Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | PAULA RIBAS | ||
| Descritores: | INCAPACIDADE JUDICIÁRIA SUPRIMENTO MORTE DA PARTE INCAPAZ COMODATO RESTITUIÇÃO USO INDETERMINADO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 12/04/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 3.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | 1. Não há que suprir a incapacidade de uma das partes se, ainda que esta tenha sido declarada, antes do seu suprimento, se verificou a morte da parte incapaz, cumprindo aos seus herdeiros ratificar os atos que foram por este praticados. 2. Não há nulidade da sentença por excesso de pronúncia se o julgador refere a anulabilidade do negócio sem que a mesma tenha sido invocada pela parte a quem aproveitaria, mas não retira dessa referência jurídica qualquer consequência quanto à sua validade. 3. Dependendo a alteração da decisão, na parte de direito, integralmente da modificação da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, quando tal modificação não se verifica, e nenhuma questão existe relativa à decisão de direito proferida, é de considerar o disposto pelo art.º 608.º, nº 2, aplicável ex vi n.º2, do art.º 663.º, ambos do C. P. Civil. 4. A cedência de uma casa de habitação para esse fim deve ser entendia como tendo uso indeterminado para aplicação do disposto no art.º 1137.º do C. Civil. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I – Relatório (elaborado com base naquele que foi realizado na 1.ª Instância): AA, BB, CC, DD, EE, FF, casado com GG, no regime da comunhão geral (sendo que este autor entretanto faleceu, tendo sido declarados habilitados GG, HH, II, JJ e KK como sucessores de FF, assumindo a posição deste), LL, MM, AA, (entretanto falecido, tendo sido declarados habilitados NN, OO, PP, QQ e RR como sucessores de AA, assumindo a posição deste), SS, FF, TT, casado com GG, no regime da comunhão geral, UU, VV, WW, XX, casada com YY, no regime da comunhão geral, ZZ, AAA, BBB, CCC, DDD, casada com EEE, no regime de comunhão geral, FFF, WW, GGG, HHH, III, JJJ, KKK, LLL, MMM, NNN, LL, e OOO vieram intentar a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra PPP. Alegam, em síntese, que são herdeiros e que dessa herança faz parte um prédio que, em tempos, foi cedido gratuitamente pelo 1.º autor à ré. Tal cedência foi efetuada sem prazo e sem autorização do outro comproprietário, falecido irmão do 1.º autor. Alegam ainda que solicitaram à ré a entrega do imóvel, mas a mesma recusou-se a fazê-lo, pelo que, invocando o regime do comodato, requerem que a ré seja condenada: a) a reconhecer que o prédio urbano que identificam pertence às heranças ilíquidas e indivisas abertas de QQQ e RRR, bem como, quanto a esta, do 1.º autor, em regime de compropriedade, na proporção de metade indivisa para cada uma; b) a restituir esse imóvel no estado em que lhe foi entregue, livre e devoluto de pessoas e bens; c) a pagar a quantia de 400,00 € mensais por cada mês em que se mantenha na posse e utilização desse prédio, desde a citação até entrega efetiva. Citada, a ré contestou alegando, em síntese, que o comodato foi efetuado a título vitalício, sendo que o outro comproprietário aceitou o mesmo, entendendo assim que os autores litigam de má fé. Deduziu ainda reconvenção, alegando, em síntese, que os autores beneficiaram dos trabalhos agrícolas por si realizados no terreno desse prédio, invocando o regime do enriquecimento sem causa. Peticionou assim a condenação dos autores a pagar-lhe: a) uma indemnização nunca inferior a 90.000,00 € pelo enriquecimento sem causa, acrescida de juros legais a contar da citação; b) uma indemnização nunca inferior a 5.000,00 € por litigância de má fé, acrescida de juros legais a contar da citação; c) a quantia nunca inferior a 48.000,00€, caso se decida pela cessação antecipada do contrato de comodato vitalício. Os autores replicaram, tendo impugnado a matéria de facto alegada na reconvenção, afirmando que a falecida II também não autorizou o referido comodato. No decurso da audiência, e após a realização de prova pericial sobre a capacidade do 1.º autor para prestar depoimento de parte, a ré requereu a suspensão da instância, para que fosse analisada a questão por si invocada de falta de capacidade daquele para a propositura da ação, ordenando o Tribunal o que entendesse por conveniente, considerando as conclusões do relatório pericial. Os autores pronunciaram-se no sentido de tal pretensão constituir um expediente dilatório, tendo em vista protelar a entrega do imóvel, colocando em causa a idoneidade do Mandatário que propôs a presente ação e que afirmou estar o 1.º autor capaz quando a procuração lhe foi outorgada. Quanto a este pedido, e apesar de ter entendido que o 1.º autor não tinha capacidade para prestar depoimento de parte, dando-o sem efeito, indeferiu a requerida suspensão da instância, determinando a conclusão da audiência. Concluída, então, a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que decidiu: “a) Declarar que as heranças ilíquidas e indivisas abertas (de QQQ e de RRR), bem como o 1.º autor são comproprietários do prédio mencionado no ponto 8 dos factos provados; b) Condenar a ré a restituir aos autores o imóvel, supra referido, livre e devoluto de pessoas e bens; c) Condenar a ré a pagar aos autores a quantia de €32,35, por cada mês, desde a citação até entrega efetiva do prédio supra referido; d) Absolver os autores de todos os pedidos reconvencionais”. Proferida a sentença, a ré veio apresentar recurso de apelação desta decisão, colocando ainda em crise o despacho proferido em audiência de julgamento que determinou a conclusão da audiência (indeferindo assim a suspensão da instância perante a alegada incapacidade do 1.º autor) - despacho de 13/09/2024. Os autores responderam ao recurso. Após convite para sintetização das suas conclusões, a que a ré respondeu, em 20/03/2025, foi proferido neste Tribunal Acórdão que, apreciando o recurso do despacho proferido em audiência de discussão e julgamento, em 13/09/2024, o revogou, determinando que, reconhecida a incapacidade do 1.º autor, fossem realizadas pelo Tribunal de 1.ª Instância as diligências necessárias ao seu suprimento, nos termos dos art.ºs 27.º e 17.º do C. P. Civil, consoante aquele tivesse ou não representante legal nomeado, anulando-se os demais atos processuais praticados após tal despacho, ou seja, as alegações realizadas em audiência de julgamento e a sentença proferida. Já depois de proferido o Acórdão, um dos autores veio informar que o 1.º autor havia falecido, tendo deduzido o respetivo incidente de habilitação. Foi neste Tribunal da Relação proferida decisão sumária que, em 04/06/2025, habilitou como herdeiros do 1.º autor os respetivos filhos, que eram já partes nesta ação como autores, OOO, NNN e LL. Devolvidos os autos à 1.ª Instância, o Mm.ª Juiz a quo proferiu despacho a determinar que “com vista a evitar eventuais questões formais”, fossem notificados os habilitados do falecido 1.º autor AA (ali erradamente identificado como réu) para juntar declaração de ratificação de todo o processado, tendo ainda sido agendada data para a continuação da audiência de julgamento (“designadamente para realização das alegações”). Essa ratificação por parte dos herdeiros foi realizada nos autos em 15/07/2025. Concluída a audiência de discussão e julgamento, foi proferida nova sentença, em 05/09/2025, com o mesmo desfecho da sentença anteriormente proferida, tendo, no respetivo relatório sido referido que “deste modo, produzida a prova e tornando-se inútil a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães (a questão doutamente apreciada ficou ultrapassada), designou-se data para alegações”. Novamente inconformada, veio a ré apresentar nova apelação, apresentando as seguintes conclusões (omitindo-se aquelas que não traduzem verdadeira questões): … “XII- O douto Tribunal a quo, apesar de instado pelo douto Tribunal ad quem para, reconhecida a incapacidade do 1.º Autor, fossem realizadas por aquele as diligências necessárias ao seu suprimento, XIII- Certo é que tal questão foi ignorada, entendendo que, pelo falecimento do 1.º Autor e, uma vez que, os seus sucessores ratificaram todo o processado, tal questão se encontra ultrapassada. XIV- Ora, não pode a Ré/Recorrente concordar com tal entendimento. XV- A questão da incapacidade foi invocada em audiência de julgamento, pelo Ilustre Mandatário do 1.º Autor, quando se previa a audição deste em depoimento de parte, não tendo a Ré prescindindo de tal depoimento. XVI- Até aquele momento, nunca fora invocada tal incapacidade. XVII- A alegada falta de capacidade apenas e tão só se revelou no momento em que o 1.º Autor deveria prestar depoimento de parte – factualidade que, até ao seu falecimento, entendemos que não foi possível provar. XVIII- Salvo melhor opinião, e com todo o respeito, deverá entender-se que a falta de depoimento de parte do 1.º Autor consubstancia uma recusa de depoimento, o que implicará a confissão dos factos! XIX- Assim sucedendo, a decisão final teria, obrigatoriamente, que ser diferente da proferida, pelo que, entendemos que é imprescindível que o douto Tribunal a quo se pronunciasse sobre tal questão, a fim de considerar verificada ou não a incapacidade do 1.º Autor para considerar justificada ou não justificado a falta daquele. XX- Entende a Ré/Recorrente que a Sentença proferida enferma de vicio de omissão de pronúncia, devendo ser a mesmo considerada nulo por manifesta violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1al. d) CPC. … XXIII- Da Impugnação da matéria de facto - Considera a Ré, aqui Recorrente, que a prova testemunhal produzida durante a Audiência de Discussão e Julgamento não foram apreciadas nem valorada da forma mais correta, assim como não concorda com os fundamentos e critérios apresentados para justificar a convicção do Tribunal a quo, no que diz respeito ao facto de considerar não prova do que o comproprietário QQQ e a falecida mulher do 1.º Autor, tenham autorizado a Ré/Recorrente a utilizar o prédio objeto dos autos, à semelhança do 1.º Autor/Recorrido, assim como também não se pode concordar com o facto do douto Tribunal considerar que não se provou que a autorização para a Ré utilizar o imóvel tenha sido estabelecido até à sua morte - Aliás, nem se compreendem, no fundo, parte dos factos considerados provados, uma vez que, da prova produzida resulta, claramente o contrário ou um sentido diferente do considerado assente pelo douto Tribunal. XXIV- Mais ainda não se concorda, com o facto do douto Tribunal considerar também que não resultou provado que tenha sido pedido à Ré/Recorrente que continuasse a trabalhar os terrenos da família, bem como o terreno onde estava inserido o imóvel, sendo que parte dessas colheitas eram entregues pela Ré ao 1.º Autor. XXV- Conforme se verá, foi requerida pela Ré/Recorrente em sede de Contestação/Reconvenção o depoimento de parte do 1.º Autor e as declarações de XXVI- parte daquela – prova admitida no despacho saneador, não tendo O 1.º Autor comparecido à Audiência de discussão e julgamento – conforme supra referido. XXVII-A Ré/Recorrente prestou declarações de parte atestando que o comodato estabelecido entre as partes se tratava de um comodato vitalício uma vez que a o 1.º Autor (com autorização do outro comproprietário) lhe concedeu autorização para viver no imóvel até à sua morte. XXVIII- Em contrapartida a Ré/Recorrente trabalhava várias terras do 1.º Autor e do comproprietário QQQ, inclusive o logradouro do imóvel, suportando os custos desses trabalhos e partilhando os frutos do cultivo com estes. XXIX- Ora a parte da versão da Ré/Recorrente no que diz respeito ao comodato vitalício foi atestada pela própria e não foi contrariada por nenhuma das partes – aliás todas referiam não ter conhecimento dos termos em que foi estabelecido o comodato –uma vez que quem conhecia os termos do mesmo era apenas o 1.ºAutoreaRé/Recorrente. XXX- Não tendo o 1.º Autor prestado depoimento para contrariar esta versão como pode o douto Tribunal não considerar como verdadeira a versão da Ré/Recorrente? … XXXIII- Todas as testemunhas e os próprios Autores que prestaram declarações de parte tinham conhecimento de que a Ré/Recorrente vivia no imóvel há mais de 20 anos, que cultivava e suportava os custos de tal cultivo. XXXIV- O douto Tribunal a quo também concluiu que era do conhecimento de todos, inclusive do Padre QQQ (comproprietário) e da falecida mulher do 1.º Autor que a Ré/Recorrente vivia naquele imóvel e de que até mantinha uma relação extraconjugal com o 1.º Autor. XXXV- Posteriormente, conclui o douto tribunal que, apesar do conhecimento, não se mostra plausível que a própria falecida mulher do 1.º Autor e o Padre QQQ tenham dado autorização para a Ré/Recorrente utilizar o imóvel. XXXVI- Com o devido respeito não podemos concordar com tal conclusão uma vez que, sendo do conhecimento de todos que a Ré/Recorrente vivia durante mais de 20 anos no imóvel, se a falecida mulher do 1.º Autor e o próprio comproprietário não autorizassem teriam movido os meios legais disponíveis para requerer a posse do imóvel e/ou anular o comodato. … XXXIX- Na perspetiva da Ré, aqui Recorrente, deveriam ter sido considerados não provados os factos indicados nos pontos 9) do capítulo conducente aos Factos provados da douta Sentença. XL- Concretas provas que impõe decisão diversa da Recorrida: -Declarações do Autor OOO; Depoimento/Declarações da Ré/Recorrente; Depoimento da Testemunha SSS; Depoimento da Testemunha TTT XLI- Não podemos concordar com a justificação do douto Tribunal para dar como provado o facto 9 provado, porquanto por um lado afirma que era do conhecimento de todos, inclusive da falecida mulher do 1.º Autor e do comproprietário, por outro refere que que não semostra plausível que a falecida mulher e o comproprietário (Padre QQQ) aceitasse que o 1.ºAutor vivesse no imóvel com a Ré/Recorrente com quem mantinha uma relação extraconjugal. XLII- Uma coisa é não aceitarem a relação extraconjugal, outra bem diferente era aceitar a cedência do imóvel para habitação da Ré/Recorrente. XLIII- O certo é que em momento algum se conseguiu demonstrar que tanto a falecida mulher do 1.º Autor como o comproprietário não deram autorização nem aceitavam o comodato vitalício. Aliás o facto do conhecimento geral por parte de toda a sociedade daquele meio, demonstra exatamente o contrário: XLIV- Faz sentido os proprietários de um imóvel terem conhecimento de que o mesmo está a ser utilizado por terceiros, não autorizarem, nem aceitarem essa utilização e nada fazerem para por fim à situação? XLV- Pior, o processo apenas é instaurado após a morte do comproprietário e da mulher do 1.º Autor !!!! Até este momento nenhuma questão tinha sido levantada por quem de direito!!!!!! XLVI- Mais a mais, urge referir que quanto à falta de autorização/aceitação por parte da falecida mulher do 1.º Autor tal questão não invocada em sede de Petição Inicial, tendo o douto Tribunal a quo insurgido em excesso de pronúncia conforme se desenvolverá em sede de impugnação de matéria de direito. XLVII- Além disso, mesmo que tivesse sido invocada tal questão, o direito da falecida mulher, bem como do Padre QQQ já havido caducado há muito – situação que consubstanciaria uma exceção dilatória de conhecimento oficioso conforme infra se explanará. … L- Na perspetiva da Ré, aqui Recorrente, deveriam ter sido considerados provados os factos indicados nos pontos b; c; d; e; f; do capítulo conducente aos Factos não provados da douta Sentença, uma vez que não podemos concordar com a justificação do douto Tribunal a quo, uma vez que entendemos não existir qualquer motivo para por em crise as declarações/depoimento da Ré/Recorrente LI- Concretas provas que impõe decisão diversa da Recorrida: Declarações do Autor OOO; Depoimento/Declarações da Ré/Recorrente; Depoimento da Testemunha SSS; Depoimento da Testemunha TTT. … LVI- Factos que deverão resultar provados: 6. À Ré sempre lhe foi dito que havia concordância de ambos os proprietários, sendo que o 1.º Autor a informou que o Padre QQQ outorgou, em tempos, uma Procuração a favor dele, para que este o representasse em vários assuntos, nomeadamente os relacionados com os imóveis cuja propriedade pertencia a ambos, o que levava a que o 1.º Autor assumisse a administração/gestão de todo o imóvel, situação que era visível para todos. 7. A autorização concedida à ré foi estabelecida até à sua morte. 8. QQQ autorizou e/ou aceitou a cedência efetuada pelo seu irmão à ré. 9. Desde que o imóvel lhe foi cedido para sua habitação própria e permanente, foi-lhe pedido também que continuasse a trabalhar os terrenos da família, bem como o terreno onde estava inserido o imóvel, pedido a que a Ré acedeu. 10. Em muitas colheitas, parte desses frutos eram entregues pela Ré ao 1.º Autor.” LVII- Nesta senda, deveria ter sido julgada improcedente por não provada a ação intentada pelos Autores, absolvendo-se a Ré do pedido. Mais deveria ter sido julgado procedente por provado o pedido reconvencional da Ré. …. LX- O imóvel foi cedido à Ré/Recorrente para sua habitação própria e permanente e estabelecido o limite até à sua morte - Tratando-se de um Comodato Vitalício e não um Comodato sem prazo de restituição como tentam convencer os Autores/Recorridos e como entendemos que ficou demonstrando no âmbito da impugnação da matéria de facto. LXI- Por se tratar de um Comodato Vitalício, não tem a Ré/Recorrente a obrigação de proceder à sua restituição, porque o seu termo ainda não se verificou - embora se possa admitir que o prazo não está determinado, porque sendo o Comodato Vitalício, depende da ocorrência de um facto, é, no entanto, determinável, quando o facto ocorrer. LXII- Este Comodato Vitalício é do conhecimento de todos os Autores/Recorridos, bem como de todas as pessoas da freguesia, que sempre conheceram a habitação da Ré como sendo a casa sita na Rua ..., ... , como facilmente se poderá constatar através do depoimento das testemunhas da Ré/Recorrente e dos próprios Autores que prestaram declarações de parte. LXIII- A própria idade da Ré – 73 anos – demonstra também que o Comodato em causa é um Comodato Vitalício e, estando perante um Comodato Vitalício, não podem os proprietários requerer a sua restituição porque o seu termo ainda não se verificou, e, embora o seu termo seja incerto, é no entanto, determinável. LXV- Conforme supra referido, a violação das normas processuais que disciplinam, em geral e em particular (artigos 607º a 609º do Código de Processo Civil), a elaboração LXVI- da sentença, enquanto ato processual que é, consubstancia vício formal ou error in procedendo e pode importar, designadamente, alguma das nulidades típicas previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil. LXVII- Ora, no caso em apreço, o Tribunal a quo, conheceu de questões que não resultavam dos autos, nomeadamente, o facto da falecida mulher do 1.º Autor não ter concedido autorização para o comodato estabelecido entre o 1.ºAutor e a Recorrente. LXVIII- Assim, concluímos no caso em concreto existe excesso de pronúncia, vício que, integrando a previsão constante da segunda parte da alínea d) do n.º1 do artigo 615º do C.P.C., provoca a nulidade da sentença, o que se invoca para os devidos e legais efeitos. LXIX- Com o devido respeito, que é sempre muito, erra o douto Tribunal a quo ao concluir improvável e até de todo verosímil que a falecida mulher aceitasse ou autorizasse a residência da Ré, aqui Recorrente, no prédio em questão. LXX- Apesar de o douto Tribunal a quo entender inverosímil tal aceitação ou autorização, até por uma questão de não se coadunar com as regras da experiência, tendo, como elenca a douta sentença, (a mulher falecida) “no máximo, terá pacientemente tolerado esta situação por razões pessoais que só a própria podia explicar”, tal entendimento não é compaginável e até é mesmo contrário à lei. LXXI- É verdade que prevê o artigo 1682 – Aº, n.º 1, al a) do Código Civil, que “carece do consentimento de ambos os cônjuges(...) a) a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns;” LXXII- Contudo, estipula o artigo 1687º n.º1 do mesmo diploma legal que “os atos praticados contra o disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 1682.º, nos artigos 1682.º-A e 1682.º-B e no n.º 2 do artigo 1683.º são anuláveis a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento ou dos seus herdeiros (...)”. LXXIII- Tendo para esse feito, o direito de anulação ser exercido nos seis meses à data em que o requerente teve conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos três anos sobre a sua celebração, de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo. LXXIV- Aplicando os normativos legais ao caso, a mulher falecida bem como o Padre e toda aldeia sabiam da relação extraconjugal do Senhor AA, 1.º Autor, com a Ré/Recorrente e que esta vivia no prédio aqui in casu, algo que foi confirmado pelo próprio filho do casal em sede de julgamento – OOO, tendo a mulher falecida anuído, conformando-se e aceitando tacitamente a referida situação. Pois, nunca esta se opôs ou exerceu o seu direito de anulação do ato. LXXV- Com o devido respeito, optar por outro entendimento é claramente contrário à lei, nunca poderá o julgador aplicar primazia sobre o que, no seu entender, se baseia nas regras da experiência comum em clara contradição com o previsto pelo legislador num diploma legal que rege a nossa conduta em sociedade como é o caso do Código Civil, algo que se sucedeu no caso em apreço. LXXVI- Pelo que, salvo melhor entendimento, mesmo que os herdeiros da falecida mulher, no âmbito dos presentes autos suscitassem a anulação do ato, consideramos que estaríamos perante uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que implicaria indubitavelmente, a absolvição da instância da Ré! Igual raciocino jurídico se aplica ao outro comproprietário – Padre QQQ. LXXVII- Ora, conforme ficou demonstrado e resulta dos factos considerados provados, TODOS os Autores identificados nos presentes autos, incluindo o Padre QQQ, TINHAM CONHECIMENTO, de que o imóvel foi cedido à Ré/Recorrente, a qual o habita há mais de 24 anos, que NUNCA, em momento algum, fizeram nada para obter a restituição do imóvel, nem a falecida mulher do 1.º Autor/Recorrido. LXXVIII- Esperaram o falecimento do comproprietário Padre QQQ, bem como da falecida mulher do 1.º Autor/Recorrido para em seu nome, virem alegar que os mesmos não deram autorização para aquele Comodato. LXXIX- Se realmente a Ré não tivesse autorização já teriam os comproprietários – 1.º Autor, falecida mulher e Padre QQQ - providenciado pela entrega do imóvel pela Ré/Recorrente, o que não aconteceu porque sabendo o Padre QQQ desde sempre, da existência deste Comodato Vitalício, o qual foi por si aceite, seja expressa ou tacitamente, A verdade é visível e óbvia apenas nestes breves artigos que antecedem. LXXX- Mesmo que o Padre QQQ não tivesse dado autorização (o que nunca será uma possibilidade e que apenas se alude por mera hipótese académica) para que a Ré/Recorrente utilizasse o imóvel como sua habitação, LXXXI- O Padre QQQ TINHA CONHECIMENTO deste Comodato Vitalício, TODA a freguesia e mesmo determinadas pessoas de freguesias vizinhas, sabem disto. … Nestes termos e nos mais de Direito deverá o presente recurso ser recebido, julgado totalmente procedente e, por via disso, ser declaradas procedentes por provadas as nulidades invocadas, alterando e/ou revogando o douto despacho recorrido, bem como a douta Sentença recorrida conforme supra exposto e nos termos supra referidos. Se entender que não se verificam as nulidades invocadas, deverá ser o presente recurso julgado procede por provado, revogando-se a Sentença”. Os autores responderam, pugnando pela manutenção da decisão proferida. O Mm.º Juiz a quo pronunciou-se sobre as nulidades invocadas, afirmando que “não se deteta qualquer nulidade, tendo o tribunal apreciado todas as questões que devia apreciar”. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. ** II - Questões a decidir:Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da ré recorrente – arts.º 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, as questões que se que se colocam à apreciação deste Tribunal são as seguintes: saber se: 1. é nula a sentença proferida por omissão de pronúncia, considerando o que foi determinado no Acórdão proferido por este Tribunal; 2. é nula a sentença proferida por excesso de pronúncia quando apreciou a falta de autorização / aceitação do negócio pela falecida esposa do 1.º autor; 3. existe fundamento para alterar a decisão da matéria de facto quanto aos factos impugnados: facto 9 da matéria de facto provada e factos não provados sob as alíneas b), c), d), e) e f). 4. alterada ou não a matéria de facto provada, deve absolver-se a ré do pedido formulado e julgar-se procedente o pedido reconvencional por esta deduzido, nos exatos termos peticionados em sede de recurso. ** III - Fundamentação de facto:Foram considerados provados os seguintes factos. “1) No dia ../../2021, faleceu o Padre QQQ, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade. 2) O falecido deixou como seus únicos e universais herdeiros: os supra identificados 1º, 2º, 6º a 30º AA., bem assim como sua irmã UUU. 3) A aludida UUU veio, entretanto, a falecer no dia 12 de agosto de 2021, no estado de viúva de VVV, deixando como seus herdeiros, os filhos identificados como 3º, 4º e 5º AA., supra. 4) Os 1º a 30º AA. são os herdeiros na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de QQQ, falecido em ../../2021. 5) O 1º A., AA, atualmente viúvo, foi casado, sob o regime da comunhão geral com RRR. 6) A aludida RRR faleceu a ../../2018, no estado de casada do identificado 1º A., deixando como seus únicos e universais herdeiros: seu marido e seus 3 filhos, os aludidos 31º, 32.º e 33º AA., respetivamente. 7) Assim, e por seu turno, os 1º, 31º, 32.º e 33º AA. são os herdeiros na herança aberta e indivisa aberta por óbito de RRR. 8) O 1º A., AA e o seu irmão QQQ herdaram dos seus pais o PRÉDIO URBANO composto por ... – ... de dois pavimentos, sito no lugar ..., inscrito na matriz sob o artigo ...30, com o valor patrimonial de €15.529,50, sendo seus comproprietários na proporção de metade para cada um. 9) Após a morte dos pais, e ainda em vida de QQQ, e sem que este autorizasse, e sem que RRR autorizasse, AA, há cerca de 24 anos, autorizou a ré a usar aquele prédio como sua habitação, sem obrigação de pagamento de qualquer contrapartida. 10) Entregou-lhe as chaves e a ré passou a habitá-lo, bem como a limpar os terrenos, e a cultivar alguns deles. 11) QQQ conhecia esta situação tal como RRR. 12) No dia 23.11.2021, através de carta registada com aviso de receção, os autores reclamaram à Ré a entrega do prédio supra mencionado, até ao final do mês de Dezembro de 2021. 13) A aludida missiva foi recebida pela Ré, no dia 24.11.2021. 14) O valor locativo mensal deste prédio é de €32,35”. Resultaram ainda não provados os seguintes factos: “a) O 1.º Autor sempre se intitulou como único proprietário do imóvel. b) À Ré sempre lhe foi dito que havia concordância de ambos os proprietários, sendo que o 1.º Autor a informou que o Padre QQQ outorgou, em tempos, uma Procuração a favor dele, para que este o representasse em vários assuntos, nomeadamente os relacionados com os imóveis cuja propriedade pertencia a ambos, o que levava a que o 1.º Autor assumisse a administração/gestão de todo o imóvel, situação que era visível para todos. c) A autorização concedida à ré foi estabelecida até à sua morte. d) QQQ autorizou e/ou aceitou a cedência efetuada pelo seu irmão à ré. e) Desde que o imóvel lhe foi cedido para sua habitação própria e permanente, foi-lhe pedido também que continuasse a trabalhar os terrenos da família, bem como o terreno onde estava inserido o imóvel, pedido a que a Ré acedeu. f) Em muitas colheitas, parte desses frutos eram entregues pela Ré ao 1.º Autor”. IV - Do objeto do recurso: 1. Alega a recorrente que a sentença proferida é nula por omissão de pronúncia, considerando o que foi determinado no Acórdão proferido por este Tribunal e o que não foi realizado pelo Tribunal de 1.ª Instância. A decisão é nula quando o juiz deixe pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não deva tomar conhecimento – art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do C. P. Civil. Este vício prende-se com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil: “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. Recorrendo aos ensinamentos de Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 143. “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art.º 511º nº 1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”. Como se deixou claro no primeiro Acórdão proferido, os atos processuais realizados nos autos para se verificar da capacidade do 1.º autor para prestar depoimento de parte permitiram concluir que, pelo menos desde então, o autor estava incapaz de estar por si só em juízo, devendo ser praticados os atos processuais necessários ao suprimento dessa incapacidade. Como então se referiu “tendo sido obtida confirmação pericial da incapacidade do 1.º autor, alegada em 25/06/2024 pelos próprios autores, deveria ter-se diligenciado pelo seu suprimento”. E, perante a constatação da incapacidade do 1.º autor, desconhecendo-se se ao mesmo havia já sido nomeado representante legal, determinou-se: “Existindo tal representante legal, haverá apenas que dar cumprimento ao disposto no art.º 27.º do C. P. Civil. Não existindo, deverão realizar-se as diligências necessárias para o suprimento da incapacidade, dando-se prévio cumprimento ao disposto no art.º 17º e, nomeado o curador, ser dado cumprimento ao disposto no referido art.º 27º, todos do C. P. Civil. O Tribunal a quo terá ainda que apurar - realizando as diligências de prova necessárias, considerando o que consta do relatório pericial e que relata o que foi dito pelo cuidador do 1.º autor - se a incapacidade deste é anterior a 25/06/2024 apenas se aquele representante (já existente ou a nomear) não ratificar os atos praticados, considerando o efeito que tal falta de ratificação terá nos atos já praticados no processo (art.º 27.º, n.º 2, parte final, do C. P. Civil)”. Nada disto foi efetuado pelo Tribunal de 1.ª Instância quando os autos lhe foram devolvidos, sendo certo que, nessa data, estavam já habilitados os herdeiros daquele 1.º autor, entretanto falecido. Foi apenas determinado, “para evitar eventuais questões formais”, que aqueles herdeiros fossem notificados para ratificar o processado. O suprimento da falta de capacidade do 1.