Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
179/17.2GAMNC.G1
Relator: ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
PERDA DE VANTAGENS
VANTAGEM BRUTA OBTIDA PELO AGENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- No que concerne à perda vantagens decretadas ao abrigo do artigo 36.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro está longe de ser pacífica a resposta de saber se está em causa a perda da vantagem ilíquida ou bruta [correspondente ao valor recebido] ou líquida [ou seja, o valor obtido após a dedução dos custos], perfilando-se argumentos pertinentes em ambos os sentidos – há quem defenda que a vantagem deve ser determinada de acordo com o “princípio do ganho líquido”, pelo que deve ser deduzida da vantagem obtida pelo agente o montante que ele despendeu, os custos que suportou, para a obter e quem sustente que deve prevalecer o “princípio do ganho bruto” ou “receita global”, com óbvios reflexos na natureza da sanção.

II- Considerando a previsão alargada de condutas que o tipo legal do crime de tráfico e outras atividades ilícitas abarca, que vão desde o cultivo, a aquisição, a título gratuito ou oneroso, o transporte, o armazenamento, até à cedência a qualquer título, mas tendo, em regra, em vista a obtenção ilícita de lucro, mal se compreenderia, à luz dos enunciados objetivos de política criminal do instituto de perda de vantagens, que se contabilizassem os custos envolvidos e se deduzissem os mesmos às receitas obtidas, com vista à determinação do lucro residual.

III- A comercialização de estupefacientes é uma atividade ilícita, penalmente censurável, inexistindo justificação para a consideração das despesas inerentes aos meios empregues
para a sua prática e a consecução do seu objetivo último – a obtenção de avultados lucros. As despesas suportadas nos diversos atos de preparação e consumação do crime não podem obter tutela legal mediante a sua dedução à receita obtida, a fim de se apurar o lucro, tal como se estivéssemos perante uma atividade lícita sujeita a tributação fiscal.
Caso assim se não entendesse, estar-se-ia, além do mais, a legitimar condutas também elas ilícitas, como sucede, por exemplo, com o pagamento das despesas de transporte e/ou armazenamento de produtos estupefacientes efetuadas por terceiros.
Enfim, fazer equivaler a vantagem do facto ilícito ao lucro obtido pelo agente após a dedução das despesas que teve com a sua prática defraudaria por completo o espírito enformador do instituto de perda de bens.

IV- Assim, apenas se impunha efetuar o cálculo aritmético das quantias monetárias que o arguido recebeu dos vários indivíduos a quem vendeu produto estupefaciente, nos moldes discriminados na factualidade provada, que ascendem ao montante global de 11.715,00 €, e não apurar as “despesas” que aquele custeou [com lucros anteriormente obtidos na execução do mesmo crime], a fim de serem deduzidas àquele montante, para, então, se condenar a pagar ao Estado o “lucro efetivo”, ou seja, o saldo daí resultante, como sustentado na decisão recorrida.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. - RELATÓRIO

1. - No âmbito do processo comum n.º 179/17.2GAMNC, do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi submetido a julgamento, com intervenção de tribunal coletivo, o arguido AA, tendo, a final, sido proferido acórdão que culminou com o seguinte dispositivo [que aqui se transcreve[1] na parte que ora releva]:

«(…)
B. CONDENAR o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico ou outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, com referência à tabela I-C, na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período de tempo, sujeita a regime de prova.
C. DECLARAR PERDIDOS A FAVOR DO ESTADO:
a) todo o produto estupefaciente apreendido, ordenando-se a sua destruição (cfr. arts. 35.º, n.º 2, e 62.º, n.º 6 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01), após trânsito;
b) a quantia em dinheiro apreendida e depositada nos presentes autos (cfr. art. 36.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01 e art. 12.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, de 11.01); e,
c) o telemóvel, a balança, os sacos herméticos e o candeeiro, ordenando-se a sua destruição, após trânsito;
d) os fertilizantes e as mangueiras;
e) as munições e cartuchos, nos termos do art. 109.º do Código Penal.
D. DECLARAR IMPROCEDENTE o pedido de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público, ABSOLVENDO o arguido.»

2. - Não se conformando com tal decisão, na parte em que julgou improcedente o pedido de perda de vantagens a favor do Estado, a Ex.ma Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância interpôs recurso, nos termos que constam do respetivo requerimento e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, tendo, no termo da motivação, formulado as seguintes conclusões e petitório:

1. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão, restrito à declaração de improcedência do pedido de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público, dele absolvendo o arguido AA.
2. Para efeitos do disposto no art. 36º, n.º 2, 3 e 4 do DL 15/93, de 22/01, o perdimento a favor do Estado deve incidir na vantagem bruta obtida pelo arguido.
3. Estando em causa a venda de estupefaciente não se deveria ter que descontar os custos, por ser um negócio ilícito.
4. Caso assim não se entenda, deverá ser então declarada perdida a vantagem líquida.
5. Possuindo o Tribunal a quo todos os elementos necessários para calcular essa vantagem líquida devia tê-lo feito, pelo que ao não o fazer, incorreu, salvo o devido respeito, em erro na aplicação do direito à matéria de facto provada (art. 410º, n.º 3 do CPP).
6. De acordo com a matéria de facto provada, tendo por base o preço máximo de € 6,00 (seis euros) a grama, sendo que em algumas situações ficou provado preço inferior, de compra pelo arguido e venda aos consumidores a €10,00 (dez euros) e em algumas situações conforme factos provados também a preço inferior, (sempre em favor do arguido, já que este referiu que tanto comprava a €4, €5 como a €6 – deduzindo outros eventuais custos e in dubio por reo), nos termos do art. 36º, n.º 4 do DL 15/93, de 22/01, deve ser declarado perdido a favor do Estado:
a. A vantagem bruta obtida pelo arguido com a prática do crime de Tráfico de estupefacientes pelo qual foi condenado (art. 21º do mesmo diploma legal) – valor mínimo de €11.715,00;
b. Ou, pelo menos, a vantagem líquida, que o Venerando Tribunal superior apurar, mediante os factos provados, e que se calculou, sempre pelo mínimo, no valor global de €4.486,00.
7. Urge demonstrar que o crime não compensa, só assim se respeitando a prevenção especial e, sobretudo geral, mostrando que não se tolera uma situação antijurídica, na defesa do Estado de Direito.
8. Pelo exposto, e sempre salvo o devido respeito, o Tribunal recorrido violou os art. 36º, n.º 2, 3 e 4 do DL 15/93, de 22/01 e 410º, n.º 3 do CPP.
Nesta medida, revogando parcialmente o douto acórdão recorrido e, nos termos do art. 36º, n.º 1, 2, 3 e 4 do DL 15/93, de 22/01, declarando perdido a favor do Estado:
 A vantagem bruta obtida pelo arguido com a prática do crime de Tráfico de estupefacientes pelo qual foi condenado (art. 21º do mesmo diploma legal) – valor mínimo de €11.715,00;
 Ou, pelo menos, a vantagem líquida, que o Venerando Tribunal superior apurar, mediante os factos provados, e que se calculou, sempre pelo mínimo, no valor global de €4.486,00;
e, desse modo, condenando o arguido AA, farão V. Exas., a costumada e esperada
JUSTIÇA.»

3. - O arguido respondeu ao recurso, apresentando a respetiva contra motivação, concluindo, a final, nos seguintes termos:

«I - Nenhuma censura merece a decisão recorrida, quer em termos de apreciação fáctica, quer ao nível do enquadramento jurídico-penal propugnado, devendo improceder o recurso interposto.
II - Sem prescindir sempre se terá de dizer que os benefícios patrimoniais serão sempre traduzidos na diferença entre o preço a que os arguidos adquiriam as respetivas doses e o preço a que as revendiam a terceiros  consumidores.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado
improcedente, mantendo-se integralmente e decisão recorrida.
Assim decidindo V/Excias. farão, como é habitual,
inteira JUSTIÇA!

4. - Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo que «o recurso do Ministério Público deverá ser julgado integralmente procedente, revogando-se a decisão recorrida objecto da sua divergência declarando-se, consequentemente, perdidos em favor do Estado os lucros obtidos pelo arguido nas provadas vendas de estupefacientes que realizou, afinal, afinal a perda do lucro que é correspondente à vantagem líquida obtida, tendo em vista o disposto no art.º 110, n.º1 do CPenal.»

5. - Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao sobredito parecer.
            
6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
*
II. – FUNDAMENTAÇÃO

A) – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Decorre do preceituado no artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida.
Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[2]].
O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente, e, outras, de conhecimento oficioso[3].

Assim, in casu, a única questão a apreciar reside em saber se a vantagem da atividade delituosa cuja perda a favor do Estado foi peticionada corresponde ao valor das quantias recebidas pelo arguido no âmbito dessa atividade ou, antes, ao valor resultante da diferença entre aquelas e os custos que suportou.
           
B. 1. - No despacho de acusação, após a descrição dos factos imputados ao arguido e respetiva qualificação jurídica, o Ministério Público formulou pedido de perda de vantagens a favor do Estado nos seguintes termos:

«DA DECLARAÇÃO DE PERDA DAS VANTAGENS
DO FACTO ILICITO TIPICO A FAVOR DO ESTADO
O Ministério Público, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 110.º, n.º 1 al. b), 4e 6 do Código Penal (redacção introduzida pela Lei n.º30/2017, de 30 de Maio) e artigo 36.º e ss. do Decreto-Lei n.º 15/93, 22.01, requer que se declare a perda das vantagens obtidas pelo arguido AA com a prática dos referidos factos, o que faz com os fundamentos que se seguem.
1. Dá-se por integralmente reproduzidos os factos que constam da acusação que antecede, bem como a respectiva qualificação jurídica.
2. Nas circunstâncias descritas na acusação que antecede, o arguido AA logrou obter para si ou para outrem, através da pratica de factos ilícitos típicos, pelo menos, a quantia global de 15.000,00 € (quinze mil euros).
3. o referido valor corresponde à vantagem da actividade criminosa que este arguido obteve com a prática do crime, na medida em que traduz o incremento patrimonial directo alcançado com a sua conduta criminosa.
Nestes termos, o Ministério Público promove que se condene o arguido AA a pagar ao Estado a quantia de 15.000,00 € (quinze mil euros), correspondente à vantagem da actividade criminosa desenvolvida pelo mesmo, nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1, al. b), 4, e 36.º, n.º 4, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01.»

B.2. - No acórdão proferido pelo tribunal a quo este exarou o seguinte quanto à factualidade provada e não provada [transcrevendo-se apenas a que releva para o crime de tráfico de estupefacientes, no qual assenta o pedido de perda de vantagens]:

«II. Fundamentação de facto
2.1. Factos provados
1. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos, desde meados de 2015 até meados de 2021 - com interrupções num período de cerca de um ano e meio, quando se encontrava a trabalhar em ..., e em que só vendida sempre que retornava a Portugal alguns dias, mas em datas não concretamente apuradas -, o arguido AA adquiriu, transportou, armazenou, guardou e preparou ao seu embalamento, em doses individuais, cannabis (fls./sumidades – vulgo, “erva” e resina – vulgo “haxixe”), após, o que vendeu para consumo directo e/ou revenda, em várias zonas de ... a consumidores finais, maioritariamente residentes no referido concelho, como forma de obter rendimentos de que necessitava para prover o seu sustento e a sua própria adição.
2. Para além desta actividade e, pelo menos, no período compreendido entre 27.06.2017 e 08.08.2017, o arguido AA dedicou-se ao, também, ao cultivo de cannabis, procedendo à sua plantação, adubagem, rega, desumidificação, calor, poda e corte, regularmente, na sua residência, bem como num terreno baldio adjacente, mais concretamente no então chamado lugar de ..., ..., ....
3. No período referido no ponto 1, o arguido adquiria a cannabis (fls./sumidades), essencialmente, em ... para onde se deslocava e pagava entre 4€, 5€ ou 6€ por cada grama.
4. E vendia tal produto em vários locais de ..., nomeadamente, perto do ... em ... e no Campo ....
5. Para o exercício da actividade descrita no ponto 1, o arguido utilizou o contacto n.º ...02, com o qual contactava e era contactado pelos consumidores/compradores, através de chamada telefónica e/ou através das redes sociais, e combinava, utilizando linguagem codificada, os respectivos encontros para proceder à venda da cannabis.
6. Assim, no período e locais referidos nos pontos 1, 3 a 5, o arguido vendeu cannabis (fls./sumidades) aos seguintes consumidores:
a) ao BB, titular do telemóvel n.º ...30: vendeu-lhe 1,5g de cannabis, desde meados de 2015 até ../../2020, o que fez em, pelo menos, cinco ocasiões distintas, pelo preço de 10€ de cada vez, num total de 50,00€ (cinquenta euros);
b) ao CC: vendeu-lhe, em data anterior 18 de Maio de 2021, 3g de cannabis pelo valor total de 30,00€ (trinta euros);
c) ao DD, com o telemóvel n.º ...73: vendeu-lhe, entre o ano 2016 a 2020, cannabis, com regularidade, de cerca de quatro vezes por mês - à excepção de um período de 2017 e Fevereiro e Dezembro de 2019, altura em que a testemunha DD esteve ausente do território nacional-, recebendo de cada vez, em média, cerca de 30€ por semana, pagando 5€ cada grama, tendo chegado a comprar mais gramas, nalgumas ocasiões do ano de 2020, pagando, nessa altura, cerca de 50€ por 8g ou 9g, num total de 3.000,00 (três mil euros);
d) ao EE: vendeu-lhe, no ano de 2020, 15g de cannabis, pelo valor total de 125,00€ (cento e vinte e cinco euros);
e) ao FF, titular do telemóvel com o n.º ...47: vendeu-lhe, no período compreendido entre 2020 a Março de 2021, cannabis, com uma periodicidade mensal, pelos valore que variavam entre 150€ a 200€ por mês, num total de, pelo menos 5.400€ (cinco mil e quatrocentos euros);
f) ao GG: vendeu-lhe, entre finais do ano de 2019 e 2020, 8g de cannabis, o que fez numa periodicidade semanal e em cerca de 32 ocasiões distintas, pelo valor de 50€ de cada vez, num total de 1.600,00€ (mil e seiscentos euros);
g) ao HH, titular do telemóvel n.º ...27: vendeu-lhe cannabis, no período compreendido entre os anos de 2017 e 2018, com uma regularidade semanal, no valor de 10€ cada grama; e, no final do ano de 2020, em duas ou três ocasiões distintas, pelo mesmo preço; num total de 615,00€ (seiscentos e quinze euros);
h) à II: vendeu-lhe 2g de cannabis (fls./sumidades) pelo valor de 10€, o que fez em duas ocasiões distintas no ano de 2019, e, em quatro ocasiões distintas até ../../2020, em quantidade não concretamente apurada, mas pelo valor de 15€ de cada vez; num total de 70,00€ (setenta euros);
i) ao JJ: vendeu-lhe 15g de cannabis, no ano de 2019, em três ocasiões distintas, pelo valor global de 60,00€ e, no ano de 2020, em duas ou três ocasiões diferentes, pelo valor de 120,00€; num total de 180,00€ (cento e oitenta euros);
j) ao KK: vendeu-lhe 3g de cannabis (fls./sumidades), entre o início do ano de 2020 até ao verão de 2020, pelo valor de 5,00€ por cada grama, no total de 15,00€ (quinze euros);
k) ao LL, titular do telemóvel n.º ...02: vendeu-lhe cannabis (fl./sumidades) e numa única ocasião cannabis (resina), entre o ano de 2016 e Fevereiro de 2017, com uma periodicidade mensal, cerca de 10g de cada vez pelo valor de 45,00€, num total de 630,00€ (seiscentos e trinta euros).
7. No dia 8 de Agosto de 2017, cerca das 08h10m, no interior da sua residência, sita na Rua ... (anteriormente chamado, lugar de ...), ..., ..., num terreno adjacente àquela e no seu veículo automóvel, o arguido tinha:
a) na sua posse:
- um telemóvel de marca ..., modelo ..., com o IMEI ...74 e ...86, com o cartão ...;
b) na garagem da sua residência:
- 1 (um) saco plástico contendo no seu interior cannabis (fls. sumidades), com o peso líquido de 6,885g, com um grau de pureza de 11,3% (TCH), equivalente a 16 doses (dezasseis) individuais;
c) no interior da residência, nomeadamente, em cima da mesa da televisão:
- no interior de carteira, a quantia de 190,00 € em numerário, divididas em 9 notas de 20,00 € e 1 nota de 10,00€;
d) no seu quarto:
- 1 (um) candeeiro de lâmpada para aquecimento;
- 8 (oito) sacos herméticos de plástico transparente;
e) na varanda do primeiro andar:
- 5 (cinco) vasos, cada um deles, com 1 (um) pé de uma planta de cannabis (fls./sumidades);
f) no quintal:
- 2 (dois) vasos, cada um com 1 (um) pé de uma planta de cannabis (fls/sumidades);
- plantadas na terra do quintal, 4 (quatro) pés de uma planta de cannabis (fls./sumidadades);
g) em cima de uma mesa de pedra:
- 1 frasco de fertilizante com 100 ml da marca ...;
- 1 frasco de fertilizante com 250 ml da marca ...; e,
- 1 frasco de fertilizante com 250ml da marca ...;
h) no terreno adjacente:
- plantados na terra, 3 (três) pés de planta de cannabis (fls./sumidades);
- 3 (três) mangueiras: uma com 4m de comprimento, uma com 5m de comprimento e outra com 30m de comprimento;
i) no interior do veículo de matricula ..-..-UR:
- 1 (uma) balança de precisão digital marca ...”, modelo ....
8. Os referidos pés de plantas de cannabis referidos no ponto 7, alíneas e), f) eh) tinham o peso líquido de 1138,270g, com um grau pureza entre os 2,4%, 2,8% e 2,9% (HTC), equivalente a um total de 625 (seiscentos e vinte e cinco) doses individuais.
(…)
11. As mangueiras, fertilizantes e candeeiro destinavam-se à rega, cultivo e produção das plantas acima descritas.
12. A balança digital destinava-se a pesar o produto estupefaciente, os sacos herméticos destinavam-se a acondicioná-lo.
13. O telemóvel servia, entre o mais, para o arguido contactar e/ou ser contactado por eventuais clientes/consumidores.
14. O dinheiro proveio da venda de cannabis, de onde retirou benefícios para prover ao seu sustento e à sua adição, como referido no ponto 1.
15. Ao actuar pela forma acima descrita, visou o arguido adquirir, guardar e dividir a cannabis, para posteriormente o vender aos consumidores, que o pretendessem adquirir por valor superior ao da aquisição, conseguindo, assim, lucrar com a venda daqueles, usando esse lucro para comprar mais produto estupefaciente e, assim, manter a sua actividade de tráfico, daí retirando proventos económicos.
16. O arguido conhecia as características estupefacientes de tais produtos e, bem assim, que a sua aquisição, transporte, detenção, cultivo, manipulação e venda são proibidos, mas não se absteve de agir de modo descrito, o que quis e fez.
17. Mais sabia, que as suas descritas condutas, punham em causa saúde pública e que a sua posse, cultivo, detenção, preparação, tratamento, divisão em doses e venda eram punidos e punidas por lei.
18. O arguido actuou, ainda, com o propósito concretizado de cultivar as plantas acima referenciadas, cujas características estupefacientes conhecia, bem sabendo que não estava autorizado para tal.
19. Ao actuar da forma supra descrita, o arguido fê-lo de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
(…)

2.2. Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente que:
a) o arguido tenha iniciado a actividade referida no ponto 1 no ano de 2016;
b) o arguido tenha cedido cannabis (fls./sumidades e/ou resina);
c) o arguido tenha adquirido cocaína, ao seu transporte, armazenamento e guarda, à sua preparação e ao seu embalamento em doses individuais, tendo em vista a venda destas aos consumidores finais;
d) o arguido tenha vendido cannabis aos consumidores de forma diária;
e) o arguido tenha vendido cannabis (fls./sumidades) ao BB referido no ponto 6, al. a), por mais de 50 vezes, recebendo 20€ por cada grama, no valor total de cerca de 4.000,00€;
f) a média semanal de venda de cannabis pelo arguido a DD referido no ponto 6, al. c) era de 50€ por cada 8 ou 9 grama;
g) o arguido tenha vendido a FF, referido no ponto 6, al. e), cannabis resina (“haxixe”) durante cerca de 4 anos (entre os 16 e 18 anos da testemunha), com uma periodicidade semanal, recebendo 20,00€ por cada patela “língua”, correspondendo a 2g (208 semanas x 20,00€= 4160,00€);
h) desde 2020 até ../../2021, lhe tenha vendido, também (ao FF), cerca de 40 vezes, recebendo o valor de 50,00€, por 10g (40 x50,00 €= 2.000,00€), numa média de 400,00 € por mês;
i) o arguido tenha vendido, também, cannabis resina (“haxixe”) ao HH, referido no ponto 6, al. g), num total de 2515,00€ (dois mil e quinze euros);
j) o arguido tenha vendido cannabis (fls./sumidades) ao JJ referido no ponto 6, al. i), pela primeira vez, no ano de 2017, em pelo menos 4 vezes, recebendo 20,00€, por 5g, no total de 100,00€, e no ano de 2018, por cerca de 4 ou 5 vezes, recebendo o valor de 150,00€, o equivalente a 25g;
k) o arguido detivesse cannabis (fls./sumidades) com um peso líquido de 1145,16g;
(…)»
E pronunciou-se quanto à perda de bens e vantagens nos seguintes moldes:
Da declaração de perdimento dos objectos apreendidos:
Nos termos do art. 35.º, n.ºs 1 e 2 de tal diploma “são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos” (n.º 1), bem como “as plantas, substâncias e preparações incluídas nas tabelas I a IV são sempre declaradas perdidas a favor do Estado” (n.º 2).
A perda de objectos (dotada de eficácia real, já que opera a transferência de propriedade do objecto a favor do Estado) exige, assim que tais objectos sejam produto do crime previsto no diploma ou tenham sido utilizados ou estejam destinados à sua comissão.
Quanto à perda de vantagens, estabelece o art. 36.º do mesmo Decreto-Lei que é declarada perdida a favor do Estado “toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem”.
São, assim, igualmente declarados perdidos a favor do Estado os direitos ou vantagens, que através do facto ilícito, tiverem sido directamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.
No caso foram apreendidos várias qualidades e quantidades de produtos estupefacientes, uma importância monetária, um telemóvel, uma balança, os sacos herméticos, o candeeiro, as mangueiras e os fertilizantes que foram utilizados na prática do crime e se destinaram à sua comissão.
Assim sendo, nos termos dos arts. 35.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01, do art. 109.º do Código Penal e também em face do que ficou a constar da matéria de facto provada e do que se disse supra em sede de motivação, serão declarados perdidos a favor do Estado do telemóvel, da balança, dos sacos herméticos, do candeeiro, das mangueiras e dos fertilizantes e determinar-se-á a destruição das substâncias e dos restantes objectos, à excepção das mangueiras.
No que se refere às munições e aos cartuchos, por serem perigosos, declarar-se-á o seu perdimento a favor do Estado, nos termos do art. 109.º do Código Penal.
Da declaração de perdimento das vantagens:
O Ministério Público formulou contra o arguido pedido de perda de vantagens do facto ilícito típico a favor do Estado, no valor de 15.000,00€.
Nos termos do art. 36.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 “São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiro de boa fé, os objectos, direitos e vantagens que, através da infracção, tiverem sido directamente adquiridos pelos agentes, para si ou para outrem”.
Acrescenta o n.º 4 do mesmo artigo que “Se a recompensa, os direitos, objectos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor”.
No caso, as vantagens económicas retiradas pelo agente de crime de tráfico de estupefacientes são constituídas, não por tudo o que foi apurado ter recebido dos compradores, mas apenas da parte que, desse valor, constitui efectivo lucro para si.
Ora, nada se tendo provado quanto a esse lucro efectivo - do montante peticionado ou de outro –, este pedido está destinado à total improcedência, sem necessidade de mais considerações.»

C. – No recurso que interpôs o Ministério Público apenas se insurgiu quanto à improcedência do pedido de declaração de perda de vantagens do facto ilícito típico a favor do Estado que havia formulado, tendo-se transcrito também a decisão quanto à perda de bens apenas para melhor contextualização do decidido.
Com efeito, aquando do despacho de acusação, o Ministério Público, requereu, ao abrigo do disposto no artigo 110.º, n.ºs 1 al. b), 4 e 6, do Código Penal (redação introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio) e no artigo 36.º e ss. do Decreto-Lei n.º 15/93, 22.01, que fosse declarada a perda das vantagens obtidas pelo arguido, alegando, em síntese, que nas circunstâncias descritas na acusação este logrou obter para si ou para outrem, através da prática de factos ilícitos típicos, pelo menos, a quantia global de 15.000,00 € (quinze mil euros), valor que corresponde à vantagem da atividade criminosa que obteve com a prática do crime, na medida em que traduz o incremento patrimonial direto alcançado com a sua conduta criminosa. E, a final, requereu que o arguido fosse condenado a pagar ao Estado a quantia de 15.000,00 € (quinze mil euros), nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1, al. b), 4, e 36.º, n.º 4, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01.

Vejamos.
Compulsada a matéria de facto provada, constata-se que, no desenvolvimento da atividade sua atividade delituosa, nas circunstâncias de tempo, lugar e modo ali descritas, o arguido procedeu à venda de cannabis [folhas/sumidades] aos indivíduos identificados no ponto 6., tendo deles recebido a quantia monetária global de 11.715,00 €.
Porém, o tribunal a quo considerou que «as vantagens económicas retiradas pelo agente de crime de tráfico de estupefacientes são constituídas, não por tudo o que foi apurado ter o arguido recebido dos compradores, mas apenas da parte que, desse valor, constitui efectivo lucro para si» e que «nada se tendo provado quanto a esse lucro efectivo - do montante peticionado ou de outro –, este pedido está destinado à total improcedência, sem necessidade de mais considerações».
Para dilucidar o dissídio, importa, antes de mais, atentar no(s) regime(s) legais de perda de vantagem da atividade criminosa a favor do Estado.

Desde logo, dispõe o artigo 110º do Código Penal, sob a epígrafe “Perda de produtos e vantagens”:
“1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.”
Por seu turno, estatui o artigo 36º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, que estabelece o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas), sob a epígrafe “Perda de coisas ou direitos relacionados com o facto”:
“1 - Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de uma infracção prevista no presente diploma, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiro de boa fé, os objectos, direitos e vantagens que, através da infracção, tiverem sido directamente adquiridos pelos agentes, para si ou para outrem.
3 - O disposto nos números anteriores aplica-se aos direitos, objectos ou vantagens obtidos mediante transacção ou troca com os direitos, objectos ou vantagens directamente conseguidos por meio da infracção.
4 - Se a recompensa, os direitos, objectos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
5 - Estão compreendidos neste artigo, nomeadamente, os móveis, imóveis, aeronaves, barcos, veículos, depósitos bancários ou de valores ou quaisquer outros bens de fortuna.”
E, finalmente, prescreve o artigo da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro – que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira –, sob a epígrafe “Perda de bens”:
“1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º [que faz alusão aos crimes de tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21º a 23º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro], e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
(...)”.

A natureza jurídica de tais disposições legais não é consensual, quer na doutrina, quer na jurisprudência.
Pese embora, no Código Penal, que estabelece o regime geral da perda clássica, a sua inserção sistemática seja efetuada no título III, que dispõe sobre as consequências jurídicas do crime, a perda não está estritamente relacionada com a culpa do agente, nem depende da condenação, podendo ocorrer, por exemplo, em casos de morte ou de inimputabilidade do agente.
Para Figueiredo Dias[4], o que está em causa na perda de vantagens é «primariamente um propósito da prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia - antiga, mas nem por isso menos prezável  - de que "o ‘crime’ não compensa". Ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico (prevenção especial ou individual) como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral), mas sem que neste último aspecto deixe de caber o reflexo da providência ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de integração).»
Assim, prossegue, a perda de vantagens não deve ser considerada uma pena acessória, «mas uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança. Análoga, pelo menos no sentido em que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito».
Ainda segundo o mesmo autor, a perda de vantagens não tem que ter qualquer correlação com a culpa ou com a sua medida, mas já a tem de ter, através do princípio da proporcionalidade, com a gravidade do ilícito típico cometido.
Também Maia Gonçalves[5] considera que se tem em vista «mais uma perigosidade em abstrato» e se visa a «prevenção da criminalidade em geral».
Já para Pedro Caeiro[6], “o instituto da perda de vantagens constitui um tertium genus. Ou seja, não configura uma pena acessória porque se basta com um facto ilícito típico, não carecendo de estar verificada a culpa na sua produção, mas também não configura uma medida de segurança, uma vez que esta implica que se confirme a perigosidade do agente de vir a praticar factos homogéneos (…) a pena exige culpa, a medida de segurança exige a perigosidade do agente, a perda basta-se, muito prosaicamente, com a existência de vantagens patrimoniais obtidas através da prática de um crime».
Segundo o entendimento maioritário, sendo um instituto norteado para a prevenção geral e especial da criminalidade, tendo subjacente a ideia de que “o crime não compensa”, para a aplicação do mesmo basta que estejamos perante um facto típico-ilícito, não necessariamente culposo. O pressuposto formal da perda de vantagens é, assim, o da prática de um facto ilícito criminal, podendo, portanto, ter lugar mesmo que o agente seja inimputável.
A perda de vantagens é, assim, exclusivamente determinada por necessidades de prevenção, sendo considerada como uma medida sancionatória típica análoga à medida de segurança, visando o Estado que nenhum benefício venha a resultar para o arguido pela prática do ilícito
Nessa confluência, a decisão de declaração da perda de vantagens constitui uma consequência necessária da prática de um facto ilícito criminal, procurando o Estado, através dela, reconstituir a situação do seu autor antes da sua prática, ou seja, de modo a ficar sem qualquer benefício da prática do crime, assim percebendo que “o crime não compensou”.[7]
Em síntese, como se assinalou no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.03.2021 [Proferido no processo 1101/18.4GBLLE.E1], o legislador português construiu o instituto da perda de vantagens decorrentes do facto ilícito típico como uma providência destinada a impedir a manutenção de situações patrimoniais antijurídicas, satisfazendo assim finalidades de prevenção geral e especial, e por isso, lhe confere a natureza de um expediente semelhante ou análogo à medida de segurança.
Os regimes especiais constantes do DL n.º 15/93, de 22.01, e da Lei n.º 5/2002, de 11.01, apesar de conterem normas específicas, comungam da mesma natureza[8].
Com efeito, no âmbito do DL n.º 15/93, à semelhança do que sucede com o regime geral estabelecido no Código Penal, só há lugar à perda de bens e vantagens se houver prova positiva inequívoca de que aqueles foram obtidos “através do crime”.
Já no domínio da Lei n.º 5/2002 – que veio estabelecer medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, configurando um regime especial de recolha de prova, de quebra do segredo profissional e de perda de bens a favor do Estado relativa aos crimes de tráfico de estupefacientes, para além de outros crimes aí discriminados –, o legislador, tendo considerado que nem sempre se afigura fácil a prova de que os bens patrimoniais dos arguidos nesses crimes são vantagens provenientes da atividade ilícita e, portanto, sujeitos a perda a favor do Estado, nos termos dos artigos 109.º a 111.º do Código Penal, veio impor algumas regras que impedem os agentes criminosos de se refugiarem, quanto a esse aspeto, numa mera aparência de legalidade ou de pretenderem prevalecer-se da dúvida. Por isso, nesses crimes são declarados perdidos para o Estado os bens ou vantagens económicas que não se provarem serem de origem lícita, o que configura uma regra substantiva diferente da estabelecida no Código Penal para a generalidade dos crimes (e na Lei n.º 15/93, para os crimes de tráfico), onde só a prova positiva da origem ilícita permite a perda para o Estado. E, assim, para crimes de tráfico de estupefacientes e outros mencionados, presume-se constituir vantagem da atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito (art.º 7.º da Lei 5/2002), remetendo-se para o arguido o ónus de provar a licitude do seu património[9]. Neste caso, baseando-se a denominada perda alargada ou confisco alargado na presunção legal ilidível de que a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento líquido representa uma vantagem derivada da prática de um ou mais crimes previstos no artigo 1º, não deixa de constituir uma sanção análoga a uma medida de segurança, fundada nas mesmas considerações de prevenção geral e especial, mas com duas especialidades interligadas – a medida é fundada num facto ilícito e culposo, mas admite prova em contrário[10].
Em suma, cada um destes mecanismos tem objetivos, campos e pressupostos diferentes, por forma a abranger um vasto leque de situações e a provar que, entre nós, “o crime não compensa”[11].

No caso dos autos, estando em causa a comprovada prática, pelo arguido, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, com referência à tabela I-C, deve atender-se ao disposto no artigo 36º do mesmo diploma, porquanto o regime especial de perda de vantagem que consagra prevalece sobre o regime geral constante do artigo 110º do Código Penal, não sendo, sequer, de equacionar a aplicação do regime supletivo da perda alargada previsto na citada Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, tanto mais que nem sequer foi invocado pelo requerente, Ministério Público, e que tem regras muito específicas, como vimos.
Posto, isto, resta saber se está em causa a perda da vantagem ilíquida ou bruta [correspondente ao valor recebido] ou líquida [ou seja, o valor obtido após a dedução dos custos].
A resposta está longe de ser pacífica, perfilando-se argumentos pertinentes em ambos os sentidos – há quem defenda que a vantagem deve ser determinada de acordo com o “princípio do ganho líquido”, pelo que deve ser deduzida da vantagem obtida pelo agente o montante que ele despendeu, os custos que suportou, para a obter e quem sustente que deve prevalecer o “princípio do ganho bruto” ou “receita global”, com óbvios reflexos na natureza da sanção[12].
Neste último sentido decidiu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.03.2019 [processo 13/17.3GAFND.C1], em cujo sumário se refere: «Para efeitos do disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 36.º do DL 15/93, o perdimento a favor do Estado deve incidir na vantagem bruta obtida pelo agente.»
Com efeito, e debruçando-nos especificamente sobre o crime de tráfico e outras atividades ilícitas, considerando  a previsão alargada de condutas que o tipo legal abarca, que vão desde o cultivo, a aquisição, a título gratuito ou oneroso, o transporte, o armazenamento, até à cedência a qualquer título, mas tendo, em regra, em vista a obtenção ilícita de lucro, mal se compreenderia, à luz dos supra enunciados objetivos de política criminal do instituto de perda de vantagens, que se contabilizassem os custos envolvidos e se deduzissem os mesmos às receitas obtidas, com vista à determinação do lucro residual.
A comercialização de estupefacientes é uma atividade ilícita, penalmente censurável, inexistindo justificação para a consideração das despesas inerentes aos meios empregues para a sua prática e a consecução do seu objetivo último – a obtenção de avultados lucros. As despesas suportadas nos diversos atos de preparação e consumação do crime não podem obter tutela legal mediante a sua dedução à receita obtida, a fim de se apurar o lucro, tal como se estivéssemos perante uma atividade lícita sujeita a tributação fiscal.
Caso assim se não entendesse, estar-se-ia, além do mais, a legitimar condutas também elas ilícitas, como sucede, por exemplo, com o pagamento das despesas de transporte e/ou armazenamento de produtos estupefacientes efetuadas por terceiros.
Enfim, fazer equivaler a vantagem do facto ilícito ao lucro obtido pelo agente após a dedução das despesas que teve com a sua prática defraudaria por completo o espírito enformador do instituto de perda de bens.
Volvendo ao caso dos autos, ao invés do que foi considerado no acórdão recorrido, o que importa são as receitas obtidas, sendo irrelevantes as despesas suportadas para atingir aquele desiderato. Note-se, ademais, que, conforme resultou provado sob os pontos 1 e 15, o arguido visou adquirir, guardar e dividir a cannabis, para posteriormente a vender aos consumidores que a pretendessem adquirir por valor superior ao da aquisição, conseguindo, assim, lucrar com a venda daquela substância, usando esse lucro para comprar mais produto estupefaciente e, assim, manter a sua atividade de tráfico, daí retirando proventos económicos, para prover ao seu sustento e à sua própria adição.
Assim, salvo o devido respeito pelo entendimento expresso pelo tribunal a quo, apenas se impunha efetuar o cálculo aritmético das quantias monetárias que o arguido recebeu dos vários indivíduos a quem vendeu produto estupefaciente, nos moldes discriminados na factualidade provada, que ascendem ao montante global de 11.715,00 €, e não apurar as “despesas” que aquele custeou [com lucros anteriormente obtidos na execução do mesmo crime], a fim de serem deduzidas àquele montante, para, então, se condenar a pagar ao Estado o “lucro efetivo”, ou seja, o saldo daí resultante, como sustentado na decisão recorrida.
Como se afirmou no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 23.01.2023 [proferido no processo 43/20.... e relatado pelo aqui 2.º adjunto, Desembargador António Teixeira], «nem a letra, nem o espírito que subjaz ao instituto da perda de vantagens a que alude o citado Artº 36º, nº 2, do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, exige tal exercício, sob pena de, na generalidade dos casos como o ora em análise, ficar totalmente votado ao fracasso este instituto preventivo, o que certamente não esteve presente na mens legislatoris.
Não se compreendendo, pois, que, como na situação em apreço, se puna o crime cometido pelo arguido, e não se decrete a comprovada e objectiva vantagem por ele obtida com a perpretação de tal ilícito, tolerando-se que a mantenha incólume no seu património ou na sua esfera jurídica.»
Ante o exposto, impunha-se que o tribunal a quo tivesse concluído pela declaração de perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido com a prática do crime de tráfico de estupefacientes em causa nos presentes autos, no valor global de 11.715,00 € (onze mil, setecentos e quinze euros) e, concomitantemente, pela condenação do mesmo no pagamento de tal quantia ao Estado, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 36º do DL n.º 15/93.
Procede, pois, a pretensão recursiva do Ministério Público, aqui recorrente.
*
III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, decidem:

- Revogar o acórdão recorrido na parte em que julgou improcedente o pedido de perda de vantagens por aquele formulado;
- Decretar a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido AA com a prática do crime pelo qual foi sancionado nos presentes autos, correspondente à quantia global de 11.715,00 € (onze mil, setecentos e quinze euros), condenando-se o mesmo no pagamento de tal importância ao Estado.
 
Não é devida tributação.
*
*
(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelos signatários – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
*
Guimarães, 05 de março de 2024

Isabel Gaio Ferreira de Castro[Relatora]
Fernando Chaves[1.º Adjunto]
António Teixeira[2.º Adjunto]



[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.
[2] Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[3] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[4] In Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, págs. 632, §§ 1004, e 638
[5] In Código Penal Anotado, 2006, pág. 436
[6] Vide Revista Portuguesa de Ciência Criminal nº 2, “Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com os meios de prevenção de criminalidade reditícia”
[7] Cfr. acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 20.06.2022 [proferido no processo nº 27/18.6GACBT.G1]  e do Porto de 22.01.2022, proferido processo nº 2769/16.1T9PRT.P1], disponíveis para consulta em http://www.dgsi.pt, tal como os demais doravante citados sem expressa menção de fonte de acesso.
[8] Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção europeia dos Direitos do Homem, 5.ª Ed., pág. 517
[9] Cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2006 [proferido no processo   06P3163].
[10] Vide Paulo Pinto Albuquerque, ibidem
[11] João Conde Correia, Da proibição do confisco à perda alargada, Lisboa, INCM – Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Procuradoria Geral da República, 2012, pág. 66.
[12] Vide Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, Parte geral e especial, Almedina, 2014, pág. 448, e Paulo Pinto Albuquerque, ob. citada, pág. 515.