Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
56/09.0TBCHV-A.G2
Relator: CARLA OLIVEIRA
Descritores: INVENTÁRIO
IMPUGNAÇÃO DAS DECLARAÇÕES DE CABEÇA DE CASAL
BENS ADQUIRIDOS NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida).
II- Essas conclusões devem ser idóneas para delimitar de forma clara, inteligível e concludente o objecto do recurso, permitindo apreender as questões de facto ou de direito que o recorrente pretende suscitar na impugnação que deduz e que o tribunal superior cumpre solucionar.
III- O incumprimento do ónus de apresentação de conclusões concisas e claras não conduz à imediata rejeição do recurso, sendo antes aplicável o disposto no art.º 639º, nº 3 do NCPC, devendo ser proferido despacho de aperfeiçoamento que permita à parte superar a irregularidade processual cometida.
IV- A modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão.
V- A inclusão na fundamentação de facto constante da sentença de matéria de direito ou conclusiva configura uma deficiência da decisão, vício que é passível de ser conhecido, mesmo oficiosamente, pelo Tribunal da Relação, tal como decorre do art.º 662º, nº 2, al. c), do NCPC.
VI- Por outro lado, a reapreciação da matéria de facto está limitada ao efeito útil que da mesma possa provir para os autos, em função do objecto processual delineado pelas partes e assim já antes submetido a apreciação pelo tribunal a quo.
VII- Todos os bens adquiridos na constância do casamento são comuns, na falta de demonstração de que são próprios, sendo certo que a própria entrada no património comum está dispensada de prova.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA
instaurou no Cartório Notarial de Dr.ª BB processo de inventário para partilha de meação subsequente a divórcio, tendo indicado como cabeça de casal o requerido
CC.
O requerido, por ser o ex-cônjuge mais velho, foi nomeado para exercer as funções de cabeça de casal.
Sendo-lhe tomadas declarações veio este dizer que inexiste qualquer bem a partilhar.
Notificada destas declarações veio a requerente, afirmar não ser verdade que não existam bens a partilhar, uma vez que ao longo da vida o casal adquiriu diversos bens móveis para a casa de morada de família que ficaram na posse do cabeça de casal, tendo ficado ainda na posse deste bens pessoais dos filhos do dissolvido casal.
Mais alegou que o casal realizou obras na mesma casa, algumas com dinheiros próprios da requerente, apesar da dita casa se situar num prédio propriedade da herança aberta por óbito do pai do cabeça de casal, que ascenderam a 26.284,00 € e se traduziram na instalação de aquecimento central, edificação de lareira com recuperador, colocação de portões, persianas, portas e janelas e de uma chaminé, colocação de soalho em madeira e de mosaico cerâmico, colocação de móveis de cozinha em madeira com electrodomésticos encastrados e outras obras de melhoramento.
Em resposta, pronunciou-se o cabeça de casal afirmando que as obras realizadas na casa de morada de família na pendência do casamento foram custeadas pela mãe do cabeça de casal, sendo que não são as descritas pela interessada, nem ascendem ao valor de 26.284,00 € e que mesmo que as obras tivessem sido realizadas o seu valor deveria ser reclamado em sede de uma acção a propor contra a herança aberta por óbito de DD, a quem pertence o imóvel.
Alegou ainda que a interessada, quando saiu da casa de morada de família, levou consigo todos os bens pessoais dos seus filhos e outros bens móveis que identificou.
Por fim e no que se refere às mobílias, argumentou que a casa já se encontrava mobilada quando o extinto casal foi residir para a mesma.
Entretanto, a requerente pediu, nos termos do disposto no art.º 12º, nº 2, al. b) da Lei 117/2019 de 13.09, a remessa do processo para o tribunal competente, o que veio a ser deferido, passando este a correr sob o nº 56/09.... por apenso ao respectivo processo de divórcio.
Realizada a inquirição das testemunhas arroladas pelas partes, foi de seguida sido proferida decisão, constando do respectivo dispositivo o seguinte:
“IV. Decisão.
Em face do exposto, nos presentes autos de inventário subsequente a divórcio instaurados por AA contra CC, em que exerce este as funções de cabeça de casal, julgo improcedente a impugnação às declarações de cabeça de casal deduzida pela interessada, absolvendo o cabeça de casal do pedido.
Inexistindo bens comuns a partilhar, não podem os presentes autos prosseguir, determinando-se a sua extinção.
*
Custas pela interessada.
Registe e notifique.”.

Notificada de tal decisão, veio a requerente AA interpor o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:

“I. Versa o presente recurso a impugnação da matéria de facto, porque ocorreu, na opinião da recorrente, notório erro de julgamento sobre vários pontos concretos de facto, infra enunciados que foram incorrectamente julgados e que conduziram à absolvição do R. do pedido.
II. A interessada-recorrente não se conforma com esta decisão, já que a prova produzida em sede de julgamento, decorrente dos depoimentos das testemunhas por si arroladas bem como do depoimento das testemunhas arroladas pelo aqui recorrido, conjugada com as regras da experiência comum, era mais que suficiente para que procedesse a impugnação oferecida e se considerassem comuns os bens descritos nessa peça.
III. O tribunal a quo não valorou nem apreciou correctamente a prova dos factos sob recurso, pois assentou as suas decisões (sobre a matéria de facto) em meras percepções subjectivas, impressões e conjecturas sem arrimo em substrato objectivo, salientando-se os critérios evasivos, frágeis, ténues e precários utilizados para aferir da credibilidade das testemunhas, o que se traduziu em errónea apreciação de prova e desaguou em erro de julgamento, evidenciando-se desconformidade entre os elementos de prova e a decisão.
IV. É certo que a livre apreciação da prova é discricionária mas tem de obedecer e se redutível, o que não se verificou, a critérios objectivos, sob pena de ser arbitrária por sustentada em mera impressão gerada no julgador pelos diversos meios de prova.
V. Na verdade, o decidido sob impugnação, foi valorado com clara infracção das regras da lógica e das regras da experiência comum.
VI. Foi incorretamente dado como não provado que o extinto casal realizou na casa de morada de família benfeitorias no valor de 26.284,00 €, pois todas as testemunhas, sem excepção, corroboraram a impugnação da interessada, aqui recorrente quanto à realização de obras na casa de morada de família, como se revela pelos meios de prova que se indicam (em conjugação com a lógica e as regras da experiência comum) e que impõem decisão diversa da recorrida:
Testemunha EE( irmão do recorrido):
- “[…] só sei que cada vez que ligava para a minha mãe ela estava-se sempre a chorar que qualquer dia o dinheiro esgotava, porque a casa estava nova, não precisava de obras, estavam ( i.é. recorrente e recorrido) sempre a fazer obras.” - ao min. 04:06;
- “Quem mandou fazer obras foi o meu irmão” - ao min. 04:40;
Testemunha FF:
- “[…] eles começaram a arranjar a casa […]” – ao min. 03:08;
- “[…] Que obras fez nessa casa?” “Oh, arranjaram tudo. […]” – ao min. 05:26;
- “Olhe, pôs a cozinha nova, fui eu que lhe dei o dinheiro para ela”. – ao min. 05:50;
- “Depois dei-lhe, paguei-lhe a sofagem, a sofagem” […] “O aquecimento?”
“O aquecimento, o aquecimento – ao min 07:29;
- “Eu sei que pôs portões novos, sei.” – ao min 09:10;
- “O soalho era velho, era tudo velho, eles puseram mosaicos pequeninos em madeira, carvalho, assim mosaicos assim pequeninos, aos quadradinhos assim pequeninos, […]” – ao min 11:35;
- “Fizeram a lareira, sim senhor. Está no, no fundo, no fundo da sala a lareira, uma lareira grande.” “E cá fora, o que é que fizeram de obras?”
“Cá fora, olhe, tinha lá um grande jardim, com grande terra para semear coisas. Pôs só corredores em pedrinhas, em paralelos pequeninos e pôs assim uma torneira, assim umas coisas, assim uma fontinha, quer dizer, olhe, deu cabo de tudo, de um lado e do outro e ao meio, não sei agora.” – ao min 12:56.
Testemunha GG:
- “Depois houve o aquecimento essas coisas todas” “O aquecimento também” “Central, sim.” – ao min. 05:30;
- “Sim, fizeram uma chaminé sim, também.” – ao min. 05:44;
- “Foi tudo posto de novo, e a porta da garagem, o portão.” – ao min. 06:00;
Testemunha HH:
- “Sim, estava feita, mas depois fizeram mais obras” – ao min. 01:31;
Testemunha II:
- “Eu sei que fizeram obras porque a mãe dele é minha cliente e amiga e ela dizia «o meu filho gasta-me o dinheiro todo nas obras»” – ao min. 02:20;
HH:
- “[…] todas as obras senhora Doutora que ele lá tem feito tem sido com o meu dinheiro. […]” – ao min. 02:18);
- “[…] tem ideia de que obras é que o seu CC fez na casa do cruzeiro? E quanto é que ele gastou?” “Fez as que quis, senhora doutora.” – ao min. 06:00).
Pois, é evidente que a prova testemunhal produzida em Juízo impunha ao Tribunal de 1.ª Instância dar como provada a realização de benfeitorias – agregadas pelo julgador em um único facto não provado - pelo ex-casal na sua morada de família, porquanto todas as testemunhas o assumem.
VII. Foi incorretamente dado como não provado: o ex-casal era proprietário dos bens reclamados pela requerente – bens que a decisão de que se recorre aglomera também num único facto não provado – porquanto todas as testemunhas corroboraram a impugnação da requerente/recorrente quanto à existência de bens móveis e recheio da casa na morada de família do dissolvido casal, alguns muito bem identificados e caracterizados, como se demonstra:
Testemunha EE:
- “[…] tinha lá umas motas […]” – ao min. 14:23;
Testemunha II
- “Olhe, sabe se a casa tem um quadro, um quadro de azulejos bonito à frente?” “Julgo que tem, acho que é o S. JJ. Não tenho a certeza, mas acho que é o S. JJ.” – ao min. 07:49;
Testemunha HH:
- “Estava mobiladinha com tudo. Até pegaram, venderam a mobília, deram-na, fizeram o que quiseram, e depois com o meu dinheirinho compraram outra nova porque a Sra. AA quis tudo à maneira dela.” – ao min. 03:50;
Testemunha KK:
- “[…] depois quando fui à casa tinha mobília nova, nos quartos e tudo, já tinha tudo novo.” – ao min. 18:02;
- “Eu sei que era de madeira, sei que o quarto deles era um quarto grande, um grande móvel, um grande guarda-vestidos.” “Tinha um guarda-vestidos?” “Sim, um grande na parede, sim. Sei que o compraram em ... e tinham também lá um lavatório em, em ferro, branco, e tinham uma cadeira […]” “Ou seja, era completa, era uma mobília completa?”
“Era uma mobília completa.” “Era madeira de quê?” “Devia ser de carvalho, eu sei que era madeira boa, era bonita.” – ao min. 18:23;
- “Nos meninos era uma cama, uma cama e um guarda-vestidos” “Também estava novo?” “Era novo, era novo” – ao min. 19:05;
- “A sala também tinha, tinha um grande móvel no fundo, um grande móvel, e uma mesa grande, e as cadeiras […] Tinha um relógio grande, de um lado”
“O relógio era daqueles que se põe na parede?” “Não, não, era em móvel, era assim um móvel e o relógio.” […] “Já tinha uma televisão lá ao fundo da sala.” – ao min. 19:13;
- “[…] a casa estava toda mobilada de boa, bonitas, boa, com tudo coisas novas” – ao min. 22:27;
Testemunha GG:
- “Então o quarto do LL, o quarto da, da, da menina MM?” […]
“Eram quartos completos, sim.” “Quartos completos?” “Quarto individual […] Quarto, cama pequena…” “Cama individual?” “Individual, sim, sim.” “Individual, e?” “E se não me engano acho que tinha dois patamares” – ao min. 12:28;
- “[…] a mobília do quarto da, da sua irmã e do marido era como?” “A cor” “Era composta por quê?” “Era cama, era armário, cómodas, candeeiro…” “E os outros era igual?” […] “Sim, os deles também eram completas, até tinha mais escritório, computador e tudo.” – ao min. 13:08;
- “Olhe, tinham serviços de jantar que eram importantes? Loiça que era importante? Importante no sentido de que eram boas?” “Eram de marca, sim.” […] “De marca, que marca?” “É uma marca conhecida, ...” – ao min. 15:16;
- “Você sabe descrever a mobília? Por exemplo, na sala, o que é que tinha na sala?” “Tinha sofás castanhos, móveis, bar, mesa.” “Bar?” “Sim. Televisão, sala, sala como uma sala completa. […] Com vários móveis.” “Com vários móveis. Sabe onde é que ela comprou aqueles móveis?” “Em ...” – ao min. 09:33;
Testemunha HH:
- “Quando fui lá a casa estava com aspeto novo.” – ao min. 06:03;
- “As mobílias estavam todas bonitas, era tudo bonito.” – ao min. 06:07;
- […] “Estava tudo completo quando lá fui.” – ao min. 06:17;
- “O que tinha a sala de jantar?” “Sabe-me dizer, por exemplo, o que tinha a sala de jantar?” “Tinha lareira, tinha sofás, vidros, couro, tinha uma mesa, cadeiras…” – ao min. 06:41;
- “Ah, tinha máquina de lavar, tinha máquina de loiça, tinha aspirador, uma máquina de secar…” – ao min. 09:33.
Pelo que é manifesto o erro do Tribunal de 1.ª Instância em dar como não provada a existência de todos os bens reclamados pela requerente/recorrente como comuns, na globalidade, quando é certo que a sua existência foi confirmada por todas testemunhas.
VIII-Considerando que o tribunal a quo agregou/juntou os vários items das benfeitorias e também do recheio, tratando-os como uma universalidade de facto, respectivamente num único ponto concreto da matéria de facto, segue-se que a presente impugnação não deve ser ajuizada como uma impugnação em bloco dos factos incorrectamente julgados, mas como impugnação especificada correspectiva ao critério utilizado pelo tribunal.
IX-Daí que os factos supra mencionados devem ser dados como incorrectamente julgados e dados como provados.”.