º autor, referindo-se a um pressuposto processual, não é um aspeto “formal”, ainda que o seu não suprimento conduza à absolvição da ré da instância. Se é certo que, então, como deveria, o Mm.º Juiz a quo não apresentou qualquer fundamentação para não dar cumprimento ao Acórdão proferido, na sentença proferida, referiu que a morte do referido autor, com a habilitação dos seus herdeiros (que eram já parte na ação), havia tornado inútil a decisão proferida por este Tribunal da Relação, estando já ultrapassada a questão suscitada, ou seja, a falta de capacidade do 1.º autor e o seu suprimento (é isto que se retira do que consta do relatório da sentença e que supra se transcreveu). Temos, pois, de concluir que não houve omissão de pronúncia, pois que o Tribunal decidiu, ainda que de forma breve, sobre a questão a apreciar e que era a de saber se se deveria ainda suprir a incapacidade do 1.º autor quando, no momento em que os autos foram devolvidos à 1.ª instância, o mesmo havia já falecido e estavam já habilitados os seus herdeiros. E decidiu bem. A morte do 1.º autor, conhecida nos autos já depois de ter sido proferido aquele primeiro Acórdão, impede que o suprimento da sua incapacidade seja efetuado nos termos determinados e que pressupunha, naturalmente, que a parte estivesse viva. A nomeação de um curador apenas é necessária para suprir a incapacidade de pessoa que está viva e enquanto o estiver. O falecimento da parte determina, em regra, apenas a suspensão da instância, como aconteceu nestes autos, até que fossem habilitados os seus sucessores. Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/2025, citando uma decisão proferida num outro apenso do proc. 1196/18.0T8PVZ-F.P1, in www.dgsi.pt, “tendo a parte falecido, entretanto, a nomeação desse representante torna-se inútil pela simples razão de que através da habilitação dos sucessores a posição da parte na lide passa a ser ocupada por estes, no lugar dele, ou seja, são eles que passam a representar, por força da sucessão mortis causa, os interesses da parte falecida e a tomar decisões sobre os mesmos. Em rigor, os sucessores passam a atuar em representação da parte falecida à qual sucedem, uma vez que a herança pode permanecer indivisa, não estar ainda partilhada, e, consequente, os herdeiros ainda não encabeçaram a titularidade dos direitos patrimoniais de que era titular o falecido. Ora, se eles ocupam essa posição, se a sua posição da lide tem essa amplitude de intervenção, não se vê motivo para que sejam privados dos poderes que assistiriam ao representante legal ou ao curador provisório que tivesse sido nomeado ao incapaz em vida dele. Isto é, inexiste motivo para nomear um representante legal ou um curador porque isso já não é necessário, o incapaz passou a estar representado na lide pelos sucessores habilitados … para todos os efeitos. A incapacidade judiciária não é um vício insanável e não é causa de invalidade dos atos praticados, pelo que estes atos desde que sejam ratificados por quem de direito são aproveitados e a lide prossegue com eles como se a incapacidade nunca existisse”. É este o enquadramento legal da questão suscitada, razão pela qual não só não se verifica a nulidade invocada, porquanto o Tribunal apreciou a questão suscitada de suprimento da incapacidade do 1.º autor considerando o seu falecimento após a decisão proferida por este Tribunal, como a decidiu bem no sentido de a ultrapassar, não com a nomeação de um curador ou intervenção do representante legal já existente, mas através da ratificação pelos seus herdeiros habilitados dos atos processuais anteriormente praticados. Neste âmbito, alegou ainda a ré recorrente que a falta de depoimento de parte do 1.º autor consubstancia uma recusa de depoimento, o que implicaria a “confissão dos factos”. Alega ainda que o Tribunal teria de se ter pronunciado sobre esta questão, “a fim de considerar verificada ou não a incapacidade do 1.º Autor para considerar justificada ou não justificado a falta daquele”. Como resulta claro da tramitação dos autos, o Mm.º Juiz a quo entendeu que o 1.º autor não estava capaz de prestar depoimento de parte (1.ª parte do despacho de 13/09/2024), declarando que o mesmo ficava “sem efeito”. Esse segmento do despacho não foi colocado em crise pela recorrente no recurso que inicialmente interpôs e, como tal, transitou em julgado A recorrente aceitou que aquele primeiro autor estava incapaz de prestar depoimento de parte (como decorre com clareza da sua conclusão XXIII das alegações aperfeiçoadas do primeiro recurso apresentado), pretendendo apenas, em relação ao despacho proferido, que a instância fosse suspensa e fossem efetuadas diligências para verificar se essa incapacidade já existia à data da propositura da ação e fosse efetuado o seu suprimento. Essa situação de incapacidade do 1.º autor foi já reconhecida no Acórdão proferido por este Tribunal, pelo menos desde a data em que havia sido suscitada pelos próprios autores, ali se explicando a razão pela qual era irrelevante saber se existia já à data da propositura da ação (pois que essa data só teria relevância se a ratificação dos atos processuais fosse apenas realizada parcialmente). Ora, perante a ratificação que foi realizada pelos herdeiros do 1.º autor falecido, a data em que se verificou a incapacidade do 1.º autor continua a ser irrelevante. E, assim, nenhuma omissão de pronúncia foi cometida pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto à questão suscitada e relativa ao depoimento de parte do 1.º autor. Este estava, então, incapaz e, assim, não podia confessar os factos alegados pela ré – art.º 453.º do C. P. Civil – como foi decidido, por despacho, já transitado em julgado, proferido em 13/09/2024. 2. Alega ainda a recorrente que a sentença proferida é nula por excesso de pronúncia quando apreciou a falta de autorização / aceitação do negócio pela falecida esposa do 1.º autor. No facto provado 9, impugnado pela ré, o Juiz a quo fez constar que a cedência do gozo do imóvel à ré foi efetuada sem que RRR (esposa falecida do 1.º autor) autorizasse. Em sede de fundamentação jurídica, apreciou a legitimidade do 1.º autor fazer tal cedência sem a autorização da sua esposa, entendendo que carecia de consentimento do cônjuge, invocando o regime dos arts. 1678.º, n.º 3, 1682.º A e 1687.º do C. Civil, sendo gerador de anulabilidade. A anulabilidade do negócio tem de ser invocada pela parte a quem aproveita, nos termos do art.º 287.º do C. Civil. Ora, se analisarmos os articulados dos autores, aquela alegada falta de autorização da esposa do 1.º autor foi alegada (veja-se o art.º 9.º do articulado de resposta). Não foi, porém, invocado qualquer vício do negócio por falta de consentimento do cônjuge do 1.º autor. Concluímos, pois, que a questão de facto suscitada não foi acompanhada da invocação de qualquer questão jurídica relacionada com a alegada falta de autorização da esposa do 1.º autor para a celebração do negócio jurídico invocado, sendo que a anulabilidade do negócio não é matéria de conhecimento oficioso do Tribunal. No entanto, como se torna claro da leitura da decisão, apesar do que fez constar do facto provado 9 e das considerações expendidas sobre a anulabilidade do negócio por falta de autorização da esposa do 1.º autor, em 1.ª Instância apenas se decidiu que o comodato realizado era ineficaz em relação ao outro comproprietário, o irmão daquele identificado padre QQQ, por constituir oneração de coisa alheia, nos termos do art.º 1408.º, n.º 2, do C. Civil. Ou seja, em relação à alegada falta de autorização da esposa falecida do 1.