Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
546/14.3TBBGC.G1
Relator: LINA CASTRO BAPTISTA
Descritores: REGISTO DA ACÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
VENDA DE BENS ALHEIOS
INEFICÁCIA DA VENDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Os princípios da oponibilidade dos factos a terceiros, da prioridade e do trato sucessivo, justificam e obrigam a que se proceda ao registo da ação de reivindicação sempre que o prédio objeto da mesma esteja registado em nome de algum dos Réus.

II - A falta de registo da ação (petição inicial) neste momento processual, em que já existe decisão final na 1ª Instância e em que estamos a proceder ao julgamento em 2ª Instância, não tem qualquer utilidade prática. Apenas terá agora utilidade o registo da decisão final da causa, com trânsito em julgado, o qual deverá ser levado a cabo oportunamente.

III - A justificação notarial não constitui ato translativo da propriedade, pressupondo sempre, no caso de invocação de usucapião, uma sequência de atos a ela conducentes, que podem ser impugnados, antes ou depois de ser efetuado o registo, com base naquela escritura.

IV - Definido que está que o 1º Réu não provou a veracidade das alegações constantes da escritura de justificação notarial e, por outro lado, que o imóvel dos autos pertence aos Autores, por via do instituto da usucapião, a conclusão necessária é a de que o 1º Réu, ao declarar vender o mesmo aos 2º Réus, procedeu a uma venda de bens alheios.

V – Nas vendas de bens alheios, ineficazes em relação ao verdadeiro dono da coisa, não tem aplicação a estatuição do art.º 291.º do C.Civil, moldada diversamente para as situações de nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico.

VI - Sendo a venda de bens alheios ineficaz relativamente ao verdadeiro proprietário, este só perderá o respetivo direito de propriedade se o adquirente do bem lograr adquiri-la originariamente, por virtude do instituto da usucapião.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

A. M., residente em Bragança, entretanto falecida, e habilitada pelos seus herdeiros e co-Autores; A. D. e mulher J. M., residentes na B.º…, Bragança; M. M. e marido J. H., residentes em Remscheid; H. D., funcionário da …, residente em B.º da …, Bragança; J. J. e mulher E. F., residentes em Rue …, Levallois; M. I. e marido N. D., residentes em Rue, Rueil Malmaison; M. E., residente Rue … Chatillon, e E. J. e marido J. F., residentes em Rue …, Levallois, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum e forma sumária, contra E. B., residente em B.º …, Bragança; L. M. e marido J. N., respectivamente doméstica e agricultor, residentes em Bragança, e SM, residente em Bragança, pedindo que os Réus sejam condenados a:
1. Reconhecerem que eles são viúva, filhos, noras e genros de JDN.
2. Reconhecerem que o prédio identificado em 4) da Petição Inicial pertence em comum à primeira Autora e à herança aberta por óbito de JDN.
3. Fazer-lhes a entrega do referido prédio, na qualidade em que intervêm.
4. Verem declaradas nulas e de nenhum efeito a escritura de justificação e venda outorgada pelo 1.º Réu no Cartório Notarial de Bragança, em 20 de novembro de 1995, e bem assim a escritura de doação outorgada no mesmo Cartório Notarial pelos 2.º e 3.º Réus.
5. Verem ser ordenado o cancelamento de todos os registos efectuados sobre o referido prédio com base nas referidas escrituras.
Alegam – em síntese – que o seu marido, pai e sogro, JDN, faleceu em 09 de fevereiro de 1992, mantendo-se a respetiva herança jacente, fazendo parte da mesma o prédio de pastagem e dois castanheiros, inscrito na matriz predial rústica, sob o n.º 4B2B, que confronta de Norte com A. M., Sul com A. F., Nascente com A. F. e Poente com Estrada.
Especificam que os pais da 1.ª Autora possuíram o dito prédio, por mais de 15, 20 e 30 anos, sempre o cultivando, lavrando, adubando, semeando e dele colhendo e guardando as culturas que o mesmo produzia, à vista e com o conhecimento de todas as pessoas, sem oposição de ninguém e convencidos de exercerem um direito próprio. Entendem que, por via da usucapião, a propriedade do referido prédio se radicou na esfera jurídica dos pais da 1.ª Autora.
Acrescentam que, depois de seus pais, de quem o herdou, a 1.ª Autora e seu marido possuíram o mesmo prédio durante mais de 15, 20, 30 e mais anos, sempre o cultivando, lavrando, adubando, semeando e dele colhendo e guardando as culturas que o mesmo proporcionava, sempre à vista e com o conhecimento de todas as pessoas, sem a oposição de ninguém, convencidos de exercerem um direito próprio.
Mais alegam que, através de escritura de justificação e venda, celebrada no Cartório Notarial de Bragança, no dia 20 de novembro de 1995, o 1.º Réu se arrogou dono do referido prédio e vendeu-o aos 2.º Réus. Também que estes, em 10 de março de 1997, por escritura celebrada no Cartório Notarial de Bragança, doaram à 3.ª Ré, sua filha, o referido prédio.
Afirmam serem falsas as declarações produzidas pelos declarantes na escritura de justificação e compra e venda que o 1.º Réu celebrou, já que este nunca esteve na posse do referido prédio.
Os Réus vieram contestar, excecionando a falta de patrocínio judiciário, alegadamente por os Autores não terem conferido ao Advogado que faticamente os acompanha quaisquer poderes; excecionando a ilegitimidade passiva, por a Ré SM ser casada e o imóvel dos autos se integrar no casal comum da mesma com o marido; excecionando a ilegitimidade ativa, por a ação dever ter sido intentada pela herança indivisa e excecionando a ineptidão da petição inicial, por alegadamente os pedidos estarem em contradição com o fundamento da ação.
Impugnam a generalidade da matéria de facto da Petição, contrapondo que, na data de outorga da escritura de justificação e compra e venda, o Réu E. B. era efectivamente dono e legítimo proprietário do prédio dos autos, já que, por si e seus maiores, vinha detendo e fruindo o mesmo, pacífica e publicamente, com animus domini, e sem oposição de quem quer que fosse, há mais de 20 e 30 anos, sem interrupção, à vista de toda a gente.
Dizem que aquele direito de domínio pleno e exclusivo que veio a ser adquirido pelos Réus M. M. e marido pela dita escritura de compra e venda foi, posteriormente, transmitido para a sua filha SM, por doação titulada por escritura pública lavrada em 10 de março de 1997.
Defendem que atuamente SM é a única e exclusiva proprietária do prédio em apreço, o qual se encontra inscrito na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança, sob o n.º 999, e inscrito a favor da donatária.
Concluem pedindo que seja reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio identificado no art.º 4.º da Petição Inicial, a seu favor, e, consequentemente, que seja julgada improcedente, por não provada, a ação, com a sua absolvição dos pedidos contra si deduzidos. E, se assim se não entender, que sejam julgadas procedentes as invocadas exceções dilatórias.
Os Autores vieram responder, impugnando a totalidade da matéria de facto alegada em sede de exceções.
Em sede de audiência preliminar, convidaram-as as partes a fazer intervir nos autos o marido da Ré SM (PR) e o marido da Autora M. E. (V. E.).
Deferida a requerida intervenção destes terceiros, PR veio intervir voluntariamente nos autos, ratificando todos os atos processuais praticados pelos Réus.
Ordenou-se a junção aos autos de novas Procurações Forenses por parte dos Autores, com ratificação do processado.
Proferiu-se despacho saneador, no âmbito do qual se julgou improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial.
Realizou-se julgamento de acordo com o legal formalismo e foi proferida sentença que julgou a ação procedente, por provada, e, em consequência:
I. Declarou que a propriedade sobre o prédio rústico sito em Bragança, descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança, sob o n.º 999 e inscrito na matriz sob o artigo 4B2B.º, pertence em comum e sem determinação de parte ou direito, aos Autores.
II. Declarou validamente impugnada e, por isso ineficaz e sem qualquer efeito, a escritura de justificação notarial e venda outorgada pelos Réus, E. B., L. M. e J. N., em 20 de novembro de 1995, no Cartório Notarial de Bragança, por serem falsas as declarações aí prestadas pelo Réu, E. B..
III. Declarou ineficaz e sem qualquer efeito a escritura de doação outorgada pelos Réus, L. M., J. N. e SM, em 10 de março de 1997, no Cartório Notarial de Bragança.
IV. Determinou o cancelamento do registo de aquisição a favor da Ré, SM, mediante a Ap. 8 de 04/06/2007, do prédio rústico sito em Bragança, descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o número n.º 999 e inscrito na matriz sob o artigo 4B2B.º
V. Condenou a Ré SM e o chamado PR a restituírem aos Autores o prédio rústico sito em Bragança, descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o número n.º 999 e inscrito na matriz sob o artigo 4B2B.º.
Inconformados com o julgado, os Réus recorreram, terminando com as seguintes

