Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
525/22.7T8PRG-A.G1
Relator: ELISABETE COELHO DE MOURA ALVES
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
SIMULAÇÃO DO PREÇO
PROVA PERICIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. O preço real acordado e pago no que se refere à venda do imóvel, é, em simultâneo com os demais pressupostos do exercício do direito de preferência, uma das questões essenciais a apurar na acção, arguida que seja a simulação do mesmo, uma vez que provada que seja a divergência entre o preço real e o preço declarado na escritura, e portanto, provada a simulação do preço, o direito de preferência só pode ser reconhecido se o preferente pagar o preço real pago pelo adquirente. Ou, ao invés, se os interessados nessa prova, não lograrem provar a alegada simulação relativa ao preço, os preferentes, provados que sejam os demais pressupostos da acção, podem preferir pelo preço declarado na escritura.
2. A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que, arguida a simulação pelos simuladores, é admissível prova testemunhal ou por presunção judicial (cfr. art. 351º do C.Civil) -a fim de interpretar o contexto dos documentos ou completar a prova documental-, se os factos a provar surgirem, com alguma verosimilhança, em provas escritas, o que constitui excepção à regra prevista no art. 394.º do CC.
3. A prova da simulação não representa, por norma, uma tarefa fácil, pois dificilmente existe prova directa da mesma. Nessa medida, necessita em regra, do recurso ao uso de presunções judiciais alicerçadas em conjunto de indícios como, por ex., o indício affectio (relações familiares, de amizade, de negócios, profissionais ou de dependência, anteriormente firmadas entre os intervenientes, o indício pretium vilis (preço irrisório ou abaixo dos valores de mercado), entre outros.
4. Obtendo-se a prova da simulação, na generalidade dos casos, de forma indireta, diga-se, pela demonstração dos seus indícios, a divergência entre o preço declarado e o valor real de mercado, assume neste âmbito indiciário, primordial importância, na sua conjugação com os demais elementos de prova.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

AA e mulher BB, residentes em ..., ..., intentaram a presente acção declarativa contra CC e mulher DD, residentes na Rua ..., ... ..., e EE e mulher FF, residentes na Avenida ..., ..., ..., pedindo a final:
a) que os AA sejam declarados proprietários dos prédios rústicos identificados no artigo 1º da PI;
b) que seja reconhecido aos AA. o direito de preferência que invocam, ou seja o direito de haverem para si o prédio rústico vendido e identificado no nº 8, deste articulado, substituindo-se na posição de compradores aos RR. EE e mulher FF, na escritura de compra e venda outorgada em 20 de Setembro de 2022, na Conservatória do Registo Predial ..., Processo Casa Pronta nº ...22, mediante o depósito do respectivo preço;
c) Subsidiariamente, na hipótese, de se vir a decidir a final, que o prédio urbano não se pode separar do prédio rústico, conjuntamente alienado aos 2ºs RR., sem prejuízo apreciável, reconhecer-se aos AA. o direito de preferirem sobre ambos, havendo-os para si, pelo preço global de € 35.000,00;
d) Em qualquer caso, ser ordenado o cancelamento do registo de inscrição a favor dos 2ºs RR. compradores relativamente ao prédio rústico vendido e objecto de preferência, bem como ao prédio urbano, descritos sob o nº ...06 da extinta freguesia ..., na Conservatória do Registo Predial ....
Alegam, muito em súmula, ser proprietários de dois prédios rústicos na freguesia ..., concelho ... os quais confinam física e imediatamente do lado poente com o prédio misto, denominado “ ... ao ...”, composto de parte urbana de casa de habitação e a parte rústica composta de culturas de regadio e sequeiro, vinha da região demarcada do ..., prédio este que Por escritura de compra e venda outorgada em 20 de Setembro de 2022, na Conservatória do Registo Predial ... foi vendido pelos 1ºs RR aos 2ºs RR,  pelo preço global de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), atribuíndo ao prédio urbano o preço de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) e ao prédio rústico o preço de € 32.500,00.
