a prova de que a Apelante levantou da conta bancária de que era única titular, e levou consigo, a importância em causa, não tendo saído provado que dela foi desapossada, deve ter-se como única possuidora do referido dinheiro, sendo inequívoco que o mantém na sua posse ou lhe deu a utilização que somente ela entendeu.

No artigo 20.º da contestação/reconvenção vem alegar a Apelante que a quantia dos € 250.000 inclui “não apenas os levantamentos e movimentos efectuados a mando do Autor” alegadamente para “proceder a pagamentos a fornecedores … no âmbito da atividade comercial prosseguida pela sociedade “M. – Ourivesaria e Relojoaria, Lda.””, de que ela, Apelante, e Autor eram os únicos sócios, como também “a totalidade do levantamento do saldo da conta do BANCO A”, por si transferido para a conta que abriu no “Banco B, S.A.”.
Fundamenta a veracidade daqueles factos “nos levantamentos e cheques sobre a referida conta, constantes do respectivo extracto.
Este documento, que tal como o emitido pelo “Banco B” só veio a ser junto aos autos pela Apelante na sessão final da audiência de julgamento, em 06/12/2017, e ficou a constituir as fls. 206 e 207 dos autos.

Do seu exame resulta a constatação de movimentos realizados entre 30/06/2004 e 26/02/2007, respeitantes a saídas para depósitos a prazo, a subscrições de títulos, e apenas um levantamento, ocorrido em 01/04/2005, da quantia de € 1.575,00. Há ainda o desconto de seis “cheques caixa”, e de dois cheques “Comp.”, no valor de € 10.000,00 cada um, ocorridos ambos em 28/07/2004.

Já não resulta, porém, confirmada a veracidade dos factos invocados pela Apelante – de que as movimentações da conta foram feitas seguindo ordens e instruções do Autor, e muito menos que as quantias levantadas se destinaram a pagamentos a fornecedores do estabelecimento de ourivesaria do então casal.
O Autor nega terminantemente estes factos e a alegação da Apelante vem desacompanhada de outra prova que confirme a veracidade deles pelo que a sua pretensão, de os ver agora julgados provados, não tem a base de sustentação mínima para proceder.
Mantém-se, pois, integralmente a decisão da matéria de facto, recusando-se provimento ao recurso quanto a esta parte.
**
IX.- Mantendo-se inalterada a decisão de facto, também a fundamentação de direito se mostra merecedora de total adesão.
Sem embargo, não se deixa de tecer algumas considerações para melhor enquadramento da decisão.

1.- Como ficou provado, a Apelante e o Autor foram casados no regime de bens matrimonial da comunhão geral.

Assim, constituem património comum do casal todos os bens adquiridos na constância do matrimónio e os trazidos para o casamento por cada um dos cônjuges, exceptuando-se apenas os elencados nas alíneas a) a g) do n.º 1 do art.º 1733.º do Código Civil (C.C.), sendo que a incomunicabilidade destes bens não abrange os frutos que produzam nem o valor das benfeitorias úteis, que são aquelas que, não sendo indispensáveis para a conservação desses bens, todavia lhes aumentam o valor.

O n.º 1 do art.º 1730.º do C.C., atribui a cada um dos cônjuges o direito a metade do valor do património comum, quer do activo, quer do passivo.
Isto não significa, porém, que cada um deles tem direito a metade de cada um dos bens singularmente considerado, mas sim que esse direito incide sobre a metade do valor global.
Como escrevem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Não há quotas pertencentes a cada um dos cônjuges, porque o património comum pertence em bloco a ambos eles” (in “Código Civil Anotado”, vol. IV, 2.ª ed. Revista e actualizada, pág. 437).
Apesar da supramencionada norma estar inserida na subsecção II, que respeita à comunhão de adquiridos, ela tem aplicação ao regime da comunhão geral por força do disposto no art.º 1734.º do C.C..
Cada um dos cônjuges administra os seus bens próprios, tendo ainda legitimidade para a prática de actos de administração ordinária relativamente aos bens comuns – cfr. n.º 1 e primeira parte do n.º 3, do art.º 1678.º do C.C.
Um desvio a esta regra está consagrado no n.º 2, que atribui poderes de administração a um dos cônjuges de bens que, apesar de serem comuns, têm com ele uma ligação privilegiada, ou em caso de impossibilidade do outro cônjuge exercer a administração, ou, finalmente, se o um dos cônjuges houver conferido ao outro, por mandato revogável, poderes para administrar os seus bens próprios.
O divórcio dissolve o casamento, fazendo cessar as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges – cfr. art.os 1688.º e 1788.º do C.C. – e os seus efeitos produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da propositura da acção no que tange às relações patrimoniais entre os cônjuges.
E se estiver provada no processo a separação de facto e um dos cônjuges o requerer, os efeitos do divórcio poderão mesmo retroagir à data do começo da separação, nos termos autorizados pelo art.º 1789.º do C.C..
Retrotraindo os efeitos patrimoniais do divórcio à data da propositura da acção, entram na partilha todos os bens que integrem àquela data o património comum do casal.
Está em causa nos autos um depósito bancário, pelo que cumpre fazer referência ao regime estabelecido no art.º 1680.º do C.C., que confere o direito a qualquer dos cônjuges de fazer depósitos bancários em seu nome exclusivo e movimentá-los livremente, qualquer que seja o regime de bens, com o que, como referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, cada um dos cônjuges tem a faculdade de “gerir autonomamente os dinheiros que lhe pertençam como bens próprios”.

Mas, advertem os mesmos Ilustres Civilistas, se algum deles “abusar deste poder, depositando em seu nome exclusivo quantias que sejam comuns, cabe naturalmente ao lesado reagir contra o abuso pelos meios adequados” (in “Código Civil Anotado”, vol. IV, 2.ª ed. revista e actualizada, pág. 293).

2.- Sem embargo, pertencendo os valores depositados ao casal, o ex-cônjuge, titular único do depósito, enquanto administrador de um bem comum, para além de estar, inequivocamente, obrigado a levá-lo à partilha, fica ainda obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge, desde a data em foi instaurada a acção de divórcio, entrando nessas contas as vantagens económicas que tenha retirado dos depósitos – cfr., neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 25/03/2004 (in C.J., Acs. do S.T.J., ano XII, tomo I, págs. 145-146).
O art.º 1790.º do C.C., que dispõe sobre a partilha, foi alterado pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, passando a dispor que em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos.

Porém, como referem FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, “A lei não impõe que na partilha cada cônjuge seja encabeçado nos bens que lhe pertenceriam se tivesse vigorado o regime da comunhão de adquiridos; só quer que cada cônjuge não receba na partilha mais do que receberia se tivesse sido convencionado esse regime. Não lhe importam os bens em espécie, mas só o seu valor” (in “Direito da Família”, vol. I, 5.ª ed., pág. 750), nada impedindo, pois, que o que for recebido a mais seja reposto ao outro cônjuge através do pagamento de tornas.

De todo o modo, atendendo à data da entrada em vigor da supramencionada Lei – 30/11/2008 (30 dias após a publicação, nos termos do seu art.º 10.º) – de acordo com as regras de aplicação das leis no tempo, estabelecidas no art.º 12.º do C.C., na situação sub judicio a partilha não terá de obedecer àquele parâmetro, anteriormente previsto para o cônjuge declarado único ou principal culpado, uma vez que a acção de divórcio foi intentada em 08/10/2007 e o divórcio, embora inicialmente litigioso, veio a ser convolado para mútuo consentimento.

3.- Na situação sub judicio, a data em que se concretiza o valor da quota-parte de cada um dos ex-cônjuges é, pois, aquela de 08/10/2007, já que a partilha deverá incidir sobre os bens que, a esta data, integravam o património comum do casal.

Ficou definitivamente adquirido, por decisão judicial transitada em julgado, que a quantia de € 250.000, a que se reportam estes autos, devia manter-se na relação de bens, estando assente que era um bem comum do casal (cfr. n.os 5 e 6 da facticidade provada).

É, assim, a supramencionada importância que a Apelante deve levar à partilha (ainda que o valor do saldo final por ela movimentado e de que, provadamente, se apossou, fosse inferior).
Resultando da informação agora obtida do Juízo de Família e Menores de Fafe que já foi efectuada a partilha nos autos de Inventário n.º 1968/07.1TBFAF-B, a qual foi homologada por sentença já transitada em julgado, crê-se terem deixado de subsistir as razões que fundamentaram a decisão de condenação da Apelante a “restituir ao património comum” aquela importância, posto que, em bom rigor, já não há “património comum” e a política de simplificação processual e de economia de meios que vem orientando as leis processuais permite que se evite impor aos aqui Autor e Apelante que reabram o referido Inventário, pedindo a partilha adicional de uma importância em dinheiro, cuja divisão simplificadamente se obtém nestes autos com a procedência do pedido formulado pelo Autor sob a alínea c) – de condenação da ora Apelante a “restituir-lhe” a quantia de € 125.000,00 correspondente à sua meação.

4.- O Autor pediu a condenação da Ré a pagar-lhe juros sobre aquela quantia, à taxa legal, contados desde 26/02/2007 (data em que a ora Apelante procedeu ao levantamento do saldo da conta que tinha no “Banco A”) até integral pagamento, liquidando os vencidos até à data da propositura da acção (13/10/2015) pela importância de 43.136,99.
O Tribunal a quo condenou a Apelante “a restituir ao património comum” os referidos € 250.000, acrescidos de “juros à taxa legal de 4% desde 26 de Fevereiro de 2007 até efectivo cumprimento”.
A Apelante insurge-se contra esta condenação alegando que os juros apenas são devidos a partir do momento em que o devedor se constituiu em mora, por aplicação do disposto no art.º 804.º do C.C., alegando ainda ter sido somente com a presente acção que foi interpelada para entregar ao Autor o montante peticionado de € 125.000.
É certo que, como acima ficou referido, pertencendo os valores depositados ao património comum do casal, a Apelante, titular única da conta bancária, enquanto administradora de um bem comum, estava obrigada a prestar contas ao Autor desde a data em que foi intentada a acção de divórcio.

Contudo, não é isso que se pede na presente acção, e obriga-la a prestar contas desta quantia, às quais seriam levadas as vantagens económicas que poderá ter retirado da referida quantia, ou seja, os juros, coloca-a numa situação de desequilíbrio com o Autor, cabeça-de-casal no Inventário, que também as não terá prestado relativamente aos bens comuns que administrou até à partilha.

Por outro lado, e como já acima se deixou referido, se algum dos cônjuges abusar do poder que lhe confere o art.º 1680.º do C.C., de fazer depósitos bancários e os movimentar livremente, cabe ao lesado reagir contra o abuso.
Ora, a presente acção consubstancia a reacção do Autor contra o abuso da Apelante, pelo que a contagem dos juros somente poderá ter início na data da citação – 24/11/2015, como se vê de fls. 41 dos autos.

Assiste, pois, a razão à Apelante quanto a esta parte.

Os juros devidos são os legais, nos termos da primeira parte do n.º 2 daquele art.º 806.º, visto não estar contemplada nos autos nenhuma das demais situações aí referidas, sendo, por isso, à taxa anual de 4%, de acordo com o disposto no art.º 559.º do C.C. e na Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril.
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X.- Insurge-se ainda a Apelante contra o segmento da decisão que a condenou como litigante de má fé.

1.- O art.º 20.º da Constituição reconhece o direito universal ao acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos.

Na lei ordinária, os art.os 1.º e 2.º do C.P.C., proclamando a ilicitude do recurso à força para realizar ou assegurar o próprio direito, reconhecem o direito, de todos, a obterem, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo bem como a possibilidade de a fazer executar.
Este direito tem, porém, como contrapartida o dever de ser exercido com sinceridade, que quem o exerça só o faça por estar convencido da justeza da sua pretensão.