Conclusões (que se resumem):

1. Entendem desta feita os RR. Que a Douta Sentença encontra-se desfasada da realidade e das normas jurídicas aplicáveis in casu, pois, tal como supra elencado, a mesma carece de pilares e fundamentos quanto aos compradores aqui RR M. M. e seu marido e a Ré sua filha SM e marido PR, nestes autos chamados.
2. A fundamentação não é aceitável, porquanto a mesma viola a Lei contrariando o regime aplicável nos presentes termos.
3. No Despacho Saneador, datado de 15/12/13, a ação foi qualificada como Ação de Reivindicação (art.º 1311.º do C.C.).
4. Dos documentos ora juntos resulta o trato sucessivo do identificado prédio – o registo de aquisição do direito de propriedade - 1995/1997-04-06.
5. A Petição Inicial dá entrada em 07/01/2001 – volvidos mais de 04 anos sobre o último registo de aquisição – da Ré SM e marido chamado PR.
6. Da referenciada certidão inexiste qualquer registo provisório da presente ação – pese embora arguida tal nulidade o Tribunal a quo não se pronunciou da falta de registo da ação, sendo totalmente omissa.
7. Os Réus aqui Recorrentes assumem ab initio a qualidade de terceiros de boa fé, para os devidos efeitos, nomeadamente do regime do art.º 291.º do CC, que visa a protecção do terceiro de boa fé, estabelecendo um desvio ao princípio geral sobre os efeitos da nulidade ou anulabilidade do negócio (art.º 289.º do C.C.).
8. Factualidade que resulta dos autos, matéria provada, assente, e suscitada. Porém, mesmo que os Réus não invocassem tal matéria a mesma – presunção de terceiros de boa fé – é de conhecimento oficioso, tal como a arguida nulidade – inexistência do registo da ação.
9. A sentença afasta a presunção assentando tão só que da referida não beneficiavam os aqui Réus considerando que os mesmos compraram na data da escritura de justificação. O que não aceitamos por contrário ao que é expectável nas normas e no regime aplicável aos terceiros de boa fé.
10. Assim, os direitos de terceiro sobre a coisa a restituir cedem se a ação de nulidade ou anulação for interposta e registada dentro dos três anos posteriores ao negócio. Vide o n.º 2 do art.º 291.º do C.C., o que não sucedeu nos presentes autos.
11. Matéria propagada ainda nos art.º 17.º do C.R.Predial, que em suma estabelece que o registo do ato que seja anterior ao registo de ação de nulidade. Tal declaração de invalidade do negócio não estorva os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé. Os aqui Réus beneficiam desta presunção ao contrário do vertido na Douta Sentença.
12. Nos termos do art.º 291.º trata da nulidade e anulabilidade do negócio jurídico (nulidade substantiva), ao passo que o art.º 17.º trata da nulidade do registo (nulidade registral) – artigos violados na sentença.
13. Ainda, definindo o que se deve entender por terceiros, rege o vertido no art.º 5.º, n.º 4, do C.R.Predial (cf. D.L. n.º 533/99, de 11/12) – os aqui Réus são terceiros de boa fé; caso contrário, da sentença teriam de resultar factos provados que afastassem o regime de presunção, o que não se verifica.
14. Sendo certo que dos factos provados e matéria assente resulta que os Réus compraram – documento legal – escritura de compra e venda – pagaram o preço, registaram o prédio e anos mais tarde por documento legal – escritura notarial – doaram a sua filha aqui Ré que, de igual guisa, procedeu ao registo do prédio em causa.
15. Resulta ainda dos factos provados que os aqui Réus, após o contrato de compra e venda, tomaram posse do prédio, mandando arranjar o mesmo e cultivando-o.
16. Inexiste qualquer facto que possa afastar o regime da aplicabilidade da presunção de terceiros de boa fé – dos aqui Réus.
17. Não tendo sido a própria, a ponderação conjunta, conjugada e adequado daqueles meios probatórios, que foram valorados de forma indevida. A manter-se o quadro factual da douta sentença, considera-se que, em face do quadro legislativo vigente, teria de ser outra a decisão do Tribunal recorrido, impondo-se sempre douta decisão que determine a improcedência da ação no que ao direito de propriedade dos Réus diz respeito – mantendo a eficácia dos documentos que lhe deram causa – escritura de compra e venda e doação.
18. Impõe-se que os mesmos sejam valorados correctamente e, consequentemente, determinar-se a improcedência da ação no que aos aqui Réus diz respeito – absolvendo-os reconhecendo o trato sucessivo dos Réus com aplicabilidade e subsunção dos factos à presunção de terceiros de boa fé aos Réus, mantendo a legalidade do contrato de compra e venda nos seus precisos termos, assim como a eficácia do registo por imposição legal – tal como a doação e consequente registo.
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Os Autores não apresentaram contra-alegações.
O presente recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:

I. Consequências da falta de registo da ação.
II. Qualificação dos Réus como terceiros de boa fé, nos termos e para os fins previstos no art.º 291.º do Código Civil.

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III - MATÉRIA DE FACTO PROVADA

Foram os seguintes os factos provados e não provados elencados na decisão em recurso:

Factos Provados:

1) Por escritura pública outorgada em 20 de novembro de 1995, no Cartório Notarial de Bragança, em Bragança, o Réu E. B. declarou “que é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, de um prédio rústico, composto de pastagem, com castanheiros, sito no lugar do …, deste concelho de Bragança, com área de quatrocentos e vinte metros quadrados, a confrontar do Norte com A. M., do Sul e Nascente com A. F. e do Poente com Estrada, inscrito na respetiva matriz, em nome de L. M., aqui compradora, tendo anteriormente estado em nome do justificante, sob o artigo 4C2C (…) não descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança (…) Que o referido prédio, veio à sua posse e domínio por usucapião, dado que o adquiriu, ainda no estado de solteiro, há mais de quinze e até vinte anos, pelo que passou a ser um bem próprio, dele justificante e, desde então, tem-no possuído, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, praticando nele todos os atos de um bom proprietário, nomeadamente limpando e cortando as árvores, colhendo os frutos, dando-o de arrendamento pagando as respetivas contribuições e prémios de seguro agrícola, considerando-se e sendo considerado como seu verdadeiro dono. Estes factos integram a figura jurídica da usucapião que invoca, por não poder provar a alegada posse pelos meios extrajudiciais normais (…). Finalmente, o primeiro e terceira outorgante declararam que fazem e pela presente escrtura titulam, o seguinte contrato de compra e venda: O primeiro outorgante vende à terceira e esta compra pelo preço de cem mil escudos, importância que aquele declara ter já recebido, o prédio atrás identificado (…).” – cf. escritura de fls. 20 a 24 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2) Por escritura pública outorgada em 10 de março de 1997, no Cartório Notarial de Bragança, em Bragança, os Réus L. M. e marido J. N. e SM declararam que “(…) doam, com dispensa de colação à segunda outorgante, sua filha, o prédio rústico, composto de pastagem, com castanheiros, sito no lugar de …, deste concelhode Bragança, com área de quatrocentos e vinte metros quadrados, a confrontar do Norte com A. M., do Sul e Nascente com A. F. e do Poente com Estrada, incristo na respetiva matriz em nome de L. M., aqui compradora, tendo anteriormente estado em nome do justificante, sob o artigo 4C2C (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança sob o número trezentos e vinte e dois, pela dita freguesia de … e inscrito a favor dos doadores pela inscrição G-um, atribuindo a esta doação o valor de quinhentos mil escudos. E declarou a segundo outorgante: que aceita a presente doação, nos precisos termos em que fica exarada (…)“ – cf. doc. de fls.25 a 27 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3) O prédio rústico mencionado em 1) encontra-se inscrto na matriz predial rústica sob o artigo 4B2B, constando como titular inscrita SM e descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança, sob o número 999, inscrito a seu favor pela Ap. 8 de 4/ 06/ 1997, por doação
4) Os autores são respectivamente viúva, filhos, genros e noras de JDN, casado com Autora A. M. (falecida na pêndencia da ação), falecido em 9 de fevereiro de 1992.
5) A herança aberta por óbito de JDN ainda não foi partilhada e da mesma faz parte o prédio descrito em 1).
6) Os pais da primeira autora, durante mais de 15, 20, 30 e mais anos, sempre o cultivaram, lavrando-o, semeando-o e dele colhendo as culturas que o mesmo produzia, sempre à vista e com o conhecimento de todas as pessoas da aldeia, sem oposição de ninguém, com a convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem direitos de outrem,
7) Após o decesso de seus pais, de quem o herdou, a falecida autora e seu marido, durante mais de 15, 20, 30 e mais anos, sempre o cultivaram, lavrando-o, semeando-o e dele colhendo as culturas que o mesmo produzia, sempre à vista e com o conhecimento de todas as pessoas da aldeia, sem oposição de ninguém, com a convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem direitos de outrem.
8) Os dois castanheiros existentes no prédio descrito em 1) já aí não existem, pelo facto de, há mais de 20 anos, terem sido cortados a mando da falecida autora Ana.
9) Não obstante o referido em 1), o terreno esteve ocupado com tijolos pertencentes a um terceiro, de nome Norberto, que aí os depositou por ordem da primeira autora A. M..

