Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1730/21.9T8BCL.G2
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A ASCENDENTE
DOCUMENTO PARTICULAR
ATESTADO MÉDICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Quando estamos perante um documento particular, que foi directa e cabalmente impugnado pela contraparte, então nos termos do art. 374º,2 CC recai sobre o apresentante do documento o ónus de provar a autoria do mesmo, cabendo-lhe requerer a produção de prova destinada a convencer da sua genuinidade. Sem isso, tal documento não pode ser visto como fidedigno e provando aquilo que se pretende que prove.
2. Um atestado médico não atesta nem certifica factos; trata-se sim de uma conclusão pericial. Daí que um atestado médico multiusos emitido por uma Administração Regional de Saúde, por meio de Junta Médica para verificação de incapacidades, não pode ser considerado, para efeitos probatórios, um documento autêntico, sendo antes uma conclusão pericial, sujeita à livre apreciação do julgador.1.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

AA, residente na residente na Rua ..., ..., ... ..., veio intentar a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra a sua filha BB, residente na ..., ..., ... ..., peticionando a condenação da ré a prestar-lhe a quantia mensal de € 750,00 a título de alimentos.
Para tanto, alega, em suma, ter doado à ré e seu marido o prédio onde reside, com a obrigação de estes cuidarem de si, sendo que, contudo, estes abandonaram tal habitação e incumpriram com as obrigações para si decorrentes da doação.
A ré apresentou contestação, impugnando a factualidade alegada pela ré, bem assim como o efeito jurídico que da mesma a autora pretende retirar.
A autora veio ainda apresentar articulado superveniente, que foi admitido, alegando ter, no decurso dos presentes autos, integrado a Santa Casa da Misericórdia, tendo deixado, por isso, de fazer sentido o pedido de assistência directa e acompanhamento, agora prestados por aquela instituição, e, por isso, peticionando, a final, a condenação da ré a suportar e entregar à autora o valor que esta tem que suportar mensalmente com aquela integração, além do valor que constitui a sua pensão, correspondente ao diferencial entre esta e o montante mensal de € 1.600,00, nos termos do Regulamento e contrato celebrado com a Santa Casa da Misericórdia ..., em que se incluem demais custos havidos por força da assistência medicamentosa, materiais necessários à assistência e transportes.

Realizou-se a audiência de julgamento, com observância do legal formalismo.

A final foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a do peticionado, condenando a autora nas custas.

Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (artigos 629º,1, 631º,1, 637º, 638º,1, 644º,1,a), 645º,1,a) e 647º,1 do Código de Processo Civil).

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1. Num processo de jurisdição voluntária se as testemunhas referem que existe um contrato e despesa documentada relativo a idoso que padece de 87% de incapacidade documentada por atestado multiuso, devia o tribunal, por força do inquisitório, requerer esses documentos.
2. Isto porque as testemunhas do Lar, um dos quais seu vice-presidente, referem que estão documentadas e são entregues se necessários, como resulta dos depoimentos gravados.
3. Assim devem admitir-se aos autos os documentos: contrato com a SCM e declarações de custo de tratamento médico da Autora, documentos que se impõem agora por a Autora a eles não ter condições de aceder, dada velhice e incapacidade, e em virtude do julgamento, tratando-se de processo em que o tribunal pode superiormente suprir por via do inquisitório que não foi feito em primeira instância.
4. O tribunal incorreu em erro de julgamento de matéria fáctica, devendo serem alteradas as respostas aos factos 4, 7, 8 e 10, estando ainda incorrectamente julgados os factos não provados das alíneas a), b), g) , h), i), j), K), e as alíneas m) a p) dos factos não provados.
5. Quanto ao facto 4 é claro e sem margem para dúvidas, até por resultados dos demais factos provados, que a Autora tem necessidade da ajuda de terceiros, sendo que a eles se referem as testemunhas suas vizinhas quer as testemunhas que são da Santa Casa da Misericórdia ....
6. O facto 7 deve contenha toda a matéria alegada e que foi omitida dos factos provados, designadamente que a Autora padece das enfermidades descritas em documentos.
7. E que além disso, em conjugação com o facto 10, sobre de incapacidade permanente de 87%, sendo tal facto provado por documento autêntico, não tendo sido contrariado nem ilidido.
8. O facto 10, mantendo-se que a autora não se encontra acamada encontra-se contudo incapaz em 87%, o que resulta de documento autêntico que, tal como doutamente sentenciou esta Relação, é sempre um facto instrumental que carece de ser integrado em toda a plenitude.
9. Os factos das alíneas m), n) e p) não se mostram infirmada pela prova produzida, antes sendo o m, matéria de direito, conduz o Tribunal ponderar os depoimentos das testemunhas CC e DD, não dos quais resultou que a autora integrou a Santa Casa da Misericórdia numa vaga protocolar (...: negrito nosso), o que significa que é uma vaga destinada a casos sociais, sendo efectuado o pagamento de uma comparticipação pela Segurança Social, mas sim que vaga protocolada é para gestão da própria Instituição, que em face de outro caso social mais grave pode retirar à autora o beneficio.
10. Até porque esse benefício não pode ocorrer por força da intervenção subsidiária da Segurança Social, de acordo com o princípio da lei de bases (artigo 11) o principio da Subsidiariedade, fundante da intervenção de Segurança Social, - artigo 11 da Lei da bases da Segurança Social, Lei nº 83-A/2013, de 30 de Dezembro, primeira alteração à Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social), prescreve que: “O princípio da subsidiariedade assenta no reconhecimento do papel essencial das pessoas, das famílias e de outras instituições não públicas na prossecução dos objectivos da segurança social, designadamente no desenvolvimento da acção social.”
11. Ora, se em escritura pública de doação está escrito que a donatária tem que completar com o que faltar à doadora, então o princípio da subsidiariedade obriga a interpretar essa clausula à luz do respectivo regime jurídico e dizer-se que em primeiro lugar responde a autora, depois a Ré e por último os restantes filhos se aqueles o não puderem fazer.
12. Não pode concluir-se que “Emergiu de forma expressa e indubitável destes depoimentos o facto de não ter sido tida em conta a possibilidade de contributo da família da autora aquando da celebração do contrato, nem a integração da autora ficou dependente de tal contributo ou de qualquer pagamento para além do montante correspondente à pensão da autora.
13. Nem que resultou evidente de tais depoimentos que o montante mencionado em m) se reconduz a valores internos da aludida instituição, não sendo fixado atendendo às circunstâncias concretas de cada utente.”
14. Porquanto na contratação quanto a estrutura residencial, entram em ponderação quer o património e pensões do futuro residente, quer o apoio da família, segundo aquele princípio.
15. Se num concreto contrato, que se clausula que pode ser alterado se logo se alterarem as circunstâncias, está-se a admitir que se sobrevier conhecimento de doação em que a parte contratante doou com encargo a donatário para repor o que faltar a essa integração em lar, então é evidente que se o contratante sustenta que paga logo que ‘venda a casa’, de que tem apenas usufruto mas tem ainda direito em herança do falecido marido, então esse sentido tem que ser no sentido de interpretar tais factos como tendo ainda possibilidade a satisfazer por donatário.
16. As partes podem, dentro dos limites, legais fixar o conteúdo dos contratos (artigo 280 e 405 do CC e, tendo obrigação de cumprir ponto por ponto, de acordo com o princípio da pontualidade do artigo 406 do CC, devendo agir de boa-fé, então a interpretação de contrato deve ser feita tendo por limite quer a lei de bases da SS, quer o dever de a parte faltosa alegar em processo que o incumprimento não procede de culpa sua.
17. Não alegando tal matéria nem provando, presume-se a sua culpa.
18. A Ré não cumpre o que se obrigou nem provou em juízo que o incumprimento não deriva de culpa sua, pelo que é responsável pelo (in)cumprimento do contratado.
19. A ela incumbiria contactar a SCM, já que a pessoa está à sua guarda e dever, por força da doação, e não tendo havido qualquer contacto, é ela que tem que demonstrar em juízo que nada falta à Autora.
20. Por outro lado, estando como está obrigada por uma doação a completar com o que faltar para que a sua mãe, doadora, possa beneficiar do apoio e condições de permanência em lar, é a Ré responsável pelo que a autora tiver que pagar a esse lar.
21. Por outro lado, não pode prevalecer-se da faculdade de invocar que este momento nada deve porque a Autora recebe apoio de vaga protocolada pelo Estado, especifica vaga social que pode terminar a todo o momento por decisão da Segurança Social ou da Instituição caso apareça pessoa em condições piores à da Autora. O financiamento público feito pela Segurança Social para tais necessidades tem como limite quer o que a autora possa pagar quer o apoio da família.
22. Tendo-se a Ré obrigada para com a Autora a cumprir ‘completando com o que faltar’ à autora, é ela Ré responsável com o valor a pagar à SCM além do valor da pensão da Autora, já entregue na Instituição.
23. Se o tribunal (magistrada) refere que 1600 são um valor interno, de 1600€, não é à Autora que incumbe provar o valor necessário, mas sim à Ré.
24. Pelo que a solução jurídica da douta sentença está errada, na medida em que à Autora basta provar que entrega praticamente tudo (menos 10%) o que recebe da Segurança Social a título de pensão e, como tem uma doação em que clausulou obrigação de mutuário, é este que tem que alegar e provar que o incumprimento não procede de culpa sua.
25. A Ré não só não fez isso, como não pode prevalecer-se de uma sentença que, partindo do princípio de que, por ser vaga protocolada/social, financiada pela Segurança Social, é a ela autora que tem que provar o montante que falta, já que todo o montante é todo aquele em que falta, além da citada pensão, já que a Autora nada tem mais.
26. Ou seja, é aquele que a SCM refere custar como vaga interna, 1600€ mês. Além do custo de 3000€ anual em medicamentos e assistência médica.
27. Se a Autora não dispõe de valor para pagar, pela facto da Ré ter adquirido essa casa, deve esta em substituição da autora substituir-se perante a SCM, cumprindo, por via do artigo 794 do CC.
28. Qualquer outra interpretação fora dos citados limites do direito a alimentos de idoso é materialmente inconstitucional, ao arrepio de elementares valores jurídicos da comunidade internacional.
29. Foram violadas as disposições dos artigos 70, 227, 280, 406, 762 e 798, 341, 347, 406, 762, 798 e 799, 963 e 2004, 2010, 2011.º do CC, assim como os artigos 1º, 13, 18 e 36 da Constituição da República Portuguesa, bem como o princípio do artigo 11 da Lei de bases da Segurança Social, Lei nº 83-A/2013, de 30 de Dezembro, primeira alteração à Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social.
Termos em que, alterando-se a decisão recorrida, no sentido pugnado pela Autora, e fixando-se alimentos em função da sua real necessidade, no valor peticionado, se fará Justiça, considerando as obrigações assumidas pela Ré, que aliás sempre resultariam do caracter subsidiário a intervenção da Segurança Social.
Mais requer seja admitida a junção de:
-contrato com a SCM
-declarações de tratamento.

Não foram apresentadas contra-alegações.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber:
a) se ocorreu erro no julgamento da matéria de facto;
b) se ocorreu erro na aplicação do Direito aos factos provados

III
A sentença considerou provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública de 18 de Dezembro de 2009, lavrada a fls. 21 e 22 do livro n.º ...5... no Cartório Notarial da Notária EE, a aqui autora e o marido, FF, declararam doar à aqui ré e marido, GG, com reserva de usufruto simultâneo e sucessivo até à morte do último dos doadores, o prédio urbano composto por casa de ... e andar e logradouro, no sítio de ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...21, inscrito na matriz sob o artigo ...14.
2. Na escritura referida em 1, declararam os doadores: “esta doação à qual atribuem o valor de cinco mil euros, é feito por conta da quota disponível, deles doadores, e fica subordinada às seguintes cláusulas:
1ª- A donatária fica obrigada a tratar dos doadores na saúde e na doença, assegurando-lhes assistência médica, medicamentosa e hospitalar, quando disso eles necessitarem, sendo todas as despesas suportadas pelos doadores, completando a donatária com o que faltar.
2ª- A donatária fica ainda obrigada a prestar aos doadores todos os serviços pessoais e domésticos de que eles careçam, fornecendo-lhes toda a alimentação, prestar-lhes todos os cuidados de higiene, limpeza e vestuário, providenciando condições habitacionais dignas, até à sua morte, sendo todas as despesas suportadas pelos doadores, complementando a donatária com o que faltar”.
3. Correram termos no J... da Instância Local Cível ..., do Tribunal da Comarca ..., os autos n.º 2055/13...., pelos quais a aqui autora e o falecido marido peticionaram a revogação da doação referida em 1, acção que foi julgada improcedente.
4. Pelo menos desde 2013, a ré e o marido nunca mais habitaram a casa da autora.
5. No decurso dos presentes autos, a autora conseguiu vaga na Santa Casa da Misericórdia ..., que a acolheu.
6. A autora vivia sozinha aquando da integração referida em 5.
7. A autora padece de problemas de saúde, entre os quais doença que lhe afecta a visão.
8. Desloca-se frequentemente ao IPO, no Porto.
9. A autora auferiu, no ano de 2020, a título de pensão por velhice e de sobrevivência, a quantia global anual de € 8.436,02.
10. A autora não se encontra acamada nem é inválida.
11. A autora circula sozinha na cidade ....
12. O prédio doado foi alvo de obras.

B Factualidade não provada
Com relevo para a decisão da causa, resultou não provada a seguinte factualidade:
a. A ré e o marido não prestaram qualquer assistência à autora e ao falecido marido desta, nem posteriormente à morte deste prestaram qualquer apoio à autora.
b. A autora não tem qualquer tipo de apoio familiar ou amparo.
c. A autora necessita de ajuda para desempenhar grande parte das tarefas diárias.
d. Da quantia referida em 9., a autora gasta mensalmente mais de € 70,00 em medicação.
e. Em táxi para o IPO gasta, por cada vez que lá vai, a quantia de € 55,00.
f. Em luz, água e demais despesas fica praticamente sem qualquer valor.
g. A ré cumpriu as condições estabelecidas na doação, tendo tratado dos doadores na saúde e na doença, assegurando-lhes assistência médica, medicamentosa e hospitalar, acompanhando-os enquanto lhe foi permitido pela autora, nas deslocações médicas e hospitalares, quando disso eles necessitaram.
h. Prestando ainda aos doadores todos os serviços pessoais e domésticos de que eles careceram, fornecendo-lhes toda a alimentação, prestando-lhes todos os cuidados de higiene, limpeza e vestuário, enquanto lhe foi permitido pela autora, providenciando condições habitacionais dignas (com todas as despesas de beneficiação suportadas pela ré ao contrário do estabelecido na doação), até à sua morte.
i. Foi a autora e falecido marido que não permitiram que a ré e família continuassem a viver no prédio doado.
j. Mesmo assim, a ré sempre tentou prestar ao longo do tempo assistência à autora, providenciando cuidados de saúde, limpeza e companhia.
k. Assistência que sempre foi recusada pela autora.
l. As obras referidas em 12. foram integralmente suportadas pela ré e seu marido.
m. Na instituição aludida em 5., a autora tem um encargo de permanência de € 1250,00/mês, a que acresce medicação, deslocações a unidades de saúde, por isso transporte fornecido pela entidade, em custo estimado global por mês de € 1600,00.
n. A troco de assistência e permanência na mencionada instituição, a autora tem o dever de pagar a quantia de € 1250,00 por mês, acrescido de demais despesas com medicamentos e outros produtos necessários à sua subsistência e tratamento e demais encargos.
o. A integração em instituição social decorreu de uma necessidade fruto do abandono a que a autora foi votada.
p. A autora foi admitida sob condição de que alguém teria de pagar alimentos, isto é, assistência de saúde, alojamento e a mais despesa que isso implica.

IV
Conhecendo do recurso.

Questão prévia: junção de documentos
A recorrente vem requerer a junção aos autos, nesta fase de recurso, de 3 documentos, um contrato celebrado entre a autora e a Santa Casa da Misericórdia, e dois documentos médicos comprovativos de tratamentos oftalmológicos.
Como justificação para esta junção apenas em sede de recurso, que nos seja dado ver, oferece tão-só a seguinte: “tais documentos estavam na posse da Instituição e apesar de serem levados pelas testemunhas na audiência, ao que agora se soube, deles não tinha a autora disponibilidade e mesmo que a tivesse a sua condição de avançada idade e doença não lhe permitiam discernir da sua relevância ou saber que eram aportados pelas testemunhas. A autora, dada a avançada idade, nem esteve na audiência”.
A recorrente nem sequer citou disposição legal ao abrigo da qual formulou esta pretensão.
O que não nos impede de saber que se trata do art. 651º CPC.

Vejamos.

Dispõe tal artigo, sob a epígrafe “Junção de documentos e de pareceres”: 1. As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art. 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
A regra é pacífica: a junção de prova documental “deve ocorrer preferencialmente na 1ª instância, regime que se compreende na medida em que os documentos visam demonstrar certos factos, antes de o tribunal proceder à sua integração jurídica” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, 2014, Almedina, p. 191).
Estatui o artigo 425º CPC que, depois “do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”, resultando do artigo 423º do mesmo diploma que os documentos deverão “ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes” (nº 1), ou “até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado” (nº 2), ou até ao encerramento da discussão, desse que a sua “apresentação não tenha sido possível ate aquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior” (nº 3).
Assim, estando em plena instância de recurso, como acontece agora, em face do preceituado nos artigos 425º e 651º,1 CPC, a admissibilidade da junção de documentos com as alegações assume carácter excepcional e ocorre apenas em duas situações: a) se a junção do documento não foi possível até àquele momento, isto é, nos casos de impossibilidade objectiva ou subjectiva de junção anterior do documento ou b) se a junção do documento se tornou necessária em virtude do julgamento proferido pela 1ª Instância.
A junção de documento em fase de recurso com fundamento de que essa junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido pela 1ª Instância tem como pressuposto que essa decisão contenha elementos de novidade, isto é que tenha sido, de todo, surpreendente para o apresentante do documento, face ao que seria de esperar em face dos elementos do processo; é o que ocorre designadamente nos casos em que a decisão se baseou em meios de prova cuja junção foi oficiosamente determinada pelo tribunal, em momento processual em que já não era possível à parte carrear para os autos o documento, ou em que se fundou em preceito jurídico ou interpretação do mesmo, com a qual aquele não podia justificada e razoavelmente contar. Veja-se a propósito o recente Acórdão desta Relação de 30/10/2019, proferido no P. nº 763/18.7T8GMR.G1 (Relatora- Raquel Baptista Tavares).
Assim, se o documento era necessário para fundamentar a acção ou a defesa antes de ser proferida a decisão da 1ª Instância e se esta se baseou nos meios de prova com que as partes razoavelmente podiam contar (depoimentos ou declarações de parte, declarações das testemunhas, documentos, prova pericial ou por inspecção judicial, arrolados e requeridos pelas partes ou oficiosamente determinadas pelo juiz, mas neste caso, em momento processual em que ainda era possível às partes juntar o documento) não se pode dizer que a junção aos autos do documento com as alegações ocorre em virtude do julgamento realizado pela 1ª Instância.
Deve ser recusada a junção de documentos para provar factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado (neste sentido os Acórdãos do STJ de 27/06/2000, in CJ/STJ, ano VIII, tomo II, página 131 e de 18/02/2003, in CJ/STJ, ano XI, tomo I, página 103 e seguintes onde se afirma que “Não é lícito juntar, com as alegações de recurso de apelação, documento relativo a factos articulados e de que a parte podia dispor antes do encerramento da causa na 1.ª instância. Na verdade, o artigo 706.º do CPC (com a mesma redacção, no que a este particular interessa, do artigo 693.º-B actual), ao admitir a junção só tornada necessária em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância, não abrange a hipótese da parte pretender juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1.ª instância (Alberto dos Reis, Código Processo Civil Anotado, vol. IV, pág. 10; Antunes Varela, R.L.J. 115-94)”, os quais mantêm actualidade em face da redacção dos preceitos do actual Código de Processo Civil).
Ora, sendo este o quadro legal, e olhando para os documentos cuja junção se pede, verificamos que o contrato com a Santa Casa data de 9.11.2022, e os outros documentos datam de 26.6.2023.
A audiência de julgamento terminou em 30.6.2023.
Daí decorre que devia ter sido requerida a junção dos documentos em causa durante a pendência do processo na primeira instância. Repetindo, a junção de prova documental “deve ocorrer preferencialmente na 1ª instância, regime que se compreende na medida em que os documentos visam demonstrar certos factos, antes de o tribunal proceder à sua integração jurídica”.
Como acabámos de ver, a junção dos documentos era perfeitamente possível até ao encerramento da discussão em primeira instância. Dizendo de outra forma, não ocorre qualquer impossibilidade objectiva ou subjectiva de junção dos documentos, os quais não são objectiva ou subjectivamente supervenientes.
E também não se pode dizer que a junção dos 3 referidos documentos se tornou necessária em virtude do julgamento proferido pela 1ª Instância. Aliás, nem tal vem sequer alegado. E no que se refere ao contrato com a Santa Casa, o mesmo destinava-se a provar o alegado no articulado superveniente, pelo que não faz sentido vir pretender juntá-lo só em fase de recurso.
E assim, não se admite a respectiva junção, determinando-se sejam os mesmos desentranhados e restituídos, após trânsito em julgado deste acórdão.