Terminou pedindo que o presente recurso seja julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida que deve ser substituída por outro que julgue procedente a impugnação da interessada apresentada às declarações de cabeça-de-casal e considere os bens do recheio da habitação do ex-casal como existentes e comuns e declare como existentes as benfeitorias aí mencionadas e que foram feitas pelo casal e suportadas pela recorrente mediante, em grande parte, com dinheiro da sua mãe, prosseguindo o inventário o seu curso com vista à partilha dos bens comuns do ex-casal.
Foram apresentadas contra-alegações, concluindo o cabeça de casal nos seguintes termos:
“I. A Douta Sentença de que recorre AA não merece qualquer censura, porquanto se trata de uma decisão justa, ponderada, perfeitamente fundamentada, que espelha o exame crítico das provas e a razoabilidade que lhe subjaz;
II. A recorrente não deu cumprimento ao disposto no artigo 639.º n.º 1 do CPC uma vez que aquilo a que chama “conclusões” é uma versão encurtada, densa e complexa das alegações, ou seja, viola o disposto no citado artigo, na jurisprudência e na doutrina, quanto à exigibilidade de uma síntese conclusiva;
III. A jurisprudência dominante vem defendendo que a repetição das alegações no texto das conclusões equivale à ausência de conclusões, pelo que, incumprido o preceito legal, deverá o recurso ser rejeitado, com as legais consequências;
IV. Apesar de afirmar que o seu recurso “versa sobre matéria de direito”, a recorrente não invoca os normativos alegadamente violados pela Douta Decisão, pelo que incumpriu o disposto no artigo 639.º, n.º 2, al. a) e b) do CPC, e o recurso não deverá ser conhecido pelo Tribunal ad quem;
V. Não assiste razão à recorrente, quando invoca a existência de uma relação de bens comuns para efeitos de divórcio por mútuo consentimento, pois constitui jurisprudência assente que tal relação de bens não vincula as partes, na medida em que não faz caso julgado quanto à natureza, qualidade, quantidade e valor dos bens ali elencados;
VI. A recorrente não logrou demonstrar em juízo a “tese” que apresentou, designadamente, não fez prova documental, testemunhal, ou outra, das alegadas benfeitorias, pelo que, bem andou o Tribunal a quo, quando declinou a sua pretensão;
VII. A recorrente não logrou demonstrar em juízo a existência do chamado recheio da casa, nem logrou demonstrar que, a existir, estaria na posse do cabeça de casal, pelo que a decisão do Tribunal recorrido não poderia ser outra, atenta a completa falta de prova;
VIII. O que a alegação recorrente pretende é por em causa o princípio da livre apreciação da prova, invertendo os papeis, sobrepondo-se ao julgador, na imposição da sua “tese”, i.e., pretende encontrar contradições e arbitrariedades onde não as há, atribuir valor a extratos de depoimentos desenquadrados do conjunto da prova produzida, para, desse modo, fazer valer a iniquidade;
IX. De tudo quanto vem dito, resulta claro que a prova produzida em audiência de julgamento, devidamente pesada, e em conjugação com os documentos juntos aos autos (ou a falta deles), mostra-se em sintonia, não dissonante, com os factos dados como provados, e a sua qualificação jurídica, devendo manter-se nos seus precisos termos.”.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
*
II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
*
No caso vertente, as questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente - e em face do alegado pelo recorrido nas suas contra-alegações quanto ao (in)cumprimento pela recorrente dos ónus de impugnação - são:
- da rejeição do recurso por falta de sintetização das conclusões e da indicação das normas jurídicas violadas, como questão prévia;
- do erro de julgamento quanto à decisão da matéria de facto; e
- da reapreciação, em conformidade, da decisão jurídica da causa.
*
*
III. Questão prévia

Da rejeição do recurso por falta de sintetização das conclusões e indicação das normas jurídicas violadas.
Veio o recorrido, nas contra-alegações, requerer o indeferimento imediato do recurso, porquanto a recorrente não sintetizou as suas conclusões, conforme determina o disposto no art.º 639º, nº 1, do NCPC, nem identifica nas suas conclusões a norma jurídica que terá sido violada, nos termos do nº 2, do mesmo preceito legal.
Urge, pois, procedermos à apreciação desta questão - que sempre seria do conhecimento oficioso - antes de passarmos à apreciação do mérito do recurso propriamente dito.
Vejamos, então.
O art.º 639º, nº 1, do NCPC, prescreve que o recorrente “deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.
Por outro lado, nos termos do nº 2 do citado normativo, e no que concerne ao recurso relativo à decisão sobre a matéria de direito o recorrente deve enunciar nas alegações e sintetizar, nas respectivas conclusões, diversos aspectos:
- indicação das normas jurídicas violadas, sejam de direito adjectivo ou de direito material;
- indicação do sentido que deve ser atribuído às normas cuja aplicação e interpretação determinou o resultado que pretende impugnar;
- perante eventual erro na determinação das normas aplicáveis, indicação das que deveriam ter sido aplicadas.
O modo como deve ser estruturada a interposição de recurso resulta mais evidente do art.º 637º, nº 2, do NCPC, na medida em que o requerimento de interposição, que anteriormente precedia a apresentação das alegações, deve agora conter obrigatoriamente (ou deve vir obrigatoriamente acompanhado) a alegação do recorrente, em cujas conclusões devem ser indicados determinados fundamentos específicos de recorribilidade que no caso se justifiquem.
A importância de apresentação de conclusões emerge também do art.º 635º, nº 4, do mesmo diploma legal na medida em que, mais do que o teor das alegações, é através daquelas que se delimita o objecto do recurso. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem enunciar, de forma clara e rigorosa, aquilo que se pretende obter do tribunal superior, em contraposição com o que foi decidido pelo tribunal a quo.
A lei exige, assim, que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da decisão. Fundamentos traduzidos na enunciação de verdadeiras questões de direito, cujas respostas interfiram com o teor da decisão recorrida.
Se não foram apresentadas conclusões, a lei comina tal falta com a rejeição imediata do recurso (cfr. art.º 641º, nº 2, al. b), do NCPC).
Contudo, se as alegações apresentadas se revelarem deficientes, obscuras, complexas ou sem as especificações referidas no nº 2, do citado art.º 639º (relativas ao recurso da matéria de direito), foi expressamente adoptada na lei uma solução paliativa que possibilita a superação de tais irregularidades através de despacho de convite ao aperfeiçoamento (art.º 639º, nº 3, do NCPC).
Assim, a omissão no recuso da matéria de direito das normas jurídicas violadas, nunca daria lugar à imediata rejeição do recurso, como defende o recorrido, mas a um despacho de convite ao aperfeiçoamento, nos termos previstos no art.º 639º, nº 3, do NCPC.
Do mesmo modo, sempre que as conclusões se apresentarem de forma deficiente, obscura ou complexa, nomeadamente, por não corresponderem a uma verdadeira síntese dos fundamentos do recurso, justificar-se-á a prolação de despacho convidando a parte a proceder às necessárias correcções e não a sua imediata rejeição. Apenas, a ausência de conclusões não admite o suprimento dessa falta, gerando o imediato indeferimento do recurso.
É certo que, alguma jurisprudência, mais exigente, considera que a falta de sintetização das conclusões equivale à falta de conclusões, determinativa da imediata rejeição do recurso. Vide, a título de exemplo, sustentando que a reprodução integral e ipsis verbis do anteriormente vertido no corpo das alegações, ainda que sob o título de “conclusões”, não pode ser considerada para efeito de cumprimento do ónus de formulação de conclusões, o que equivale, por conseguinte, à ausência de alegações e consequente rejeição do recurso (sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento), acs. da RL de 21.02.2013, relatado por Cristina Branco, de 17.03.2016, relatado por Olindo Geraldes e de 17.03.2016, relatado por Ezaguy Martins; ac. da RC de 14.03.2017, relatado por Maria João Areias; ac. da RG de 29.06.2017, relatado por José Amaral; acs. da RP de 9.11.2017 e de 08.03.2018, ambos relatados por Judite Pires, de 23.04.2018, relatado por Manuel Domingos Fernandes e de 27.01.2020, relatado por Jorge Seabra, todos in www.dgsi.pt.
Não é este, porém, o nosso entendimento, aderindo-se antes à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que de forma benevolente e permissiva, admite que tais conclusões sejam merecedoras dum convite à sintetização, nos termos do art.º 639º, nº 3 do NCPC (por ser este o entendimento mais conforme às exigências de um processo justo e equitativo).
Com efeito, e como se refere em recente acórdão do Tribunal Constitucional (ac. 766/2022, de 15.11.2022, acessível in www.tribunalconstitucional.pt.), “num processo equitativo, não podem aceitar-se efeitos preclusivos intensos sobre direitos essenciais das partes (como é, indiscutivelmente, o direito ao recurso) com base em regras pouco claras. Ou, dito de outro modo, quanto mais intenso é o efeito preclusivo (intensidade medida pela centralidade do direito afetado), mais exigente deve ser o intérprete com a clareza da regra na qual esse efeito se baseia, clareza que se há de buscar, antes de mais, na própria letra da lei, regra que visa evitar que o risco interpretativo seja desproporcionadamente alocado à parte, com sacrifício dos seus direitos processuais, e injustificadamente aliviado do lado do legislador, que tem o dever de sinalizar com clareza os efeitos desfavoráveis, principalmente a supressão de direitos processuais de grande importância.”.
Tem sido, aliás, inúmeras as decisões do Tribunal Constitucional, por vezes com força obrigatória geral, reconhecendo que a rejeição liminar dos recursos que apresentam falhas formais representa uma supressão desproporcionada do direito ao recurso, impondo-se, por isso, que seja previamente realizado um convite ao recorrente para aperfeiçoamento do mesmo.
Na verdade, é precisamente por ter em atenção estes princípios constitucionais que o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, em situações em que se verifique a aludida falta de síntese na formulação das conclusões, que ao invés de rejeitar imediatamente o recurso, deve ser proferido despacho a convidar o recorrente a sintetizar as conclusões, nos termos do art.º 639º, nº 3, do NCPC.
Posto isto e vertendo ao caso presente, importa referir, desde logo, devermos concluir que o presente recurso não versa sobre a matéria de direito. Com efeito, e não obstante a apelante no requerimento de recurso anuncie que o mesmo iria versar matéria de direito com reapreciação da decisão da matéria de facto, a verdade é que transcorrida quer a motivação, quer as conclusões do recurso, facilmente se depreende que a aquela não veio colocar em causa a aplicação do direito aos factos, defendendo apenas decisão diversa em função da alteração da matéria de facto que pretende com o recurso.
Para tanto, basta atentar ao teor da conclusão formulada sob o ponto I., no qual se pode ler: “Versa o presente recurso a impugnação da matéria de facto, porque ocorreu, na opinião da recorrente, notório erro de julgamento sobre vários pontos concretos de facto, infra enunciados que foram incorrectamente julgados e que conduziram à absolvição do R. do pedido.” (o sublinhado é nosso).
Consequentemente, não tem aplicação ao caso que nos ocupa as exigências prescritas no nº 2, do art.º 639º, do NCPC para o recurso da matéria de direito.
Por outro lado, e não obstante o ónus de formulação de conclusões sintéticas tenha sido deficientemente cumprido pela aqui recorrente (desde logo, porquanto procede, de forma desnecessária, à transcrição de excertos dos depoimentos das testemunhas nas conclusões), a mesma não se limitou a reproduzir a motivação do recurso nas conclusões.
Acresce que se verifica que o recorrido conseguiu exercer cabalmente o seu direito ao contraditório, não tendo este ficado de forma alguma coartado atento o modo como que foram formuladas as conclusões.
Ademais, diz-nos a experiência que na maior parte das vezes o convite ao aperfeiçoamento redunda em desperdício de tempo e de meios. Além disso, dando como seguro que conseguimos identificar as questões que a recorrente pretende ver analisadas, não subsistindo quaisquer dúvidas quer quanto aos factos impugnados, quer quanto aos meios de prova a analisar, em nome do principio da cooperação, de celeridade e de eficácia processual, julgamos desnecessário emitir despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões apresentadas, que assim serão consideradas nos termos como se apresentam.
Ante todo o exposto, não subsistem quaisquer fundamentos para rejeitar de imediato o recurso.
*
IV - Fundamentação

4.1. Fundamentos de facto
Com interesse para a decisão relevam as incidências fáctico-processuais que se evidenciam no relatório supra.
Ter-se-á ainda em consideração os seguintes factos que o tribunal recorrido considerou provados e não provados (destacando-se a negrito a matéria de facto ora impugnada):
“II. Os Factos.
Da prova produzida resulta que:
1. O casamento entre AA e CC, celebrado em ../../1992, foi dissolvido por divórcio decretado em 18 de fevereiro de 2009.
2. Em 27/08/2014 AA instaurou, no Cartório Notarial, inventário para partilha de bens subsequente ao divórcio.
3. Não se apurou a existência de qualquer património comum do extinto casal, formado por AA e CC.
*
Com relevância para a decisão nada mais se provou, designadamente que:

a) O extinto casal realizou na casa de morada de família (propriedade da herança aberta por óbito do pai do cabeça de casal) benfeitorias no valor de 26.284,00 €, designadamente:
- instalação de aquecimento central no valor de 4.000 €;
- edificação de lareira com recuperador de calor no valor de 2.500 €;
- colocação de portões no valor de 1.500 €;
- colocação de persianas, portas, janelas no valor de 6.284,00 €;
- mosaico cerâmico no valor de 1.000 €;
- colocação de soalho no valor de 3.000 €;
- móveis de cozinha à medida do local com eletrodomésticos encastrados no montante de 4.500 €;
- pequenas obras de melhoramento no valor de 2.750 €;
- uma chaminé no valor de 750 €.
b) O extinto casal era proprietário dos seguintes bens:
- uma mota no valor de 500 €;
- uma pulseira em ouro com o nome “MM” no valor de 100 €;
- um fio em ouro com o nome “MM” no valor de 150 €;
- fios de ouro da MM no valor de 200 €;
- fio de ouro da MM no valor de 100 €;
- quatro anéis de ouro no valor de 250 €;
- quatro pares de brincos no valor de 200 €;
- dois fios com medalha, representando a letra ... de LL no valor de 200 €;
- três pulseiras em ouro no valor de 150 €;
- dois anéis em ouro no valor de 100 €;
- onze fios em prata e ouro no valor de 500 €;
- dois pares de brincos no valor de 150 €;
- uma mobília de quarto de casal completa no valor de 2.250 €;
- uma mobília de quarto em madeira composta de cama, armário e secretária no valor de 2.000 €;
- uma mobília de quarto completa mais secretária no valor de 2.000 €;
- uma sala de jantar completa no valor de 3.000 €;
- sofás em pele no valor de 1.500 €;
- relógio de parede no valor de 400 €;
- uma sapateira com espelho no valor de 500 €;
- separador de casal/banho no valor de 30 €;
- cinco televisões no valor de 300 €;
- dois DVD, um vídeo e uma aparelhagem avariada no valor de 100 €;
- uma câmara de vídeo no valor de 200 €;
- uma máquina fotográfica digital no valor de 100 €;
- dois computadores, duas impressoras e um scan no valor de 500 €;
-ferramentas elétricas no valor de 500 €;
- máquina de lavar loiça no valor de 100 €;
- máquina de lavar roupa no valor de 100 €;
- máquina de secar roupa no valor de 150 €;
- ferro de caldeira no valor de 50 €;
- micro-ondas no valor de 10 €;
- dois fogões pequenos no valor de 100 €;
- um faqueiro no valor de 50 €;
- uma arca frigorifica no valor de 100 €;
- panelas e panela de pressão no valor de 50 €;
- copos em cristal no valor de 100 €;
- dois serviços de jantar da ... no valor de 1000 €;
- candeeiros no valor de 300 €;
- duas bicicletas no valor de 200 €;
- quadros pintados à mão no valor de 500 €;
- roupa de cama e mesa no valor de 200 €;
- dois quadros de azulejo no valor de 50 €.”.
*
4.2. Fundamentos de direito
4.2.1. Do erro no julgamento quanto à decisão da matéria de facto

Como decorre do acima exposto, a recorrente invocou o erro no julgamento quanto à decisão da matéria de facto, considerando que o tribunal deveria ter dado como provado a realização de benfeitorias pelo ex-casal na sua casa de morada de família, bem como a existência de bens móveis e recheio na casa de morada de família do dissolvido casal, louvando-se na sua divergência sobre a apreciação da prova testemunhal.
Porém, para que o conhecimento da matéria de facto ocorra, deve previamente o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no art.º 640º do NCPC, o qual dispõe que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º.”.
Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que a recorrente indicou suficientemente quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, bem como a redacção que deve ser dada quanto à factualidade que entende estar mal julgada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua óptica o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que faz assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação e localização, pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o triplo ónus de impugnação estabelecido no citado art.º 640º.
Isto posto, urge então verificar se, na parte colocada em crise, a análise crítica da prova corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pela apelante.
Com efeito, dispõe o art.º 662º, nº 1, do NCPC que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.
Na reapreciação da matéria de facto, a modificação da decisão de facto é, pois, um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão.
Com efeito, tendo presente que o princípio da livre apreciação das provas continua a ser a base, nomeadamente quando em causa estão documentos sem valor probatório pleno; relatórios periciais; depoimentos das testemunhas e declarações de parte [vide art.ºs 341º a 396º do CC e 607º, nos 4 e 5 e ainda 466º, nº 3 (quanto às declarações de parte) do NCPC], cabe ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis.
Fazendo ainda [vide, Abrantes Geraldes, in ob. cit., em anotação ao art.º 662º do NCPC, p. 328 e seguintes e que aqui seguimos de perto]:
- uso de presunções judiciais – “ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido” (vide art.º 349º do CC), sem prejuízo do disposto no art.º 351º do CC, enquanto mecanismo valorativo de outros meios de prova;
- ou extraindo de factos apurados presunções legais impostas pelas regras da experiência em conformidade com o disposto no art.º 607º, nº 4, última parte (aqui sem que possa contrariar outros factos não objecto de impugnação e considerados como provados pela 1ª instância);
- levando em consideração, sem dependência da iniciativa da parte, os factos admitidos por acordo, os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito por força do disposto no art.º 607º, nº 4 do NCPC (norma que define as regras de elaboração da sentença), ex vi art.º 663º do NCPC (norma que define as regras de elaboração do acórdão e que para o disposto nos art.ºs 607º a 612º do NCPC remete, na parte aplicável).
E tudo, sem prejuízo de e quanto aos factos não objecto de impugnação, dever o tribunal de recurso sanar mesmo oficiosamente e quando para tal tenha todos os elementos, vícios de deficiência, obscuridade ou contradição da factualidade enunciada, tal como decorre do disposto no art.º 662º nº 2 al. c) do NCPC.
Por fim, é de realçar que embora não exigida na formação da convicção do julgador uma certeza absoluta, por via de regra não alcançável, quanto à ocorrência dos factos que aprecia, é necessário que da análise conjugada da prova produzida e da compatibilização da matéria de facto adquirida, extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras da experiência (vide, art.º 607º nº 4 do NCPC) se forme no espírito do julgador a convicção de que com muito elevado grau de probabilidade os factos em análise ocorreram. Neste contexto e na dúvida acerca da realidade de um facto ou da repartição do ónus da prova, resolvendo o tribunal a mesma contra a parte à qual o facto aproveita, tal como decorre do disposto nos art.ºs 414º do NCPC e 346º do CC.
Na medida em que os recursos visam, por via da modificação de decisão antes proferida reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, temos de concluir que a reapreciação da matéria de facto está limitada ao efeito útil que da mesma possa provir para os autos, em função do objecto processual delineado pelas partes e assim já antes submetido a apreciação pelo tribunal a quo [vide, neste sentido, acs. da RG de 12.07.2016, processo nº 59/12.8TBPCR.G1 e de 11.07.2017, processo nº 5527/16.0T8GMR.G1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt].
Tendo presentes estes considerandos, cumpre apreciar e decidir.
Conforme resulta do acima exposto, no presente recurso importa apreciar da adequação da decisão sob recurso na parte em que considerou como não provada a existência de bens comuns do casal a partilhar. Ou seja, o recurso visa o invocado erro de julgamento sobre a matéria de facto dada como não provada.
Porém, ainda antes de analisarmos os motivos em que a recorrente fundamenta tal erro de julgamento, importa assinalar que consta da fundamentação de facto da decisão recorrida, mormente no elenco dos factos provados, o seguinte: «3. Não se apurou a existência de qualquer património comum do extinto casal, formado por AA e CC.».
Ora, ainda que tal ponto 3. não tenha sido objecto de impugnação pela recorrente, a dita referência vertida pelo Tribunal a quo no âmbito da matéria de facto nunca poderia condicionar a solução a dar às questões de natureza jurídica que integram o objecto do processo de inventário e da presente apelação, pois aquela referência envolve meras conclusões que devem decorrer dos factos provados e não provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova. Vide, a este propósito o recentíssimo ac. desta RG de 16.11.2023, relatado por Paulo Reis e disponível em www.dgsi.pt, que acompanharemos de perto.
Na verdade, e conforme resulta do disposto no art.º 607º, nº 4 do NCPC, o tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, não envolvendo esta pronúncia aqueles pontos que contenham matéria conclusiva, irrelevante ou de direito, por não poder ser objecto de prova.
Tal como salienta o ac. do STJ, de 28.09.2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível in www.dgsi.pt, «muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.».
Neste âmbito, deve entender-se como questão de facto «tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior», sendo que os «quesitos não devem pôr factos jurídicos; devem pôr unicamente factos materiais», entendidos estes como «as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens», enquanto por factos jurídicos devem entender-se os factos materiais vistos à luz das normas e critérios do direito. Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Vol. III, 4.ª edição (Reimpressão), Coimbra, 1985 - Coimbra Editora, p. 206 e 209.
Daí que a inclusão, na fundamentação de facto constante da sentença, de matéria de direito ou conclusiva configure uma deficiência da decisão, passível de apreciação oficiosa pelo tribunal da Relação, de molde a sancionar como não escrito todo o enunciado que se revele conclusivo, contemplando com tal expressão toda a matéria que se reconduza à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum.
Neste sentido, veja-se o ac. do STJ de 01.10.2019, relatado por Fernando Samões e também acessível em www.dgsi.pt.
Como também bem se explica no ac. da RP de 7.12.2018, relatado por Filipe Caroço, acessível no mesmo sítio: «[a]caso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto.».
Assim, «a matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, seja qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica, devendo as questões de direito que constarem da selecção da matéria de facto considerar-se não escritas. A proposição será conclusiva se exprimir uma valoração jurídico-subsuntiva essencial, caso em que deverá, por essa razão, ser expurgada». Assim, o ac. da RL de 12.10.2021, relatado por Micaela Sousa, disponível em www.dgsi.pt.
Deste modo, a inclusão na fundamentação de facto constante da sentença de matéria de direito ou conclusiva configura uma deficiência da decisão, vício que é passível de ser conhecido, mesmo oficiosamente, pelo Tribunal da Relação, tal como decorre do art.º 662º, nº 2, al. c), do NCPC.
No caso, e como já fomos adiantamos, a matéria incluída no ponto 3. do elenco dos factos provados da decisão recorrida consubstancia um mero juízo conclusivo e de direito e encerra parte essencial da controvérsia que constitui o objecto a apreciar e decidir na presente ação: saber se os bens e benfeitorias reclamados pela ora recorrente fazem parte ou não do património comum do casal.
Tal constatação impõe se retire da fundamentação de facto constante da decisão recorrida o segmento em que o Tribunal a quo enuncia que “Não se apurou a existência de qualquer património comum do extinto casal, formado por AA e CC”, devendo ser declarado como não escrito o ponto 3. do elenco dos factos provados, o que se determina.
Nesta senda, e antes de avançarmos para as objecções invocadas no recurso, importa ainda introduzir, oficiosamente, outra alteração à fundamentação de facto da decisão recorrida.
Com efeito, apesar de nos situarmos no âmbito de um inventário para separação de meações em consequência de divórcio e ser indispensável para aferir da existência de bens comuns o regime de bens que vigorou no âmbito do casamento do dissolvido casal, constata-se que não foi feito constar da fundamentação de facto que o dito casamento foi celebrado sem convenção antenupcial.
Ora, constando dos presentes autos o competente assento de casamento e que tal documento faz prova plena de tal facto (cfr. art.º 371º, nº 1, 1ª parte, do CC), impõe-se determinar, oficiosamente e de harmonia com o disposto no art.º 662º, nº 1, do NCPC, a alteração a redacção do ponto 1. do elenco dos factos provados nos seguintes termos:
1. O casamento entre AA e CC, celebrado em ../../1992, sem convenção antenupcial, foi dissolvido por divórcio decretado em 18 de fevereiro de 2009.”.
Passando agora à análise dos fundamentos do recurso, não podemos deixar de começar por dizer que se nos afigura evidente que o desfecho da impugnação da decisão de facto quanto à realização de benfeitorias na casa de morada de família não tem influência sobre o desfecho da questão de fundo.
Ou seja, para a solução da questão de fundo é indiferente a procedência ou improcedência da impugnação da decisão de facto quanto a tal factualidade.
Expliquemo-nos:
Analisada a fundamentação de direito da decisão recorrida, a qual, como vimos, não é objecto do presente recurso, constata-se que o tribunal recorrido fundamenta a exclusão da relacionação das benfeitorias reclamadas pela recorrente nos seguintes termos:
Condição para que possa correr termos um processo de inventário é, deste modo, a existência de bens comuns reportados a um determinado momento.
Nos termos do art. 1104º, do Cód. Proc. Civil pôr em causa as declarações de cabeça de casal, designadamente, afirmando a existência de património comum.
Tendo as partes contraído matrimónio sem convecção antenupcial, são comuns os bens adquiridos após a celebração do casamento com exceção dos consagrados no art. 1722º, do Cód. Civil.
Assim, desde logo se afirma que, os bens que a interessada afirma pertencerem aos seus filhos, a existirem não podem ser relacionados nem partilhados em sede de processo de inventário, porque, em caso algum iriam integrar o património comum do casal.
E, situação semelhante, se verifica em relação às alegadas benfeitorias realizadas na casa de morada de família.
São comuns, e como tal relacionadas, as benfeitorias feitas a expensas comuns num bem que é próprio de um dos cônjuges.
É ponto assente que o prédio em que o ex casal tinha instalada a casa de morada de família pertence, desde logo, à herança indivisa aberta por óbito do pai do cabeça de casal, em que, além deste são herdeiros sua mãe e o seu irmão.
Logo, qualquer valor eventualmente ali investido, teria de ser reclamada junto da herança e não do ex-cônjuge da reclamante, pois que, seria, em tese o património da herança que ficou enriquecido.”.
Do que deixamos transcrito, resulta que o tribunal a quo fundou a sua decisão, neste particular, não directa e primordialmente na inexistência das aludidas benfeitorias, mas no facto das mesmas não poderem ser consideradas “bens comuns”, fundamentação a que a recorrente não levantou qualquer objecção.
De todo o modo, sempre se dirá que estando assente entre as partes que as obras realizadas na casa de morada de família e na pendência do casamento a recorrente o foram em prédio urbano pertencente a terceiro, as mesmas - ainda que tivessem sido realizadas a expensas do casal - o que, diga-se, a própria recorrente infirma no seu recurso, ao dizer que resultou da prova produzida que grande parte foram suportadas com dinheiros próprios -, haveria que atender ao regime previsto no art.º 1098º, nº 6, do NCPC para o inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária, e aplicável ao caso por força do disposto no art.º 1084º, nº 2, do mesmo compêndio legal.
No aludido art.º 1098º, nº 6, diz-se que: “As benfeitorias pertencentes à herança são descritas em espécie, quando possam separar-se, sem detrimento do prédio em que foram realizadas, ou como simples crédito, em caso contrário.”.
Deste modo, no que concerne às benfeitorias, diversos cenários podem equacionar-se quando as mesmas forem realizadas em prédio que não pertença ao casal. Há que aquilatar se são separáveis do prédio em que foram feitas, sem detrimento das mesmas (cfr. art.º 1273º, do CC), sendo que, na afirmativa pertencem ao património comum e são descritas em espécie, enquanto que se não puderem separar-se do prédio sem detrimento são descritas como direito de crédito do património comum sobre o património do proprietário do imóvel onde foram realizadas (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil anotado, vol. II, 2ª ed., p. 595).
Assim, e atendendo à natureza das obras descritas nos autos, afigura-se-nos que se poderia concluir, com alguma margem de segurança, que as ditas benfeitorias não são passíveis de separar-se, sem detrimento, do prédio onde foram realizadas e, assim sendo, sempre estaríamos apenas perante um simples direito de crédito.
Direito de crédito este a reclamar, como vimos, não do património comum, nem sequer do património próprio do outro ex-cônjuge.
E, mesmo nessa hipótese, a inclusão do crédito na relação de bens e respectiva partilha nunca poderia afectar os direitos do pretenso devedor (que não é sequer citado para intervir no inventário), podendo este sempre discutir a existência de tal crédito nos meios próprios, conforme decorre do disposto no art.º 1105º, nºs 6 e 7, do NCPC. (Vide, sobre este tema, Tomé D’Almeida Ramião, in Novo Regime do Processo de Inventário Judicial e Notarial, Anotado e Comentado, em nota ao aludido normativo).
Mas, como já aludimos, a própria recorrente veio defender, quer no âmbito do recurso, quer já no âmbito da impugnação das declarações do cabeça de casal, que parte das obras – sem discriminar quais -, embora realizadas pelo casal, foram suportadas com dinheiros próprios (mais concretamente, com dinheiros doados pela respectiva progenitora). Ou seja, é a própria recorrente quem põe em causa a natureza comum do direito de crédito.
E, assim sendo, caso se viesse a concluir que as obras foram realizadas maioritariamente com dinheiros próprios da recorrente, o desfecho da decisão de mérito tinha que ser idêntico, pois, o direito de crédito originado pela realização das benfeitorias pertenceria exclusivamente à recorrente e, consequentemente, não teria que ser integrado na partilha, mas antes reclamado perante o terceiro, proprietário do prédio, beneficiado no seu património com a realização de tais obras.
Depois, não será despiciendo acrescentar que a recorrente nem sequer veio alegar factos suficientes para se poder concluir pela natureza necessária ou útil das obras em causa - única situação em que podiam vir a ser indemnizadas pelo terceiro, nos termos previstos nos art.ºs 1273º e 1275º, do CC.
Nem decorre dos elementos carreados para os autos que não obstante o tempo decorrido desde a sua realização até ao decretamento do divórcio – sendo que este já foi decretado em 2009 - as obras não tenham perdido todo ou a maior parte do seu valor.
Como muito bem se alerta no ac. da RC de 10.02.2015, relatado por Barateiro Martins e disponível in www.dgsi.pt: «Tendo o possuidor o gozo da coisa, cabe-lhe, como é natural, a faculdade de nela fazer benfeitorias, que são alterações – conservações/melhoramentos – trazidos à coisa, enfim, benefícios de que o possuidor, se e enquanto continuar no gozo da coisa, é o primeiro a colher/gozar as respectivas vantagens e utilidades.
Significa isto – continuando o possuidor no gozo da coisa, após a realização das benfeitorias, anos a fios (como é o caso dos autos) – que até pode dar-se o caso, no limite, de ter sido ele a esgotar/exaurir a totalidade das vantagens e utilidades das benfeitorias por si efectuadas.
Em tal hipótese, mantendo-se a coisa sobre o seu domínio anos a fio, mal andaria o direito – seria até um pouco “torto” – se viesse a consagrar como solução a obrigação do titular/proprietário reembolsar todos os gastos feitos com benfeitorias, ainda que feitos há 15 ou 20 anos, ainda que respeitantes a conservações e melhoramentos que, entretanto, com o passar/erosão/desgaste dos anos e da utilização/gozo por parte do possuidor, tivessem perdido todo ou a maior parte do seu valor.
O crédito por benfeitorias estabelecido nos art. 1273.º e 1275.º do C. Civil tem em vista impedir enriquecimentos ilegítimos do proprietário à custa de quem foi possuidor (e zelou e valorizou a coisa), mas, naturalmente, não autoriza ou consente que se adoptem aplicações/interpretações que conduzam a empobrecimentos ilegítimos do proprietário.».
Pelo exposto, necessário é concluir, pois e desde logo, pela inexistência da alegação de elementos factuais suficientes que permitissem concluir pela existência de benfeitorias e/ou de um direito de crédito pertencente ao ex-casal e susceptível de integrar a relação de bens a partilhar, tendo que improceder o recurso neste ponto.
Isto tudo, sem prejuízo da questão poder e dever ser discutida em sede própria, como afirmou o tribunal recorrido e decorre do expressamente preceituado no nº 7, do art.º 1105º, do NCPC.

Veio sustentar ainda a recorrente que devem ser relacionados os seguintes bens móveis:
1) Uma mota no valor de 500 €;
2) Uma mobília de quarto de casal completa no valor de 2.250 €;
3) Uma mobília de quarto em madeira, composta de cama, armário e secretária, no valor de 2.000 €;
4) Uma mobília de quarto completa mais secretária no valor de 2.000 €;
5) Uma sala de jantar completa no valor de 3.000 €;
6) Sofás em pele no valor de 1.500 €;
7) Relógio de parede no valor de 400 €;
8) Uma sapateira com espelho no valor de 500 €;
9) Separador de casal/banho no valor de 30 €;
10) Cinco televisões no valor de 300 €;
11) Dois DVD, um vídeo e uma aparelhagem avariada no valor de 100 €;
12) Uma câmara de vídeo no valor de 200 €;
13) Uma máquina fotográfica digital no valor de 100 €;
14) Dois computadores, duas impressoras e um scan no valor de 500 €;
15) Ferramentas elétricas no valor de 500 €;
16) Máquina de lavar a loiça no valor de 100 €;
17) Máquina de lavar a roupa no valor de 100 €;
18) Máquina de secar a roupa no valor de 150 €;
19) Ferro de caldeira no valor de 50 €;
20) Micro-ondas no valor de 10 €;
21) Dois fogões pequenos no valor de 100 €;
22) Um faqueiro no valor de 50 €;
23) Uma arca frigorífica no valor de 100 €;
24) Panelas e panela de pressão no valor de 50 €;
25) Copos em cristal no valor de 100 €;
26) Dois serviços de jantar da ... no valor de 1000 €;
27) Candeeiros no valor de 300 €;
28) Duas bicicletas no valor de 200 €;
29) Quadros pintados à mão no valor de 500 €;
30) Roupa de cama e mesa no valor de 200 €;
31) Dois quadros de azulejo no valor de 50 €.

Defende que a existência desses bens que constituíam o recheio da casa de morada de família foi confirmada pelo casal nos acordos celebrados no âmbito do divórcio, bem como por todas as testemunhas ouvidas nos autos, sendo que no regime da comunhão de adquiridos fazem parte da comunhão os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que ordene a relacionação de tais bens e o prosseguimento do inventário.
Ora, com relevo para a apreciação desta questão, importa desde já referir que não podia o tribunal a quo, em face da posição assumida pelo próprio cabeça de casal nestes autos, ter considerado não existirem quaisquer bens móveis comuns.
 Na verdade, analisadas as concretas incidências processuais que o processo revela a interessada, ora recorrente, não só impugnou as declarações do cabeça de casal quanto à inexistência de bens, como veio especificar os bens que constituíam o recheio do imóvel, sendo que o cabeça-de-casal, que não havia descriminado quaisquer bens, admitiu a existência de parte deles, apenas contrapondo quanto ao mobiliário que o mesmo já existia na casa e que parte dos restantes – que também identificou – não estão na sua posse tendo sido levados pela própria recorrente.
Por conseguinte, tendo o cabeça de casal admitido expressamente a existência de determinados bens, designadamente os identificados no artigo 9º da resposta à reclamação apresentada pela recorrente, têm-se por admitidos, nessa parte, os factos da reclamação nos termos gerais dos art.ºs 549º e 574º do NCPC, com a consequente obrigação de os relacionar os bens, sendo irrelevante, para tanto, que os mesmos estejam ou não na posse do cabeça de casal.
Aliás, o tribunal apenas se pronunciou quanto a tal matéria – relativa à posse dos bens reclamados - na motivação da decisão de facto, não a fazendo constar dos factos provados, nem dos factos não provados, sendo que as partes apesar de abordarem tal questão na motivação das respectivas alegações e contra-alegações também nada vieram pedir a tal respeito, nomeadamente, o respectivo aditamento.

Nestes termos, deverá passar a constar da factualidade provada o seguinte, eliminando-se da matéria de facto não provada a referência aos aludidos bens:

3. Na pendência do casamento os aludidos AA e CC adquiriram diversos móveis para a a casa de morada de família: máquina fotográfica; o ferro; os dois fogões; o faqueiro; as panelas; os copos de cristal; os dois serviços de jantar; os candeeiros; os quadros; a roupa de cama e mesa e os aparelhos de vídeo e os computadores.”.
Quanto aos demais bens móveis, e perscrutada toda a prova gravada, afigura-se-nos que a prova produzida foi abundante e absolutamente inequívoca quanto à existência de mobiliário que, entretanto, foi adquirido na constância do matrimónio, como seja, a mobília da sala de jantar e de estar, a mobília de um quarto de casal e a mobília de dois quartos individuais, bem como a aquisição das máquinas de lavar louça e de lavar e de secar roupa e ainda de um micro-ondas e de, pelo menos, um televisor.
Não só as testemunhas arroladas pela recorrente, seus familiares que frequentaram a aludida casa de morada de família confirmaram circunstanciadamente a existência daqueles bens, como a própria mãe do recorrido, a testemunha HH afirmou espontaneamente que, muito embora a casa estivesse já mobilada quando o casal foi para lá morar, o seu filho e a recorrente foram substituindo grande parte do mobiliário anteriormente existente.
Note-se que, mesmo, socorrendo-nos das regras de experiência comum, sempre teríamos de concluir pela existência de tais bens na casa de morada de família, os quais se nos afiguram indispensáveis para conferir o mínimo do conforto a uma qualquer casa habitada por um casal e dois filhos, como no caso.
Quanto aos demais bens reclamados, já não se vislumbra existirem razões bastantes para discordar do decidido pelo tribunal recorrido, impondo-se apenas acrescentar quanto à existência da “mota” ser manifestamente insuficiente para dar como provada a existência da mesma uma referência genérica pela testemunha EE à existência de motas na garagem da casa. Note-se que, ao contrário do que sucede quanto aos demais bens móveis, relativamente aos quais não seria razoável exigir, atento o tempo decorrido, a existência de documentação comprovativa de aquisição, era exigível que a recorrente tivesse identificado adequadamente o veículo e tivesse junto aos autos documento comprovativo do respectivo registo ou ao menos tivesse alegado a dificuldade na sua obtenção, solicitando a colaboração do tribunal para o efeito.
Deste modo, procedem parcialmente as conclusões de recurso nesta parte, devendo passar a constar da factualidade provada o seguinte, eliminando-se da matéria de facto não provada a referência aos aludidos bens:
“4. Na pendência do casamento os aludidos AA e CC adquiriram ainda para a casa de morada de família: a mobília da sala de jantar e de estar, a mobília de um quarto de casal e a mobília de dois quartos individuais, bem como a aquisição das máquinas de lavar louça e de lavar e de secar roupa e ainda de um micro-ondas e de pelo menos um televisor.”.
*
4.2.2. Reapreciação da decisão jurídica
Resta-nos apreciar, se em face da alteração ora introduzida à matéria de facto, deve também ser alterada a solução jurídica da causa.
Nos termos do disposto no art.º 1717º do CC, na falta de convenção antenupcial, o casamento considera-se celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos, pelo que é este o regime que vigorou entre o casal - cfr. ponto 1 do elenco dos factos provados.
No regime da comunhão de adquiridos – como era o do casamento das partes nos autos – existem três massas de bens: os bens próprios de cada um dos cônjuges e os bens que integram o património comum.
Ora, vigorando entre os cônjuges o regime da comunhão de adquiridos, o art.º 1724º do CC prevê que fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges (al. a) bem como os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei (al. b).
Ao invés, nos termos previstos no art.º 1722º, nº 1 do CC são considerados bens próprios dos cônjuges:
a) Os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento;
b) Os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação;
c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior.
2. Consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum:
a) Os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele;
b) Os bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento;
c) Os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade;
d) Os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento.
Grosso modo, ingressam no património comum todos os bens adquiridos a título oneroso depois do casamento, mesmo que seja com intervenção de apenas um dos cônjuges.
Mais aprofundadamente sobre a questão, podemos ver Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família”, 5ª Edição, Imprensa da Universidade, Coimbra, 2016, a p. 595.
Ou seja, todos os bens adquiridos na constância do casamento são comuns, na falta de demonstração de que são próprios, sendo certo que a própria entrada no património comum está dispensada de prova. Neste sentido, Rita Lobo Xavier, in “Limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges”, Coimbra, Livª Almedina, 2000, a p. 349.
Donde, naturalmente, e atenta a factualidade provada, temos por certo que devem ser relacionados os bens móveis discriminados nos pontos 3 e 4 ora aditados ao elenco dos factos provados, o que implica que se revogue parcialmente a decisão recorrida e se ordene o prosseguimento do processo de inventário para partilha dos mesmos.
*
As custas do presente recurso e do incidente de impugnação são, pois, da responsabilidade da recorrente e do recorrido, na proporção do respectivo decaimento que se fixa, na proporção de 2/3 para a recorrente e 1/3 para o recorrido (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).

V. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida na parte em que determinou a extinção dos autos de inventário, mais se determinando o prosseguimento dos autos, com a apresentação pelo cabeça de casal da relação de bens nos termos acima explanados (que deverá incluir os bens referidos nos pontos 3 e 4 do elenco dos factos provados na redacção ora introduzida); confirmando-se, no mais, a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo da apelante e do apelado, na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixam em 2/3 para a apelante e 1/3 para o apelado.
*
*
Guimarães, 22.02.2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Alcides Rodrigues
2ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Eva Almeida