Factos não provados:

1. A autora A. M. mandou cortar os castanheiros existentes no prédio mencionado em 1).
2. O Réu E. B., por si e seus antepossuidores, há mais de 10, 20 e 30 anos à data da doutorga da escritura referida em 1), detinha e fruía do prédio descrito em 1), trabalhando-o e colhendo os seus frutos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de exercer um direito próprio.
3. A Ré A. M. cortou dois castanheiros existentes no prédio referido em 1) e foi obrigada a entregar judicialmente as duas árvores a casa do Réu E. B., os quais foram utilizados por este.
4. Apos a compra ao Réu E. B., os Réus J.H. e M. M. meteram uma máquina no prédio para o desbravar e, de seguida, lavraram-no e cultivaram-no.
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IV – CONSEQUÊNCIAS DA FALTA DE REGISTO DA AÇÃO

Os Réus invocam – nas suas alegações de recurso – que não existe registo provisório da presente ação. Bem como que, pese embora arguida tal nulidade, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a falta de registo da ação.
Acrescentam que esta nulidade - inexistência do registo da ação – é de conhecimento oficioso.
Compulsados os autos, verifica-se que, já em 2016 e imediatamente após o final da audiência de julgamento, o Tribunal a quo solicitou certidão do registo predial atualizada, a qual se encontra junta a fls. 506, de onde resulta, entre o mais, que a presente ação não chegou a ser registada.
Imediatamente após a junção desta certidão, os Réus vieram apresentar um requerimento nos autos em que referem que inexiste qualquer registo provisório da presente ação e que eles, como Réus, assumem a qualidade de terceiros de boa fé e pedem “apenas” que a ação seja julgada totalmente improcedente, atendendo aos documentos juntos assim como toda a prova produzida, considerando como provado que os Réus são proprietários/adquirentes de boa fé do prédio em causa, terceiros de boa fé.
Ao tempo da interposição da presente ação, decorria dos art.º 2.º, n.º 1, alínea a), e 3.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código do Registo Predial (1), aprovado pelo D.L. n.º 224/84, de 06 de julho, que estavam sujeitos a registo “Os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão.” (art.º 2.º) e, por esta via, “As ações que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou extinção de algum dos direitos referidos no artigo anterior.” e ainda “As ações que tenham por fim, principal ou acessório, a reforma, a declaração de nulidade ou a anulação de um registo ou do seu cancelamento.” (art.º 3º). Acrescentava-se, no n.º 2 deste art.º 3.º, que “As ações sujeitas a registo não terão seguimento após os articulados sem se comprovar a sua inscrição, salvo de o registo depender da respetiva procedência.” (2)
Uma vez que nos presentes autos os Autores pedem, no essencial, que os Réus sejam condenados a reconhecerem que o prédio identificado em 4) da Petição Inicial pertence em comum à primeira Autora e à herança aberta por óbito de JDN e a fazer-lhes a entrega do referido prédio, na qualidade em que intervêm e, por outro lado, que sejam declaradas nulas e de nenhum efeito a escritura de justificação e venda outorgada pelo 1.º Réu no Cartório Notarial de Bragança, em 20 de novembro de 1995, e bem assim a escritura de doação outorgada no mesmo Cartório Notarial pelos 2.º e 3.º Réus e que seja ordenado o cancelamento de todos os registos efectuados sobre o referido prédio com base nas referidas escrituras, é manifesto que os Autores deveriam ter procedido ao registo da ação, em termos provisórios.
Efetivamente, os princípios da oponibilidade dos factos a terceiros, da prioridade e do trato sucessivo, justificam e obrigam a que se proceda ao registo da ação de reivindicação sempre que o prédio objeto da mesma esteja registado em nome de algum dos Réus.
Tal como explica Mouteira Guerreiro (3), “Assim, quando se fala na constituição, modificação, reconhecimento ou aquisição da propriedade e demais direitos com ela conexos e referidos nas primeiras alíneas do art.º 2.º, o Código reporta-se a todos os modos legítimos de adquirir – por forma originária ou derivada – genericamente referidos na lei.” E - mais à frente – “(…) terá óbvio interesse o registo da ação de reivindicação quando o prédio se ache registado a favor do réu. Aí é este que goza das garantias e presunções derivadas do registo e se, por exemplo, alienar o prédio e ação não estiver registada, ainda que o autor venha a triunfar, pode de nada lhe servir, porque a decisão é inoponível ao terceiro adquirente.”
Não tendo os Autores procedido voluntariamente ao registo da ação, deveria ter-se ordenado a suspensão da instância, após os articulados, até estes comprovarem a efetivação de tal registo.
Sendo certo que tal não foi feito no momento oportuno, a questão pertinente é a de apurar as consequências da falta de registo da ação.
Uma vez que a legislação registral e/ou processual não cominavam, à época, qualquer outra consequência processual à omissão do registo que não a suspensão da instância (4), devemos apelar à teleologia dos preceitos legais citados.
Como se sabe, o fundamento do registo predial é a publicidade dos direitos com vista à segurança do tráfego jurídico.
A obrigatoriedade de registo das ações judiciais insere-se neste fundamento genérico, em especial à luz dos princípios já referidos da oponibilidade dos factos a terceiros, da prioridade e do trato sucessivo: devem registar-se as ações, ou melhor, a petição inicial ou a contestação (5) com a finalidade de dar a devida publicidade de que está pendente em Juízo uma certa ação judicial suscetível de produzir alterações relevantes no objeto de factos sujeitos a registo.
Este registo é feito de forma provisória, pelo evidente motivo de que a pendência de uma ação judicial não é uma decisão definitiva.
Em momento posterior, julgada a causa com trânsito em julgado, deve proceder-se ao registo definitivo de tal facto, com base nos mesmos fundamentos de publicidade e de segurança jurídica, se houver alteração do titular inscrito.
Neste segundo momento de efetivação de registo da decisão final, o registo provisório pendente tem a virtualidade de tornar retroativamente oponível erga omnes a decisão final, por referência à data daquele primeiro registo provisório (cf. art.º 91.º e ss. do CRPredial).
Assim sendo, é para nós evidente que a falta de registo da petição inicial neste momento processual, em que já existe decisão final na 1ª Instância e em que estamos a proceder ao julgamento em 2ª Instância, não tem qualquer utilidade prática.
Com efeito, a finalidade de dar a devida publicidade de que está pendente em Juízo uma certa ação judicial suscetível de produzir alterações relevantes no objeto da ação (factos sujeitos a registo) e a vantagem de possibilitar a eficácia retroativa da decisão final, ficaram completamente prejudicadas com o passar do tempo e, em especial, com a decisão final proferida na 1ª Instância.
Neste momento, apenas terá utilidade o registo da decisão final da causa, com trânsito em julgado, o qual deverá ser levado a cabo oportunamente, caso haja alteração do titular inscrito.
No mesmo sentido, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/05/1991, tendo como Relator Marques Cordeiro (6), “A acção que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade sobre imóvel está sujeito a registo obrigatorio por força do preceituado no artigo 3, n. 1, alinea a) do Codigo do Registo Predial. A falta do registo da acção é de conhecimento oficioso mas, não tendo as partes suscitado oportunamente a questão, o tribunal de 1.ª instancia não cometeu qualquer nulidade ao deixar de se aperceber da falta de registo da acção. (…) Dado o estado do processo não há necessidade de suspender a instancia para que o registo seja efectuado uma vez que são poucas ou nenhumas as possibilidades de um terceiro de boa fé estar interessado na aquisição do predio, ao que acresce a má fé por parte da Ré se procedesse à sua venda, e, pelo que respeita ao Autor, os inconvenientes que lhe podem advir da falta do registo da acção só a ele mesmo são imputaveis.”
Conclui-se, então e sem necessidade de mais considerações, pela improcedência deste fundamento específico de recurso.
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V – QUALIFICAÇÃO DOS RÉUS COMO TERCEIROS DE BOA FÉ, NOS TERMOS E PARA OS FINS PREVISTOS NO ART.º 291.º DO CÓDIGO CIVIL