Sustentam que os 2º RR. compradores não são, nem nunca foram, proprietários de qualquer prédio rústico confinante com o prédio que lhes foi alienado e aos AA. não foi comunicado o projecto de venda, nem os demais elementos essenciais do negócio, pelo que concluem assistir-lhes o direito a preferir na venda mencionada, tendo os prédios em questão áreas inferiores à unidade de cultura para a zona.
Por se entender que a separação acarreta um prejuízo apreciável, os AA., desde já, se arrogam o direito de preferir pelo preço global os prédios vendidos aos 2ºs RR, fazendo de imediato o depósito da totalidade do preço pago pelos 2ºs RR., € 35.000,00.
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Citados vieram os 2ºs RR apresentar contestação, na qual em súmula e para o que ora releva, invocam que não existe o direito de preferência dos AA. considerando que o prédio é misto e constitui uma unidade predial que não pode ser desmembrada.
Dada a relação de amizade entre os AA e os 1ºs RR estes informaram aqueles da sua intenção de vender o prédio, e questionando-os sobre o seu interesse, dada a confinância, aqueles sempre manifestaram total e definitivo desinteresse, pelo que os 1ºs RR. se sentiram à vontade para propor aos 2ºRR., que fosse declarado no título de compra e venda um preço muito inferior ao real, para que o negócio não ficasse tão oneroso a nível fiscal, o que estes aceitaram.
Nessa medida e porque o prédio na realidade tem um valor muito superior, o que logo se impõe pela sua área de quase um hectare e meio e ainda por lá existir uma casa, assim como pela sua boa localização e, ainda pela sua produção vinícola de cerca de 10 pipas, sendo aproximadamente, 5 de benefício, o preço real da venda não foi de 35.000€, como declarado no título de compra e venda, mas de 115.000€ esse sim, correspondente ao valor real do prédio, valor esse que os 2ºsRR. pagaram aos 1ºsRR.
Concluem pela improcedência da acção ou no caso de procedência apenas com o reconhecimento do direito de preferência do AA. pelo valor de 115.000€ por ter desse montante o preço real da compra e venda.
Requerem como meio de prova e para além do mais, a realização de perícia para avaliação do prédio objecto de preferência, com base no alegado quanto ao valor real do prédio.
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Convidados os AA. a vir responder às excepções invocadas, vieram estes em requerimento autónomo impugnar os factos alegados quanto à divergência do preço da escritura e alegar que o valor indicado como valor real é muito elevado para os valores de mercado naquela região, pelo que não o aceitam como valor real já que o prédio tem uma área de exploração de vinha de 1,2 há e que o direito ao benefício em vigor (atribuída a letra ...) não dá direito a produzir mais de duas pipas de Vinho do Porto.
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Em sede de audiência prévia realizada em 5.06.2023, o objecto do processo e os temas de prova, foram fixados nos seguintes termos:

«OBJECTO DO LITIGIO:
(i) direito de propriedade dos Autores quanto aos prédios rústicos identificados no artigo 1.º da Petição inicial;
(ii) pressupostos de que depende o exercício do direito de preferência por parte dos Autores, relativamente ao prédio rústico melhor identificado no artigo 8.º da petição inicial;
(iii) caso o prédio urbano não poder ser separado do prédio rústico, reconhecimento do direito dos Autores de preferirem sobre ambos os prédios;
(iv) renúncia do exercício do direito de preferência por parte dos Autores;
(v) simulação do preço de venda do prédio misto.

TEMAS DA PROVA:
Considerando o teor dos articulados das partes, apresentam-se como temas de prova os seguintes:
1. Saber se os 1.ºs Réus, dada a relação de proximidade pessoal com os Autores, por diversas vezes os informarem da intenção de venderem o prédio e se estes estavam interessados na aquisição.