Julgamento da matéria de facto
Começa a recorrente por querer impugnar a decisão sobre matéria de facto.
Como é sabido, há regras apertadas para poder impugnar a decisão sobre matéria de facto.
Constam do art. 640º CPC os requisitos formais de admissibilidade do recurso sobre matéria de facto. Como escreve Abrantes Geraldes (Recursos, 2017, fls. 158):
“a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b);
b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (vg. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc);
d) falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”.

No caso concreto, a recorrente indica quais os pontos de facto que considera mal julgados e quais as respostas que entende que o Tribunal deveria ter dado aos mesmos, e indica em concreto os meios de prova que em seu entender deveriam ter levado a decisão diversa.
Podemos pois conhecer desta parte do recurso.

Como pano de fundo vamos recordar aqui que os temas da prova foram assim definidos:
a) Apurar se a Autora AA necessita que lhe sejam prestados alimentos e, em caso afirmativo, em que medida;
b) Aferir se a Ré BB está obrigada a prestar alimentos à Autora e, em caso afirmativo, em que medida.

Vejamos então.
Facto 4: “Pelo menos desde 2013, a ré e o marido nunca mais habitaram a casa da autora”.
Vamos ignorar as referências desnecessárias à sentença anterior, uma vez que a mesma, para todos os efeitos, já não existe.
A recorrente pretende que se acrescente a este nº 4 o seguinte: “a Autora tem necessidade de ajuda de terceiro”.
A sentença recorrida fundamenta o facto provado nº 4 dizendo que tal factualidade foi confirmada pela própria ré em sede de depoimento de parte. O que é verdade.
Para sustentar esta sua pretensão a recorrente socorre-se dos depoimentos de HH, II e JJ, atribuindo-lhes total credibilidade.
Em primeiro lugar, importa referir que o segmento que a recorrente pretende ver aditado ao texto do facto provado 4 é conclusivo. Queremos com isto significar que esse singelo segmento -a autora tem necessidade de ajuda de terceiro- é aquilo que o Tribunal irá a final concluir, ou não, consoante as circunstâncias concretas que tenham ficado provadas, nomeadamente os factos provados 6 a 11. Por isso, não concordamos que tal segmento seja inserido na matéria de facto provada. Acresce que, ouvidos todos os depoimentos citados pela recorrente, parece-nos pertinente a apreciação feita pelo Tribunal recorrido: quanto à testemunha JJ, prestou um depoimento vago, e apenas sabia que a autora estava sozinha e que às vezes lhe pedia para ir às compras por ela. E ainda acrescentou que “desde a outra audiência em que viemos aqui nunca mais a vi”. Da situação de saúde da autora nada sabia, a não ser que foi operada à vista. De rendimentos dela nada sabia. Se tinha apoio dos filhos, não sabia.
Quanto à testemunha HH, o Tribunal consignou: “ressaltou que a autora é uma pessoa muito necessitada, contudo, em termos concretos, soçobrou na explicação de factualidade concreta – que seja do seu conhecimento directo -, que traduza tal necessidade, ficando patente que o seu depoimento foi comprometido por sentimentos de amizade e, sobretudo, de piedade. De facto, os sentimentos de comiseração foram evidentes na forma defensiva como depôs e na postura claramente imbuída de um espírito de indignação contra a ré (pessoa que nunca conheceu e cuja versão dos factos, segundo assume, desconhece). Assumindo que aquilo que sabe é aquilo que lhe é contado pela autora, tem apenas conhecimento directo do facto de a autora viver sozinha, deslocar-se a sua casa sozinha, e confeccionar alimentos sozinha. Certo é, contudo, que a própria testemunha referiu nunca ter tido qualquer relação com a autora até ao momento em que esta se dirigiu a sua casa a pedir para testemunhar por si em Tribunal (no âmbito de processo anterior), tendo-a posto a par da sua situação de vida e passando, após, a ajudá-la e a com ela conviver regularmente”.
Depois de ouvir o depoimento, também comungamos desta análise: declarações como: “apoio dos filhos não tem nenhum, antes pelo contrário, tem agonias e coisas que lhe revoltam a alma”; “durante uns tempos uma filha foi lá viver para casa dela. Mas trouxe-lhe mais transtornos. E pouco tempo depois foi-se embora, sem dar qualquer explicação à mãe”; “acho que eles querem que a mãe morra”, “os filhos ameaçaram os pais com armas”, revelam exactamente aquilo que o Tribunal recorrido apontou, sobretudo quando também disse que nunca falou com a actual ré, só sabe o que a autora lhe contou, que foi que a ré foi de lá tirada pelas autoridades (…). E ainda chegou a dizer que uma outra filha da autora e o companheiro tentaram atropelá-la (à testemunha) de propósito. Daí que concordemos totalmente com a apreciação feita pelo Tribunal recorrido.
Também a testemunha II não revelou qualquer conhecimento dos factos relevantes aqui em discussão e logo não trouxe qualquer contributo probatório. Mas ainda conseguiu referir que a autora “vive normalmente, tem o suficiente para viver”.
Assim, este facto 4 mantém-se intocado.

Facto 7: “A autora padece de problemas de saúde, entre os quais doença que lhe afecta a visão”. A recorrente pretende que este facto contenha toda a matéria alegada e que foi omitida dos factos provados, designadamente que a Autora: “apresenta nevralgia do trigémio associado a síndrome miofacial dos músculos da mastigação lado direito sequelar pós cirúrgico e disfunção da ATM ipsislateral, teve já múltiplos tratamentos incluindo radiofrequência dos gânglios de Gasser e pterigóideos com sucesso limitado, tudo em conformidade ao documento nº ..., que juntou e não foi impugnado. E ainda que se dê como provado que tem tido apoio da Medicina Física e de Reabilitação, por motivos geográficos (Doc. nº ...)”.
Ora bem. Esses factos alegados pela autora foram impugnados na contestação. A única prova sobre os mesmos são os documentos particulares, juntos com a petição inicial, os quais a ré impugnou na sua contestação, dizendo: “relativamente a todos os documentos que acompanharam a citação da Ré, com excepção da Escritura de Doação – Doc. n.º ..., sempre se dirá que a aqui Ré não interveio na elaboração e compilação dos mesmos, nem directa nem indirectamente, desconhecendo a respectiva autenticidade, autoria, proveniência, justificação, causas e consequências, não sabendo as circunstâncias e princípios sob os quais os mesmos foram compostos e compilados. Ainda, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 368º, 374.º, n.º 2 do Código Civil e 444.º do Código de Processo Civil, impugna as letras, assinatura e a pretensa autoria constante dos mesmos, declarando não saber se aquelas são verdadeiras. Pelo que, nos termos do disposto no art.º 574º, números 2 e 3 do Código de Processo Civil, dá-se por expressamente impugnado todo o seu teor, pressupostos e conclusões, refutando-se o alcance que dos mesmos se pretende retirar”.
Ora bem. Perante esta impugnação clara e detalhada, estamos no âmbito do disposto no art. 374º,2 CC: ou seja, recai sobre o apresentante do documento o ónus de provar a autoria do mesmo. Incumbe ao apresentante do mesmo provar a veracidade da assinatura, cabendo-lhe requerer a produção de prova destinada a convencer da sua genuinidade, no prazo de 10 dias (art. 445º,2 CPC).
A autora não o fez. Assim, tal documento não pode ser visto como fidedigno e provando aquilo que a autora pretende que se prove. Tal como já a sentença recorrida tinha explicado.
Improcede também esta pretensão.

Facto 8. “Desloca-se frequentemente ao IPO, no Porto”. Aqui, não percebemos o que a autora tem contra este facto provado, até porque foi ela          que o alegou. Ela também não o explica. Como tal, sem mais, este facto mantém-se provado.

Facto 10: “A autora não se encontra acamada nem é inválida”.
A recorrente pretende que se dê como provado, por ser prova que resulta de documentos, que a Autora, tem uma incapacidade permanente de 87%, porque afirma que o Tribunal omitiu o que resulta do atestado multiuso junto.
O Tribunal justificou a não prova deste facto da forma já exposta supra, de tal facto, bem como o documento que o sustenta, terem sido impugnados pela ré.
Pensamos que tudo se resume a saber se o documento no qual a autora baseia a sua pretensão deve ser considerado documento particular, ou autêntico. Se concluirmos que se trata de um documento particular, então está sujeito à mesma regra supra enunciada, foi impugnado e não foi comprovado ou confirmado por outros meios de prova, e como tal não tem força probatória bastante, e a pretensão da recorrente improcede. Se for de considerar como documento autêntico, então terá a força probatória que estes possuem.
A questão não é líquida na jurisprudência, sendo que enquanto o Acórdão do STJ de 24.11.2016 (Tavares de Paiva), proferido no P. 7531/12, decidiu que o documento emitido pela Administração Regional de Saúde, denominado Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, subscrito e assinado pelo Presidente da Junta Médica, deve ser classificado como documento autêntico, já o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal, de 17.06.2021 (Ferreira Lopes), consagra entendimento contrário.
Esta última solução é a que nos parece a mais correcta, por mais conforme ao espírito da lei e atento o elemento sistemático da interpretação.
Pode ler-se no Acórdão em causa o seguinte: “o art. 362º do CCivil dá-nos a noção de prova documental: “…a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir uma pessoa, coisa ou facto.”
Documento autêntico é aquele que, emanando da entidade competente para o fazer, atesta os actos praticados por essa entidade e aqueles decorrentes das percepções da entidade documentadora, fazendo prova plena, sendo que os meros juízos pessoais do documentador não são abrangidos por esta prova plena (arts. 369º e 371º do CC).
Ora, um atestado médico não atesta, não certifica factos; trata-se sim de uma conclusão pericial[1]. Daí que não integre um documento autêntico, como decidiu o Acórdão do STJ de 24.06.2010, P. 600/09, in www.dgsi.pt: “Um atestado médico não é feito com base na percepção factual directa do médico, mas sim com base na sua opinião derivada da respectiva competência pericial. O médico não atesta factos, faz diagnósticos. Donde tal relatório não possa ser considerado um documento autêntico. Tanto assim que a força probatória dos peritos é fixada livremente pelo tribunal, art. 389º do CCivil.”
Neste sentido decidiram os Acórdãos do STJ de 12.01.2010 P. 429-C/1995, e de 06.02.2019, P. 639/13, acessíveis em dgsi.pt, constando do sumário deste último: “A força probatória das juntas médicas é fixada livremente pelos tribunais, e estes não estão impedidos de atribuírem maior força probatória a outros meios de prova.”
O que está em causa é, por conseguinte, não apurar a força probatória de um documento autêntico, mas a força probatória de um relatório pericial.
Prova que deve ser feita no processo, sujeita ao contrário. Tratando-se de prova pré-constituída, a parte contrária tem o direito de impugnar, tanto a respectiva admissão como a sua força probatória (art. 415º do CPC).
A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal (art. 399º do CCivil).
O meio de prova adequado para aferir da situação de incapacidade é a pericial, por estar em causa a apreciação de factos que exigem conhecimentos especiais que os julgadores não possuem…” (art. 388º do CCivil).
A forma de realização da perícia está prevista no art. 467º do CPC, dizendo o nº 3 que “as perícias médico legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos do diploma que as regulamenta.”
Este diploma é a Lei nº 45/2004 de 19.10, de acordo com o qual as perícias médico-legais deverão obrigatoriamente ser realizadas nas delegações e nos gabinetes médico-legais do INML, só excepcionalmente, perante manifesta impossibilidade dos serviços, o podendo ser por entidades terceiras.
O Instituto de Medicina Legal ... era, assim, a entidade com competência legal para realizar a perícia médico-legal à Autora. (cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2º, pag. 312: “A redacção do nº 3 (do art. 467º), mostra claramente que, tratando-se de perícia médico-legal, é ela obrigatoriamente realizada por médicos do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, ou por peritos médicos por estes contratados (…)”.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, Código de Processo Civil anotado, I, pag. 534, “a obrigatoriedade de realização de perícias médico-legais no INML não constitui restrição dos direitos processuais das partes, porquanto esta instituição tem autonomia e independência técnico-científica, estando numa posição de equidistância perante as partes, sendo que os seus peritos garantem um padrão de elevada qualidade científica.”

E por isso é que o sumário deste Aresto consagra:
I- Um atestado médico multiuso emitido por uma Administração Regional de Saúde, por meio de Junta Médica para verificação de incapacidades, não pode ser considerado, para efeitos probatórios, um documento autêntico;
II- Trata-se antes de uma conclusão pericial, sujeita à livre apreciação do julgador (art. 389º do CCivil)”;
Aplicando esta Jurisprudência ao caso em apreço, concluímos que o documento a que a autora se refere é um documento particular, e como tal a impugnação feita pela ré surte pleno efeito.

Como acabámos de ver, a prova da incapacidade da autora deveria ter sido feita dentro do processo, através de prova pericial requisitada ao INML, com sujeição ao contraditório, e não através da junção de um documento que tem de ser classificado como documento particular, sujeito portanto à livre apreciação do Tribunal, e que foi devidamente impugnado.
Portanto, também aqui a decisão de não dar como provado o facto que a recorrente pretende acrescentar, nos parece correcta.
Assim, também esta parte do recurso improcede.

Quanto aos factos não provados, recordemos quais os que a recorrente impugnou, os quais vamos dividir em dois grupos:

O primeiro grupo abrange as seguintes alíneas:
a. A ré e o marido não prestaram qualquer assistência à autora e ao falecido marido desta, nem posteriormente à morte deste prestaram qualquer apoio à autora.
b. A autora não tem qualquer tipo de apoio familiar ou amparo.
g. A ré cumpriu as condições estabelecidas na doação, tendo tratado dos doadores na saúde e na doença, assegurando-lhes assistência médica, medicamentosa e hospitalar, acompanhando-os enquanto lhe foi permitido pela autora, nas deslocações médicas e hospitalares, quando disso eles necessitaram.
h. Prestando ainda aos doadores todos os serviços pessoais e domésticos de que eles careceram, fornecendo-lhes toda a alimentação, prestando-lhes todos os cuidados de higiene, limpeza e vestuário, enquanto lhe foi permitido pela autora, providenciando condições habitacionais dignas (com todas as despesas de beneficiação suportadas pela ré ao contrário do estabelecido na doação), até à sua morte.
i. Foi a autora e falecido marido que não permitiram que a ré e família continuassem a viver no prédio doado.
j. Mesmo assim, a ré sempre tentou prestar ao longo do tempo assistência à autora, providenciando cuidados de saúde, limpeza e companhia.
k. Assistência que sempre foi recusada pela autora.

E o segundo grupo contém:
m. Na instituição aludida em 5., a autora tem um encargo de permanência de € 1250,00/mês, a que acresce medicação, deslocações a unidades de saúde, por isso transporte fornecido pela entidade, em custo estimado global por mês de € 1600,00.
n. A troco de assistência e permanência na mencionada instituição, a autora tem o dever de pagar a quantia de € 1250,00 por mês, acrescido de demais despesas com medicamentos e outros produtos necessários à sua subsistência e tratamento e demais encargos.
o. A integração em instituição social decorreu de uma necessidade fruto do abandono a que a autora foi votada.
p. A autora foi admitida sob condição de que alguém teria que pagar alimentos, isto é, assistência de saúde, alojamento e a mais despesa que isso implica.

Aqui também, vamos já começar por dizer que não vislumbramos qualquer erro na decisão recorrida, a qual fundamentou devidamente a razão por que considerou estes factos como não provados, no que merece toda a nossa concordância.

Recordemos a fundamentação desta decisão:
“Quanto à factualidade descrita na petição inicial, será de referir que a prova produzida se reconduziu – e limitou -, em grande medida, aos depoimentos de vizinhos e amigos da autora, sem conhecimento directo da grande maioria dos factos relevantes para a decisão da presente acção.
A testemunha KK, vizinho da autora, reportou-se ao facto de a autora viver sozinha e de a ver cultivar o seu campo, porém, quanto ao mais, nada sabe, por falta de razão de ciência suficiente. Ademais, prestou um depoimento contido e vago, atendo-se a considerações de acho, dá a ideia”.
Quanto às testemunhas JJ e HH, já nos pronunciámos supra.
“Por sua vez, as testemunhas LL e II, sem qualquer conhecimento dos factos relevantes aqui em discussão – referindo aquela até que só conhece a autora de a ver no cemitério, mas que não a vê há muito tempo -, não revelaram qualquer contributo probatório.
Por outro lado, porém, a ré prestou depoimento de parte, no decurso do qual, além de referir que a autora se encontrava bem de saúde e perfeitamente autónoma, circunstanciou o contexto que rodeou a sua saída de casa da autora, designadamente, explicando ter sido expulsa desta, sendo impedida de prestar qualquer tipo de assistência a esta. Nesta parte, por consentânea com a demais prova produzida (designadamente, com o depoimento da testemunha MM, a que nos reportaremos infra), o Tribunal reputou o depoimento da ré como credível ou, pelo menos plausível, infirmando a versão dos factos trazida aos autos pela autora.
(…)
A propósito dos factos contidos sob os n.ºs 10 e 11, é de referir que, não obstante as naturais dificuldades advenientes da idade da autora, certo é que não se demonstrou que esta se encontrasse acamada ou inválida, tanto mais que resultou da prova produzida que a mesma é absolutamente autónoma. O que veio a ser referido pelas testemunhas CC e DD, com a credibilidade que o Tribunal lhes conferiu, e com o conhecimento mais actual pelas mesmas detido, considerando que são quem presencia a situação presente da autora na instituição em que se encontra integrada.
O facto provado sob o n.º 12 emergiu do depoimento da testemunha NN, construtor civil que procedeu às referidas obras e que depôs de forma objectiva e descomprometida.
Por sua banda, quanto à factualidade dada como não provada, resulta a mesma da total ausência de prova que a sustentasse ou da falta de prova cabal.
Não se demonstrou a factualidade consignada sob as alíneas a) e b), desde logo, atenta a absoluta falta de conhecimento directo das testemunhas que sobre a mesma depuseram, e considerando, por exemplo, o que resultou do depoimento da testemunha MM, a qual, de forma espontânea e descomprometida, relatou ter presenciado a autora a dizer à ré que esta não entrava mais na sua casa, o que infirma a versão dos factos trazida aos autos pela autora.
Por outro lado, tal facticidade resultou ainda contrariada atenta a espontaneidade e credibilidade com que a ré, em sede de depoimento de parte, a refutou, esclarecendo ter sido expulsa de casa.
A falta de prova do facto contido sob a alínea c) decorre da prova dos factos provados sob os n.ºs 6, 10 e 11, e respectiva motivação.
Quanto à factualidade dada como não provada sob as alíneas d), e), e f), resulta a mesma da total ausência de prova que a sustentasse.
A propósito da factualidade consignada sob as alíneas g) a k), embora a testemunha OO, filho da ré e neto da autora, tenha aludido ao facto de ter sido a autora a criar o afastamento ocorrido, refere-se às circunstâncias que envolveram a saída de casa da avó de forma imprecisa, limitada por aquilo de que se recorda.
Como vimos, igualmente resultou do depoimento da testemunha MM que a autora terá dito à ré que esta não entrava mais na sua casa.
Porém, entende o Tribunal que aquilo que resulta de tais depoimentos é demasiado vago, não sendo suficiente para formar uma segura convicção quanto aos concretos contornos – e até razões - do sucedido, ficando por esclarecer se, de facto, existiram reais tentativas por parte da ré de prestar à autora os cuidados aludidos nas alíneas em referência.
Daí a sua inclusão no elenco de factos não provados.
Por fim, e uma vez que igualmente não se produziu prova que estribasse suficientemente tal factualidade –designadamente, em face da falta de conhecimento directo e concreto das testemunhas que a essa matéria se reportaram-, não ficou demonstrada a factualidade consignada sob a alínea l).
A falta de prova da facticidade descrita sob a alínea o) emerge da falta de prova da contida nas alíneas g) a k) e respectiva motivação.
Por fim, a factualidade contida sob as alíneas m), n) e p) mostrou-se infirmada pela prova produzida. Para tanto, o Tribunal ponderou os depoimentos das testemunhas CC e DD, já acima mencionadas, dos quais resultou que a autora integrou a Santa Casa da Misericórdia numa vaga protocolar, o que significa que é uma vaga destinada a casos sociais, sendo efectuado o pagamento de uma comparticipação pela Segurança Social.
Emergiu de forma expressa e indubitável destes depoimentos o facto de não ter sido tida em conta a possibilidade de contributo da família da autora aquando da celebração do contrato, nem a integração da autora ficou dependente de tal contributo ou de qualquer pagamento para além do montante correspondente à pensão da autora.
Mais resultou evidente de tais depoimentos que o montante mencionado em m) se reconduz a valores internos da aludida instituição, não sendo fixado atendendo às circunstâncias concretas de cada utente”.
Esta Relação subscreve integralmente esta fundamentação, porque considera que a mesma corresponde à melhor e mais prudente interpretação de toda a prova produzida.
E vale a pena reforçar que para além da fragilidade da prova que a autora tinha apresentado, e que o Tribunal recorrido expôs com clareza, as duas últimas testemunhas ouvidas, arroladas pela própria autora, que mereceram total credibilidade por não estarem envolvidas emocionalmente neste litígio, acabaram por vir deixar claro que a autora, apesar da idade e dos problemas de saúde que tem (normais para a idade), é autónoma. A testemunha DD, última a ser ouvida, quando perguntada se a autora era uma utente com cuidados especiais, respondeu que não, e acrescentou “completamente autónoma. É a nossa utente mais feliz. Até pode dançar”. E ainda explicou que a autora tem uma irmã em ... que a ajuda a pagar as 3 injecções que tem de tomar por ano, o que explica ainda a não prova do facto constante de b).
E quando a decisão recorrida está correcta e bem fundamentada, a Relação não precisa de andar à procura de argumentação paralela para chegar à mesma conclusão.
Procurando fazer agora uma síntese final, diríamos que a situação trazida a estes autos se caracteriza por uma grande animosidade entre mãe e filha, sobretudo dirigida daquela para esta, como resulta das decisões judiciais proferidas em outros processos que foram juntas aos autos. Delas se vê que antes desta acção ser intentada, já tinha corrido termos uma outra na qual a ora autora pretendia que fosse revogada a doação que fez à sua filha ora ré, a qual improcedeu, e ainda houve pelo menos uma queixa-crime da autora contra a ré pela prática do crime de ameaças, que culminou com uma decisão transitada em julgado de não pronúncia.
Isto revela-nos muito do grau de litigiosidade que existe entre as partes, parentes no primeiro grau da linha recta. Donde, o cuidado acrescido que teve de ser -e foi- posto na apreciação da prova. Por isso é que, essencialmente, nem resultou provado aquilo que a autora veio dizer, nem a versão que a ré veio trazer aos autos. As regras do ónus da prova constantes do art. 340º CC explicam claramente a decisão.
Isto quanto ao primeiro grupo dos factos não provados.
Quanto ao segundo grupo, remetemos integralmente para a fundamentação da decisão recorrida, com a qual concordamos na íntegra, pois a decisão assenta numa correcta interpretação dos depoimentos das testemunhas CC e DD, as quais mereceram total credibilidade.
E assim, a matéria de facto manter-se-á intocada, porque foi bem julgada.

C- Julgamento da matéria de direito

A recorrente, independentemente do insucesso da sua pretensão quanto à matéria de facto, afirma que “a solução jurídica da douta sentença está errada, na medida em que à Autora basta provar que entrega praticamente tudo (menos 10%) o que recebe da Segurança Social a título de pensão e, como tem uma doação em que clausulou obrigação de mutuário, é este que tem que alegar e provar que o incumprimento não procede de culpa sua”.

Vejamos.
Com esta acção, a autora pretende a condenação da ré a prestar-lhe a quantia mensal de € 750,00 a título de alimentos.
E como causa de pedir invoca um contrato de doação pelo qual a aqui autora e o marido, FF, declararam doar à aqui ré e marido, GG, com reserva de usufruto simultâneo e sucessivo até à morte do último dos doadores, o prédio urbano composto por casa de ... e andar e logradouro, descrito supra. Nesse contrato ficaram a constar as seguintes cláusulas:
1ª- A donatária fica obrigada a tratar dos doadores na saúde e na doença, assegurando-lhes assistência médica, medicamentosa e hospitalar, quando disso eles necessitarem, sendo todas as despesas suportadas pelos doadores, completando a donatária com o que faltar.
2ª- A donatária fica ainda obrigada a prestar aos doadores todos os serviços pessoais e domésticos de que eles careçam, fornecendo-lhes toda a alimentação, prestar-lhes todos os cuidados de higiene, limpeza e vestuário, providenciando condições habitacionais dignas, até à sua morte, sendo todas as despesas suportadas pelos doadores, complementando a donatária com o que faltar”.
Vamos começar por ter presente que a autora e o falecido marido tentaram obter a revogação desta doação, mas a acção foi julgada improcedente.
Agora vem a autora pretender exigir o cumprimento da cláusula modal supra-referida, afirmando que a ré a incumpriu.
Ora, o que se provou ficou muito aquém do alegado. Provou-se que pelo menos desde 2013 a ré e o marido nunca mais habitaram a casa da autora. Mais se provou que na pendência dos presentes autos, quando a autora estava a viver sozinha, conseguiu vaga na Santa Casa da Misericórdia ..., que a acolheu.
Em termos da situação de saúde da autora, apenas se provou que esta padece de problemas de saúde, entre os quais doença que lhe afecta a visão, e que se desloca frequentemente ao IPO, no Porto. Não se encontra acamada nem é inválida, e circula sozinha na cidade ....
Assentes estes factos, a sentença recorrida considerou, em resumo, que nos presentes autos a autora veio invocar a doação em causa, e mais concretamente, a cláusula modal na mesma aposta, a qual refere ter sido incumprida, como fundamento para exigir da ré a prestação de alimentos. Todavia, a cláusula modal em causa não comporta uma tal obrigação de prestar alimentos.
Com efeito, estipulou-se a obrigação da donatária, ré, prestar aos doadores toda a assistência médica, medicamentosa e hospitalar, quando disso eles necessitarem, e ainda todos os serviços pessoais e domésticos de que eles careçam, fornecendo-lhes toda a alimentação, prestar-lhes todos os cuidados de higiene, limpeza e vestuário, providenciando condições habitacionais dignas, até à sua morte, “sendo todas as despesas suportadas pelos doadores, completando a donatária com o que faltar.
Continua a sentença: “Se, por um lado, não se vislumbra forma de obter o cumprimento coercivo das obrigações de conteúdo moral decorrentes da cláusula modal, por outro lado, não se demonstrou a constituição da ré na obrigação de uma qualquer prestação patrimonial. Pois que, como vimos, não se estipulou qualquer cláusula de conteúdo patrimonial, apenas se prevendo que a donatária completasse com o que faltar, mas sendo todas as despesas suportadas pelos doadores.
Assim, para tanto, carecia de alegar-se e demonstrar-se que a autora não lograva suportar as despesas decorrentes, designadamente, dos seus cuidados de saúde, de alimentação, limpeza e vestuário, e qual a medida necessária a suprir o que faltava.
Ou seja, exemplificando, carecia a autora de demonstrar que despende uma determinada quantia mensal a título de despesas fixas com aqueles cuidados, sendo tal quantia inferior ao valor que aufere mensalmente, por forma a demandar da ré o remanescente.
O que não se fez.
Pelo contrário, mormente perante os factos supervenientemente trazidos aos autos, pois que está demonstrado que a autora se encontra integrada em instituição adequada que provém a todos os cuidados necessários ao seu quotidiano e à sua saúde, sendo que a sua vaga em tal instituição não se encontra dependente de qualquer pagamento adicional para além daquele que a pensão auferida pela autora logra suportar.
Pelo que a doação em causa não pode fundamentar o peticionado”.
O raciocínio é linear, e a análise da cláusula modal e dos factos provados é correcta.
Mas, continua a sentença recorrida: “afastada a obrigação de prestar alimentos com fundamento em tal cláusula modal, cumpre ver se a doação de que beneficiou a ré pode, ainda assim, constituí-la na obrigação de prestar alimentos à autora.

Dispõe o artigo 2011.º do CC:
“1. Se o alimentando tiver disposto de bens por doação, as pessoas designadas nos artigos anteriores não são obrigadas à prestação de alimentos, na medida em que os bens doados pudessem assegurar ao doador meios de subsistência.
2. Neste caso, a obrigação alimentar recai, no todo ou em parte, sobre o donatário ou donatários, segundo a proporção do valor dos bens doados; esta obrigação transmite-se aos herdeiros do donatário”.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, trata-se de uma obrigação que não assenta nos vínculos de solidariedade familiar, pelo que a obrigação só existe quando o necessitado tiver disposto de bens por doação, partindo a lei do princípio que, em caso de necessidade do doador, o bem doado responde pela satisfação dessas necessidades (em Código Civil Anotado, vol. V, pág. 598).
A este propósito, refere o acórdão da Relação do Porto de 16.06.2022, disponível em www.dgsi.pt, que “para que se verifique a obrigação de prestação de alimentos pelo donatário, além de se ter que verificar a necessidade do credor e da possibilidade do devedor, é requisito da obrigação de prestação de alimentos que, por um lado, o bem doado servisse para o sustento do doador, se lá estivesse (no património do doador), e, por outro lado, que tivesse gerado riqueza no património do donatário”.
Ora, perscrutada a factualidade provada, conclui-se que não demonstrou a autora a sua concreta necessidade nem a possibilidade da ré, nem tão-pouco demonstrou que o bem doado servisse para o seu sustento – sendo certo ainda que a autora é usufrutuária do imóvel, mantendo a disponibilidade do mesmo -, ou que o imóvel tivesse gerado riqueza na ré.
Assim, afastada a obrigação de prestar alimentos com fundamento na doação invocada, apenas pelas regras gerais pode a autora obter alimentos da ré.
Dispõe o artigo 2003.º, n.º 1, do Código Civil, que “por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário”.
Determina, por outro lado, o artigo 2004.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, que “os alimentos são proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los”, sopesando-se, ademais, que na fixação dos alimentos atender-se-á “à possibilidade do alimentando prover à sua subsistência” (n.º 2).
Por fim, o artigo 2009.º, n.º 1, alíneas a) a c), do CC, estipula que estão vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada, o cônjuge ou o ex-cônjuge, os descendentes e os ascendentes.
Ora, sendo a autora viúva, nos termos do artigo 2009.º, n.º 1, alínea b), do CC, os obrigados a alimentos são os seus descendentes, entre as quais a aqui ré.
Refere, ademais, o artigo 2010.º, n.º 1, do CC que, sendo várias as pessoas vinculadas à prestação desses alimentos, todas respondem na proporção das suas quotas como herdeiros legítimos do alimentando, o que, no caso, determinaria que a prestação de alimentos a fixar devesse recair, em partes iguais, sobre os filhos da autora.
Analisada a factualidade provada, porém, como vimos, conclui-se que não demonstrou a autora a sua concreta necessidade nem a possibilidade da ré.
Assim, por não se mostrarem verificados os respectivos pressupostos legais, impõe-se, sem necessidade de mais considerandos, improceder a peticionada fixação de alimentos”.

O que a recorrente vem dizer é que a sentença “errou de direito, porque mesmo com os factos dados por provados, outra devia ser a situação de direito. Como veremos a douta sentença errou em face de norma imperativa, que constituem princípios jurídicos da lei de bases da Segurança Social. Isto é, o principio da Subsidiariedade, fundante da intervenção de Segurança Social, constante do artigo 11 da Lei da bases da Segurança Social, Lei nº 83-A/2013, de 30 de Dezembro, primeira alteração à Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social), prescreve que: “O princípio da subsidiariedade assenta no reconhecimento do papel essencial das pessoas, das famílias e de outras instituições não públicas na prossecução dos objectivos da segurança social, designadamente no desenvolvimento da acção social”.
E acrescenta: “por força do princípio da subsidiariedade, a Segurança Social apenas actua e assume financiamento quando a parte ou os seus herdeiros não puderem”.
Mas, salvo melhor opinião, não lhe assiste razão. A invocação dos princípios que regem a actuação da Segurança Social faria sentido se esta fosse parte, e tivesse sido demandada civilmente. Mas não é o caso. A Segurança Social não é parte nesta acção, não tem qualquer intervenção directa ou indirecta neste litígio. Basta ver que ao longo da petição inicial não é feita qualquer referência à Segurança Social no contexto deste litígio.
A referência a essa Instituição surge apenas nos depoimentos das duas últimas testemunhas ouvidas, e de forma muito indirecta. O que releva é apenas aquilo que passou para a matéria de facto provada, que se resume a isto: no decurso dos presentes autos, a autora conseguiu vaga na Santa Casa da Misericórdia ..., que a acolheu, sendo que vivia sozinha aquando dessa integração. Mas não se encontra acamada nem é inválida, e circula sozinha na cidade ....
À luz da causa de pedir invocada pela autora, mais a que o Tribunal recorrido, ao abrigo do princípio estruturante do iura novit curia, investigou, e com ou sem Segurança Social, a autora não fez prova dos factos constitutivos do direito a alimentos que peticionou.
Importa ainda referir que a figura do articulado superveniente, prevista no art. 588º CPC, visa atingir o objectivo previsto no art. 611º,1 CPC, ou seja, permitir que a sentença tome em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
E foi isso que o articulado superveniente apresentado nos autos veio garantir: que a sentença apreciasse a pretensão da autora e a defesa da ré, não cristalizadas à data em que a petição entrou em juízo, mas actualizadas ao momento de encerramento da discussão.
E a situação da autora a essa data, que é a que nos interessa, e não situações pretéritas já ultrapassadas, tal como emergiu provada nos autos, é a de que, recordemos, está integrada na Santa Casa da Misericórdia ..., não se encontra acamada nem é inválida, e circula sozinha na cidade .... Quanto à contrapartida económica para a autora estar ali integrada, não fez a autora prova de carecer do apoio económico da ré, tanto que foi admitida e ali está, até hoje.

Daqui só se pode concluir aquilo que a sentença recorrida concluiu: a autora não demonstrou carecer de alimentos, para além de que igualmente ficou por provar a capacidade da ré em os prestar.
O raciocínio jurídico constante da sentença recorrida não nos merece qualquer censura. O Tribunal recorrido até foi mais além do que a autora alegou, pois esta apenas fez assentar a sua pretensão na cláusula modal inserida no contrato de doação, e a sentença foi ainda pesquisar outros fundamentos ou causas de pedir que permitissem sustentar a peticionada prestação de alimentos, sendo que com os parcos factos provados nenhuma dessas causas de pedir podia ser preenchida.
Daí a improcedência total da acção e do recurso.
*
V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente e confirma na íntegra a sentença recorrida.

Custas pela recorrente (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 22.2.2024 
Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


[1] Destaque nosso, porque nos parece o ponto nevrálgico da questão.