Os Réus invocam ainda - nas suas alegações de recurso – que assumem ab initio a qualidade de terceiros de boa fé, para os devidos efeitos, nomeadamente do regime do art.º 291.º do CC, que visa a protecção do terceiro de boa fé, estabelecendo um desvio ao princípio geral sobre os efeitos da nulidade ou anulabilidade do negócio (art.º 289.º do C.C.).
Acrescentam que esta factualidade resulta da matéria provada nos autos. Bem como que inexiste qualquer facto que possa afastar o regime da aplicabilidade da presunção de terceiros de boa fé – dos aqui Réus. Também que, de qualquer modo, esta presunção de terceiros de boa fé é de conhecimento oficioso.
Defendem que os direitos de terceiro sobre a coisa a restituir cedem se a ação de nulidade ou anulação for interposta e registada dentro dos três anos posteriores ao negócio, o que não sucedeu nos presentes autos (cf. art.º 291.º do Código Civil). Matéria propagada ainda nos art.º 17.º do C.R.Predial, que em suma estabelece que o registo do ato que seja anterior ao registo de ação de nulidade não estorva os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé.
Entendem que se impõe que as escrituras públicas sejam valoradas corretamente e, consequentemente, determinar-se a improcedência da ação no que a eles diz respeito – absolvendo-os, reconhecendo o trato sucessivo dos Réus com aplicabilidade e subsunção dos factos à presunção de terceiros de boa fé aos Réus, mantendo a legalidade do contrato de compra e venda nos seus precisos termos, assim como a eficácia do registo por imposição legal – tal como a doação e consequente registo.
Antes de mais, cumpre referir que os Recorrentes não fazem qualquer alusão nos articulados a esta agora invocada qualidade de “terceiros de boa fé” para os fins previstos no art. 291.º do Código Civil (7).
Tal como ficou referido acima, estes – na respetiva Contestação – limitam-se a alegar que, na data de outorga da escritura de justificação e compra e venda, o Réu E. B. era efectivamente dono e legítimo proprietário do prédio dos autos, já que, por si e seus maiores, vinha detendo e fruindo o mesmo, pacífica e publicamente, com animus domini, e sem oposição de quem quer que fosse, há mais de 20 e 30 anos, sem interrupção, à vista de toda a gente.
Dizem que aquele direito de domínio pleno e exclusivo que veio a ser adquirido pelos Réus M. M. e marido pela dita escritura de compra e venda foi, posteriormente, transmitido para a sua filha SM, por doação titulada por escritura pública lavrada em 10 de março de 1997.
Defendem que atualmente SM é a única e exclusiva proprietária do prédio em apreço, o qual se encontra inscrito na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança, sob o n.º 999, e inscrito a favor da donatária.
Apenas vieram suscitar esta questão em requerimento apresentados nos autos após a conclusão do julgamento e na sequência da junção aos autos de certidão atualizada do Registo Predial.
No entanto, entendemos poder e dever apreciar este específico fundamento de recurso por se traduzir numa específica qualificação jurídica dos factos apurados nos autos e, nesta medida, não se tratar de uma mera “questão nova” (8).
O art.º 291.º do C.Civil, relativo à inoponibilidade da nulidade e da anulação, pressupõe a verificação de um conjunto de requisitos cumulativos: a declaração de nulidade ou anulação de negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo; um novo negócio jurídico outorgado de forma onerosa; uma aquisição por um terceiro de boa fé; o registo da aquisição a favor deste terceiro e a anterioridade do registo da aquisição pelo terceiro em relação ao registo da ação de nulidade ou de anulação.
Verificados todos estes requisitos, os terceiros adquirentes de boa fé ficam protegidos contra os efeitos retroativos da declaração de nulidade e/ou da anulação do negócio jurídico.
Nos presentes autos, deu-se como assente que, por escritura pública outorgada em 20 de novembro de 1995, no Cartório Notarial de Bragança, em Bragança, o Réu E. B. declarou “que é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem” do prédio dos autos “(…) não descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança (…)”, justificando que “(…) o referido prédio, veio à sua posse e domínio por usucapião, dado que o adquiriu, ainda no estado de solteiro, há mais de quinze e até vinte anos, pelo que passou a ser um bem próprio, dele justificante e, desde então, tem-no possuído, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, praticando nele todos os atos de um bom proprietário (…).” Na mesma escritura, este Réu declara que “(…) vende à terceira e esta compra pelo preço de cem mil escudos, importância que aquele declara ter já recebido, o prédio atrás identificado (…).” – cf. escritura de fls. 20 a 24 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. Sequencialmente, considerou-se que, por escritura pública outorgada em 10 de março de 1997, no Cartório Notarial de Bragança, em Bragança, os Réus L. M. e marido J. N. e SM declararam que “(…) doam, com dispensa de colação à segunda outorgante, sua filha, o prédio rústico (…) dos autos, tendo declarado esta “(…) que aceita a presente doação, nos precisos termos em que fica exarada (…)“ – cf. doc. de fls.25 a 27 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Mais está provado que o prédio rústico mencionado em 1) se encontra inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 4B2B, constando como titular inscrita SM e descrito na Conservatória do Registo Predial de Bragança, sob o número 999, inscrito a seu favor pela Ap. 8 de 4/ 06/ 1997, por doação (9).