º autor, nenhuma consequência jurídica retirou o Tribunal de 1.ª Instância para afirmar a validade ou invalidade do negócio que teria sido celebrado com a ré. Daí que não possa dizer-se que o Tribunal apreciou questão que não deveria ter conhecido, pois que as considerações jurídicas relativas à falta de autorização de RRR foram inócuas para a decisão proferida. Não existe assim qualquer nulidade por excesso de pronúncia, ainda que a referida falta de autorização de RRR não tenha sido invocada como geradora da anulabilidade referida na decisão e não possa, assim, porque não é de conhecimento oficioso, fundamentar qualquer decisão de mérito nestes autos (como efetivamente não fundamentou). 3. Da impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto provada: 3.1. Em sede de recurso, a ré impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância, considerando o facto 9 da matéria de facto provada e factos não provados sob as alíneas b), c), d), e) e f). Atendendo ao disposto no art.º 640.º do C. P. Civil, nada obsta à sua apreciação. 3.2. Nos termos do art.º 662.º, n.º 1, do C. P. Civil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Como se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, proc. 2199/18.3T8BRG.G1, in www.dgsi.pt, “a reapreciação da prova pela 2ª Instância, não visa obter uma nova e diferente convicção, mas antes apreciar se a convicção do Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência comum e da lógica, atendendo aos elementos de prova que constam dos autos, aferindo-se, assim, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto. De todo o modo, necessário se torna que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, conforme a parte final da al. a) do nº 1 do artº 640º, do Código de Processo Civil. Competirá assim, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, atendendo ao conteúdo das alegações do recorrente, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”. Este Tribunal ouviu atentamente todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento. No que se refere ao facto provado 9, alega a ré que não pode considerar-se provado que a esposa do 1.º autor e o irmão, padre QQQ, não autorizaram a cedência do gozo da casa que aquele lhe fez. O Tribunal não logra sequer perceber como pode a ré questionar a prova do facto 9, nos termos em que este foi considerado provado, pois que o mesmo, nesse concreto segmento, foi por si confessado. Consta da assentada realizada, quando prestou depoimento de parte, que a ré declarou que quem lhe entregou a chave da casa foi o 1.º autor e que “nem o Pe. QQQ, nem a mulher do AA lhe deram qualquer autorização para viver nessa casa”. Não pode, assim, afirmar que não foi efetuada prova da falta de autorização que, naquele facto, foi afirmada. A prova foi efetuada e foi por confissão da própria ré. Acrescente-se que a assentada efetuada corresponde efetivamente ao que foi declarado pela ré. Aliás, lida a contestação, tendo a ré impugnado o facto relativo à alegada falta de autorização do padre QQQ, limitou-se a alegar que o 1.º autor assumia toda a administração do imóvel e que aquele sempre lhe teria dito ter a concordância do referido padre, dizendo que teria uma procuração deste para o representar em vários assuntos. A ré confunde intencionalmente autorização com conhecimento. E se confessou que tal autorização não lhe foi dada pelas pessoas referidas no facto 9.º, referiu também que o facto de habitar naquela casa com autorização do 1.º autor era do conhecimento da esposa daquele e do irmão, comproprietário do imóvel. Este facto, o do conhecimento, está também provado – facto 11. O que não pode é, como faz a ré agora em alegações de recurso, retirar desse conhecimento a existência de uma autorização que claramente confessou não ter existido. Não há, assim, fundamento para alterar a redação do facto provado 9. Quanto aos factos não provados, estão em causa, apenas, as alíneas b), c), d), e) e f). Não houve qualquer confissão do 1.º autor, nem os factos alegados pela ré se podem considerar confessados por não se ter verificado o seu depoimento de parte. O depoimento de parte não foi prestado, mas não houve recusa do 1.º autor, como bem sabe a ré e resulta do que supra já se esclareceu, mas porque aquele não tinha então capacidade para o prestar. Não estamos, assim, perante o circunstancialismo do art.º 357.º do C. Civil que permitiria apreciar livremente para efeitos probatórios a recusa do 1.º autor em prestar depoimento de parte. Vejamos se a prova produzida permitiria a afirmação dos factos não provados que foram impugnados. As alíneas b) e d) reportam-se à questão da autorização / aceitação por parte do irmão do 1.º autor e à alegada representação daquele por parte do 1.º autor. Começa por dizer-se que nenhum elemento da prova produzida permite a afirmação dos factos referidos nestas alíneas. Como se disse, a ré confessou a falta de autorização por parte do irmão do 1.º autor. Esta autorização, não podia, assim, resultar provada. Nenhuma prova foi também produzida no sentido de o padre QQQ ter aceite a cedência efetuada pelo irmão. O que as testemunhas e a ré referiram foi que o padre QQQ sabia que esta estava a viver naquela casa com a autorização do 1.º autor (e este facto está provado), não tendo conhecimento sobre se manifestaram qualquer oposição. O único depoimento que referiu alguma oposição do referido padre foi o do autor FF, referindo que o tio pretendia vender o imóvel e que dizia que não tinha lá ninguém. E, aqui, não podemos deixar de concordar com o Mm.º Juiz a quo quando refere que não é crível que o irmão padre do 1.º autor tivesse aceite que este autorizasse a pessoa com quem mantinha uma relação extraconjugal a viver num imóvel que a ambos pertencia. É certo que não se demonstrou que tivesse alguma vez reagido perante a realidade de estar a ré a viver na casa que fora dos pais do 1.º autor e do irmão, e agora era também sua, com autorização do 1.º autor. Daí, porém, não se retira que tivesse aceite tal realidade se, como resultou das declarações da própria ré, esta fazia com o 1.º autor vida de casado, chegando a ficar com ela aos oito dias, enquanto permanecia casado com outra mulher. Do conhecimento sobre a situação – que existia e está dado como provado – não se retira a aceitação do irmão do 1.º autor, comproprietário do imóvel. E, note-se, que esta aceitação não foi sequer referida pela ré, limitando-se a afirmar que o padre QQQ sabia que ali vivia. A inércia deste padre que, em vida nada fez, que não vivia naquela localidade e que ali vinha apenas de visita em épocas festivas após a morte dos pais, não permite concluir que aceitou que a ré ali vivesse, mas tão só isso mesmo, que não reagiu à autorização dada pelo irmão (e, note-se, que a ré apenas passou a viver naquela casa depois da morte dos pais do 1.º autor e do padre QQQ). Quanto à existência de uma procuração que teria permitido que o 1.º autor gerisse o que era do irmão padre, apenas a ré, de forma muito ténue, referiu que o 1.º autor dizia que possuía (embora tivesse também afirmado que depois aquele irmão padre a teria passado para o autor FF que prestou depoimento de parte, e que referiu ser ele a tratar dos assuntos do tio padre), o que a deixava descansada, sendo que nenhuma das testemunhas referiu que, com ou sem procuração, o 1.º autor tivesse alguma vez gerido o que quer que fosse que também pertencesse ao irmão padre. Aquela referência não é, assim, suficiente para que se afirmem como provados os factos das alíneas b) e d) que foram consideradas como não provadas. A alínea c) está relacionada com a natureza vitalícia da autorização dada pelo 1.º autor. Apenas a ré referiu que foi autorizada a viver naquela casa pelo 1.º autor até à sua morte. Nenhum outro depoimento, fosse de quem fosse, confirmou tal autorização com essa duração. Estão em causa as declarações de parte prestadas pela ré. Elencando o pensamento doutrinário sobre as declarações de parte como meio de prova, no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 12/10/2023, proc. 1059/19.2T8CHV.G1, in www.dgsi.pt, vemos três posições diferentes: “Assim, adotando, neste domínio, o princípio da prova, veja-se Carolina Henriques Martins, Declarações de Parte, Universidade de Coimbra, 2015, p. 58, quando escreve que «Caso se considere útil a audição da parte nesta sede quando coexistem outros meios de prova, propomos a sua apreciação como um princípio de prova, equivalente ao mencionado argomenti di prova italiano, que não deixará de auxiliar na persuasão do juiz, mas que apenas o fará em correlação com a restante prova já produzida contribuindo para a sua (des)credibilização, e apenas nesta medida». Integrando a segunda posição, está Lebre de Freitas, “A ação Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 4ª edição, pag. 322, editora Gestlegal, Lebre de Freitas consignando que «a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, maxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas». Finalmente, sendo defensora da terceira, Catarina Gomes Pedra, “A Prova por Declarações das Partes no Novo Código de Processo Civil. Em Busca da Verdade Material no Processo”, Escola de Direito, Universidade do Minho, 2014, p. 145, ao escrever que «não pode esquecer-se que a limitação do valor probatório das declarações das partes, como, de resto, a sua compreensão no contexto de um meio de prova subsidiário, pode consubstanciar, em determinadas situações, uma violação do princípio da igualdade de armas previsto no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem»”. Como aí se conclui “é acertado dizer-se que as declarações de parte, pela sua própria natureza, exigem do julgador um redobrado cuidado de apreciação e exigência quanto à veracidade do seu conteúdo, posto que não deixam de estar imbuídas de um interesse pessoal na sorte da lide. Todavia, entender que, sozinhas, não podem valer como meio de prova equivaleria a uma revogação material do conteúdo da norma, cujo poder ao tribunal não assiste”. Ora, na situação em apreço, a fragilidade das declarações de parte da ré retira-se do seu exato teor, sendo insuficientes para que se afirme como provado que a autorização dada pelo 1.º autor à ré foi concedida a título vitalício. Desde logo a forma como a ré se refere a essa autorização. A ré referiu que o 1.º autor lhe tinha “passado a chave” (utilizando esta expressão por duas vezes) e que era para ela “ficar a tomar conta”. E quando lhe foi perguntado por quanto tempo tal teria sido acordado, respondeu que “isso não foi acordado”, só depois acrescentando que o 1.º autor lhe havia dito “você tem casa até à sua morte, você trabalhou muito para mim”. Ora, no contexto dos factos, tendo a ré, como admitiu, uma relação amorosa com o 1.º autor, que era então ainda casado, que com ela ficava, como disse, aos oito dias, esta referência ao trabalho prestado e a tomar conta da casa não permite que se confie apenas nas declarações da ré para afirmar a natureza vitalícia da autorização. Note-se que a ré explicou que os pais haviam sido caseiros dos pais do 1.º autor, mas então apenas dos prédios rústicos, não tendo aqueles seus progenitores vivido nesta casa. Ora, como explicou a ré ao Mm.º Juiz a quo, como caseiros trabalhavam aquelas terras mediante a obrigação de pagamento com parte da sua produção (as rasas de que foi falando no seu depoimento), surgindo assim de difícil perceção que a autorização dada pelo 1.º autor para que passasse a residir naquela casa (que era a de seus pais) estivesse relacionada com o trabalho que esta, até então (e não o que teria passado a prestar), havia realizado para aquele 1.º autor. Na versão da própria ré, esta, tal como os seus pais, haviam sido caseiros dos pais do 1.º autor e do padre AA e depois da morte daqueles, dos próprios 1.º autor e padre AA. E a expressão “caseiro” não tem o sentido que a Mandatária da ré parece querer dar-lhe de quem trabalha os terrenos que pertencem a outros sem receber qualquer contrapartida desse cultivo ou utilização. Pelo contrário, as testemunhas ouvidas referiram que o que era produzido pela ré era, pelo menos em parte, para si. Embora a esse facto parecesse não ter sido dada relevância, a sobrinha da ré soube explicar que uma realidade era a desta casa de habitação que pertencia a ambos os irmãos (e que incluía um pequeno terreno de cultivo) e outra era a de outros terrenos que a ré cultivava (tal como já antes os seus pais) e que, tendo pertencido aos respetivos pais, pertenciam um apenas ao padre AA e outros ao 1.º autor. Aquele imóvel que era apenas do padre, como revelou a sobrinha, era cultivado pela 1.ª ré, que pagava ao proprietário umas tantas rasas, até que este lhe disse que podia deixar de pagar, porque não dava nada, bastando-lhe que o limpasse (terreno esse que veio a ser vendido pelo padre ao declarante FF, como este referiu e foi confirmado pela testemunha TTT). Este desconhecimento sobre o carater vitalício da autorização foi também revelado pela própria sobrinha da ré (de forma surpreendente como refere o Mm.º Juiz a quo), sendo que o filho do 1.º autor ouvido em audiência referiu ter pedido à ré, após a morte do padre QQQ, para sair do imóvel, tendo esta pedido para ficar até ao fim do ano. Ora, esta conversa não foi negada pela ré que, dando-lhe um sentido diferente, afirmou que teria dito ao filho do 1.º autor ter direito a mais um ano (“tenho um ano pela frente”, fazendo apelo ao que é comum acontecer numa situação de arrendamento rural no sentido de o arrendatário poder ainda colher o que tiver cultivado no ano da cessação do contrato). Não pode, assim, apenas com as declarações de parte da ré, afirmar-se como provado que a autorização dada pelo 1.º autor teve carater vitalício. As demais alíneas e) e f) estão relacionadas com os trabalhos realizados pela ré nos terrenos que pertenceram aos pais do 1.º autor e do padre QQQ e, depois da morte daqueles, passaram a pertencer-lhes. E, aqui, com clareza, analisando os depoimentos prestados, não temos dúvida que os factos alegados não podem resultar provados. As testemunhas arroladas pela própria ré, sem saberem dar pormenores, supunham que esta, enquanto cultivou os terrenos, o fazia para si, ainda que admitissem que pudesse entregar parte da produção ao 1.º autor (ou o valor desta) ou ao padre QQQ. Em particular a sobrinha a ré, como já se referiu, sabia que, em relação a um dos imóveis, o tal que pertencia apenas ao padre QQQ, a ré entregava o dinheiro equivalente a “algumas” rasas de milho e que, entretanto, tal como aconteceu com a própria testemunha em relação a outro imóvel daquele, deixou de o fazer, por sugestão do próprio padre, porque este sabia que dava pouco. Quanto aos demais terrenos cultivados, a ré referia-se a si própria como “caseira”, distinguindo a casa que, como disse, não tinha renda, dos demais terrenos em que esta existia e falando sobre o que pagava (e que partia em três, por exemplo, quando se referiu ao vinho). Não existe, assim, qualquer meio de prova que permita a afirmação destes factos, com o sentido da sua alegação na contestação e que era o da ré trabalhar sem qualquer contrapartida para o 1.º autor e para o irmão padre QQQ, entregando-lhes a produção desse cultivo. 4. Entende a ré recorrente que terá de ser absolvida do pedido formulado e julgar-se procedente o pedido reconvencional por esta deduzido. Começa por referir-se que esta absolvição do pedido não inclui naturalmente aquele que foi formulado e está relacionado com o direito de propriedade dos autores que foi alegado e reconhecido na sentença proferida. Com efeito, logo na contestação, a ré pediu a sua absolvição dos pedidos deduzidos pelos autores, “exceto no que diz respeito ao pedido de reconhecimento da propriedade do imóvel”. Daqui resulta que não está em causa nesta apelação a reapreciação do pedido deduzido que declarou que as heranças ilíquidas e indivisas abertas (de QQQ e de RRR), bem como o 1.º autor, eram comproprietários do prédio mencionado no ponto 8 dos factos provados. Ora, no que ao mais foi decidido, não tendo havido qualquer alteração da decisão sobre a matéria de facto, e dependendo o mérito do recurso interposto integralmente dessa modificação, nos termos do art.º 608.º, nº2, aplicável ex vi n.º2 do art.º 663.º, ambos do C. P. Civil, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida no âmbito da subsunção dos factos às normas legais correspondentes. O enquadramento jurídico desta ação é efetivamente o da ação de reivindicação. Reconhecido o direito de compropriedade das heranças referidas e do 1.º autor, nos termos do art.º 1311.º do C. Civil, a ré apenas poderia obstar à restituição do imóvel aos autores alegando e demonstrando a existência de um acordo, oponível a todos os proprietários, que lhe permitisse não o entregar. Entendia a ré não estar obrigada à restituição do imóvel porque não estava ainda decorrido o prazo acordado, não determinado, mas determinável, tendo o comproprietário padre QQQ aceite a cedência gratuita efetuada pelo 1.º autor. O que estava, assim, invocado era que um daqueles comproprietários havia cedido gratuitamente o imóvel à ré para a sua habitação a título vitalício, aplicando-se, por isso, o regime do contrato de comodato, previsto nos arts.º 1129.º e segs. do C. Civil. Foi precisamente neste âmbito que foi equacionado o direito da ré para se opor à restituição do imóvel, sem que qualquer das partes conteste este enquadramento jurídico que, estando correto, aqui, naturalmente se reitera. O comodato é um contrato real quod constitutionem, concluindo-se o mesmo pela entrega da coisa, e em que há uma simples atribuição do seu uso, para todos os fins lícitos ou alguns deles, dentro da função normal das coisas da mesma natureza, em conformidade com o art.º 1131.º do C. Civil. Caracteriza-se pela: - gratuitidade, pois que não há, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou correspetivo da atribuição efetuada pelo comodante, muito embora o comodante possa impor certos encargos ao comodatário, sem natureza correspetiva (cláusulas modais); - temporalidade já que tem natureza precária e temporária, não se equacionando em regra um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por estar relacionado a um uso genérico ou de duração incerta; - obrigação de restituir por parte do comodatário logo que seja atingido o fim determinado ou que o comodatário assim o exija, ou seja, quando o contrato findar. Ora, como decorre da decisão proferida sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a ré não demonstrou que a cedência gratuita do imóvel foi efetuada de forma vitalícia (enquanto fosse viva). Não é, pois, necessário apreciar se pode equacionar-se um contrato de comodato de natureza vitalícia, considerando o regime legal aplicável. Note-se, sem abordar esta questão porque é, no caso dos autos, destituído de relevância jurídica, que não estaria em causa apenas a validade do contrato, mas as condições em que, nos exatos termos do art.º 1137.º do C. P. Civil, poderia fazer-se cessar um contrato de comodato com essas características, exigindo o proprietário a restituição do imóvel (veja-se que nesta cedência vitalícia do gozo do imóvel seria muito ténue a fronteira entre o contrato de comodato e aquele que permite a constituição do direito real de habitação e que é já de natureza formal). No caso dos autos, resultou apenas provado que o 1.º autor autorizou a ré a usar o prédio identificado nos autos como sua habitação, sem obrigação de pagamento de qualquer contrapartida, tendo-lhe entregue as chaves e a ré passou a habitá-lo. Ora, o disposto no art.º 1137.º, n.º2, do C. Civil visa precisamente impedir a eternização das relações obrigacionais de comodato para as quais não tenha sido fixado prazo de duração, nem determinado o uso da coisa. Este uso determinado a que a norma se refere pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como “determinado”, o uso de certa coisa se não se souber por quanto tempo vai durar e quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada, mas antes atos genéricos de execução continuada. Estando em causa estes atos genéricos, entende-se que o gozo da coisa foi concedido por tempo indeterminado. É o caso do imóvel que foi cedido para a habitação – vide, neste sentido, com ampla resenha jurisprudencial ilustrativa sobre este regime o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2024, proc. 3068/21.2T8STR.E1.S1. Assim, perante a matéria de facto que resultou provada, não existindo nem um fim determinado para o uso do imóvel nem prazo certo convencionado para a sua restituição, a ré estava obrigada a restitui-lo logo que fosse interpelada para o fazer – art.º 1137.º do C. Civil. Essa interpelação existiu e, assim, está a ré obrigada a restituir o imóvel. O que aqui se expos constitui fundamentação jurídica suficiente para que a ré seja condenada a restituir o imóvel aos autores, como determinado, impondo-se, assim, confirmar a decisão proferida. O Tribunal de 1.ª Instância fundamentou ainda a sua decisão na ineficácia do contrato celebrado em relação ao não comproprietário que não o autorizou, por aplicação do disposto no art.º 1408.º, n.º 2, do C. Civil, considerando que a cedência temporária do gozo do imóvel, durando há 24 anos, não poderia ser considerado um ato de administração ordinária. Esta questão, está, porém, prejudicada perante a afirmação da obrigação de restituição que resulta do regime legal aplicável ao contrato de comodato. Quanto ao mais que foi decidido em 1.ª Instância, em concreto, a ré recorrente não questiona qualquer dos restantes segmentos da decisão proferida (nem o quantum indemnizatório fixado nem a improcedência do pedido reconvencional). Em relação à pretensão indemnizatória, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto nada tinha a ver com esta matéria, não existindo qualquer conclusão do recurso apresentado relativa à sua fundamentação jurídica. No que concerne à reconvenção deduzida pela ré, não estando em causa qualquer cedência antecipada de um acordo de comodato vitalício, não pode existir qualquer direito de indemnização dela decorrente. Quanto ao mais, a improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto, quanto aos factos não provados, implica, necessariamente, a improcedência do restante pedido reconvencional, pois que não resultaram provados os factos alegados. Conclui-se, assim, que a apelação terá de ser julgada improcedente, mantendo-se e confirmando-se a sentença recorrida. A ré suportará, assim, integralmente as custas deste recurso, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido. ** V – Decisão:Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando, em consequência, a decisão recorrida. Custas do recurso pela ré, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam. Guimarães, 04 de dezembro de 2025 (elaborado, revisto e assinado eletronicamente) Relator: Paula Ribas 1.ª Adjunta: Maria Amália Santos 2.º Adjunto: Luís Miguel Martins |