Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1964/14.2TBBCL.G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: CONTRATO DE AGÊNCIA
ABUSO DE REPRESENTAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – O juízo de probabilidade de “Pode ter sido” a que se chegou num relatório pericial relativo à assinatura do Autor, que foi impugnada por este, não obstante corresponder a um grau de probabilidade ligeiramente acima dos 50%, não permite concluir com a necessária segurança que foi o Autor que apos a sua assinatura nos mencionados documentos, na falta de qualquer outra prova que sustente que foi aquele a assinar tais documentos.

2 – No âmbito de um contrato de agência, a agente que no cumprimento das funções que lhe foram confiadas se apropriou de parte das quantias que lhe foram entregues pelo Autor, não as entregando à Ré (principal), a ilicitude desse comportamento (da agente) ocorre no âmbito das suas relações com a Ré, ou seja, no âmbito das relações internas e não no relacionamento daquela com o terceiro ora Autor.

3 – O abuso de representação só tem relevância, em princípio, no relacionamento interno, entre representante e representado, e é irrelevante no relacionamento externo, entre o representado e terceiros a não ser que estes reconheçam ou não devam desconhecer o abuso”.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Alexandra Rolim Mendes
1º Adjunto: Maria Purificação Carvalho
2º Adjunto: Maria dos Anjos Nogueira

Sumário:

1 – O juízo de probabilidade de “Pode ter sido” a que se chegou num relatório pericial relativo à assinatura do Autor, que foi impugnada por este, não obstante corresponder a um grau de probabilidade ligeiramente acima dos 50%, não permite concluir com a necessária segurança que foi o Autor que apos a sua assinatura nos mencionados documentos, na falta de qualquer outra prova que sustente que foi aquele a assinar tais documentos.
2 – No âmbito de um contrato de agência, a agente que no cumprimento das funções que lhe foram confiadas se apropriou de parte das quantias que lhe foram entregues pelo Autor, não as entregando à Ré (principal), a ilicitude desse comportamento (da agente) ocorre no âmbito das suas relações com a Ré, ou seja, no âmbito das relações internas e não no relacionamento daquela com o terceiro ora Autor.
3 – O abuso de representação só tem relevância, em princípio, no relacionamento interno, entre representante e representado, e é irrelevante no relacionamento externo, entre o representado e terceiros a não ser que estes reconheçam ou não devam desconhecer o abuso.

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório:

M. C., solteiro, maior, residente Rua …, freguesia de …, Barcelos, intentou a presente ação de processo comum contra X - COOPERATIVA NACIONAL DE HABITAÇÃO, CRL, pessoa coletiva nº. … com sede na Avenida …, em Lisboa.

Alega em síntese:
Que a Ré é uma Cooperativa Nacional de Habitação, tendo como objetivo, a satisfação das necessidades habitacionais, nomeadamente a construção de fogos, bem como, empréstimos nas condições estipuladas nas várias modalidades, designadamente a aquisição, construção, reconstrução e distrates de empréstimos bancários destinados à habitação.
Que em 30 de Abril de 2004 inscreveu-se como sócio cooperador da Ré tendo então adquirido várias posições, o que sempre fez na delegação da Ré no Porto.
Mais alega que era uma senhora de nome Maria quem exercia o cargo e funções de delegada da Ré naquela filial, e que esta filial tinha completa dependência hierárquica, financeira e administrativa da Ré.
Que entregou na delegação da Ré 55 cheques no valor global de €142.735,88 e que em 2005 quando pediu àquela Maria um extrato de conta corrente com o valor das posições que detinha, constatou que havia discrepâncias entre os valores.
Que a referida Maria admitiu ter depositado alguns dos cheques na sua própria conta ou na conta de terceiros a que tinha acesso e geria tendo-se apropriado de quantias ínsitas em alguns dos cheques emitidos pelo Autor à Ré.

Mais alega que o Presidente da Ré se comprometeu a apurar a quantia em causa e a Ré procedeu à devolução ao Autor da quantia de €95.879,36, tendo-se comprometido ainda a devolver a quantia de €46.856,52 não o tendo feito não obstante o Autor por diversas vezes lhe ter solicitado.
Alega ainda o Autor ter sofrido danos não patrimoniais.
O Autor pede seja declarada a demissão do Autor como sócio cooperante da Ré desde finais do mês de Dezembro de 2009 e em consequência a Ré condenada a proceder à devolução ao Autor do montante de €46.856,52, correspondente à quantia de que ainda se encontra desapossado a título de capital que possui na Ré e que corresponde à diferença entre o somatório dos cheques - €142.735,88 – e a quantia devolvida pela Ré ao Autor - €95.879,36, a condenação da Ré no pagamento ao Autor do montante relativo aos juros de mora vencidos desde a data em que foi comunicada a sua demissão como sócio cooperante à Ré, e que ascendem a €8.570,25 e ao pagamento ao Autor a quantia de €10.000,00, a título de danos não patrimoniais.

A Ré veio contestar invocando a exceção de incompetência territorial e dizendo em síntese que o Autor efetivamente se inscreveu como cooperador da Ré em Abril de 2004, tendo sido cooperador até Março de 2006 data em que efetuou a última cedência a outros cooperadores das posições/inscrições que detinha na Ré, tendo-se inscrito em 5 posições/inscrições com o valor total de €90.000,00.
Mais alega que a referida Maria nunca teve qualquer vínculo laboral com a Ré e nunca exerceu funções de representação, sendo apenas comissionista e que ao contrário do alegado pelo Autor, a Ré em momento algum se comprometeu a devolver ao Autor qualquer montante, e nem o Autor apresentou a sua demissão junto da Ré, sendo que quem terá reembolsado o Autor terá sido a referida Maria, desconhecendo a Ré o valor concreto que esta terá pago ao Autor pelos negócios efetuados entre ambos.

O Autor veio pronunciar-se quanto à exceção de incompetência territorial no sentido da sua improcedência uma vez que, nos termos do disposto no artigo 71º do Código de Processo Civil e do artigo 774º do Código Civil, o Autor optou pelo tribunal em que a obrigação deveria ter sido cumprida, isto é o domicílio do credor.
Procedeu-se à realização da audiência prévia tendo sido proferido despacho saneador em que, nomeadamente, se julgou improcedente a exceção invocada pela Ré.
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Foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos formulados pelo A..

Inconformado veio o Autor recorrer formulando as seguintes

Conclusões:

a) Produzida a prova o tribunal “a quo”, proferiu a sentença ora sindicada, julgando a ação totalmente improcedente e absolveu a Ré dos pedidos formulados pelo autor.
b) A impugnação da decisão matéria de facto tem por objeto, além do mais, a apreciação de segmento da prova gravada que ao caso importa.
c) Nos factos julgados não provados em 5. refere “que o autor em finais do mês de Dezembro de 2009 comunicou presencialmente ao Presidente da Ré que apresentava formalmente a sua demissão como sócio cooperador”.
d) Entendemos salvo o devido respeito que Mma Juiz “a quo” julgou incorretamente este facto.
e) Na verdade, nas suas declarações de parte em CD, faixa 20170516142935, de 28:36m a 28:59; de 34:30m a 35:10m; de 34:47m a 39:36m; e de 54:00m a 54:31m, o presidente da Ré Manuel refere inequívoca, convicta e convincentemente que em junho de 2005 o autor já não era sócio cooperador da ré.
f) Como bem resulta das declarações do seu legal representante, pelo menos desde setembro de 2005, que a recorrida deixou de reconhecer o Autor como seu sócio cooperador.
g) Assim, admitindo-se que não se tenha provado que tenha sido em Dezembro de 2009 que o autor pediu a sua demissão, sempre a Mma Juiz “a quo” deveria dar como provado que “desde, pelo menos, Setembro de 2005, a Ré já não reconhecia o Autor como seu sócio cooperador, deixando de existir qualquer ligação entre ambos”.
h) O nº 3 dos factos não provados, deveria ter sido julgado provado no sentido de ficar a constar que a Ré sabia que a prática referida em 41) dos factos provados era usual na delegação do Porto”.
i) Isto porque, por certidão judicial do processo-crime instaurado contra a delegada do Porto, Maria, junta ao processo pela Ré em 9.06.2017, incursa a respetiva sentença condenatória, já transitada, é referido em 17. dos factos aí provados que “contudo, no período de tempo a que se reportam os factos, a X recebeu, tolerando tal prática, algumas notas de remessa enviadas pela sua Delegação do Porto, da responsabilidade da delegada e ora arguida Maria, que incluíram, para além de cheques emitidos por cooperadores a favor da cooperativa, nomeadamente os pós-datados, cheques pessoais daquela arguida sacados sobre a conta bancária por si titulada, com valores correspondentes a cobranças feitas a cooperadores através da Delegação do Porto, mediante cheques para o efeito por eles emitidos”.
j) E em 21. dos factos provados que: “Os únicos carimbos genuínos e autênticos, aos quais ambas as arguidas nunca tiveram acesso, e que só podiam ser utilizados por quem detivesse os necessários poderes e legais autorizações, encontravam-se na sede da assistente em Lisboa”.
l) E nesse mesmo aresto em 22. dos factos provados que: “Porém, nas notas de remessa enviadas pela Delegação do Porto para a X, bem como nos envelopes onde as mesmas seguiam, encontrava-se aposto o carimbo que a arguida Maria mandou fazer e que tinha os dizeres “X” e a morada das instalações da Delegação do Porto.”
m) Do exposto se infere que os atropelos à boa prática que se impunha à delegada da Ré no Porto eram do seu conhecimento, por si tolerados e com tal conduta se foram conformando, menosprezando ou abdicando do seu dever de fiscalização e vigilância, pelo que deveria ter sido JULGADO PROVADO “que a Ré sabia que a prática referida em 41) dos factos provados era usual na Delegação do Porto”.
n) Os factos julgados provados em 56º), 57º), 58º), 59º), 60º), 61º), 62º), 63º) e 64º), da douta sentença recorrida, não deviam, em nosso modesto entendimento, ser julgados provados, porquanto a sua fundamentação assenta em alguma contradição e ambiguidade.
o) A motivação/fundamentação que a Mma Juiz “a quo” deitou mão para julgar provados aqueles factos que configuram a cedência de posições – 56), 57), 58), 59), 60), 61), 61), 62), 63) e 64) dos factos provados – assenta essencialmente na perícia à assinatura dos respetivos documentos de cedência, que o autor/recorrente negou.
p) Dispõe o art. 374º, nº 2 do Código Civil que se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da assinatura incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade.
q) Na perícia realizada concluíram os senhores peritos que as assinaturas contidas nos documentos que sustentaram a cedência de posições a que aludem pontos 56), a 64º, dos factos provados – podem tem sido produzidas pelo punho do autor - encerra o mais reduzido nível de probabilidade.
r) Ao nível mais reduzido de probabilidade acresce a advertência dos senhores peritos incursa nos relatórios quando referem que: “Este exame apresenta muitas dificuldades pelo facto de os documentos contestados não serem originais, mas sim fotocópias, devendo um exame de escrita fazer-se, preferencialmente sobre documentos originais, uma vez que muitas das características observáveis em escritas originais não o são em fotocópias.

Acrescentam, ainda, os senhores peritos:

“Salienta-se, ainda, que este exame comparativo só pode fazer-se tendo em conta, unicamente, características de forma das letras e não da génese das mesmas, sendo estas características de génese as determinantes para a identificação de uma escrita”.
s) Para se fazer um correto e conclusivo exame pericial à letra da recorrida foi notificada para juntar os originais das cedências em discussão, o que nunca fez, alegando não os ter em sua posse, o que não deixa de ser estranho.
t) Face às circunstâncias, requereu o recorrente em sede de audiência de julgamento que em abono da verdade material fossem chamados a depor os pretensos adquirentes das posições/direitos identificados nos documentos dos autos juntos sob os nºs 24 a 30, propósito que foi indeferido pela Mma Juiz “a quo”.
u) Estas observações altamente limitatórias da ação dos senhores peritos acrescem os factos assentes no 45) dos factos provados na sentença no processo-crime a que alude o 39º) dos factos provados na sentença recorrida e cuja certidão judicial foi junta pela ré, manifestamente se apreende o deficit de credibilidade da conclusão pericial.
v) Quanto à conformidade às regras da experiência comum que refutamos, em 37º) dos factos provados consta que “em cumprimento do acordo celebrado entre autor e a referida Maria esta procedeu à devolução ao autor entre Maio de 2005 e Setembro de 2007 da quantia global de 97.000,00€.”
w) As alegadas cedências de direitos/posições pelo recorrente configuradas nos docs. 24, 25, 25, 27, 28, 29 e 30, reportam-se ao ano de 2005.
x) Atenta a prática criminosa da autoria daquela delegada da Ré, Maria, abundantemente expendida na certidão judicial do processo-crime e particularmente o ponto 45) dos factos provados da sentença proferida nesse processo, é certo que dos €97.000,00 entregues – 37º) dos factos provados na sentença recorrida - parte era resultado da cedência daquelas posições abusivamente forjadas pela referida Maria.
y) Quanto a estas cedências, apreciando a prova produzida e gravada em declarações de parte do representante da recorrida na faixa 20170516142935, de 56:50m a 58:34m, refere que não tem nenhum documento que comprove o pagamento dessas posições, o que é estranho, porquanto não é normal que a recorrida não tenha na sua posse documentos que comprovem o pagamento das posições a que aludem de 16º a 27º dos factos provados na sentença recorrida, e os cheques que lhe foram entregues, foram emitidos à sua ordem, inexistindo qualquer cheque a favor de terceiro, mormente de pretensos cedentes.
z) Quanto a esta matéria – cedência de posições/direitos do recorrente materializada nos factos 56º a 64º provados - na inquirição da testemunha Maria, delegada da recorrida no Porto, em prova produzida gravada em faixa 20170705141410 em 13:13m a 14:38m; em 18:29m a 19:35m; em 20:10m a 20:27m; de 27:58m a 30:38m; em 30:50m a 33:30m; em 42:45m; e de 49:35m a 53:00m, responde que não se recorda das cedências, nem se recordava de o Sr. M. C. lá ter ido assinar, e confrontada com o facto de o doc. 12, junto à contestação onde identifica o autor como adquirente de posições/direitos e não consta o nome do cedente, ela declara que não sabe e que não tem qualquer explicação para o facto.
aa) Atento o expendido entendemos salvo o devido respeito, que não deveriam ser julgados provados os factos ínsitos nos pontos 56), 57). 58), 59), 60),
61), 62), 63) e 64), da douta sentença recorrida.
ab) Existe contradição entre 9º), 16º), 17º), 18º), 19º), 20º), 21º), 22º), 23º),
24º), 25º), 28º), 30º), 31º), 32º), 56º), 57º), 58º), 59º), 60º), 61º), 62º), 63º), 64º) dos factos provados, e os 10.º), 11º), 65º) dos factos provados.
ac) O tribunal deu como provado que as Facto 10º), 11º) e 65º) da douta sentença que as posições/inscrições também podem ser cedidas a outros cooperadores, sendo entre as partes fixado e estipulado o valor e o pagamento da cedência, não intervindo a Ré nesse negócio e que a Ré toma conhecimento da vontade dos intervenientes na transação através de impressos próprios para o efeito, faz as alterações de titularidade das posições/inscrições e cobra uma taxa de cedência, não intervindo a Ré nesse negócio.
ad) Assim, decorrendo toda a negociação e respetivo pagamento dessas posições entre cedente e adquirente, tais factos estão em contradição e são causa de ambiguidade, além do mais, com os factos provados de 16º) a 27º), 30º), 31), 32), 33) e 34) porquanto os cheques foram com exceção de dois ou três emitidos à ordem da X aqui recorrida e nunca emitidos ou nominados a favor dos alegados cedentes que, de todo, o recorrente nunca conheceu ou negociou.
ae) Atento os factos provados em 10º), 11º) e 65º), da sentença recorrida, os cinquenta e quatro cheques juntos aos autos tinham que ser emitidos pelo autor/recorrente enquanto adquirente de posições a favor do cedente sem qualquer intervenção da Ré. E não foram!
af) O documento da última folha da certidão judicial junta pela recorrida em 9.06.2017, discrimina, segundo a tese defendida pela recorrida, os valores liquidados pela Maria ao recorrente, aí anunciando-se o valor em dívida €125.000,00, já liquidado €95.678,00 e, ainda, em débito €29.322,00, não sendo nesta parte sido conferido a tal documento semelhante dignidade probatória.
ag) Entende o recorrente, que face aos meios probatórios supra enunciados, os concretos pontos a considerar provados e os concretos pontos a não julgar provados, materializaram um erro na apreciação da prova e um julgamento incorreto.

A douta decisão recorrida violou, além do mais, a al. c), do nº 1, do artº 615º, do C.P.C. e artº 500º, do C. Civil.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS que doutamente VªS Exªs suprirão, será feita JUSTIÇA.

A Ré apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:

I. Alega o A., aqui Recorrente, atabalhoadamente, que o Tribunal a quo fez uma deficiente apreciação de prova produzida em julgamento, pugnando pela alteração da matéria dada como provada e não provada.
II. No entanto, a matéria de facto foi corretamente julgada, atenta a prova carreada para os autos, designadamente, os depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, em conjugação com a abundante prova documental oferecida nos autos.
III. Efetivamente, o Tribunal a quo analisou e ponderou de forma crítica e refletida toda a prova produzida no processo, designadamente, em sede de audiência de julgamento, tendo apreciado e decidido corretamente a matéria de facto em causa nestes autos, como, aliás, se infere pela decisão quanto à matéria de facto e a bem elucidativa fundamentação.
IV. Não é despiciendo lembrar que considerando os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e livre apreciação da prova, vigente no nosso Direito Processual, tem vindo a ser entendido pela jurisprudência dominante que só quando os depoimentos de testemunhas contrariam patentemente a resposta que o Tribunal de 1.ª instância deu aos quesitos, ou seja, quando haja evidente erro na apreciação da matéria factual, é que a modificação das respostas aos quesitos se justifica.
V. Por isso, quanto à análise e apreciação da prova testemunhal, atenta a sua natureza, deve proteger-se a conclusão sufragada pelo Tribunal a quo, porquanto é a única que pode levar em linha de conta a imediação e a oralidade.
VI. Sendo assim, só casos de manifesto erro na apreciação da prova, da flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto justificarão a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto.
VII. Conforme resulta da fundamentação de decisão proferida sobre a matéria de facto, o Tribunal a quo procedeu a uma análise crítica dos depoimentos prestados pelas testemunhas apresentadas pelas partes, e da prova documental oferecida nos autos, justificando por que razão e em que medida os mesmos foram atendidos ou desatendidos.
VIII. Basta analisar a prova produzida nos autos, para concluir que, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, não existem elementos de prova que justifiquem a alteração da resposta dada à matéria de facto impugnada.
IX. Por tudo o exposto, resulta evidente que o Tribunal a quo apreciou de forma crítica e ponderada toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não merecendo qualquer censura a decisão proferida sobre a matéria de facto que deve, por isso, manter-se inalterada.
X. Inalterada a decisão sobre a matéria de facto quanto a esta questão, deve manter-se inalterada a decisão de direito, com a consequente improcedência do recurso interposto pelo A., aqui Recorrente.

Nestes termos e nos demais de Direito – sempre com o douto suprimento de V. Exas. – deverá a douta sentença recorrida ser mantida, com consequente improcedência do recurso, assim se fazendo JUSTIÇA
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Questões a decidir:

- Da nulidade da sentença por violação do disposto no art. 615º, nº 1 – c) do C. P. Civil;
- Verificar se a prova produzida em audiência permite extrair as conclusões de facto expressas na sentença.
- Verificar se o direito foi bem aplicado aos factos provados.
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Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

A matéria considerada provada na 1ª instância é a seguinte:

1. A Ré é uma Cooperativa Nacional de Habitação, tendo como objetivo, a satisfação das necessidades habitacionais, nomeadamente a construção de fogos, bem como, empréstimos nas condições estipuladas nas várias modalidades, designadamente a aquisição, construção, reconstrução e distrates de empréstimos bancários destinados à habitação.
2. Nos termos do artigo 3º dos Estatutos da Ré, juntos a fls. 11 e seguintes dos presentes autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, consta que “A X” é uma cooperativa do primeiro grau que se propõe, sem fins lucrativos e através da cooperação e interajuda dos seus cooperadores, à satisfação das suas necessidades habitacionais, nomeadamente: a) A construção, a sua promoção ou a aquisição de fogos para os seus cooperadores, bem como o arrendamento de fogos aos seus cooperadores; b) Financiamentos aos seus cooperadores para construção, remodelação, aquisição ou distrate de empréstimos hipotecários de prédios ou frações autónomas destinadas à habitação; c) Aquisição de terrenos para construção; d) Aquisição de prédios ou frações autónomas para a X, com a utilização de reservas existentes e criadas para o efeito, de modo a permitir a realização do seu objeto social, incluindo a sua administração, disposição e alienação; e) Fomento e educação cooperativa dos seus cooperadores e difusão dos princípios cooperativos.”
3. A cada cooperador é atribuído um número mecanográfico único, número que se manterá inalterável e integrará todas as inscrições que detiver na X.
4. O cooperador poderá inscrever-se (artigo 21º dos referidos Estatutos da Ré e artigo 11º do regulamento Interno junto a fls. 21 e seguintes dos presentes autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido) nas modalidades “Clássica”, “Prazo Fixo” e “Construção” sendo que na modalidade “Clássica” o cooperador capitaliza o montante obrigatório e o direito é adquirido por sorteio ou então adquire as posições já com direito ao financiamento, na modalidade “Prazo fixo” o cooperador está sujeito a um prazo fixo para capitalização e adquire o direito ao financiamento ao fim de determinado prazo e na modalidade “Construção” refere-se ao direito adquirido para construções da própria Ré.
5. Na posição clássica o cooperador capitaliza o montante obrigatório através do pagamento de quotas mensais que serão acrescidas das taxas estatutárias, cujos valores são fixados por deliberação da assembleia geral
6. O capital obrigatório significa que está previamente fixado uma importância para os cooperadores liquidarem durante o período em que estão a capitalizar as posições/inscrições para depois adquirirem por sorteio ou antiguidade o direito a serem financiados.
7. No ato de inscrição na Ré independentemente da modalidade ou número de inscrições, cada cooperador paga o valor dos títulos de capital num valor mínimo de 100 euros correspondente a sua entrada de capital social e a quantia de 10 euros para os estatutos e regulamento interno bem como o pagamento de uma joia.
8. Os títulos de capital correspondem ao capital a subscrever e a realizar por cada cooperador, ou seja é capital social da cooperativa, não são objeto de capitalização nem financiamento ou investimento.
9. As posições/inscrições correspondem ao número de pedidos que cada cooperador regista que tem um valor mínimo de €5.000,00 (cinco mil euros), e poderão dar origem a financiamentos.
10. As posições/inscrições também podem ser cedidas a outros cooperadores, sendo entre as partes fixado e estipulado o valor e o pagamento da cedência, não intervindo a Ré nesse negócio.
11. A Ré toma conhecimento da vontade dos intervenientes na transação através de impressos próprios para o efeito, faz as alterações de titularidade das posições/inscrições e cobra uma taxa de cedência passando a emitir os recibos em nome do novo titular.
12. As contas e movimentos da Ré estão sujeitas a revisão oficial de contas por empresa credenciada para o efeito e o técnico oficial de contas é exterior à cooperativa tendo ainda o concelho fiscal por missão reforçar o controlo da sua contabilidade.
13. A fiscalização da atividade da Ré é exercida também pelos seus cooperadores.
14. Com a aquisição de posições/inscrições à Ré pretendia o Autor beneficiar no futuro de um financiamento para aquisição, construção ou reconstrução de imóvel, ou ceder, pelo preço que entendesse, as posições a outros cooperadores da Ré, ou a pessoas habilitadas para o serem, pagando, neste último caso, à Ré, os encargos e taxas de cedência.
15. O Autor em 30/04/2004 inscreveu-se como sócio, cooperador da Ré, na modalidade clássica, tendo sido atribuído o número de sócio …..
16. O Autor inscreveu-se em cinco posições/inscrições com o valor total de €90.000,00: posição/inscrição 70.694 com um valor de 5.000,00, posição/inscrição 70.695 com um valor de 25.000,00, posição/inscrição 70.700 com um valor de 25.000,00, posição/inscrição 70.701 com um valor de 10.000,00 e posição/inscrição 70.703 com um valor de 25.000,00.
17. Quanto à posição/inscrição 70.694 o Autor liquidou a título de quotas o valor de €1.910,50, no qual se inclui capital e taxas estatutárias.
18. Quanto à posição/inscrição 70.695 o Autor liquidou a título de quotas o valor de €9.221,80, no qual se inclui capital e taxas estatutárias.
19. Quanto à posição/inscrição 70.700 o Autor liquidou a título de quotas o valor de €8.867,80, no qual se inclui capital e taxas estatutárias.
20. Quanto à posição/inscrição 70.701 o Autor liquidou a título de quotas o valor de €3.703,60, no qual se inclui capital e taxas estatutárias.
21. Quanto à posição/inscrição 70.703 o Autor liquidou a título de quotas o valor de €8.797,00, no qual se inclui capital e taxas estatutárias.
22. E o Autor adquiriu ainda outras três posições/inscrições a outros cooperadores no valor total de €85.000,00 (oitenta e cinco mil euros): posição/inscrição 32.900 com um valor de €30.000,00, posição/inscrição 39.497 com um valor de €25.000,00 e posição/inscrição 39.701 com um valor de €30.000,00.
23. Quanto à posição/inscrição 32.900, o Autor adquiriu a José, que já tinha o valor de €804,10 (capital e taxas estatutárias) liquidado pelo cedente.
24. Quanto à posição/inscrição 39.497, o Autor adquiriu a M. F., que já tinha o valor de €2.030,74 (capital e taxas estatutárias) liquidado pelo cedente.
25. Quanto à posição/inscrição 39.701, o Autor adquiriu a Fernando, que já tinha o valor de €6.147,41 (capital e taxas estatutárias) liquidado pelo cedente.
26. O Autor liquidou no âmbito das três posições referidas em 22), após a sua aquisição, o valor global de €10.020,10, englobando quotas e taxas.
27. As referidas posições/inscrições de que o Autor foi detentor tinham um valor global de €51.503,25, sendo o valor correspondente ao encargo mensal de todas as posições de €493,40.
28. Desde que se tornou sócio cooperador da Ré, o Autor inscreveu-se e adquiriu as referidas posições sempre na delegação da Ré sita na cidade do Porto, onde também sempre efetuou todos os pagamentos.
29. Na delegação da Ré sita na cidade do Porto era uma senhora de nome Maria que exercia as funções de delegada da Ré.
30. Os referidos pagamentos foram efetuados pelo Autor através de cheques sacados sob o Banco A e entregues naquela delegação do Porto à referida Maria ou à funcionária desta de nome Fernanda.
31. O Autor entregou naquela delegação da Ré cinquenta e quatro cheques, no valor global de €142.726,88, que se destinavam à Ré para pagamento de quotas e outras despesas relacionadas com a atividade cooperante, bem como da aquisição de posições, algumas das quais “inexistentes” mas ficticiamente criadas pela referida Maria e pela sua funcionária Fernanda.
32. Todos os cheques foram depositados e o Autor estava convicto, à data, que tinha sido a Ré quem tinha procedido ao desconto bancário dos mesmos.
33. No entanto, apenas os cheques no montante global de €58.017,46 foram depositados na conta da Ré.
34. A restante quantia foi ilicitamente apropriada pela referida Maria.
35. Em data não concretamente apurada do ano de 2005, mas anterior ao mês de maio, o Autor constatou que havia discrepâncias entre os valores por si entregues e desconfiou da situação.
36. A referida Maria acabou por admitir ao Autor que havia depositado alguns dos cheques na sua conta ou em conta de terceiros mas que a mesma geria e tinha acesso, assumindo a obrigação de o ressarcir dos prejuízos causados.
37. Em cumprimento do acordo celebrado entre o Autor e a referida Maria esta procedeu à devolução ao Autor, entre Maio de 2005 e Setembro de 2007 da quantia global de €97.000,00.
38. O Autor veio a contactar a direção da Ré e a ter lugar uma reunião em finais do mês de Dezembro de 2005, na delegação do Porto, estando presentes o Autor, a delegada Maria e o Presidente da Ré.
39. A Ré veio a constatar que a situação ocorrida com o Autor se havia repetido com outros sócios cooperantes, tendo sido instaurado processo-crime, a correr termos com o nº 8662/09.7TDPRT, no DIAP do Porto, onde a Ré se constituiu assistente e são arguidas as referidas Maria e Fernanda, as quais foram condenadas por acórdão proferido em 19/01/2017, transitado em julgado quanto à parte penal, respetivamente na pena única de 6 anos e 3 meses de prisão e 3 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, conforme melhor consta da certidão junta a fls. 487 e seguintes cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
40. No Processo identificado no número anterior o Autor deduziu pedido de indemnização civil contra as arguidas Maria e Fernanda, pedindo a condenação destas no pagamento da quantia de €47.000,00 a título de danos patrimoniais e a quantia de €2.500,00 a título de danos não patrimoniais, tendo desistido do pedido.
41. Era prática corrente e usual na delegação da Ré, sita na cidade do Porto, não proceder à entrega aos sócios cooperadores do recibo emitido pela Ré ou documento comprovativo dos pagamentos efetuados.
42. Situação com a qual os sócios cooperadores não se preocupavam, como era o caso do Autor, pois pensavam que os cheques, uma vez emitidos à ordem da Ré, e entregues à respetiva delegada eram descontados em contas bancárias da cooperativa.
43. Por carta registada, enviada em 30/01/2014, junta a fls. 26 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o Autor solicitou à Ré uma cópia dos respetivos Estatutos e Regulamento Interno, solicitando, ainda, que lhe fosse prestado, por escrito, a informação de quantas posições havia adquirido na X desde o início em que se tornou sócio desta, com indicação dos respetivos números e valores bem como a indicação se haviam sido cedidas e, em caso afirmativo, a quem e por que valores.
44. Por carta datada de 05/02/2014, junta a fls. 27 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a Ré respondeu ao Autor enviando-lhe cópia dos documentos solicitados e anexando um quadro onde, segundo a mesma, constam todas as posições em que o Autor se havia inscrito ou adquirido, tendo ainda, esclarecido que este nunca as havia utilizado para financiamento e que já não detinha qualquer posição na X.
45. Por carta registada, datada de 14/02/2014, junta a fls. 28 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o Autor solicitou à Ré que lhe fosse fornecida uma fotocópia dos contratos de cedência de cada uma das posições a que se refere o “quadro exemplificativo” que fora anteriormente enviado.
46. Em resposta, a Ré por carta datada de 06/03/2014, junta a fls. 29 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, comunicou ao Autor que a cedência de posições é um negócio livre entre cedente e adquirente, sendo alheia ao preço estipulado, referindo que apenas toma conhecimento da vontade dos intervenientes do negócio através de impressos próprios para o efeito, faz as alterações de titularidade das posições e cobra uma taxa de cedência de acordo com os respetivos estatutos, e que o Autor como interveniente no negócio de cedência teria toda a documentação referente às cedências em que participou.
47. Por carta registada, datada de 10/03/2014, junta a fls. 30 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o Autor voltou a insistir junto da Ré reiterando o pedido anteriormente efetuado.
48. A Ré não respondeu à interpelação efetuada pelo Autor, o que determinou que o mesmo tivesse novamente, por carta registada, datada de 16/06/2014, junta a fls. 31 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, reiterado o pedido anteriormente efetuado.
49. O dinheiro referido em 31) era resultado do trabalho do Autor.
50. Os factos praticados pela referida Maria e sua funcionária Fernanda geraram consternação e preocupação ao Autor, que ficou desgostoso ao constatar que não retirou qualquer retorno do dinheiro que entregou na delegação do Porto, sentindo-se defraudado nas suas expectativas.
51. A referida Maria nunca teve qualquer vínculo laboral com a Ré, sendo apenas comissionista.
52. Os delegados da Ré não têm quaisquer poderes que não sejam os meramente administrativos.
53. As funções da referida Maria na qualidade de delegada consistiam em receber os valores devidos pelos membros da Ré integrados na Delegação no Porto, divulgar a atividade da Cooperativa e angariar novos cooperadores.
54. Conforme consta do Regulamento Interno da Ré, os recibos são emitidos informaticamente pela sede e enviados com um mês de antecedência para as delegações para serem entregues aos cooperadores contra o pagamento devido.
55. Assim, deveria ser obrigação da delegada após cobrar os valores devidos entregar o respetivo recibo de quitação bem como do Autor exigir o mesmo, conforme sua obrigação estatutária já que a devolução do talão de recibo serve à X para creditar o montante respetivo e assim ser possível a devida fiscalização.
56. O Autor cedeu todas as suas posições/inscrições a outros cooperadores.
57. A posição/inscrição 70.694 foi cedida na data de Fevereiro de 2005 ao cooperador J. C..
58. A posição/inscrição 70.695, na data de Março de 2005 foi cedida ao cooperador Rosa.
59. A posição/inscrição 70.700, foi cedida na data de Março de 2005 ao cooperador M. E..
60. A posição/inscrição 70.701, na data de Março de 2005 ao cooperador I. J..
61. A posição/inscrição 70.703 foi cedida na data de Março de 2005 ao cooperador M. E..
62. A posição/inscrição 32.900 foi cedida na data de Abril de 2005 ao cooperador Carlos.
63. A posição/inscrição 39.497 foi cedida na data de Abril de 2005 ao cooperador João.
64. A posição/inscrição 39.701 foi cedida na data de Junho de 2005 ao cooperador João.
65. A Ré apenas intervém na transação cobrando uma taxa de cedência e registando a posição/inscrição a favor do novo adquirente.
66. Na reunião de Dezembro de 2005 a questão da cedência de posições foi abordada.
67. As posições/inscrições que foram cedidas pelo Autor encontram-se registadas na Ré a favor dos cooperadores adquirentes, tendo todas já sido financiadas com exceção de uma posição/inscrição.
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Da arguida nulidade da sentença:

O A. argui no presente recurso a nulidade prevista no art. 615º, nº 1 – c) do C. P. Civil, dizendo que incorre em ambiguidade e contradição a fundamentação expendida na sentença recorrida.

Diz-nos o art. 615º, nº 1 – c) que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil anotado, volume V, pág. 151) refere que a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. E acrescenta que, num caso não se sabe o que o juiz quis dizer, no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos.

No caso, analisando a sentença proferida nos presentes autos, verifica-se que a mesma não é confusa ou de difícil interpretação, nem de sentido equívoco, nem mesmo a fundamentação referida pelo Recorrente.
Lendo as alegações do Recorrente verifica-se que o que se passa é que o mesmo não concorda com a fundamentação expendida na sentença recorrida quanto a alguns dos factos que aí foram considerados provados, mas tal não configura uma nulidade da sentença.
Antunes Varela (in Manuel de Processo Civil, pág. 686) explica que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”.

Ora, no caso em apreço o que o Recorrente invoca não é a oposição prevista no mencionado preceito mas sim o erro de julgamento, não se verificando pois, a nulidade invocada.
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É agora necessário verificar se a prova produzida foi bem analisada pela julgadora na 1ª instância.

Resulta do disposto no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Conforme explica Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3ª Edição, pág. 245), a Relação deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações na matéria provada e não provada. Acrescentando que, em face da redação do art. 662º do C. P. Civil, fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe a sua própria convicção, mediante reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis, apenas cedendo nos fatores da imediação e oralidade.

O Recorrente impugna os pontos 3º e 5º dos factos não provados, que têm o seguinte teor:

Facto NP 3º - Que a Ré sabia que a prática referida em 41) dos factos provados era usual na delegação do Porto.

Facto NP 5º - Que o autor em finais do mês de Dezembro de 2009 comunicou presencialmente ao Presidente da Rá que apresentava formalmente a sua demissão como sócio cooperador.

Quanto ao facto NP 3º o Recorrente entende que o mesmo deve resultar provado já que no processo-crime acima identificado, no ponto 17 dos factos provados consta que “contudo, no período de tempo a que se reportam os factos, a X recebeu, tolerando tal prática, algumas notas de remessa enviadas pela sua Delegação do Porto, da responsabilidade da delegada e ora arguida Maria, que incluíram, para além de cheques emitidos por cooperadores a favor da cooperativa, nomeadamente os prós-datados, cheques pessoais daquela arguida sacados sobre a conta bancária por si titulada, com valores correspondentes a cobranças feitas a cooperadores através da Delegação do Porto, mediante cheques para o efeito por eles emitidos”.

A oponibilidade da decisão penal no processo civil encontra-se regulada nos artigos 623º e 624º, ambos do C. P. Civil.

No caso da decisão penal condenatória, a mesma constitui em relação a terceiros presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração (art. 623º).
A decisão penal que haja condenado o arguido, (como a que está em causa no caso em apreço) transitada em julgado, constitui em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal de existência desses factos, ilidível mediante prova em contrário (art. 624º).
No caso, o facto para onde remete o mencionado ponto 3º dos factos não provados, diz o seguinte:

41) Era prática corrente e usual na delegação da Ré, sita na cidade do Porto, não proceder à entrega aos sócios cooperadores do recibo emitido pela Ré ou documento comprovativo dos pagamentos efetuados.

Vemos pois, que esta matéria não coincide com a que resultou provada na decisão penal, pois aí faz-se referência a cheques e notas de remessa e no ponto que nos interessa para os presentes autos, a referência prende-se com a emissão ou não de recibos.

Deste modo, não existe quanto a esta matéria qualquer presunção da existência da mesma.

Por outro lado, da prova produzida não resultou a demonstração de tal facto, tendo de improceder a pretensão do A. de vê-lo incluído nos factos provados.

Facto NP 5º:

O Recorrente refere que este facto se deve considerar provado ou pelo menos que “desde, pelo menos, setembro de 2005, a Ré já não reconhecia o Autor como seu sócio cooperador, deixando de existir qualquer ligação entre ambos”.

Ora, não houve qualquer prova sobre o facto em apreço. Na verdade, o facto de o Presidente da Ré ter declarado que em junho de 2005 o Autor já não era sócio cooperador da Ré não é manifestamente o mesmo que ter sido o Autor a comunicar presencialmente ao Presidente da Ré que apresentava a sua demissão como sócio cooperador. São realidades distintas. Por outro lado, o que o Presidente da Ré declarou também não significa que a Ré já não reconhecia o Autor como seu sócio cooperador, como pretende o Autor. Com efeito, o Presidente da Ré limitou-se a dizer que o Autor deixou de ser sócio cooperador por ter cedido as suas posições.
Deste modo, nada há a alterar no que respeita a este ponto da matéria de facto.

Impugna ainda o Recorrente os pontos 56º, 57º, 58º, 59º, 60º, 61º, 62º, 63º e 64º dos factos provados, matéria esta que se prende com alegadas vendas de posições/inscrições por parte do A..
O Autor impugnou as assinaturas contantes dos documentos que suportam tais transmissões, dizendo que não foi ele a assiná-las.
Estando em causa documentos particulares, a parte contra quem os mesmos sejam apresentados, neste caso o Autor, pode impugnar a veracidade das assinaturas deles constantes, cabendo à parte que os apresentou (à Ré) fazer prova da veracidade de tais assinaturas (v. art. 374º, nº 2 do C. Civil).

Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil, Anotado, vol. I, 2ª ed., pág. 307) referem: “Ao contrário do que sucede com os documentos autênticos, os documentos particulares não provam, por si sós, a genuinidade da sua (aparente) proveniência. A letra e assinatura, ou a assinatura, só se consideram, neste caso, como verdadeiras, se forem expressa ou tacitamente reconhecidas pela parte contra quem o documento é exibido ou se legal ou judicialmente forem havidas como tais. Havendo impugnação, é ao apresentante do documento que incumbe provar a autoria contestada; e terá de fazê-lo, mesmo que o impugnante tenha arguido a falsidade do texto e assinatura, ou só da assinatura”.

Nenhuma das testemunhas ouvidas em julgamento declarou ter presenciado a aposição de tais assinaturas e não houve declaração confessória do Autor.

Foi realizada prova pericial que tinha como objeto apurar se as assinaturas apostas em tais documentos pertencem ao Autor.

No respetivo relatório concluiu-se, nomeadamente, que:

1 - As assinaturas contestadas de M. C., apostas nos documentos identificados como C5 e C6 apresentam uma sobreponibilidade absoluta, pelo que se considera que o processo pelo qual foram produzidas, foi a cópia.” (sublinhado nosso).
2- Considera-se que a escrita das assinaturas contestadas de M. C., aposta nos documentos identificados de C1 a C4, pode ter sido produzida pelo seu punho.”
A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.
A perícia é um meio de prova cuja força probatória é fixada livremente pelo tribunal (arts. 607º, nº 5 do C. P. Civil e 389º do C. Civil).

Como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 16/2/06 (in www.dgsi.pt) em termos valorativos, os exames periciais configuram elementos meramente informativos, de modo que, do ponto de vista da jurisdicidade, cabe sempre ao julgador a valoração definitiva dos factos pericialmente apreciados, conjuntamente com as demais provas.

No caso, quanto aos documentos que o relatório pericial denomina de C5 e C6 e que se encontram nos autos a fls. 116 v e 117, havendo uma sobreponibilidade absoluta entre as assinaturas constantes desses documentos, temos de concluir, como concluiu a perícia, que tais assinaturas foram obtidas por meio de cópia já que é impossível que qualquer pessoa faça duas assinaturas exatamente iguais.
É certo que uma pode ser cópia da outra e portanto, uma delas pode ser genuína, no entanto, os Peritos não conseguiram verificar se alguma delas é verdadeira (v. fls. 261 dos autos, fls. 3 do relatório), existindo uma grande incerteza acerca da veracidade de tal factualismo.
Neste caso entendemos, pois, que não se pode concluir, como fez a sentença recorrida, que foi o Autor a apor a sua assinatura nesses documentos.
Impõe-se assim que se considere não provada a matéria dos pontos 63 e 64.

Quanto ao ponto 56, o mesmo terá que ser, no mínimo, alterado em conformidade com o ora decidido, contudo, uma vez que a redação final do mesmo dependerá ainda da análise da restante matéria impugnada respeitante à cedência das participações, infra nos pronunciaremos sobre esta matéria.

Quanto aos restantes documentos cuja assinatura foi impugnada, concluiu-se na perícia, que as assinaturas deles constantes “pode ter sido produzida” pelo punho de M. C..

Este juízo de probabilidade encontra-se incluído numa escala que é a seguinte:

- “Probabilidade próxima da certeza científica”;
- “Muitíssimo provável”;
- “Muito provável”;
- “Provável”;
- “Pode ter sido”;
- “Não é possível formular conclusão”;
- “Pode não ter sido”;
- “Provável não”;
- “Muito provável não”;
- “Muitíssimo provável não”;
- “Probabilidade próxima da certeza científica não”

A mencionada conclusão, não obstante corresponder a um grau de probabilidade ligeiramente acima dos 50%, deixa uma grande margem de incerteza sobre a possibilidade de as assinaturas em causa pertencerem ao Autor.

Lembremo-nos de que não foi produzida qualquer outra prova que sustente que foi o Autor a assinar tais documentos, nomeadamente e por exemplo, os depoimentos dos cooperadores que figuram em tais documentos como cessionários.

É certo que a quebra de confiança do Autor na Ré (confessada no ponto 38º da p.i.) inculca necessariamente a ideia que o Autor nada mais quer ter a ver com aquela Cooperativa e portanto faria sentido querer vender as suas posições na mesma, no entanto, só isto não é suficiente para concluir pela venda efetiva de tais posições por parte do Autor.

Acresce que, temos de ter em conta o circunstancialismo que determinou a propositura da presente ação, ou seja, a conduta ilícita de Maria e de Fernanda que, nomeadamente, e como consta do Acórdão proferido no processo-crime acima identificado “na posse desses cheques (que lhe foram entregues pelo ora Autor) em vez de os entregarem à assistente (ora Ré) e de os depositarem na conta bancária pré-definida da X – Cooperativa Nacional de Habitação, CRL” (como podiam e deviam) carimbaram os versos desses cheques com o carimbo forjado e adulterado, rubricando de seguida o selo ou timbre assim aposto, simulando desta forma, em cada título, um endosso da assistente ao portador do cheque, a fim de viabilizar o depósito em contas bancárias estranhas ou alheias à X”. Em face deste comportamento não seria estranho que qualquer das mencionadas pessoas e designadamente a Maria, que posteriormente celebrou um acordo de pagamento com o Autor e no âmbito do mesmo lhe pagou 97.000,00€, tivesse forjado as assinaturas do mesmo de modo a vender as suas participações e deste modo angariar meios para poder cumprir tal acordo.

Entendemos, pois que a prova produzida não nos permite concluir com a necessária segurança que foi o Autor que apos a sua assinatura nos mencionados documentos.

Pelo exposto, a matéria constante dos pontos 56 a 62 tem de considerar-se não provada.

Quanto ao ponto 67, por uma questão de coerência, tem de ser alterado nos seguintes termos:

67. As posições/inscrições que constam na Ré como cedidas pelo Autor encontram-se registadas na Ré a favor dos cooperadores adquirentes, tendo todas já sido financiadas com exceção de uma posição/inscrição.
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Diz o Recorrente que existe contradição entre o que se considerou provado nos pontos 9, 16º a 25º, 28º, 30 a 32º, 56º a 64º e o que ficou provado nos pontos 10º, 11º e 65º.
Quanto aos pontos 56º a 64º, em face de terem sido considerados não provados, considera-se prejudicada a apreciação da alegada contradição.

Os pontos em causa são os seguintes:

10. As posições/inscrições também podem ser cedidas a outros cooperadores, sendo entre as partes fixado e estipulado o valor e o pagamento da cedência, não intervindo a Ré nesse negócio.
11. A Ré toma conhecimento da vontade dos intervenientes na transação através de impressos próprios para o efeito, faz as alterações de titularidade das posições/inscrições e cobra uma taxa de cedência passando a emitir os recibos em nome do novo titular.
65. A Ré apenas intervém na transação cobrando uma taxa de cedência e registando a posição/inscrição a favor do novo adquirente.
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9. As posições/inscrições correspondem ao número de pedidos que cada cooperador regista que tem um valor mínimo de €5.000,00 (cinco mil euros), e poderão dar origem a financiamentos.
16. O Autor inscreveu-se em cinco posições/inscrições com o valor total de €90.000,00: posição/inscrição 70.694 com um valor de 5.000,00, posição/inscrição 70.695 com um valor de 25.000,00, posição/inscrição 70.700 com um valor de 25.000,00, posição/inscrição 70.701 com um valor de 10.000,00 e posição/inscrição 70.703 com um valor de 25.000,00.
17. Quanto à posição/inscrição 70.694 o Autor liquidou a título de quotas o valor de €1.910,50, no qual se inclui capital e taxas estatutárias.
18. Quanto à posição/inscrição 70.695 o Autor liquidou a título de quotas o valor de €9.221,80, no qual se inclui capital e taxas estatutárias.
19. Quanto à posição/inscrição 70.700 o Autor liquidou a título de quotas o valor de €8.867,80, no qual se inclui capital e taxas estatutárias.
20. Quanto à posição/inscrição 70.701 o Autor liquidou a título de quotas o valor de €3.703,60, no qual se inclui capital e taxas estatutárias.
21. Quanto à posição/inscrição 70.703 o Autor liquidou a título de quotas o valor de €8.797,00, no qual se inclui capital e taxas estatutárias.
22. E o Autor adquiriu ainda outras três posições/inscrições a outros cooperadores no valor total de €85.000,00 (oitenta e cinco mil euros): posição/inscrição 32.900 com um valor de €30.000,00, posição/inscrição 39.497 com um valor de €25.000,00 e posição/inscrição 39.701 com um valor de €30.000,00.
23. Quanto à posição/inscrição 32.900, o Autor adquiriu a José, que já tinha o valor de €804,10 (capital e taxas estatutárias) liquidado pelo cedente.
24. Quanto à posição/inscrição 39.497, o Autor adquiriu a M. F., que já tinha o valor de €2.030,74 (capital e taxas estatutárias) liquidado pelo cedente.
25. Quanto à posição/inscrição 39.701, o Autor adquiriu a Fernando, que já tinha o valor de €6.147,41 (capital e taxas estatutárias) liquidado pelo cedente.
28. Desde que se tornou sócio cooperador da Ré, o Autor inscreveu-se e adquiriu as referidas posições sempre na delegação da Ré sita na cidade do Porto, onde também sempre efetuou todos os pagamentos.
30. Os referidos pagamentos foram efetuados pelo Autor através de cheques sacados sob o Banco A e entregues naquela delegação do Porto à referida Maria ou à funcionária desta de nome Fernanda.
31. O Autor entregou naquela delegação da Ré cinquenta e quatro cheques, no valor global de €142.726,88, que se destinavam à Ré para pagamento de quotas e outras despesas relacionadas com a atividade cooperante, bem como da aquisição de posições, algumas das quais “inexistentes” mas ficticiamente criadas pela referida Maria e pela sua funcionária Fernanda.
32. Todos os cheques foram depositados e o Autor estava convicto, à data, que tinha sido a Ré quem tinha procedido ao desconto bancário dos mesmos.

A alegada contradição tem a ver com o facto de se referir na matéria provada que a Ré não tem intervenção (direta) nas cedências de posições entre cooperadores, por um lado, e por outro que o Autor efetuou todos os pagamentos na Delegação da Ré situada no Porto (os que se relacionavam com a aquisição de posições diretamente à Ré e os que se destinavam a adquirir posições de outros cooperadores).

Vejamos:
Sem cuidar de saber se existe ou não a contradição invocada, importa referir que, como resulta do acima exposto sobre a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, este Tribunal reaprecia as provas, formando a sua própria convicção.

Nesses poderes cabe o de alterar a matéria de facto fixada quando tal se justifique em face do que foi alegado e da prova produzida.

Assim, no que respeita aos factos 10º, 11º e 65º, não obstante ter sido referido pelas testemunhas Ana e L. R., que trabalham para à Ré e também pelo Presidente da Ré que esta não tem qualquer intervenção na cedência de posições por parte dos cooperadores, limitando-se a cobrar uma taxa de cedência, não podemos aceitar tal versão dos factos (conveniente à Ré), nomeadamente porque a mesma é totalmente contrária à Lei, designadamente ao disposto no nº 1 do art. 23º do Código Cooperativo vigente à data dos factos (Lei 51/96 de 7 de setembro) e ao disposto no nº 1 do art. 86º da Lei 69/2015 de 31 de agosto, que referem que os títulos de capital só são transmissíveis mediante autorização da direção ou, se os estatutos da cooperativa o impuserem, da assembleia geral, sob condição de o adquirente ou o sucessor já ser cooperador ou, reunindo as condições exigidas, solicitar a sua admissão. Por outro lado, resulta ainda do art. 6º, nº 1 dos Estatutos da Ré (juntos aos autos) que a admissão dos candidatos como cooperadores depende de aceitação da respetiva direção, dependendo também de autorização do mesmo órgão as cedências (v. art. 25º) não sendo credível que a Direção da Ré se demitisse completamente de verificar se determinada pessoa cumpria ou não os requisitos que entendem necessários a assumir a posição de cooperador.

Pelo exposto, decide-se eliminar o ponto 65 da matéria de facto provada, alterar a redação do ponto 10º da matéria de facto eliminando a expressão “não intervindo a Ré nesse negócio” e dar ao ponto 11 a seguinte redação:

11. A Ré toma conhecimento da vontade dos intervenientes na transação através de impressos próprios para o efeito e, após aprovada a cedência, faz as alterações de titularidade das posições/inscrições e cobra uma taxa de cedência passando a emitir os recibos em nome do novo titular.
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Da qualificação jurídica:

É necessário apreciar se a Ré é ou não responsável pelo pagamento ao Autor das quantias por este reclamadas referentes a entregas de dinheiro que o mesmo fez a Maria a fim de adquirir posições na Cooperativa Ré.

Resulta dos factos provados que Maria era a delegada da Ré na delegação desta situada na cidade do Porto e que as funções da mesma, nessa qualidade, consistiam em receber os valores devidos pelos membros da Ré integrados na Delegação no Porto, divulgar a atividade da Cooperativa e angariar novos cooperadores.
Em face destes factos podemos qualificar como de agência (ou representação comercial) o contrato celebrado entre a Ré e a mencionada Maria.

Com efeito, como resulta do disposto no art. 1º, nº 1 do DL 178/86 de 3/07 (com as alterações introduzidas pelo DL nº 118/93 de 13/4), agência é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta de outra a celebração de contratos, de modo autónomo e estável e mediante retribuição, podendo ser-lhe atribuída certa zona ou determinado círculo de clientes.
Este contrato não depende de forma especial quanto aos seus elementos essenciais.

Carlos Lacerda Barata (in Sobre o Contrato de Agência, Almedina, pág.35) refere como elementos essenciais deste contrato os seguintes:

- a obrigação de promoção de contratos a cargo do agente;
- por conta de outrem;
- a delimitação territorial ou subjetiva da atuação do agente;
- a estabilidade do vínculo;
- a obrigação do pagamento da retribuição, a cargo do principal.

Para que o agente atue por conta e no interesse do principal, por exemplo celebrando contratos ou cobrando créditos, é necessário que o principal lhe confira por escrito os necessários poderes (v. arts. 2º, nº 1 e 3º, nº 1 do DL. 178/86).

No caso em apreço vemos que a Ré, no âmbito do contrato entre ambas celebrado, atribuiu à agente Maria Maria poderes para receber os valores devidos pelos membros da Ré integrados na Delegação no Porto, se bem que não tenha ficado demonstrada a celebração de acordo escrito nesse sentido.

No entanto, protegendo a lei o terceiro que, confiando nos poderes de representação do agente, com ele contrata, numa situação de representação aparente (v. art. 23º do DL 178/86), não deve desproteger-se o terceiro que paga ao agente desconhecendo a falta de forma da autorização respetiva.

Com efeito, conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/11/11, (in www.dgsi.pt) citando Menezes Cordeiro a propósito da representação aparente, enquanto que em situações puramente individuais, desinseridas de um contexto organizativo, se exige da pessoa que contrate com um alegado representante certas cautelas, como a prova dos seus alegados poderes, em conformidade e para os efeitos dos citados artigos 260º e 266º do C. Civil, “… se a situação for institucional - no sentido de surgir enquadrada numa organização permanente, com trabalhadores ou agentes e serviços diferenciados – a realidade sócio-cultural é diversa. Ninguém vai, num supermercado, invocar perante o empregado da caixa o artigo 266º, exigindo-lhe a justificação dos seus poderes e isso para evitar a hipótese de uma “representação” sem poderes e não seguida de ratificação (268º/1). A confiança é imediata, total e geral. Compete ao empregador/empresário manter a disciplina na empresa, assegurando-se da legitimidade dos seus colaboradores. Quando não: sibi imputet”.

Deste modo, a Ré não pode opor ao Autor a (eventual) invalidade do ato que conferiu à agente os poderes para a mesma cobrar créditos em seu nome.

De qualquer forma, “ao actuar ilicitamente, o representante age para além dos poderes de representação e os efeitos do seu ato não se projetam na esfera jurídica do representado (artº 268º nº 1 do C. Civ.)” (v. Luís Carvalho Fernandes in “Teoria Geral do Direito Civil”, Vol. I, pg. 502).

Ora, a conduta da mencionada Maria, ao ter-se apropriado das quantias que lhe foram entregues pelo Autor para aquisição de posições/inscrições, foi manifestamente ilícita (tanto que por isso a mesma foi condenada pela prática de vários crimes, conforme resulta da decisão penal junta aos autos) e alheia à vontade e interesse da Ré.
No caso, a referida Maria, ao receber do Autor os cheques que este lhe entregou para aquisições de posições/inscrições, agiu na qualidade de agente da Ré, no cumprimento das funções que por esta lhe foram confiadas. No entanto, apropriou-se de parte das mencionadas quantias, não as entregando à Ré, atuação que, obviamente, não lhe era permitida.
A ilicitude do comportamento da mencionada agente ocorre no âmbito das suas relações com a Ré, ou seja, no âmbito das relações internas e não no relacionamento daquela com o terceiro ora Autor.

Ora, como explica Pedro Pais de Vasconcelos (in Teoria Geral do Direito Civil”, 6ª ed., pág. 326) o abuso de representação só tem relevância, em princípio, no relacionamento interno, entre representante e representado, e é irrelevante no relacionamento externo, entre o representado e terceiros. Quer isto dizer que, havendo abuso de representação ou atuação representativa em desarmonia com os fins ou interesses que a regem, esta questão é interna e não ultrapassa o âmbito do relacionamento entre representante e representado. O abuso só pode ser oposto a terceiro, ou à outra parte quando este reconheça ou não deva desconhecer o abuso.

No caso, nada se provou no sentido de o abuso ser conhecido do Autor (prova que competia à Ré, nos termos do disposto no art. 342º, nº 2 do C. Civil), nem faria sentido que alguém entregasse a outrem quantias com determinado fim, sabendo que essa pessoa se iria apropriar das mesmas, pelo que a Ré ficou vinculada perante o Autor pelos atos praticados pela sua agente, podendo pois o Autor pedir à Ré a indemnização pelos danos sofridos nos termos dos preceitos acima citados, não lhe podendo opor o abuso pois o risco deste cai sobre o representado, que escolheu o representante e não controlou eficazmente a sua atuação (v. Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit. pág. 341).

Os mencionados atos não podem enquadrar-se na responsabilidade contratual por incumprimento contratual (entre a Ré e o Autor) mas sim na responsabilidade civil extracontratual objetiva da Ré (v. arts 165º e 500º, ambos do Código Civil).

A indemnização tem como medida a reconstituição da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento que obriga à reparação (art. 562º do C. Civil).

Deste modo, tendo o Autor entregado a quantia total de 142.726,88€ à agente da Ré e tendo sido ressarcido apenas na quantia de 97.000,00€ (e não 95.879,36€ como alega o Autor), estão em falta 45.726,88€, sendo este o valor que a Ré tem que entregar ao Autor a título de indemnização.

O Autor pede os juros sobre tal quantia desde 16/6/2014, data em que comunicou à Ré a sua intenção de resolver o contrato com a mesma celebrado (v. fls. 31 – doc. nº 64 junto com a p.i). Nessa carta o Autor pede à Ré o pagamento da quantia de 46.858,52€ respeitante a quantias entregues na Ré e que ainda não lhe foram reembolsadas.

Ora, dispõe o art. 805º do C. C que o devedor fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, pelo que, tendo a Ré sido interpelada para cumprir em 16/6/2014, os juros moratórios são devidos desde essa data e até integral pagamento.
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O Autor pede ainda que seja declarada a sua demissão como cooperador, no entanto, a apreciação deste pedido está prejudicada pelo facto de o Autor ter resolvido o contrato celebrado com a Ré (veja-se a carta acima mencionada datada de 16/6/14).

Assim, tendo já terminado a relação contratual entre A. e Ré, não há que apreciar o seu pedido de demissão.
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Vejamos agora se a factualidade apurada permite fixar ao Autor indemnização por danos não patrimoniais.

O art. 496º nº 1 C.C. aceita a ressarsibilidade dos danos não patrimoniais, mas limitando-se àqueles que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Da restrição constante deste artigo se extrai que a reparação deve ser proporcionada à gravidade dos danos, "devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de critérios de ponderação das realidades da vida" (Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", pág. 575).

Ora, com interesse para esta matéria provou-se que os factos em causa geraram consternação e preocupação ao Autor que ficou desgostoso ao constatar que não retirou qualquer retorno do dinheiro que entregou na delegação do Porto, sentindo-se defraudado nas suas expectativas (ponto 50 dos factos provados).

Entendemos que tais factos não representam dano com relevância indemnizatória, sendo simples incómodos ou contrariedades que não justificam a indemnização por danos não patrimoniais.

Assim, não há lugar à condenação da R. no pagamento de qualquer quantia a título de danos não patrimoniais.
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DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente a apelação, condenando-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de 45.726,88€ (quarenta e cinco mil, setecentos e vinte seis euros e oitenta e oito cêntimos), acrescida de juros vencidos desde 16/6/2014 e dos vincendos até integral pagamento, à taxa estipulada para os juros civis, absolvendo-se a Ré do restante peticionado.
Custas na proporção de decaimento.
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Guimarães, 20 de março de 2018


(Alexandra Maria Rolim Mendes)
(Maria de Purificação Carvalho)
(Maria dos Anjos Nogueira)