No entanto, está igualmente provado nos autos que os autores são respectivamente viúva, filhos, genros e noras de JDN, casado com Autora A. M. (falecida na pêndencia da ação), falecido em 9 de fevereiro de 1992. Bem como que a herança aberta por óbito de JDN ainda não foi partilhada e da mesma faz parte o prédio descrito em 1).
Com particular relevo, deu-se como provado que os pais da primeira autora, durante mais de 15, 20, 30 e mais anos, sempre o cultivaram, lavrando-o, semeando-o e dele colhendo as culturas que o mesmo produzia, sempre à vista e com o conhecimento de todas as pessoas da aldeia, sem oposição de ninguém, com a convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem direitos de outrem. Também que, após o decesso de seus pais, de quem o herdou, a falecida autora e seu marido, durante mais de 15, 20, 30 e mais anos, sempre o cultivaram, lavrando-o, semeando-o e dele colhendo as culturas que o mesmo produzia, sempre à vista e com o conhecimento de todas as pessoas da aldeia, sem oposição de ninguém, com a convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem direitos de outrem.
Com base neste conjunto de factos, a sentença recorrida entendeu – desde logo - que “(…) resulta que ao réu E. B. competia a prova dos factos constitutivos invocados na escritura e alicerçantes do direito que nela se arrogou – art.º 343.º n.º 1 do CC – o que não logrou fazê-lo – factos não provados vertidos sob a alínea b) – pelo que a pretensão dos autores em ver impugnada a escritura de justificação e declarada a sua ineficácia, resulta, desde logo, sem mais e inelutavelmente, da falta de cumprimento do ónus probatório por parte do réu E. B..”
Efetivamente, o pedido formulado pelos Autores de declaração de nulidade da escritura de justificação traduz-se numa impugnação de justificação notarial, motivo por que se deve aplicar nos autos a doutrina do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008 (publicado no Diário da república, 1ª Série n.º 63, de 31/03/2008): “Na ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial.”
Lê-se mais à frente no mesmo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência: “Daí que, impugnada a escritura com base na qual foi lavrado o registo, por impugnado também se tem de haver esse mesmo registo, não podendo valer contra o impugnante a referida presunção, que a lei concede no pressuposto da existência do direito registado. A escritura de justificação notarial, com as declarações que nela foram exaradas, apenas vale para efeito de descrição do prédio na conservatória do registo predial, se não vier a ser impugnada – artigo 101.º do Código do Notariado. Como o registo foi feito com base em tal escritura de justificação, aqui impugnada, e precisamente porque o foi, não pode ele constituir qualquer presunção de que o direito existe, já que é este mesmo direito cuja existência se pretende apurar nesta ação.”
Ou seja, a justificação notarial não constitui ato translativo, pressupondo sempre, no caso de invocação de usucapião, uma sequência de atos a ela conducentes, que podem ser impugnados, antes ou depois de ser efetuado o registo, com base naquela escritura.
Consequentemente, cabia aos aqui Recorrentes a prova dos elementos da posse conducentes à aquisição do imóvel por usucapião.
Por outro lado, decidiu-se na sentença recorrida que “(…) face aos factos considerados provados sob os pontos 8) e ss., encontram-se preenchidos os dois elementos que integram a posse: o “corpus” e o “animus” e, bem assim, encontra-se decorrido o prazo para usucapir. Assim, e face à factualidade provada, dúvidas não existem de que os autores logaram provar que são, em comum e sem determinação de parte ou de direito, proprietários do prédio rústico inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4B2B.”
Concordamos igualmente com esta conclusão: não restam dúvidas de que a atividade dos Recorridos sobre a parcela de terreno impugnada corresponde à situação jurídica possessória vocacionada à aquisição do direito de real de propriedade e que já decorreu o prazo necessário para a constituição do direito.
Definido que está que o imóvel dos autos pertence aos Autores, por via do instituto da usucapião, a conclusão necessária é a de que o 1º Réu, E. B., ao declarar vender o mesmo aos 2º Réus, L. M. e J. N., procedeu a uma venda de bens alheios.
Ora, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a defender, de forma reiterada, que a invocada estatuição do art.º 291.º do C.Civil não se aplica às situações de venda de bens alheios, por não se tratar de um caso de nulidade ou de anulabilidade, posição com que concordamos.
Na verdade, as situações de nulidade e/ou de anulabilidade do negócio jurídico, consagradas nos art.º 285.º e ss. do C.Civil, são realidades jurídicas diversas da ineficácia e é esta que se verifica relativamente ao proprietário face a uma venda feita por um terceiro.
Já Vaz Serra (10) explicava que “a (alienação de coisa alheia) pode ser anulável, na relação entre o alienante e o adquirente, mas, em relação ao verdadeiro proprietário da coisa alienada, é mais do que nula ou anulável, pois é simplesmente ineficaz, como acto que lhe é totalmente estranho (res inter alios acta), não carecendo ele, portanto, de recorrer a qualquer meio jurídico de impugnação para obter que tal acto lhe não seja oponível.(…) já não se compreenderia que o proprietário de um objecto alienado por terceiro (não representante do proprietário e não provido, a outro título, do poder de disposição) fosse obrigado a fazer anular um negócio em que não interveio e que lhe é de todo estranho.(…) Consequentemente não carecem de anular a alienação efectuada(…): podem, pura e simplesmente desconhecê-la”.
Sendo a venda de bens alheios ineficaz relativamente ao verdadeiro proprietário, este só perderá o respetivo direito de propriedade se o adquirente do bem lograr adquiri-la originariamente, por virtude do instituto da usucapião.
Neste sentido, na doutrina, Maria Clara Sottomayor (11), defendeu que a aquisição a non domino prevista no art. 291.º, n.º 1 do Código Civil não permite que, através da intervenção de um terceiro que obtenha um registo falso ou baseado em títulos falsos, fique sanada a nulidade negocial derivada da cadeia transmissiva assim gerada, pois “tal solução seria equivalente a admitir a expropriação do verdadeiro titular que não terá meios para se aperceber da fraude por não ter praticado qualquer negócio jurídico que desse origem à cadeia de negócios inválidos.”
Ainda na doutrina, Mónica Jardim (12) defende, da mesma forma, que “(…) se o negócio originariamente inválido não tiver sido celebrado com o verdadeiro titular do direito, naturalmente, será nulo inter partes e não produzirá qualquer efeito perante o verdadeiro proprietário, podendo este a todo o tempo defender o seu direitos eficaz erga omnes. Nõ podendo, portanto, o terceiro de boa fé adquirir um qualquer direito real ao abrigo do art.º 291.º”
Decidiu-se, no mesmo sentido, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/03/2012, tendo como Relator Helder Roque (13): “Sendo nula a aquisição do prédio, em consequência de justificação notarial, e, reflexamente, o negócio constitutivo da hipoteca, operado pelo justificante, a favor do Banco, beneficiária da garantia real, no que toca às relações entre aquele e esta, essa hipoteca de coisa alheia é, por sua vez, relativamente aos proprietários do bem onerado pelo non dominus, por se traduzir na oneração de um bem de outrem, res inter alios acta, ou seja, ineficaz, isto é, insusceptível de produzir efeitos sobre o seu património, tudo se passando como se não existisse, independentemente da boa fé do beneficiário do direito real de garantia, o que afasta, quanto ao dono da coisa, os efeitos emergentes da aquisição tabular.”
Bem como no Acórdão desta Relação de 27/10/16, tendo como Relatora Ana Cristina Duarte (14): “O terceiro a que se refere o artigo 291.º do CC é protegido na medida em que lhe não pode ser oposta a nulidade do primitivo contrato de compra e venda se tiver adquirido o direito sobre imóveis a título oneroso, de boa fé, inscrito no registo predial a sua aquisição e haja decorrido um triénio sobre a data do primeiro contrato sem haver sido instaurada a acção de nulidade. Contudo, para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.”
Ainda que assim não fosse, por outra via seria inaplicável ao caso dos autos a estatuição do indicado art. 291.º do C.Civil: por falta de prova de que os 2º e 3º Réus estavam de boa fé, na ocasião da celebração dos respetivos negócios translativos da propriedade.
A boa fé, para os fins deste normativo legal, consiste na ignorância, no momento da celebração do contrato, de que a coisa vendida ou o negócio celebrado padecia de algum vício. Ou seja, trata-se de uma boa fé em sentido ético.
Nos presentes autos, como se referiu acima, os Recorrentes apenas vieram suscitar esta questão em requerimento apresentados nos autos após a conclusão do julgamento e na sequência da junção aos autos de certidão atualizada do Registo Predial.
Assim, não produziram qualquer alegação na Contestação atinente ao estado de espírito dos 2º e 3º Réus no momento da celebração dos respectivos negócios jurídicos. Por inerência, não há qualquer facto na sentença dos autos demonstrativa da boa fé destes.
Como é evidente, a Contestação seria o local próprio para alegaram os factos integrantes de tal circunstância, sob pena de preclusão.
Ou seja, o processo civil não é mais do que um conjunto de regras ordenadoras da forma e dos prazos de arguição em Tribunal das pretensões jurídicas das partes.
A obrigação de seguir este "figurino legal" conduz necessariamente à autorresponsabilização dos sujeitos processuais: caso pretendam praticar um qualquer acto processual terão de o fazer pela forma e no prazo previsto na lei, sob pena de preclusão.
Refere, a este propósito, José Lebre de Freitas (15) "Ónus, preclusões e cominações ligam-se entre si ao longo de todo o processo, com referência aos atos que as partes, considerada a tramitação aplicável, nele têm de praticar dentro de prazos perentórios. (...) As partes têm assim o ónus de praticar os atos que devam ter lugar em prazo perentório, sob pena de preclusão e, nos casos indicados na lei, de cominações. A autorresponsabilidade da parte exprime-se na consequência negativa (desvantagem ou perda de vantagem) decorrente da omissão do ato."
Conclui-se, portanto, pela inaplicabilidade da disposição legal do art. 291.º do C.Civil à situação vertente.
A conclusão final é, pois, a da total improcedência do recurso.
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VI - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o presente recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
*
Custas pelos Recorrentes (art. 527.º do C.P.Civil).
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Notifique e registe.
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(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Guimarães, 14 de setembro de 2017

(Lina Castro Baptista)
(Alexandra Maria Rolim Mendes)
(Maria Purificação Carvalho)

1. Doravante designado apenas por CRPredial.
2. Esta disposição legal foi revogada pelo D.L. n.º 116/2008, de 04/07.
3. In Noções de Direito Registral (Predial e Comercial), 2ª Edição, 1994, Coimbra Editora, pág. 46 e ss..
4. Não havendo qualquer fundamento jurídico para cominar – como pretendem os Recorrentes – o processo com uma qualquer nulidade.
5. Neste último caso, em situações de pedidos reconvencionais.
6. Proferido no Processo n.º 080398 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
7. Doravante apenas designado por C.Civil.
8. Veja-se, a este respeito, António Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil; 2017; 4ª Edição, Almedina, pág. 104 e ss. 9. E, como vimos acima, a presente ação judicial não chegou a ser registada, nos termos prescritos na lei.
10. In R.L.J. Ano 100º, Pág. 59, em anotação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/04/1970.
11. In Invalidade e registo. A proteção do terceiro adquirente de boa fé, 2010, Almedina, pág. 481.
12. In “Revisitando o art.º 291.º do Código Civil” in Ab Instantia – Revista do Instituto do Conhedimento AB, 2016, Ano IV. N.º 6, pág. 107.
13. Proferido no Processo n.º 2441/05.8TBVIS.C1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão. Veja-se igualmente no mesmo sentido o Acórdão do mesmo Tribunal Superior de 19/04/2016, tendo como Relatora Maria Clara Sottomayor, proferido no Processo n.º 5800/12.6TBOER.L1-A.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
14. Proferido no Processo n.º 1122/11.8TBBCL.G1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
15. In Introdução ao Processo Civil - Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3ª Edição, Coimbra Editora, p.182.