2. Apurar se os Autores manifestaram aos 1.ºs Réus desinteresse em comprar o prédio.
3. Determinar qual a destinação económica do prédio,
4. Apurar os fins/destino para o qual os 2.ºs Réus adquiriram o prédio.
5. Apurar qual o preço real pago pelos 2.ºs Réus para a aquisição do prédio e se o mesmo corresponde ao valor declarado.
6. Saber se os 2.ºs Réus pagaram aos 1.ºs Réus por conta da compra e venda do prédio o montante de € 73.000,00 por transferência bancária e o remanescente em numerário.»
Na referida audiência foram ainda apreciados os meios de prova indicados pelas partes, mormente pelos 2ºs. RR, vindo a ser indeferida a realização da perícia por estes requerida na contestação.
O despacho tem o seguinte teor (transcrição):
«Foi ainda requerida a realização de uma perícia para avaliação do prédio objecto de preferência, com base no alegado nos artigos 37, 38, 39 e 41 da contestação.
Relativamente à necessidade e pertinência da perícia cabe referir o seguinte:
O direito de preferência constitui um direito real que confere ao titular o direito de prevalência e sequela sobre o objecto preferido, tudo se passando quando feito valer judicialmente com êxito como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com o preferente, o qual se substitui ao primitivo comprador na respectiva escritura – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11.12.2007, processo n.º 160/04, in www.dgsi.pt.
São, pois, pressupostos do direito real de preferência: i) ter sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura; ii) que o preferente seja proprietário de terreno confinante com o prédio alienado; iii) que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante.
Nesta perspectiva, afigura-se irrelevante apurar qual o valor de mercado do prédio em questão, porquanto o que importa aferir é qual foi o respectivo preço de compra e venda, a fim de, reunidos os demais legais pressupostos, se poder operar a substituição dos autores na posição dos compradores/ adquirentes do imóvel em causa.
Ora, da análise dos articulados, quer-nos parecer que um dos pontos da matéria de facto controvertida não consta que seja, como vem alegado, a determinação do valor de mercado do imóvel em apreço, mas, ao invés, saber qual foi o preço contratualizado e efectivamente pago pela aquisição do prédio (defendendo os autores que tal preço se cifrou nos 35.000,00, conforme declarado na escritura de compra e venda, e sustentando os 2.ºs Réus que o preço ascendeu a 115.000,00€).
Tal facto, não carece de ser provado por prova pericial, nem exige especiais conhecimentos técnicos ou científicos, razão pela qual a realização da perícia nos moldes requeridos sempre redundaria na prática de um acto inútil, o qual se encontra vedado por lei, atento o disposto no art. 130.º do CPC.
Pelas razões apontadas, indefere-se a realização da perícia por não se verificarem os requisitos de que depende a sua admissão e previstos no artigo 476.º, n.º 1 do CPC.»
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Inconformados com esta decisão, vieram os réus interpor o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1. Tendo os RR. alegado na sua contestação a simulação do preço da venda objecto da preferência por se ter declarado no respectivo titulo um valor (35.000€) muito inferior ao valor real (115.000€) justifica-se plenamente a realização de perícia para avaliação do prédio vendido.
2. A isso não obstando o facto de não estar em causa a determinação do valor de mercado desse prédio, tendo em conta que, segundo as regras da experiência comum, ninguém vende qualquer prédio que lhe pertença por um preço muito inferior ao seu valor real.
3. E como a determinação desse valor, com base na matéria de facto alegada para o efeito, só é possível através de conhecimentos técnicos, justificava-se a realização da requerida perícia, até para completar os restantes meios de prova requeridos, por isso, contrariamente ao entendido e decidido, a requerida perícia não só nunca redundaria em acto inútil, antes se mostrando plenamente pertinente e justificada.
4. Assim não se tendo entendido e decidido e ao indeferir a prova pericial requerida pelos RR. consideramos que o despacho recorrido não fez a melhor e mais correcta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, nomeadamente do disposto no nº1 do art.476º do C.P.C. e art. 388º do C. Civil, pelo que
No provimento do presente recurso, deve revogar-se o d. despacho saneador na parte em que indeferiu a prova pericial requerida pelos RR. e, em sua substituição, decidir-se pela admissão desse meio de prova e determinar-se a sua realização, assim nos parecendo resultar melhor interpretada e aplicada a lei para também melhor realização da JUSTIÇA.»
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Não foram apresentadas contra-alegações.

II. O objecto do recurso.

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objecto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou relativas à qualificação jurídica dos factos, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b) e 5º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil (C.P.C.).
Face às conclusões da motivação do recurso, a questão a decidir prende-se com a admissibilidade da perícia requerida pelos apelantes na presente acção de preferência na qual é invocada a simulação do preço de venda.
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III – Fundamentação fáctica.

A factualidade a ter em conta para a apreciação e decisão do recurso circunscreve-se à indicada no relatório.
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IV - Fundamentação de Direito

Como se evidencia das conclusões de recurso, a única questão em apreciação cinge-se à bondade da decisão que indeferiu a perícia requerida pelos 2ºs. RR (compradores), a qual tinha por objecto o apuramento do valor de mercado do prédio misto objecto da escritura de compra e venda que os AA. visam preferir, considerando a arguida divergência entre o preço aposto na escritura (35.000€) e o preço que alegam ter efectivamente sido convencionado e pago aos vendedores (1ºs RR), 115.000,00€.
Na decisão recorrida entendeu-se indeferir a perícia requerida por se tratar de um acto inútil, com o fundamento de que, considerando os pressupostos do direito real de preferência -  i) ter sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura; ii) que o preferente seja proprietário de terreno confinante com o prédio alienado; iii) que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante - o apuramento do valor de mercado do prédio é irrelevante, importando sim aferir qual foi o preço de compra e venda contratualizado e pago, a fim de, reunidos os demais legais pressupostos, se poder operar a substituição dos autores na posição dos compradores/ adquirentes do imóvel em causa, facto que, no entender da decisão, não carece de ser provado por prova pericial, acrescentando também, que da análise dos articulados não constam factos controvertidos sobre a determinação do valor de mercado do imóvel em apreço.
Para reverter a dita decisão de indeferimento, sustentam os apelantes que o apuramento do valor de mercado do prédio, através da perícia requerida, se revela importante como complemento dos restantes meios de prova requeridos no que se refere ao valor real da venda do mesmo, considerando que segundo as regras da experiência comum ninguém vende um prédio que lhe pertença por um valor muito inferior ao seu real valor.
Desde já adiantamos, que em nosso entender assiste razão aos apelantes.
Vejamos:
Como se salienta no Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, relatora Sandra Melo[1]: «A prova tem por função demonstrar a realidade de determinados factos.
O direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva (que decorre do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, o qual impõe que seja assegurado a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e a equidade do processo) tem como consequência, além do mais e no que aqui nos interessa, que a par do direito à invocação dos factos relevantes se permita a prova dos mesmos, sob pena de se ter um processo ineficaz e injusto (sem se apurarem os factos que fundamentam o direito, não se mostra possível o seu julgamento, com a competente aplicação das normas jurídicas).
Em regra, quando se fala da instrução no âmbito do processo pensa-se nos factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova, a verter na enunciação dos temas da prova.
Mas também pode haver necessidade de apurar factos em incidentes processuais, relevantes para sua decisão. (…)
Conforme resulta do art. 388º do Código Civil, a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial. A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal (389º).
Julgamos não contestado, que, para o apuramento do valor de mercado do prédio se justifica a realização de prova pericial, considerando a necessidade de conhecimentos especiais, veja, relativos à classificação da zona de inserção do imóvel, índice de construção, comportamento do mercado imobiliário à data; área agrícola, produção vitivinícola e “benefício em vigor”, entre outros. Nessa medida, a prova pericial surge, não só como idónea, mas mesmo como natural ou preferencial para o apuramento do valor de mercado[2]
 Pelo que, nesse pressuposto, a questão reside apenas em saber se tal prova se mostra relevante ao apuramento dos factos em discussão na presente causa.
A preferência, traduzida no direito de haver para si a coisa alienada, assegura ao respectivo titular uma prioridade de contratar em igualdade de condições, no que esta igualdade de condições representa para o adquirente (Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Publicações Universidade Católica, Colecção Teses, Porto 2006, pág. 655).
O termo “preço devido” referido no art. 1410º n.1 do C.Civil ex vi 1380º do C.C, tem o sentido de “quantia que o comprador preferido desembolsou para haver a coisa objecto da preferência (no fundo, o conceito técnico de “preço” a que alude o art. 874.º do Código Civil), valor esse correspondente ao benefício económico ajustado entre vendedor e o adquirente como contrapartida da alienação do bem[3].
In casu e face à posição das partes e ao objecto do processo e temas de prova fixados na acção, resulta incontornável, que, para além dos demais requisitos de procedência da acção de preferência, uma das questões a apurar consiste em saber qual o preço real pago pelos 2.ºs Réus para a aquisição do prédio e se o mesmo corresponde ao valor declarado, face à arguida simulação do preço da sua venda.
Nessa medida, o preço real acordado e pago no que se refere à venda do imóvel em apreço nos autos, é, em simultâneo com os demais pressupostos do exercício do direito de preferência, uma das questões essenciais a apurar na presente acção de preferência, uma vez que provada que seja a divergência entre o preço real e o preço declarado na escritura, e portanto, provada a simulação do preço, o direito de preferência só pode ser reconhecido se o preferente pagar o preço real pago pelo adquirente[4]. Ou, ao invés, se os interessados nessa prova, não lograrem provar a alegada simulação relativa ao preço, os preferentes, provados que sejam os demais pressupostos da acção, podem preferir pelo preço declarado na escritura.
Destarte, a simulação do preço (simulação objetiva, que tem por referência o objeto, conteúdo, tipo ou natureza do negócio jurídico) não implica a nulidade do ato (contrato de compra e venda do imóvel dos autos), que passará, assim, a valer pelo preço realmente convencionado, valendo o negócio dissimulado (artigo 241º do Código Civil)[5].
O art. 240°, n°1, do C.Civil, define negócio simulado como aquele em que, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, há divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante.
O art. 241°, n°1 do mesmo diploma legal, determina que "quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado".
Destes preceitos, tem a doutrina defendido a necessidade da verificação simultânea de três requisitos para que haja um negócio simulado: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório (pactum simulationis) e o intuito de enganar terceiros (que se não deve confundir com o intuito de prejudicar).
In casu, caberá aos réus compradores provar que o preço real /devido é superior ao preço que consta da escritura, face à arguida, por estes, simulação do preço da escritura (artigo 342º n.2 do Código Civil).
A doutrina e a jurisprudência[6] vêm entendendo que, arguida a simulação pelos simuladores, como sucede in casu, é admissível prova testemunhal ou por presunção judicial (cfr. art. 351º do C.Civil) -a fim de interpretar o contexto dos documentos ou completar a prova documental-, se os factos a provar surgirem, com alguma verosimilhança, em provas escritas, o que constitui excepção à regra prevista no art. 394.º do CC (da inadmissibilidade de prova por testemunhas, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º. a existência de um começo ou princípio de prova por escrito).
Importa referir que na “prova directa, o procedimento probatório consiste na contrastação empírica directa do enunciado fáctico que se prova. Diversamente, na prova indirecta o procedimento probatório permite alcançar o facto que se prova a partir de outro ou outros factos mediante um processo inferencial.”[7]
Diz-nos o artigo 349º do C.Civil que: « Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.»
Ora, como é sabido, a prova da simulação não representa, por norma, uma tarefa fácil, pois dificilmente existe prova directa da mesma. Nessa medida, necessita em regra, do recurso ao uso de presunções judiciais alicerçadas em conjunto de indícios como, por ex., o indício affectio (relações familiares, de amizade, de negócios, profissionais ou de dependência, anteriormente firmadas entre os intervenientes, o indício pretium vilis (preço irrisório ou abaixo dos valores de mercado), entre outros[8].
Ou seja, obtendo-se a prova da simulação, na generalidade dos casos, de forma indireta, diga-se, pela demonstração dos seus indícios, a divergência entre o preço declarado e o valor real de mercado, assume neste âmbito indiciário, primordial importância, na sua conjugação com os demais elementos de prova.
Ora, resulta inquestionável que os RR. no seu articulado de contestação, invocaram o indício pretium vilis, ao alegarem que o prédio preferido na acção tem um valor muito superior ao que consta da escritura, atendendo à sua área de quase um hectare e meio e ainda por lá existir uma casa, sua boa localização e, também, pela sua produção vinícola de cerca de 10 pipas, sendo aproximadamente, 5 de benefício, pelo que o seu valor real na ordem dos 115.000,00€ corresponde ao preço efectivamente pago.
Desse modo, não acompanhamos o despacho recorrido quando aí se diz que apurar o valor de mercado do prédio em questão é irrelevante e constitui um acto inútil, uma vez que, como se depreende de tudo o que ficou exposto, tal apuramento a realizar através de perícia, revela-se um elemento indiciário importante e relevante à prova do facto nuclear, como seja, o valor real da compra e venda realizada.
Procede, portanto, a apelação. 
*
IV - Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente o recurso de apelação interposto e, em consequência, revogam a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que ordene a realização da perícia requerida pelos réus, para determinar o valor de mercado do prédio na altura da concretização da venda, considerando, para além do mais, os parâmetros indicados nos artigos 37, 38, 39 e 41 da contestação.
Custas da apelação pelos AA. recorridos.
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Guimarães, 18.04.2024

Elisabete Coelho de Moura Alves (Relatora)
Maria Amália Santos
Anizabel Sousa Pereira
(assinado digitalmente)


[1] De 21.09.2021, processo 991/20.5T8BRG-B.G1, que subscrevemos como adjunta.
[2] A propósito, vide Ac. desta R.G. de 2.02.2017, da relatora Maria João Matos, in www.dgsi.pt.
[3] Como se salienta no Ac. STJ de 8.09.2016, proc. 1022/12.4TBCNT.C1.S1, in www.dgsi.pt
[4] Como se salienta no Ac. desta R. G. de 29.09.2004, processo 1355/04-1, in www.dgsi.pt , onde se refere constitui entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência o de que seja um caso de lapso na indicação do preço, seja um caso de simulação do preço, sempre o preferente, para se substituir ao adquirente tem de pagar o preço efectivamente pago Neste sentido vide Menezes Cordeiro, in, “Direito das Obrigações”, vol. I, 1988, págs.502 e 503; Mota Pinto, in, Teoria Geral do Direito Civil, 1976, págs. 369 e 370; Pires de Lima e Antunes Varela in, Código Civil, Anotado, vol. III, 2ª ed., pág. 371 e , entre muitos outros, os Acs do STJ de 25.11.186, in, BMJ ,n.º 361, pág. 534; de 26.04.1995, in, CJ/STJ, ano III, tomo I, pág. 153; de 21.05.96, in, CJ/STJ, Ano IV, tomo II, pág. 79; Acs. da Relação de Évora, de 30.10.97, in, CJ, ano XXI, tomo IV, pág. 279 e de 19.04.90, in, BMJ n.º396, pág. 452; Ac. da Relação do Porto, de 22.09.1988, in, BMJ n.º 379, pág. 642.; Ac. STJ de 7.2.2017, WWW.dgsi.pt .
[5] (cfr. Acs. do STJ, de 18 de março de 2004 e de 5/06/2007).  
[6] Cfr. entre outros, Acórdão do STJ, de 7 de fevereiro de 2017, RG de 9.04.2019; consultável em www.dgsi.pt
[7] Cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova por Presunção no Direito Civil”, Almedina, 2013-2a ed. Pág.23.
[8] Cfr. a propósito acórdão desta Relação de Guimarães de 15.12.2022, proc. 71/20.3T8BRG.G1;