Com efeito, os litigantes devem ter uma actuação que observe o dever de probidade que consiste em não formular pedidos injustos, nem deduzir oposições infundamentadas; não articular factos contrários à verdade; não requerer diligências meramente dilatórias; não impedir a descoberta da verdade, ou seja, devem estar de boa fé no processo.
Mais estão obrigadas a cooperar para que se obtenha com brevidade e eficácia a justa composição do litígio – cfr. art.os 7.º e 8.º do C.P.C.
Com a reforma do C.P.C. introduzida pelos Decretos-Lei n.os 329-A/95 e 180/96 já não é só o comportamento doloso mas também o gravemente negligente, que relevam para a litigância de má-fé, e também a parte vencedora poderá ser condenada como litigante de má fé “desde que o seu comportamento processual preencha alguma das previsões contidas no n.º 2 do artigo 456.º, sendo certo que a conduta censurável poderá não se reconduzir, apenas e necessariamente, à «má fé instrumental», como ficou expresso no preâmbulo do supramencionado Dec.-Lei n.º 180/96.
Depois de no art.º 8.º do C.P.C. deixar inequívoco que as Partes estão obrigadas a agir de boa fé, o legislador teve a preocupação de tipificar as condutas passíveis de integrarem a litigância de má fé, sendo sua intenção confessada uma maior responsabilização das partes.
O art.º 542.º do actual C.P.C. transcreveu, sem alterações, o que dispunha o art.º 456.º do anterior Código.

Deste modo, diz-se litigante de má fé a parte que, com dolo ou negligência grave, incorrer em algum dos comportamentos tipificados nas quatro alíneas do n.º 2 do art.º 542.º, sendo que as alíneas a), b) e c) se referem a tipos de actuação substancial: a dedução de pretensão ou de oposição cuja falta de fundamento não devesse ignorar; a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa; e a omissão grave do dever de cooperação. E a alínea d) tipifica uma conduta processual: o uso do processo ou dos meios processuais manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Refere ALBERTO DOS REIS que “na base da má fé está a consciência de não ter razão” (actuação dolosa), enquanto que na culpa grave ou no erro grosseiro, “o litigante está convencido de que tem razão, mas não empregou a diligência que devia empregar para desfazer o seu erro” (in “Código de Processo Civil Anotado”, II, págs. 262/263. Cfr. ainda Lebre de Freitas, et Al., in “Código de Processo Civil Anotado” vol. 2º., pág. 219).

Nos termos que vêm referidos no Ac. do S.T.J. de 30/09/2004, “a má fé psicológica, o propósito de fraude, exige, no mínimo, uma actuação com conhecimento ou consciência do possível prejuízo do acto; tal conhecimento ou consciência pode corresponder, quer ao dolo eventual quer a negligência consciente e, neste último quadro, aquela consciência pode reportar-se a uma simples previsão do prejuízo resultante do acto, nada se fazendo para o evitar, isto é, mesmo assim pratica-se o acto que se tem como potencialmente lesante” (ut Proc.º 04B2279, in www.dgsi.pt).

No Ac. desta Relação de Guimarães de 10/11/2011, citando-se Abílio Neto e arestos do S.T.J. e da Rel. de Lisboa, decidiu-se que a condenação como litigante de má fé só encontra justificação bastante quando “se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte” havendo-se concluído que “não litiga de má-fé, quem litiga sem direito, mas o faz convicto de que tem razão substancial, ainda que a não tenha (ut Procº. 387645/09.9YIPRT.G1, in www.dgsi.pt.”).

No que se refere aos factos, como alerta o S.T.J. no Ac. de 29/05/2003, deve ter-se presente que “a verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge a certeza das verdades reveladas”. A verdade judicial “é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja fiabilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico”(ut Proc.º 03B3893, in www.dgsi.pt).

Como nos dá conta ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, a jurisprudência vem decidindo que a alteração da verdade dos factos “só opera apenas se eles interferirem na decisão final”, não sendo relevante quando “o seu autor esteja convicto da existência do direito alegado, quando a parte considerada tenha sido vencida, apenas, mercê do funcionamento do ónus da prova ou quando a alteração dos factos não seja deliberada” (in “Litigância de Má-Fé Abuso do Direito de Ação e Culpa “In Agendo”, Almedina, 3.ª ed., pág. 64).

Uma das condutas em que se exprime a litigância de má-fé consiste na alegação, voluntária e consciente, de factos que seriam relevantes para a decisão da causa, mas que a parte sabe que, ao alegar como alega, desvirtua a realidade por si conhecida, visando, por isso, intencionalmente um objectivo censurável.

.- O Tribunal a quo fundamentou assim a condenação:

Perante a decisão proferida, torna-se claro que a Ré apresentou uma versão distorcida dos factos, faltando à verdade: imputou ao Autor o comportamento apropriativo que protagonizou, esgrimindo até ao último momento meios de prova destinados a convencer o Tribunal da bondade da sua tese.
Se é certo que as situações que conduzem à dissolução do vínculo conjugal são muitas vezes dolorosas e graves do ponto de vista da integridade física ou moral de um dos cônjuges, as mesmas devem, quando muito, ser discutidas na ação de divórcio e não eternizadas em processos posteriores.
A Ré assentiu na transformação do divórcio litigioso em mútuo consentimento e, nessa medida, impunha-se que se distanciasse das situações que estiveram na origem da rotura ou, pelo menos, que se abstivesse de as invocar para criar um cenário propício ao vencimento das suas pretensões.

Por outro lado, se há comportamentos eticamente censuráveis que serão desculpáveis num contexto de deterioração das relações e, por vezes, assumidos para evitar a concretização de alguns receios – como seja, dissipação em favor de terceiros de bens “voláteis” como é o dinheiro –, a sua continuidade num momento em que o vínculo se extinguiu é reveladora de uma personalidade malformada, movida por instinto de vingança.
A situação é tão mais grave quanto à certo que foi chamada a prestar depoimento de parte e foi advertida para o dever de verdade.
Ao agir como fez, a Ré teve em vista manipular o Tribunal e tornou mais difícil a tarefa que lhe está constitucionalmente atribuída, que passa sempre por apurar a verdade dos factos, sob pena de falhar na administração da Justiça.
O comportamento da Ré é objetivamente merecedor de censura”.

Reconduzindo a apreciação e valoração da conduta da Apelante a este processo (muito embora se compreenda perfeitamente a alusão à acção de divórcio e ao processo comportamental que conduziu à ruptura definitiva da relação conjugal, por terem sido temas trazidos para o julgamento pela própria Apelante e por duas das testemunhas por si arroladas) resulta inequívoco ter ela fundamentado o seu pedido reconvencional em factos que sabia não serem verdadeiros, porque se disse interventora pessoal neles.

E a decisão que julgou não provados tais factos não assentou apenas no simples julgamento sobre a credibilidade das testemunhas. Houve outros meios de prova que sustentaram o convencimento sobre a inveracidade dos referidos factos.
A decisão de improcedência do pedido reconvencional não se baseou, pois, na simples aplicação das regras sobre o ónus da prova.

Deduziu, pois, a Apelante pedido cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer, e alterou a verdade dos factos quando alegou ter sido coagida pelo Autor a proceder ao levantamento do dinheiro e que lho entregou.
Esta actuação integra a má fé substancial, sendo, por isso, merecedora de censura, o que justifica a multa que lhe foi cominada.
Desmerece, pois, provimento a pretensão recursiva da Apelante quanto a esta parte.
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C) DECISÃO

Considerando tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação, e, consequentemente:

a) revogam a decisão impugnada no segmento condenatório referido na alínea c) do ponto I. (referente à restituição ao património comum da quantia de € 250.000, acrescida dos juros legais);
b) julgam parcialmente procedente o pedido formulado pelo Apelado/Autor, condenando a Apelante/Ré a restituir-lhe a quantia de € 125.000 (cento e vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, contados da data da citação na presente acção, até efectivo e integral pagamento;
b) em tudo o mais confirmam e mantêm a decisão impugnada.
Custas da apelação pela Apelante e pelo Apelado, na proporção de 4/5 para a primeira e 1/5 para o segundo.
Guimarães, 25/10/2018

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho