Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6214/22.5T8VNF-C.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO
DEVER DE REQUERER A DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I Só são de aditar factos à matéria provada que tenham relevância para a decisão da causa, segundo as possíveis soluções jurídicas.
II O n.º 1 do art.º 186º do CIRE define a insolvência culposa; o n.º 2 tipifica taxativamente um conjunto de situações que, quando se verifiquem no período referido no n.º 1, integram uma presunção absoluta de insolvência culposa –presume-se a culpa grave e o nexo causal entre a atuação e a criação ou agravamento do estado de insolvência; o n.º 3 prevê situações que integram presunção ilidível de culpa grave, no caso de incumprimento de algum desses deveres no mesmo período temporal do n.º 1, havendo que demonstrar o nexo de causalidade entre a omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
III Mostra-se preenchido o facto índice da alínea g) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, quando o gerente da empresa prosseguiu uma exploração deficitária, com prejuízos superiores a um milhão de euros, com resultados líquidos negativos de valor elevado, em proveito, pelo menos, dos seus trabalhadores enquanto pagos, bem como dos clientes da empresa que pagam preços pelos produtos que não refletem os respetivos gastos, sendo inquestionável que o acumular das dívidas, que transitam para os anos seguintes, só podia conduzir a uma situação de insolvência.
IV Sendo a situação de insolvência técnica patente, a manutenção da atividade “só” serviu para aumentar o passivo em cada ano e assim tornar o prejuízo para os credores cada vez maior, nomeadamente havendo dívidas avultadas à Segurança Social e à Autoridade Tributária, há vários anos; mostra-se por isso também violado o dever de apresentação à insolvência –cfr. art.ºs 3º (cfr. o n.º 3), 18º, n.º 3, 19º, e 20º, n.º 1, g), CIRE.
V A aprovação de PER, nomeadamente no período de três anos que releva para a qualificação da insolvência, tendo subjacente a “esperança” de reerguer a sociedade, não é argumento que permita afastar a obrigação que se lhe impunha e que se destina (também) a proteger os credores na medida do possível.
VI Igualmente não tem a virtualidade de afastar qualquer dessas verificações o facto do gerente, até determinada altura, ter pago os salários aos trabalhadores, com recurso a capitais próprios ou por si angariados, já que a sociedade existe para gerar lucro, integrando o tecido empresarial e económico de que também faz parte o próprio Estado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I RELATÓRIO.

Por sentença datada de 28/02/2023 foi declarada insolvente EMP01..., Ld.ª., na sequência do requerimento apresentado em juízo em 11/10/2022. 
Foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência por despacho datado de 31/5/2023, face ao relatório do Srº Administrador de Insolvência (AI).
O AI emitiu parecer, no sentido da insolvência ser qualificada como culposa, nos termos do art.º 186º, n.º 2, g) e n.º 3, a), CIRE, abrangendo o sócio gerente AA.
O Ministério Público aderiu ao parecer emitido pelo Administrador de Insolvência.
Foi determinado o cumprimento do disposto no art.º 188º, n.º 9, do CIRE.
Foi apresentada oposição pelo requerido AA, impugnando o circunstancialismo referido pelo AI, e pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita.

Em concreto, disse na sua peça:
“(…) 3. Porém, estranha-se a opção do Sr. A.I., na medida em que a sobredita conclusão não se mostra sustentada em matéria de facto que pudesse aconselhar tão gravoso desfecho.
4. Aliás, salvo o devido respeito, tal conclusão afigura-se precipitada, sobretudo porque parece ignorar todo o grau de incerteza, especulação e calamidade gerados, a nível mundial, pelo fenómeno pandémico que ficou conhecido para a história como “COVID 19”.
5. Sublinhe-se que, e como nota de eminente relevância, a pandemia afetou gravemente todos os agentes económicos no exato período relevante –anos 2020 a 2022 – para efeitos da qualificação da insolvência como culposa, como é público e notório.
6. Em boa verdade, não pode afirmar-se que a situação de insolvência tenha “…sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
7. É certo que a saúde financeira da Insolvente não era robusta, pelo contrário, mas também nunca chegou à situação de incumprimento generalizado a que se refere o Sr. AI.
8. Sempre que os proveitos não chegavam para cobrir todos os encargos, havia uma preocupação constante de cumprir, pelo menos, os salários dos trabalhadores, para evitar previsíveis dramas familiares.
9. A Insolvente sempre foi gerida no sentido de tentar sustentar-se à custa dos proveitos gerados pela sua própria produção, e não, como está inculcado no parecer do Sr. Administrador, à custa do incumprimento perante o Estado.
10. Pelo que, se tal nem sempre foi possível, não obstante o trabalho árduo (sangue, suor e lágrimas) do aqui visado Gerente, não deixa de ser moralmente insuportável a afirmação falsa e injusta de que “…a sociedade insolvente tem vindo a financiar a sua actividade através do não pagamento das suas obrigações junto da Segurança Social e da Fazenda Nacional”.
11. Por outro lado, a afirmação de que a apresentação pela Insolvente de três planos de recuperação “…não afasta, em momento algum, a violação do dever de se apresentar à insolvência, uma vez que tais apresentações não foram mais do que meros expedientes para continuar a incumprir com as suas obrigações…”, constitui uma ilação especulativa, um verdadeiro julgamento de intenções, sem o rigor técnico e a exigência de isenção e objetividade que sempre se espera do autor, enquanto digno Administrador de Insolvência – sublinhado nosso.
12. Aliás, o facto de ter visto três Planos aprovados, em Dezembro de 2004, Abril de 2015 e Janeiro de 2022 (ainda que referido em mera nota de rodapé), constitui, salvo melhor opinião, a prova da confiança e da convicção quer da Devedora, quer dos credores na capacidade de recuperação da ora Insolvente.
13. Com efeito, os Processos Especiais de Revitalização (PER) a que se propôs e cujos Planos viu serem aprovados constituíram para o apontado responsável culposo desta insolvência, enquanto fundador, em 1988, da empresa ora Insolvente, a “luz ao fundo do túnel” na qual foi alimentando a convicção de não deixar naufragar o projeto empresarial de toda uma vida.
14. Daí que, e desde já, não seja demais referir que o aqui Oponente só aceitou não se opor ao encerramento antecipado do estabelecimento comercial da Insolvente, por efeito de uma forte sugestão do Senhor AI nesse sentido.
15. A frieza dos números plasmados no parecer do Senhor AI, aponta para uma realidade muito dura e incontornável que nunca foi desejada pelo aqui Oponente.
16. Apesar disso, não deverá omitir-se que, no período temporal aí referido, todo o mundo atravessou e atravessa catástrofes sem precedentes em largas décadas de história, a saber a crise financeira de 2008, a pandemia COVID-19 e, atualmente (já no tempo da declaração da Insolvência), a barbaridade de uma guerra em plena Europa, com a invasão da Ucrânia pela Rússia.
17. Há, pois, que levar em consideração que qualquer um destes acontecimentos, indesejados e terríveis para a Humanidade, afetaram a Economia e as Finanças, com abrangência global, tendo ocasionado o decesso de milhares de empresas em todo o mundo – a Insolvente não conseguiu escapar de tal fatalidade !
18. Nessa medida, seria importante ter considerado também no Parecer que se analisa uma constatação feita no Relatório (art. 155.º do CIRE): “A sociedade sempre exportou todos os artigos de vestuário por si confeccionados, vendendo em exclusivo para um cliente alemão. Com o falecimento do administrador, aquela sociedade alemã encerrou as suas lojas e, consequentemente, a insolvente ficou sem o seu único cliente.
Este acontecimento deu-se por altura do primeiro Processo Especial de Revitalização, em 2014.
Desde então, a sociedade tem vindo a (tentar) reestruturar-se, no entanto, salvo melhor opinião em contrário, sem sucesso…”.
19. Detendo-se nos montantes e datação dos créditos reclamados pela “Fazenda Nacional” e pelo “Instituto de Segurança Social, IP.”, lê-se no Parecer em análise que a Insolvente é uma “inveterada incumpridora” e questiona-se, com uma admiração marcante, “como é possível chegar-se a uma situação como esta???” – o que revela que, mais uma vez, o Senhor AI parece omitir o seu dever de distanciamento emocional e manutenção da objetividade que se lhe exige na referência dos factos !
20. Mas, para o que aqui interessa e para não se perder a noção total da realidade, a resposta afigura-se simples: ao que parece, não foi o aqui visado Gerente da Insolvente o único a acreditar na possibilidade de recuperação da empresa.
21. Pelos vistos, foi “…possível chegar-se a uma situação como esta…” porque, e não se vislumbra outra explicação razoável e plausível, também o próprio Estado sempre continuou a acreditar na viabilidade económica e financeira da Empresa.
22. Doutro modo, teriam os próprios Organismos Públicos supra citados tomado a iniciativa de requerer esta insolvência e não aprovavam os planos dos PER´s.
23. A aparente envolvência emocional do Senhor AI persiste ao longo do Parecer e ilustra-se: “Não restam quaisquer dúvidas de que a sociedade insolvente violou, de forma grosseira, o dever de se apresentar à insolvência, causando com isso um prejuízo brutal para os seus credores” –sublinhados nossos.
24. Como é evidente, a adjetivação serve para acentuar a negrura do “quadro” financeiro da Insolvente, mas não constitui um dos elementos indispensáveis à elaboração do Parecer.
25. Agrava que a afirmação supra transcrita peca pela falta de rigor, salvo o devido respeito, na medida em que o montante da dívida não pode ou não deve equiparar-se ao montante do prejuízo causado aos credores, pois, como é óbvio, só a final se poderá tirar essa conclusão, sem esquecer que os juros não cessam de ser contabilizados.
26. Como se infere do douto Despacho de 31.05.2023, o incidente de qualificação da insolvência foi aberto em atenção ao teor do Relatório junto com o Sr. AI.
27. Sucede que, também esse relatório já não prima pela pertinência de algumas afirmações nele contidas, nomeadamente: “…o facto de a sociedade manter os trabalhadores vinculados, e vendendo os artigos de vestuário a um preço inferior àquele necessário para suportar os seus custos de funcionamento, originou um acumular de valores inconcebivelmente elevados relacionados com os gastos com esse pessoal”.
28. Na verdade, não se percebe o intuito da introdução deste trecho no relatório, na medida em que a Sociedade sempre colocou a sua produção aos preços praticados e concorrenciais de mercado, não se conhecendo método alternativo ao desejado escoamento do produto.
29. Também não é exata a afirmação de que “…a gerência da sociedade insolvente indicou (verbalmente) que a sociedade “EMP02...” teria adquirido todos os equipamentos (máquinas e outros) que pertenciam à sociedade insolvente”, o que só poderá ter decorrido de um lapso de comunicação, na medida em que, acontece exatamente o contrário, ou seja, a Insolvente é que utiliza uma parte das máquinas da EMP02....
30. Bem assim, tem de qualificar-se como precipitada e / ou inconsequente a asserção também contida no Relatório do Senhor AI, segundo a qual, “O signatário não se pode pronunciar quanto ao estado da contabilidade da sociedade insolvente e se a mesma reflecte (ou não) uma imagem verdadeira e apropriada da sua situação patrimonial e financeira, uma vez que não foram entregues todos documentos contabilísticos solicitados, nomeadamente o balanço e demonstração de resultados do ano de 2022 e o balancete relativo ao último mês processado de 2023”.
31. Na verdade, ao contrário do que possa sugerir tal afirmação, o Senhor AI sempre contou com toda a colaboração da Insolvente na entrega de toda a documentação contabilística disponível.
32. O Balanço, a demonstração de resultados do ano de 2022 e o Balancete relativo ao último mês processado de 2023 só lhe não foram entregues imediatamente porque, como foi explicado ao Senhor AI, a Insolvente ainda estava em prazo para os elaborar e entregar à Administração Fiscal e, portanto, ainda não tinha tal documentação totalmente disponível.
33. Do mesmo modo, é absolutamente subjetiva a afirmação, esta contida no Parecer de Qualificação da Insolvência, de que a Insolvente prosseguiu uma exploração deficitária não obstante saber ou dever saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência –requisito da qualificação da insolvência como dolosa, constante da al. g), do n.º 2, do art. 186.º do CIRE, que está longe de se ter demonstrado.
34. Pelo que, não é demais repetir que o Gerente e fundador da Empresa sempre prosseguiu com a respetiva atividade unicamente na expectativa de a conseguir recuperar e, portanto, também no interesse dos credores.
35. Expectativa essa que, como se viu e deverá repetir-se à exaustão, era manifestamente partilhada pelos próprios credores ao aprovarem os PER´s antes mencionados.
36. Também não é rigorosa nem exata a afirmação do Parecer segundo a qual, para a situação da ora Insolvente “…contribuiu a constante redução no volume de negócios que não foi acompanhado por uma semelhante redução nos custos de funcionamento, tendo-se chegado à situação em que os gastos com o pessoal são superiores ao volume de negócios…”
37. Sendo verdade em parte, não é menos verdade que a Gerência da Insolvente se empenhou em assinaláveis esforços para reduzir os custos de funcionamento, nomeadamente os gastos com o pessoal, como o demonstra o facto de, entre 2015 e 2023, ter reduzido esse ativo de 132 para 37 trabalhadores.
38. Outrossim, não pode dar-se por assente a presunção de culpa grave por incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência (art. 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE), na medida em que, como fica demonstrado, o Gerente da Insolvente não se manteve inerte perante as dificuldades financeiras da Empresa, pelo contrário, realizou notórios esforços de recuperação da mesma nomeadamente, por via dos PER´s a que a submeteu.
39. Esforços esses que, como também evidenciado, foram acompanhados e apoiados pelos próprios credores que aprovaram os planos de recuperação anteriormente mencionados, numa clara demonstração de crença na capacidade da Insolvente para se recuperar ou revitalizar.
40. Ora, a aprovação dos Planos de Recuperação nos referidos PER´s representa, inequivocamente, uma forte convicção quer da Insolvente, quer dos seus Devedores, de que a omissão de se apresentar à insolvência jamais foi havida como um risco acrescido e em nada contribuiu para criar ou agravar a situação de insolvência.
41. Acontece que, as crises ao longo das duas últimas décadas vão-se sucedendo e as causas são públicas e notórias – falência de um dos maiores bancos de investimento do mundo (...) em 2008, que arrastou todo o setor financeiro e a economia a nível global, a pandemia COVID-19, que praticamente paralisou ou colocou em suspenso uma fatia substancial do universo empresarial e laboral e, por fim, a inqualificável guerra na Ucrânia, a conjugar com o recente fenómeno inflacionário – ocorrências às quais a Insolvente, como milhares de outras empresas, não passou incólume.
42. Dadas as consequências deletérias da declaração da insolvência como culposa, a Jurisprudência tem entendido que deve a matéria de facto provada em cada caso concreto fornecer uma inequívoca demonstração do preenchimento dos requisitos exigidos pelo art.186.º do CIRE.
43. Pelas razões acima expostas, não deverá considerar-se como provada matéria de facto suficiente e justificativa da qualificação da insolvência como culposa no caso em apreço.
44. Para tal, seria ainda necessário que fosse possível estabelecer o nexo de causalidade entre o comportamento do ora Oponente e a criação ou agravamento da situação da insolvência, o que manifestamente não surge estabelecido.
(…)
47. Em face do supra exposto, deve entender-se que não fica provado ter o Oponente prosseguido uma exploração deficitária, no seu interesse pessoal ou de terceiro, não obstante saber ou dever saber que tal exploração conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
48. Aliás, resulta meridianamente claro não ter existido culpa grave do Oponente no incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência.
49. Na verdade, o percurso de graves dificuldades financeiras atravessado pela Insolvente, nunca foi de modo a apontar como absolutamente inextricável o caminho da insolvência, doutro modo não teriam qualquer explicação plausível a submissão aos PER´s e a aprovação dos respetivos Planos de Recuperação ou Revitalização.
50. Razões pelas quais deve a insolvência ser declarada como fortuita.”
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com audição do Sr. AI e do contabilista certificado da insolvente, BB.
Foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
“Face a todo o exposto, julgando procedente o presente incidente, considero afectado pela qualificação culposa da insolvência AA (art. 189º, n.º 2, al. a) do C.I.R.E), com culpa exclusiva;
Fica o mesmo inabilitado por um período de 3 (três) anos de administrar património de terceiros (art. 189º, n.º 2, al. b) do C.I.R.E.);
Fica o mesmo inibido para o exercício do comércio durante um período de 3 (três) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa (art. 189º, n.º 2, al. c) do C.I.R.E.);
Determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pela pessoa afectada pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos (art. 189º, n.º 2, al. d) do C.I.R.E.).
Condeno-o, ainda, a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património (art.º 189, n.º2, al. e) do CIRE).
Cumpra-se o disposto no art. 189º, n.º 3 do C.I.R.E.
Custas pela insolvente, fixando-se no mínimo a taxa de justiça.”
*
Inconformado, o requerido AA apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“I - A matéria de facto considerada provada é insuficiente para a conclusão de que a insolvência deve considerar-se culposa e atribuir essa culpa ao ora recorrente.
II - A matéria de facto considerada provada não comporta nem consente a conclusão de que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave do seu Administrador aqui Recorrente (art. 186.º, n.º 1, do CIRE), pelo que não é aceitável a Decisão ao julgar procedente o Incidente da Qualificação, considerando AA (Recorrente) o exclusivo culpado da insolvência.
III - Em apoio da negação da culpa grave e exclusiva do ora Recorrente estão, desde logo, os factos provados 11, 12, 13 e 15, ou seja, sintetizando: I – Quando os proveitos não chegavam para cobrir todos os encargos havia uma preocupação de cumprir, pelo menos, os salários dos trabalhadores; II – Em 2014 faleceu o administrador da sociedade alemã para a qual a insolvente exportava toda a sua confeção, em exclusivo, o que determinou o encerramento da atividade dessa empresa alemã e, consequentemente, a perda do único cliente da EMP01...; III – Entre 2015 e 2023, a insolvente reduziu o ativo de 132 para 37 trabalhadores.
IV - Há factos que, por serem públicos e notórios, a douta Sentença não deveria ter ignorado (como ignorou), designadamente as catástrofes que, ao longo das duas últimas décadas, se vão sucedendo – falência de um dos maiores bancos de investimento do mundo (...)em 2008, que arrastou todo o setor financeiro e a economia a nível global, a pandemia COVID-19, que praticamente paralisou ou colocou em suspenso uma fatia substancial do universo empresarial e laboral e a inqualificável guerra na Ucrânia, a conjugar com o recente fenómeno inflacionário –, ocorrências às quais a Insolvente, como milhares de outras empresas, não passou incólume.
V – Só por si, a pandemia COVID 19, com todo o grau de incerteza, especulação e calamidade que veio gerar a nível mundial, afetou gravemente todos os agentes económicos no período aqui relevante para aapreciaçãodaatuação (dolosa, com culpa grave ou com culpa leve) do Administrador da Insolvente, período esse que se iniciou em 2020 e se arrastou até final de 2022, o mesmo é dizer nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (art. 186.º, n.º 1, do CIRE).
VI - As dificuldades que a COVID 19 trouxe à Insolvente foram de tal ordem que, como consta da gravação do depoimento da testemunha BB, Contabilista, a Empresa, em 2020, esteve pelo menos três meses fechada e, mesmo assim, os salários dos trabalhadores foram integralmente pagos, o mesmo sucedendo no ano de 2021 em moldes semelhantes – vide depoimento prestado pela dita testemunha, em audiência de discussão e julgamento, no dia 02 de novembro de 2023, gravado na aplicação CITIUS, desde as 14:48 horas até às 15:13 horas, concretamente entre os minutos 00:14:50 a 00:16:18.
VII - Enquanto tal, por se revelar de interesse para a boa decisão da causa e estarem reunidas as condições legais previstas no art. 640.º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 2, al. a), do Cód. de Proc. Civil, e também não ter merecido qualquer tipo de controvérsia, o Recorrente pretende ver aditado à matéria de facto provada o seguinte facto:“Em 2020, a Empresa Insolvente esteve, pelo menos, três meses fechada e, mesmo assim, os salários dos trabalhadores foram integralmente pagos, o mesmo sucedendo no ano de 2021, em moldes semelhantes”.
VIII - Não está correcta a asserção sentenciada segundo a qual “a apresentação da insolvente a PER em nada contende com esta obrigação [apresentação à insolvência] e a necessidade (e expectativa) de que o gerente agisse objetivamente, com a perceção do que os números transmitiam que muito se encontrava em falência técnica”.
IX - Aliás, a apresentação a PER transmite precisamente a perceção contrária, ou seja, que apesar de os números revelarem uma situação financeira muito frágil, existia a convicção de ainda ser possível recuperar a empresa, voltando a colocá-la no trilho de normalização económica e financeira à custa da sua própria produção.
X - A não ser assim, i.e., a não ter existido uma forte crença também dos credores, mormente do credor Estado – Fazenda Nacional e Instituto da Segurança Social, IP. – na capacidade de recuperação da Insolvente, não se encontra explicação razoável para que o próprio Estado, enquanto maior credor, não tenha tomado a iniciativa de requerer a insolvência e, ao invés, como resulta do facto provado 6, ter sido aprovado um Plano de Recuperação, em Janeiro de 2022.
XI - Não resulta da prova que o Recorrente tenha prosseguido uma exploração deficitária no seu interesse pessoal ou de terceiro (art. 186.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE).
XII - Pelo contrário, BB, Contabilista, foi assertivo e convincente ao depor que, em alguns meses de 2020 e 2021, por causa da “Pandemia Covid”, a Empresa suspendeu a atividade, mas sem deixar de pagar integralmente os salários dos trabalhadores, e que tal só foi possível com recurso a capitais próprios do aqui Recorrente ou por si angariados – vide depoimento prestado pela testemunha BB, em audiência de discussão e julgamento, ....
XIII – Nessa medida, por se revelar interessante para a boa decisão da causa, estarem reunidas as condições legais previstas no art. 640.º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 2, al. a), do Cód. de Proc. Civil, e também não ter merecido qualquer tipo de controvérsia, o Recorrente pretende ver aditado à prova o seguinte facto: “Durante algunsmeses de 2020 e 2021,emconsequência da “Pandemia Covid 19”, a Empresa suspendeu a atividade sem deixar de pagar integralmente os salários dos trabalhadores, por virtude do recurso a capitais próprios do aqui Recorrente ou por si angariados”.
XIV - Assim, e ao invés do intuído na douta Sentença, o facto de o Recorrente, nos dois anos precedentes à declaração da insolvência, ter investido na Insolvente dinheiro próprio ou por si obtido para pagar ao pessoal, é claramente demonstrativo da forte convicção que tinha na capacidade de recuperação, que o animava a prosseguir com a atividade empresarial, e mais ainda:
a) evidencia que não prosseguiu com a actividade empresarial no seu interesse pessoal; bem como,
b) ao investir capital próprio nessa atividade, torna-se notório que o Recorrente não aceitava, nem acreditava na grande probabilidade de a Empresa cair na situação de insolvência.
XV - O investimento de capital próprio para cumprir obrigações da Insolvente, associado à apresentação da Empresa a um PER cujo Plano viu ser aprovado, ainda em Janeiro de 2022, ilidem a presunção de culpa grave do Recorrente no incumprido dever de requerer a declaração de insolvência (art. 186.º, n.º 3, al a), do CIRE), porquanto estas realidades constituem, incontornavelmente, indícios fortíssimos da sua (dele Administrador) total ausência de consciência quanto ao dever de requerer a declaração de insolvência.
XVI – Tudo isto sem prejuízo da constatação de que foi sempre cumprida a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, e de as submeter à devida fiscalização ou de as depositar na Conservatória do Registo Comercial (al b. do n.º 3, do art. 186.º do CIRE) – facto que a douta sentença não questiona sequer.
XVII –Ademais, a obrigação de apresentação à insolvência tem como desiderato a proteção dos credores contra o risco de diminuição do património social – vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24-05-2021, no P. 2902/15.0T8VNG.P1: ....
XVIII - Transpondo este entendimento jurisprudencial para o caso sub judicio, não pode afirmar-se que o risco de diminuição da protecção dos credores tenha sido agravado (o que, de qualquer modo, também não consta da fundamentação sentenciada), aliás é de considerar que o Recorrente, como qualquer gestor medianamente habilitado, colocado na situação em que a Insolvente se encontrava, teria a expectativa de, ultrapassada a crise provocada pela Covid 19, poder retomar o volume de negócios necessário à recuperação definitiva da Empresa.
XIX - Conforme já foi decidido por Jurisprudência Superior, “... não se pode concluir pela culpa grave quando se mostra que a insolvência resultou “de factores económicos alheios à vontade dos responsáveis”, e que a empresa deixou de ter actividade “por motivo da paralisação forçada dos trabalhos em resultado da falência da empresa com quem mantinha um contrato (…), sendo que foi em decorrência do incumprimento do contrato (...) que a sociedade (…) se viu impossibilitada, por arrastamento, de cumprir as suas obrigações de natureza financeira efiscal, levando-a a uma completa ruptura da sua capacidade económica e financeira” - Ac. da RG, de 14.06.2006, CJ, Ano XXXI, Tomo III, p. 288-290.
XX - Assim, não é possível estabelecer o necessário nexo de causalidade entre o comportamento do ora Recorrente e o agravamento da situação de insolvência, pois não está provado que o Recorrente tenha prosseguido uma exploração deficitária, no seu interesse pessoal ou de terceiro, não obstante saber ou dever saber que tal exploração conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência, não fornecendo a matéria de facto assente uma inequívoca demonstração do preenchimento dos requisitos exigidos pelo art.186º do CIRE – vide, entre outros, Acórdãos do TRP, no Proc. n.º 195/21.0T8AMT-A.P1, de 21-03-2022 e do STJ, no Proc. n.º 822/15.8T8VNGC.P2.S1, de 15-02-2023.
...
XXII - Mesmo verificado o definitivo insucesso da Empresa, tal não implica um automático juízo de culpa sobre o respectivo administrador - Ac. TRP, de 24-05-2021, no P. 2902/15.0T8VNG.P1 -, aliás decorrendo do exposto que a situação de insolvência não foi criada ou agravada em consequência de conduta dolosa ou com culpa grave do Recorrente, não se tendo provado que este prosseguiu uma exploração deficitária no seu interesse pessoal ou deterceiro, sabendoquetal exploraçãoconduziria comgrandeprobabilidade a uma situação de insolvência.
XXIII – Pelo contrário, da injeção de capital próprio, em alguns meses de 2020 e de 2021, e da aprovação de um Plano de Recuperação, ainda em janeiro de 2022, deverá concluir-se que resulta ilidida a presunção de culpa grave do Recorrente quanto ao dever de requerer a declaração de insolvência.
XXIV – Acrescentando a estes factos-indíce a sequência de factores externos ante enunciados – crise financeira e económica mundial inciada em 2008, encerramento da empresa alemã que absorvia toda a produção da Insolvente, o efeito deletério da Covid 19 a guerra na Ucrânia e a recente inflação –, todos eles contrários e prejudiciais da pretendida recuperação, torna-se evidente que, ao persistir na atividade empresarial, o Recorrente não buscou o seu proveito pessoal, mas antes o interesse social.
XXV – Admitindo alguns erros de avaliação de risco, denunciadores de uma culpa perfunctória, a insolvência sempre teria de considerar-se fortuita, decorrente, sobretudo, de contrariedades externas e estranhas à vontade do Recorrente, tornando violento o desfecho da sua qualificação como culposa.
XXVI – A douta sentença recorrida viola o disposto no artigo 186.º do CIRE.”
Pede por isso que o recurso seja julgado procedente, revogada a decisão recorrida e substituída por outra que qualifique como fortuita a insolvência com as legais consequências.
*
Não constam dos autos contra-alegações.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos, e efeito meramente devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
No despacho de admissão do recurso foi ainda proferido o seguinte: “Para efeito de recurso, fixo à causa o valor dos créditos reclamados – 8.143.559,29 euros.”
Pela relatora foi proferido despacho no sentido de ser reforçado o pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
***
II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:

- se devem ser aditados os factos indicados pelo recorrente à matéria de facto provada;
- se os factos apurados integram os pressupostos do conceito de insolvência culposa, ou seja, se está verificado o preenchimento da situação prevista no artº. 186º, nº. 2, g), do CIRE, e da situação prevista no n.º 3, a); ou se pelo contrário algum dos pressupostos está inverificado.
***
III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria (decisão que se reproduz):
“…considero provado que:
1. O presente processo de insolvência iniciou-se em 11-10-22, por requerimento de 14 dos trabalhadores da empresa.
2. Não tendo sido apresentada oposição, foi declarada a insolvência, por sentença de 28-2-23.
3. No âmbito do referido processo, a Fazenda Nacional reclamou créditos (conforme reclamação de créditos), nos termos do artigo 128º do CIRE, no valor total de Euros 1.453.640,46, relativo a, entre outros:
- Contribuições para a segurança social, relativas a Junho a Agosto e Novembro de 1994, todos os meses dos anos de 1995 e de 1996, Fevereiro a Dezembro de 1997, todos os meses do ano de 1998, Janeiro a Outubro de 1999, no valor de Euros 608.010,26 a que acrescem juros de mora no valor de Euros 653.585,62, totalizando Euros 1.261.595,88;
- IVA para períodos compreendidos entre Novembro de 2011 e Novembro de 2022, cujo capital em dívida ascende a Euros 74.239,60:
 
4. IRS (retenções na fonte) para períodos compreendidos entre Julho de 2013 e Dezembro de 2022, cujo capital em dívida ascende a Euros 12.331,08:
 
5. O “Instituto de Segurança Social, I.P.” reclamou créditos (conforme reclamação de créditos que se junta no Anexo B), nos termos do artigo 128º do CIRE, no valor total de Euros 5.741.961,94, relativo a:
a)         Contribuições no valor de Euros 4.169.301,18, relativas aos seguintes períodos:
a. Novembro a Dezembro de 1999
b. Janeiro a Dezembro de 2000
c. Janeiro a Setembro e Dezembro de 2001
d. Novembro a Dezembro de 2002
e. Janeiro a Dezembro de 2003
f. Janeiro de 2004
g. Junho de 2006, Agosto e Dezembro de 2006
h. Janeiro a Dezembro de 2007
i. Janeiro a Dezembro de 2008
j. Janeiro a Dezembro de 2009
k. Janeiro a Dezembro de 2010
l. Janeiro a Dezembro de 2011
m. Janeiro a Dezembro de 2012
n. Janeiro a Dezembro de 2013
o. Janeiro a Setembro de 2014
p. Agosto a Dezembro de 2015
q. Janeiro a Dezembro de 2016
r. Janeiro a Dezembro de 2017
s. Janeiro a Dezembro de 2018
t. Janeiro a Agosto e Outubro a Dezembro de 2019
u. Janeiro a Dezembro de 2020
v. Janeiro a Abril e Outubro a Dezembro de 2021
w. Janeiro a Dezembro de 2022
x. Janeiro a Fevereiro de 2023
b) Juros de mora, no montante de Euros 1.526.799,13,
c) Coimas e custas processuais no valor de Euros 45.861,63
6. A sociedade insolvente apresentou-se a Tribunal para aprovação de três planos de recuperação (Planos aprovados em Dezembro de 2004, Abril de 2015 e Janeiro de 2022).
7. As IES (Informação Empresarial Simplificada) dos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021 reportam o seguinte:
 
8. Entre 2018 e 2021 a sociedade insolvente obteve prejuízos no valor total de Euros 1.323.359,07.
 
9. Ao longo dos anos, a insolvente assistiu a uma constante redução no volume de negócios, tendo-se chegado à situação em que os gastos com o pessoal são superiores ao volume de negócios (para os exercícios de 2020 e 2021):
 
10. Subtraindo ao volume de negócios (Vendas e serviços prestados) os custos com as mercadorias vendidas e matérias consumidas (CMV e MC) utilizados na obtenção desse mesmo volume de negócios, e o compararmos com os gastos com o pessoal, conclui-se que a actividade da sociedade não chegava sequer para pagar estes:
Da contestação
11. Sempre que os proveitos não chegavam para cobrir todos os encargos, havia uma preocupação constante de cumprir, pelo menos, os salários dos trabalhadores, para evitar previsíveis dramas familiares.
12. Com o falecimento do administrador da sociedade alemã, para onde a insolvente sempre exportou todos os artigos de vestuário por si confeccionados, em exclusivo, aquela encerrou as suas lojas e, consequentemente, a insolvente ficou sem o seu único cliente.
13. Este acontecimento deu-se por altura do primeiro Processo Especial de Revitalização, em 2014.
14. O Senhor AI sempre contou com toda a colaboração da Insolvente na entrega de toda a documentação contabilística disponível.
15. Entre 2015 e 2023, reduziu o ativo de 132 para 37 trabalhadores.
***
IV MÉRITO DO RECURSO.

O recorrente pretende aditar factos à matéria de facto elencada pelo Tribunal recorrido e que fundamentou a sua decisão. E com essa nova realidade, associada à factualidade já elencada, pretende reverter o sentido da decisão.

Concretamente pretende se adite:
Em 2020, a Empresa Insolvente esteve, pelo menos, três meses fechada e, mesmo assim, os salários dos trabalhadores foram integralmente pagos, o mesmo sucedendo no ano de 2021, em moldes semelhantes”.;
e
Durante algunsmeses de 2020 e 2021,emconsequência da “Pandemia Covid 19”, a Empresa suspendeu a atividade sem deixar de pagar integralmente os salários dos trabalhadores, por virtude do recurso a capitais próprios do aqui Recorrente ou por si angariados”.
Baseia a sua pretensão no depoimento da testemunha BB, localizando na gravação do depoimento os respetivos trechos.
De facto, em primeiro lugar cabe dizer que a parte que pugna pela introdução de novos factos tem de cumprir os ónus previstos no artº. 640º do C.P.C., adaptado a esse desiderato; ou seja, tem de indicar quais os factos a aditar, e em que meios de prova se sustenta.
Porém, o reconhecimento de um alegado vício de deficiência de factos, tratando-se de uma “patologia” da decisão, pode ser aferida oficiosamente.
Um dos objetivos do recurso, nomeadamente em sede de impugnação da matéria de facto, é a apreciação de patologias que a decisão da matéria de facto enferma, que se traduzam em segmentos total ou parcialmente deficientes, obscuros ou contraditórios (art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC). Diz António Santos Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., pags. 291 e 292) que a decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, podendo – e devendo – algumas delas ser solucionadas de imediato pela Relação, ao passo que outras poderão determinar a anulação total ou parcial do julgamento.
O Tribunal da Relação, mesmo não tendo havido impugnação da matéria de facto por parte do recorrente, no âmbito dos seus poderes pode ampliar a matéria de facto omitida, conforme resulta do disposto no artº. 662º, nº. 2, c), C.P.C., sanando a patologia de que padeça a decisão da matéria de facto; e fá-lo introduzindo as modificações oportunas, sem necessidade de anulação do julgamento, desde que tenha acessíveis os meios de prova relevantes para o efeito (António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos…”, pags. 294 e 295 da 4ª edição).
Mas terá de se tratar de factos oportunamente alegados, ou, sendo instrumentais, complementares ou concretizadores, que tenham resultado da instrução da causa e que sobre os mesmos tenha incidido contraditório. Além disso o juiz pode ainda ter em consideração os factos notórios ou de que tenha conhecimento em virtude da sua função, tudo conforme resulta do art.º 5º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C..
Dizem Lopes do Rego (“Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., págs. 252 e253), Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (“Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 40) que factos essenciais são os que concretizando, especificando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor ou do reconvinte, ou a exceção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, se revelam imprescindíveis para a procedência da ação, da reconvenção ou da exceção; factos instrumentais são os que se destinam a realizar prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa.
Paulo Pimenta (“Processo Civil Declarativo”, 2ª ed., pág. 22) diz que “…os factos complementares e os concretizadores, embora também integrem a causa de pedir ou a exceção, não têm a função individualizadora, pelo que a omissão da respetiva alegação não é passível de gerar ineptidão da petição inicial (ou nulidade da exceção), ao que acresce a (…) circunstância de não haver preclusões quanto a factos desta natureza. Assim, os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir (ou de uma exceção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma exceção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo essencial, outros complementando aquele”.
Um outro requisito se exige: que os factos pretendidos aditar tenham relevância para a decisão da causa, segundo as possíveis soluções jurídicas. De facto, o disposto no artº. 130º do C.P.C. que proíbe a realização de atos inúteis tem também como campo de aplicação esta atividade decisória.
Quanto ao art.º 640º, o recorrente deu-lhe cumprimento, como resulta do supra destacado.
Quanto à alegação dos factos em questão, lida a sua oposição, o recorrente não os fez dela constar.
Ouvido o depoimento da testemunha BB, é verdade que fez essas referências, de forma mais ou menos concreta, acrescentando que esses recebimentos eram “aos bocados” e não eram sempre “a horas”; o recurso a capitais próprios foi referido na base da suposição. Se essa menção basta, é outra questão que já se prende com o mérito da impugnação.
Relativamente à audiência contraditória, cremos que ela fica assegurada, no caso dos factos instrumentais, com a possibilidade que a parte contrária tem de contra-interrogar a testemunha a propósito dos mesmos. Já relativamente aos factos complementares e concretizadores, havendo quem defenda que se exige que a parte que deles se quer “aproveitar” o declare e a parte contrária se possa pronunciar, também há quem entenda que “V – Deve entender-se que a parte teve oportunidade de se pronunciar sobre um facto se o mesmo foi alvo de discussão em audiência de julgamento, tendo sido sobre ele inquirida testemunha, sob instância dos mandatários de ambas as partes.” –Ac. da Rel. do Porto de 23/11/2021, processo n.º 8994/19.6T8VNG.P1, www.dgsi.pt (como todos os que se citarão sem outra indicação).
O recorrente alegou no artigo 8º da sua oposição que “Sempre que os proveitos não chegavam para cobrir todos os encargos, havia uma preocupação constante de cumprir, pelo menos, os salários dos trabalhadores, para evitar previsíveis dramas familiares.”. O Tribunal a quo levou esse facto à matéria provada.
Nessa medida podemos dizer que estamos perante factos complementares ou concretizadores, dos facos essenciais oportunamente alegados.
Com a sua versão apresentada na oposição, a parte pretende carrear matéria de exceção, não se ficando pela mera impugnação da matéria aventada pelo AI.
Coisa diversa é se colhe, ou se tem pelo menos a virtualidade de afastar a atribuição do caráter culposo da insolvência.
Ora, voltando à possibilidade de os introduzir, caso houvesse algum obstáculo (como dito, a entender que seria necessário constar dos autos a declaração do recorrente de deles se aproveitar), ainda assim, em sede de incidente de qualificação de insolvência temos de ter presente o disposto no art.º 11º do CIRE que permite ao juiz a consideração de factos não alegados pelas partes. Desse modo, e porque não obstante os mesmos surgiram em audiência com possibilidade de inquirição contraditória, esse dispositivo permitiria a sua consideração, consagrando o princípio do inquisitório –se o pode fazer mesmos quanto a factos não alegados, muito mais o poderá fazer quanto a factos “mal” alegados.
Todavia, os factos em causa sempre seriam por si só absolutamente inócuos para a decisão da causa, precisamente porque não se trata de matéria suscetível de pôr em causa a verificação da ação, a ilicitude, o nexo de causalidade ou a culpa (no caso do n.º 3, a), do art.º 186º, já que como veremos no n.º 2 as presunções de nexo e culpa são inilidíveis) do recorrente.
A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência –diz-nos o n.º 1 do art.º 186º do CIRE.
Quanto à dita g) o que refere é que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência; quanto à a) do n.º 3, presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.
Ora, a manutenção do pagamento dos salários, no quadro fatual descrito relativo à situação da insolvente, salvo o devido respeito e abstraindo de qualquer juízo que não seja meramente jurídico, não releva.
Desenvolveremos esta matéria mais à frente.
Por último, ainda que nenhum desses entraves se verificasse, sendo seu único sustento probatório as declarações da testemunha, que se socorreu apenas da sua memória e em alguns pontos já com algumas reservas, e se prejuízo da sua clareza e isenção destacadas pelo Tribunal recorrido, não se verifica um juízo de probabilidade suficiente (elevado) em que possam assentar os factos, para que se deem como provados.
Pelo exposto, rejeita-se a pretensão do recorrente de introduzir a mesma no elenco de factos a considerar.
*
Debruçamo-nos agora sobre o direito aplicável, desde logo para dar consistência à afirmação da irrelevância dos factos pretendidos aditar, e para se constatar que, com ou sem a sua consideração, a decisão proferida deve manter-se.
E deixamos aqui nota introdutória da matéria relativa ao incidente de qualificação da insolvência já por nós (relatora) antes desenvolvido noutros processos -cfr. entre outros, os acórdãos proferidos nos processos 5474/17.8T8VNF-B.G1, 5518/19.9T8GMR-B.G1, 3371/21.1T8VNF-B.G1, e 5452/22.5T8GMR-A.G1, e atendendo já às alterações introduzidas no regime pela Lei nº. 9/2022 de 11/1.
O incidente de qualificação da insolvência que, como resulta do artº. 185º, do CIRE, pode ser qualificada como culposa ou fortuita, seguindo-se nesta matéria o Ac. desta Relação de 5/3/2020 (relatora Rosália Cunha, e do qual a relatora deste foi 1ª adjunta).
Este incidente constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e, consequentemente, se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor (Ac. da Rel. do Porto de 23/4/2018, processo n.º 523/15.7T8AMT-A.P1).
O artº. 186º do CIRE define os casos de insolvência culposa, pelo que a noção de insolvência fortuita vai resultar por exclusão de partes: é fortuita a insolvência que não se possa qualificar como culposa à luz dos critérios definidos no artº. 186º, do CIRE.
Resulta do nº. 1 do artigo a definição de insolvência culposa (que se aplica quer à pessoa coletiva, quer à pessoa singular); os seus requisitos – cumulativos - são:
1) o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
2) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);
3) e o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
Nas alíneas a) a i), do seu nº. 2, tipificam-se taxativamente um conjunto de situações que quando se verifiquem integram uma presunção iuris et de iure (absolutas) de que a insolvência é culposa. Aplicam-se a pessoas singulares, na hipótese ou situação do nº. 4.
Conforme se disse no Ac. desta Relação de 5/3/2020 (já citado) “Bem se compreende que assim seja pois aí se elenca uma série de comportamentos que afetam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, justificando-se, por isso, que se estabeleça uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa quando tais comportamentos se verifiquem.”
Significa isto que, uma vez demonstrado o facto nelas enunciado, fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. Destarte, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do sobredito art. 186º conduz inexoravelmente à atribuição de carácter culposo à insolvência, ou seja, à qualificação de insolvência como culposa - Acs. da Rel. de Guimarães de 29/6/2010, de 1/6/2017, e de 5/3/2020, www.dgsi.pt. Como se diz no segundo acórdão citado “Esta previsão legislativa emerge da circunstância de a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, se revelar muitas vezes extraordinariamente difícil. Assim, e em ordem a possibilitar essa qualificação, o legislador consagrou um conjunto tipificado (e taxativo) de factos graves e de situações que exigem uma ponderação casuística, temporalmente balizadas pelo período correspondente aos três anos anteriores à entrada em juízo do processo de insolvência. Neste âmbito temporal, e perante a prova dos aludidos factos índice, previstos no nº 2 do citado art. 186º, a lei não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência da causalidade entre a actuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, para os fins previstos no nº 1 do art. 186º do CIRE.”. No mesmo sentido, Ac. do STJ de 15/2/2018 (relator José Rainho).
Já no caso do nº. 3 do mesmo artigo estamos perante situações de presunção iuris tantum de culpa grave do administrador ou gerente que incumpriu algum dos deveres mencionados nas alíneas a) e b), com aplicação apenas às pessoas coletivas (salva a hipótese do nº. 4).
Estas presunções são ilidíveis mediante prova em contrário – artº. 350º, nº. 2, do C.C..
Conforme Ac. desta Relação de 29/6/2010 (relatora Rosa Tching) “Significa isto que, uma vez constatada a omissão de algum dos deveres enunciados nas ditas alíneas, a lei faz presumir a culpa grave do administrador ou gerente. Mas porque a culpa grave, assim presumida, por si só não é suficiente para qualificar a insolvência como culposa, por faltar um dos requisitos previstos no nº 1 do citado art. 186º, necessário se torna demonstrar o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. E bem se compreende, nestas situações, a necessidade de verificação deste requisito, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram. É que o administrador ou gerente pode ter atuado com culpa grave mas em nada ter contribuído para a criação ou o agravamento da situação de insolvência”.
Consagra-se aqui uma “cláusula geral aberta”, nas palavras de Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões (“Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Almedina, 2013, pág. 508); e a mesma, exige, “para a qualificação da insolvência como culposa, não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor e seus administradores mas também um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, consistente na contribuição desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência” - Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 3ª edição, Almedina, 2011, pág. 283 a 284.
São por isso e em suma requisitos cumulativos da qualificação de uma insolvência como culposa: o facto inerente à atuação, por ação ou por omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; a ilicitude desse comportamento; a culpa qualificada do seu autor (dolo ou culpa grave); e o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência – Ac desta Rel. de 1/2/2018, com exaustiva e cuidada análise da questão das presunções previstas (processo n.º 5091/16.0T8VNF-B.G1). Veja-se ainda, mais recente, sobre igual tema, o Ac. desta Relação de 9/7/2020 (processo n.º 2622/19.7T8VNF-B.G1).
A introdução da expressão “unicamente” no nº. 3 do artº. 186º, alteração operada pela lei referida, veio consagrar a posição de que demos nota e que já perfilhávamos, de que “apenas” se presume a culpa grave, mas não o nexo causal (ou a “insolvência culposa”), pelo que a alteração legislativa neste item não interfere com a nossa decisão – cfr. Ac. da Rel. de Coimbra, de 14/6/2022 (processo n.º 4114/19.5T8LRA-C.C1).
*
Isto posto, e aplicando ao caso, em causa está a verificação das causas previstas nas alíneas g) do n.º 2, e a) do n.º 3 do art.º 186º, CIRE, resultando efetivamente tratar-se de lapso a menção que se faz na sentença recorrida à alínea i), do n.º 2, situação que não se cogitou nos autos.
Na alínea g) do n.º 2 prevê-se: considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
Na alínea a) do n.º 3 prevê-se: presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.
Face à descrição da situação da insolvente, que culminou no pedido, feito por terceiro, da sua insolvência, não se vê como afastar os factos índice aí mencionados.
A insolvente vinha a acumular dívidas ao Estado, que se foram tornando cada vez mais avultadas, nomeadamente nos anos que aqui relevam (período de três anos anteriores ao pedido de insolvência ou seja, sendo o pedido de 11/10/2022, desde ../../2019); chegou ao ponto de não conseguir cobrir as suas despesas, nomeadamente com os trabalhadores ao seu serviço.
Verdade que reduziu o seu número; no entanto, ainda que fosse cumprindo essa obrigação, e ainda que com recurso a capitais do gerente ou que o mesmo conseguia arrecadar, isso nunca seria para resolver o problema de raiz, que subsistia, e que com a perda do seu maior cliente ainda se tornou mais patente.
Verdade também que, certamente fruto dessas dificuldades, a sociedade insolvente apresentou-se a Tribunal para aprovação de três planos de recuperação -planos aprovados em dezembro de 2004, abril de 2015 e janeiro de 2022.
Portanto, não terá sequer sido o encerramento da empresa, fruto das circunstâncias atinentes ao COVID, que alterou/influenciou um quadro que já era negativo.
Estamos perante um cenário de dívidas de IVA na ordem dos € 74.000,00, de IRS na ordem dos € 12.000,00, de contribuições à Segurança Social na ordem de mais de um milhão de euros, reclamados ainda pela AT, e de cerca de quatro milhões já reclamados pela entidade. Este cenário teve início em 1994.
Dúvidas não há que se prosseguiu uma exploração deficitária, com prejuízos superiores a um milhão de euros no período que qui releva, com resultados líquidos negativos de valor elevado, sendo inquestionável também que o acumular das dívidas, que transitam para os anos seguintes, só podia conduzir a uma situação de insolvência. A relação passivo/activo, o volume de negócios, tudo espelhado nos factos, dão disso clara nota. O facto de a aprovação de um PER significar a confiança dos (pelo menos de alguns,) credores, e sabendo-se que em janeiro de 2022, no período que aqui releva, foi aprovado um plano, não afasta tal cenário e não sabemos sequer o que está subjacente à aprovação.
É verdade que o PER destina-se a situações de pré-insolvência e visa a recuperação da empresa, mas esse é um juízo que respeita a cada um desses processos e que aqui não se impõe fazer. O que para aqui releva é que não logrou atingir o seu objetivo, a recuperação.
Não se pode dizer que a “esperança” de reerguer a sociedade é argumento que permita afastar a obrigação que se lhe impunha e que se destina (também) a proteger os credores na medida do possível.
Poderá questionar-se se o requisito a que respeita a alínea g) e que se reporta ao proveito próprio ou de terceiro estará verificado, e se para isso seria importante saber como se financiava a empresa para pagar aos trabalhadores, pelo menos até certo momento, já que quem requer a insolvência são trabalhadores reclamantes de salários por pagar.
E a resposta será negativa, na medida em que se o gerente mantém a atividade a funcionar será sempre em proveito, pelo menos, dos seus trabalhadores enquanto pagos, bem como dos clientes da empresa que pagam preços pelos produtos que não refletem os respetivos gastos, o que preenche o requisito.
O que não será legítimo é a manutenção de uma atividade empresarial com base no incumprimento das obrigações fiscais e contributivas e perante a Segurança Social, situação violadora do princípio da igualdade tributária, e dos deveres de todos os contribuintes/cidadãos perante o Estado.
A sociedade existe para gerar lucro, integrando o tecido empresarial e económico de que também faz parte o próprio Estado.
A situação de insolvência era por isso patente, e a manutenção da atividade “só” serviu para aumentar o passivo em cada ano e assim tornar o prejuízo para os credores cada vez maior.
Mostra-se por isso também violado o dever de apresentação à insolvência –cfr. art.ºs 3º (cfr. o n.º 3), 18º, n.º 3, 19º, e 20º, n.º 1, g), CIRE.
Melhor concretizando: quanto à alínea a) do nº. 3, estipula o artº. 18º, nº. 1, do CIRE, que o devedor deve requerer a declaração de insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la. O n.º 3 do citado artigo preceitua que quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do artº. 20º, nº. 1. Tais obrigações reconduzem-se ao incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas tributárias, de contribuições e quotizações para a Segurança Social, de dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, ou de rendas de qualquer tipo de locação. Incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva hipoteca relativamente a local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou residência.
Conforme Carvalho Fernandes e João Labareda, «Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado», Quid Iuris Editora, 2009, pag. 125, “A razão do estabelecimento do dever de apresentação do insolvente é a de propiciar, o mais rapidamente possível, a solução da situação de acordo com os parâmetros legais, na convicção de que o seu arrastamento apenas pode gerar mais inconvenientes e prejuízos”.
O artº. 3º, nº. 1, CIRE diz que “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.”
Nenhuma destas situações era ou podia ser do desconhecimento do seu gerente, nem tal foi alegado.
Não há por isso que escamotear que a situação de insolvência técnica (passivo superior ao ativo, de que dão consta os dados do IES desde 2018) se reporta a momento anterior ao período de três anos aqui em causa (final do exercício de 2018), sendo notório o agravamento dessa mesma situação da insolvência (no final do exercício de 2021 o seu capital próprio negativo era superior a 1,25 milhões de Euros) –cfr. artºs. 3ºº, nº. 1, 20, nº. 1, g) i. e ii. e 18º, nº. 3, CIRE.
Reitera-se por isso que verificados os factos índice de ambas as alíneas do art.º 186º cogitadas, presumindo-se de modo inilidível o nexo de causalidade com a criação/agravamento da situação de insolvência, e a culpa do seu administrador/gerente, no caso da alínea g) do n.º 2, e a culpa no caso da alínea a) do n.º 3, resultando ainda neste caso apurado o nexo com o agravamento da situação e não resultando afastada a presunção de culpa (acrescentando-se ainda que uma eventual manutenção do pagamento de salários em determinado contexto circunstancial e temporal não teria a virtualidade de afastar qualquer desses pressupostos), é indubitável a atribuição de caráter culposo à insolvência.
Dada a similitude, deixamos aqui nota do Ac. desta Rel. de 31/3/2022 (processo nºº. 6156/20.9T8GMR-B.G1), assim sumariado no que tem pertinência: “3- Para o preenchimento da presunção inilidível de insolvência culposa da al. g), do n.º 2 do art. 186º do CIRE, é necessário o preenchimento dos seguintes pressupostos cumulativos que: a) o administrador, de direito ou de facto, da pessoa coletiva devedora, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, levou a cabo uma gestão deficitária dessa pessoa coletiva; b) essa gestão deficitária foi por ele levada a cabo em benefício próprio ou de terceiro; e c) aquele administrador tem consciência, ou tem obrigação de ter consciência, que essa sua conduta (a gestão deficitária/ruinosa da sociedade), de acordo com o normal fluir das coisas, por referência ao padrão de conhecimento e de diligência de um administrador medianamente diligente e criterioso, que se encontrasse na concreta situação em que se encontrava quando levou a cabo a descrita gestão deficitária/ruinosa da sociedade devedora, com grande probabilidade levaria à situação de insolvência ou ao agravamento da situação de insolvência em que esta já se encontrava.
4- Estando apurado que, desde o exercício anterior a 2016, a sociedade devedora estava numa situação de insolvência técnica; que o valor dos capitais negativos dessa sociedade se agravaram significativamente nos exercícios subsequentes; que esta desde, pelo menos, 29/05/2015 e 31/12/2020 se dedicava exclusivamente ao fornecimento de mão de obra a uma outra sociedade; que esta sociedade pagava à sociedade devedora, como contrapartida da mão de obra fornecida, um preço inferior ao custo que a própria sociedade devedora tinha de suportar com esses trabalhadores; que essa situação levou a que a sociedade devedora não tivesse capacidade para honrar os seus compromissos, em especial, junto da Segurança Social e da Fazenda Nacional, cujas contribuições e impostos, com exceção em alguns meses, não pagava; e que a soma do capital das contribuições em dívida para a segurança social e de retenções na fonte de IRS e IVA não liquidados pela sociedade devedora ascende a mais de um milhão de euros, encontra-se preenchida a presunção inilidível de insolvência culposa da al. g), do n.º 2 do art. 186º do CIRE.
5- E também se encontra preenchida a presunção de culpa grave da al. a), do n.º 3 do art. 186º e, bem assim, feita a prova do indispensável nexo causal entre o comportamento omissivo do gerente da sociedade devedora e a criação (ou o agravamento) da situação de insolvência dessa sociedade, posto que, ao não apresentá-la à insolvência, conforme era sua obrigação legal fazer, e ao prosseguir com a descrita gestão ruinosa da sociedade em benefício da sociedade terceira, o gerente levou ao acumular de contribuições e de impostos em dívida da sociedade devedora para com a Segurança Social e a Autoridade Tributária, com a consequente criação do estado de insolvência desta, ou o agravamento da situação de insolvência em que a mesma já se encontrava quando assumiu a gerência desta.
*
Nada mais foi questionado no presente recurso, nomeadamente no que respeita às sanções aplicadas ao recorrente. Assim sendo, nada mais cumpre apreciar.
Resta-nos por isso manifestar a nossa concordância com o decidido, e por isso pela improcedência do recurso de apelação.
*
Dispõe o art.º 527º do C.P.C. a regra geral em matéria de custas segunda a qual a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, o que significa que as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo; acrescenta e esclarece o n.º 2 que entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
Já o art.º 1º do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-lei n.º 34/2008 de 26/2 (R.C.P.) dispõe que “1 - Todos os processos estão sujeitos a custas, nos termos fixados pelo presente Regulamento. 2 - Para efeitos do presente Regulamento, considera-se como processo autónomo cada acção, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso, corram ou não por apenso, desde que o mesmo possa dar origem a uma tributação própria.”
Os art.ºs 529º, n.ºs 1 e 4, e 533º, C.P.C., tratam da responsabilidade pelas custas de parte, definindo-as, e a sua distribuição assenta no critério da repartição de custas e nos conceitos de parte vencida e vencedora, e decaimento.
Por sua vez o art.º 3º do RCP dispõe no seu n.º 1 que as custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte.
O art.º 6º do R.C.P., conjugado com o C.P.C. (art.ºs 529º, n.º 2, e 530º) dão-nos a noção de taxa de justiça, obrigando ao seu pagamento (e restringindo à parte que nos interessa tratar) à parte que demande na qualidade de A./requerente ou R./requerido, recorrente ou recorrido; está portanto o seu pagamento ligado diretamente à atividade processual que a parte pretende desenvolver no processo, como contrapartida relativa ao serviço “justiça”. Portanto, o seu pagamento ao longo do processo e de acordo com a respetiva etapa nada tem que ver com os conceitos de vencimento ou decaimento.
Nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 6º, n.º 1, do R.C.P. e 529º, n.º 2, do C.P.C., como critérios de ponderação na fixação do montante da taxa de justiça atende-se ao valor e à complexidade da causa.
No seu n.º 7 o art.º 6º do R.C.P. dispõe que nas causas de valor superior a € 275.000,00, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final (conforme se prevê na tabela I, parte final, para além dos € 275.000,00 do valor da ação, ao valor da taxa de justiça acresce, a final, por cada € 25.000,00 ou fracção, 3 UC, no caso da col. A, 1,5 UC, no caso da col. B, e 4,5 UC, no caso da col. C), salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.
A regra é pois o seu pagamento, a exceção a dispensa de pagamento devidamente fundamentada.
Com a publicação do Ac. do STJ de fixação de jurisprudência n.º 1/2022, de 03-01, ficou dirimida a questão relativa ao momento até ao qual podia ser pedida a sua dispensa de pagamento (ou redução), quando oficiosamente ela não tem lugar; diz-se no Ac. que “A preclusão do direito de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, a que se reporta o n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, tem lugar com o trânsito em julgado da decisão final do processo.”
Realce então para a atividade oficiosa do Tribunal que se trata de um poder dever.
A propósito do momento e competência do tribunal superior para decidir da dispensa ou redução relativamente a toda a tramitação que antecede a decisão aí proferida, ou só no que respeita ao processado no respetivo grau de jurisdição, mantém-se divergência jurisprudencial de que dão nota os Ac. do STJ de 29/3/2022 (relator Jorge Arcanjo, com duas declarações de voto), e na decisão singular de 20/12/2021 (relator Cons. Abrantes Geraldes).
Visa-se “estabelecer mecanismos de correção de eventuais efeitos decorrentes da aplicação da regra da proporcionalidade entre o valor da causa e o valor da taxa de justiça, tendo em consideração os princípios da proporcionalidade, da igualdade e o direito ao acesso aos tribunais (artigos 18º, nº2, 13º e 20º, todos da Constituição da República Portuguesa), porquanto, em algumas das situações, não havia qualquer correspondência ou justificação entre a utilização da máquina judiciária e os valores finais que as partes tinham de suportar” Ac. STJ, de 24/10/2019 (relator Pedro Lima Gonçalves, www.dgsi.pt). De facto, vários Acs. do Tribunal Constitucional vinham-se debruçando sobre a matéria.
Desenvolvendo os critérios legais relativos à determinação do seu montante e também válidos para a dispensa de pagamento ou redução do remanescente, e mais uma vez com apelo à jurisprudência, convoca-se outro importante fator: a conduta processual das partes.
O art.º 530º, n.º 7, do C.P.C., caracteriza a especial complexidade: “7 - Para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, consideram-se de especial complexidade as ações e os procedimentos cautelares que:
a) Contenham articulados ou alegações prolixas;
b) Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; ou
c) Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas.”
Aplicando o conceito, veja-se o Ac. da Rel. de Évora de 21/11/2019 (relator Tomé de Carvalho), e o Ac. da Rel. de Lisboa de 7/6/2018 (relatora Teresa Prazeres Pais, que pode ser consultado na anotação ao artigo em causa publicado na página da PGDL), entre outros.
No primeiro sintetiza-se:” 4 – Sem ignorar o valor da causa, o factor decisivo no preenchimento do conceito de complexidade deve estar indexado aos meios humanos, técnicos, logísticos e temporais disponibilizados pelos Tribunais que se pronunciaram sobre o objecto da causa, em associação com a substância qualitativa das diferentes peças processuais presentes nos autos e com a natureza das diligências de prova produzidas em sede de julgamento
5 – Ainda assim, quando por via dessa normação abstracta o custo do acesso ao direito for notoriamente exagerado, cumpre aos Tribunais corrigir as eventuais distorções e reduzir o montante em causa à sua justa medida, promovendo uma interpretação conforme à Constituição no sentido do redimensionamento da proporcionalidade entre o serviço prestado pelo Estado e as utilidades que os utentes da Justiça retiram da actividade jurisdicional exercida pelos Tribunais.”
Quanto à conduta processual, apela-se ao cumprimento dos deveres de cooperação, de boa fé processual e de recíproca correção, impostos pelos art.ºs 7º a 9º, do C.P.C..
*
No caso foi fixado à causa, para efeitos de recurso, o valor de € 8.143.559,29 euros.
O recurso em apreço não revelou especial complexidade: foram apresentadas apenas alegações, e não contra-alegações, apenas se debateram as matérias respeitantes ao preenchimento das alíneas consideradas pelo Tribunal, tendo-se rejeitado a impugnação da matéria de facto.
De tudo o exposto decorre a forma escorreita como todo o processado recursivo se desenrolou, com todo o respeito pelos princípios supra elencados.
Relativamente à complexidade, também resulta do exposto que a peça foi elaborada com obediências às regras processuais, de forma inteligível, com o desenvolvimento que se mostrava pertinente, com referências fatuais e jurídicas definidas.
Conclui-se por isso que efetivamente, o presente recurso não justifica o pagamento do valor total em que redundaria o remanescente da taxa, por desproporcional à tramitação/atividade processual.
Dispensa-se assim o pagamento da taxa de justiça remanescente.
***
VI DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negar provimento à apelação e manter a douta decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, C.P.C.), sendo que nos termos do art.º 6º, n.º 7, do RCP, dispensa-se do pagamento da taxa de justiça remanescente relativamente ao recurso por si interposto.
*
Guimarães, 29 de fevereiro de 2024.
*
Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Gonçalo Oliveira Magalhães
2º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício