Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
275/17.6T8PTL.G1
Relator: MARIA PURIFICAÇÃO CARVALHO
Descritores: SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DA DESISTÊNCIA DO PEDIDO
CASO JULGADO MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/16/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- A desistência do pedido representa o reconhecimento pelo demandante de que a situação jurídica alegada não existe ou se extinguiu, arrastando consigo a extinção da situação jurídica que pretendia tutelar, sendo que a homologação da desistência do pedido, ao contrário do que sucede com a absolvição da instância, constitui caso julgado material.

- Daí que uma sentença judicial homologatória de uma desistência do pedido, devidamente transitada, constitui caso julgado material, isto é, produz eficácia de caso julgado material em relação ao direito que o desistente pretendia fazer valer, muito embora não se tendo procedido na realidade à apreciação do mérito da causa, tudo se passa ou equivale a como se o tivesse feito.
Decisão Texto Integral:
- Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães –

I. RELATÓRIO

C. P., divorciado residente na Avenida …, V.N. de Famalicão, veio propor acção de indeminização por violação de direitos de personalidade contra P. M., médico, titular da cédula profissional n.º ..., com domicílio profissional na Unidade Local de Saúde do …, EPE, com sede na Estrada …, Viana do Castelo formulando o seguinte pedido:

Que o Réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de 20.000,00€ (vinte mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento, sem prejuízo do disposto no artigo 569º do CC.

A fundamentar este pedido alegou em síntese o seguinte:

O Réu, em 25/05/2013, 05/09/2013, 26/09/2013, 03/10/2013, 17/10/2013 e 14/11/2013, agendou no Hospital de ... consultas para avaliação psiquiátrica do Autor a pedido de interposta pessoa (ex-cônjuge do Autor), na sequência das quais praticou diversos atos clínicos sem o consentimento e a presença do Autor, e sem que este tivesse sido examinado presencialmente alguma outra vez além da que foi na citada consulta privada de inícios de 2013 - (vide docs. n.ºs 4 a 12 juntos com a p.i.)

Assim, ao proceder desta maneira, o Réu emitiu e renovou receituário e certificados de incapacidade, e ainda elaborou outros dois relatórios sobre o alegado estado de saúde psíquica do Autor, sem ter certificado, por si, da veracidade e cabimento da causa invocada para o efeito.

Ao atuar desta o Réu não pautou exclusivamente pela sua ciência e consciência, tendo violado ostensivamente os principais deveres deontológicos a que está adstrito: a dignidade e o segredo médico. Ora, com um comportamento imprudente, desaprovado e totalmente displicente, o Réu não só desrespeitou por completo regras basilares da medicina, como também agrediu direitos de personalidade do Autor, concretamente, o direito ao bom nome e reputação, à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e familiar [ex. vi do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa (CRP)], causando-lhe danos irreversíveis.

E tudo isto se agrava se atendermos ao facto do Autor ter estado ausente de Portugal entre 6 de Dezembro de 2013 e 28 de Fevereiro de 2014 (vide docs. n.ºs 13 a 17 juntos com a p.i.), o que impossibilitaria ao Réu de atestar sobre o verdadeiro estado de saúde do Autor.

Regularmente citado o Réu contestou em sua defesa alegou em síntese o seguinte:

Invocou a sua ilegitimidade dizendo que a sua atividade profissional está coberta por seguro de responsabilidade civil pela prática de atos médicos, no seguimento do desiderato agora suscitado deduziu o incidente da intervenção principal provocada, requerendo chamamento da seguradora para qual tinha transferido a sua responsabilidade pelo risco da atividade que exerce.

Deduziu a exceção dilatória do caso julgado alegando que o autor já exerceu esta mesma pretensão junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, acabando por desistir do pedido. Assim como existe e tríplice identidade dos sujeitos, da causa de pedir e do pedido, neste contexto se configura a exceção dilatória do caso julgado, a que dá lugar á absolvição da instância.

Por fim invoca a exceção perentória da prescrição com fundamento de que já decorreram mais de três anos desde a data em que os factos foram praticados pelo Réu e de servem de fundamento à presente ação.

Conclui pela improcedência total da ação.

O incidente de intervenção principal provocada foi admitido tendo a chamada Companhia de Seguros X Portugal – Companhia de Seguros S.A., aceite chamamento, contestando a ação.

Para o efeito alega que os atos praticados pelo Réu não estão a coberto do âmbito e garantia do contrato de seguro conforme o artigo 1.º da cláusula 21, a responsabilidade civil do Réu segurado inerente ao exercício da profissão especificada na apólice.

Invoca a exceção perentória da prescrição com os mesmos fundamentos que o Réu invocou em sua defesa.

Finalmente impugnou os factos alegados pelo Autor dizendo que não há obrigação de indemnizar uma vez que o Autor não alegou qualquer facto concreto de onde se possa aferir que a conduta do Réu seja ilícita.

O Autor replicou, pugnou pela improcedência das exceções caso julgado e prescrição

Realizou-se audiência prévia.

No seguimento da audiência prévia e após a audição das partes quanto às excepções invocados o tribunal entendeu, que nesta fase processual, o processo já reunia os elementos essenciais para se conhecer do mérito da causa.

Seguiu-se saneador sentença que terminou com o seguinte dispositivo:

Em face do exposto quanto a exceção dilatória do caso julgado decido:

a). Julgar improcedente a exceção dilatória do caso julgado invocada pelo Réu;
b). Julgar verificada a exceção perentória processual imprópria da autoridade do caso julgado, julgando-se, consequentemente, a presente ação totalmente improcedente, absolvendo-se o Réu e a chamada Companhia de Seguros do pedido.

Sem custas uma vez que Autor goza do beneficio do apoio judiciário.

Descontente com esta decisão veio o autor interpor recurso de apelação, o qual foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

Nas alegações de recurso da apelante são formuladas as seguintes conclusões:

1-O Recorrente deduziu junto do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Braga Acção Administrativa Comum contra P. M., …, EPE e M. C. (que deu origem ao processo n.º 625/16.2BEBRG, Unidade Orgânica 1).
2-Na predita Acção Administrativa, o Recorrente pediu a condenação solidária dos ali Réus ao pagamento de uma indemnização nunca inferior a 100.000,00€, por entender que aqueles, entre outras coisas, agrediram violentamente direitos de personalidade seus.
3- O Recorrente formulou junto do TAF de Braga uma desistência do pedido contra os ali réus.
4- Tal pedido foi admitido e homologado por sentença no dia 11 de Julho de 2016.
5- Comparados ambos os processos, nomeadamente a identidade de partes, de pedidos e da causa de pedir, resulta clarividente que não se encontram preenchidos quaisquer requisitos que a lei faz depender para que se possa invocar a excepção do caso julgado – cf. artigo 581º do C.P.C, tal como o Mmo. Juiz a quo bem entendeu/decidiu.
6- Relativamente aos sujeitos processuais, constata-se que apesar do aqui Recorrente (Autor) e Réu intervirem na mesma qualidade na Acção Administrativa n.º 625/16.2BEBRG, aí existiram outros dois Réus (UNIDADE LOCAL DE SAÚDE ..., EPE e a M. C.).
7- Quanto ao pedido, temos que na Acção Administrativa n.º 625/16.2BEBRG o Recorrente pediu a condenação solidária dos ali Réus ao pagamento de uma indemnização nunca inferior a 100.000,00€. Enquanto nesta acção o Recorrente pede a condenação do Réu ao pagamento da quantia de 20.000,00€.
8- Além disso, o pedido formulado numa e noutra acção não é de todo semelhante, não se vislumbrando com rigor a identidade do pedido (Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado vs Responsabilidade Civil do Réu). E também a causa de pedir, numa e noutra acção, é diferente.
9- Na verdade, na presente acção o Recorrente alegou factos que inexistiam à data em que Acção Administrativa n.º 625/16.2BEBRG deu entrada no TAF de Braga (Março de 2016), como é o caso da pena disciplinar de advertência em que o Réu foi condenado pelo Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos.
10- Seguindo de perto o magistral Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-05-04, Processo 948/04 – 2ª Secção, se “em duas acções sobre o mesmo acidente jamais existirá identidade da causa de pedir (e consequentemente do pedido) quando os prejuízos alegados (e pedidos) não coincidem”, podemos afirmar que, não existindo coincidências entre os prejuízos alegados e peticionados no presente processo e na Acção Administrativa n.º 625/16.2BEBRG, falha a referida tríplice identidade, pressuposto legalmente exigido para a procedência da excepção dilatória do caso julgado (tal como o Mmo. Juiz a quo bem entendeu).
11- Quanto à excepção peremptória da autoridade do caso julgado, reitera-se a doutrina e jurisprudência referida ao longo das alegações, salientando:
12- A excepção da autoridade do caso julgado está intimamente interligada com a força do caso julgado material, que abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedentes lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.
13- Ou seja, através daquela excepção visa-se o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito.
14- Mas para se saber se uma dada decisão tem “autoridade de caso julgado” noutro processo, é necessário proceder-se à determinação dos limites daquela decisão, ou seja, dos “termos em que a sentença julga”.
15- Neste conspecto, a desistência do pedido formulada pelo Recorrente no processo administrativo n.º 625/16.2BEBRG, constituiu um negócio processual (unilateral) efectivamente firmado pela parte interveniente na acção, correspondente àquilo que ela realmente quis (a desistência do pedido é livre – ex. vi do n.º 2 do artigo 286º do C.P.C.).
16- Ao homologar tal declaração de desistência, a Mma. Juiz do TAF de Braga, nos termos do disposto no art.º 290.º, n.º 3 do C.P.C., limitou-se a fiscalizar a legalidade, a verificar a qualidade do objecto desse negócio jurídico e a averiguar a qualidade da pessoa que fez tal declaração.
17- Portanto, em momento, a Mma. Juiz tomou qualquer posição acerca do litígio propriamente dito, isto é, jamais dirimiu jurisdicionalmente o pleito.
18- Logo, a autêntica e única fonte da solução do litígio é o acto de vontade do proponente da acção e não a sentença do julgador sobre tal questão.
19- Ex positis, é patente, pelo menos para nós, que a questão que o Recorrente pretende ver apreciada no presente processo, nunca foi discutida na referida acção administrativa.
20- Além do mais, não há qualquer correspondência entre os pedidos e a causa de pedir (em comum apenas existe o facto do Dr. P. M. figurar como Réu em ambos os processos), pelo que o Mmo. Juiz a quo ao apreciar a responsabilidade civil do Réu (que constitui thema decidendum desta acção; enquanto a Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado era a questão essencial no processo administrativo), nunca colocaria o Tribunal a quo perante a possibilidade de contradizer/desrespeitar o anteriormente decidido.
21- Assim, é incontornável que o Recorrente com o seu pedido (diverso do que deduziu no TAF) não violou a autoridade do caso julgado.

POR TODO O EXPOSTO, DEVEM V.EXAS. VENERANDOS DESEMBARGADORES, JULGAR PROCEDENTE A PRESENTE APELAÇÃO, REVOGANDO-SE A DECISÃO RECORRIDA, ASSIM FAZENDO JUSTIÇA!

O réu P. M. responde á alegação do recorrente deduzindo recurso subsidiário, prevenindo a possibilidade dos fundamentos de recurso aduzidos pelo apelante virem a proceder, concluindo as suas contra-alegações nos termos que se seguem:

1.ª Há identidade de sujeitos, para os efeitos da excepção do caso julgado como da litispendência, quando o mesmo autor demanda vários réus e, noutra acção seguinte, demanda apenas um dos réus, pois que basta que as partes que se apresentem na segunda acção já se tivessem apresentado na primeira, ainda que acompanhados de outros, pois que “a exigência da identidade subjectiva (identidade de autor e de réu nas duas acções) corresponde ao princípio da relatividade do caso julgado”, do que se retira que “o caso julgado só tem a eficácia que lhe é peculiar, em relação às pessoas que figuraram como partes na acção em que ele se formou; para com terceiros, é res inter alias acta, é por isso nem lhes aproveita/nem os prejudica.” – citações retiradas dos locais indicados na motivação;
2.ª Sendo a causa de pedir os concretos factos que sustentam o pedido, o pedaço da vida que sustenta o pedido, há identidade da causa de pedir quando nas duas acções se sustentam os pedidos nas alegadas violações, pelos mesmos actos da mesma pessoa, dos direitos de personalidade do autor, porque ambas as pretensões procedem do mesmo facto jurídico, independentemente da qualificação dada, nas duas acções, aos factos pois que “a qualificação jurídica dada aos factos na primeira acção nunca é elemento identificador do caso julgado, estando vedada nova acção em que aos mesmos factos se atribua uma nova qualificação (trata-se dum corolário de a causa de pedir ser sempre um facto concreto, e não o facto abstractamenle descrito na lei). ” – citações retiradas dos locais indicados na motivação;
3.ª. Há identidade do pedido se numa acção o autor pede do réu uma indemnização para reparação de danos sofridos com os actos ali descritos e numa subsequente acção volta a pedir do mesmo réu uma indemnização para reparação dos mesmos danos, uma vez que “não prejudica a identidade do objecto o facto de se ter pedido primeiro o todo e pedir-se depois uma parte dele.” – citações retiradas dos locais indicados na motivação;
4.ª Verificada a tripla identidade, ocorre a excepção do caso julgado, ainda que a primeira acção tenha terminado por desistência do pedido, sobretudo se na homologação dessa desistência o tribunal declarou extinto o direito, “muito embora não se tendo procedido na realidade à apreciação do mérito da causa, tudo se passa ou equivale a como se o tivesse feito” – citações retiradas dos locais indicados na motivação;
5.ª. Verificada a existência da excepção dilatória do caso julgado, nos termos do disposto na alínea i) do artigo 577.º e no artigo 581.º, ambos do Código de processo Civil, deve o tribunal declará-lo, abstendo-se de conhecer do mérito da causa e absolvendo o réu da instância, nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 576.º, do mesmo Código.

SEM PRESCINDIR

A EXTINÇÃO DO DIREITO

6.ª. Mesmo que se entenda que aquela decisão não faz um verdadeiro caso julgado, apesar de declarar extinto o direito, sempre o direito não pode deixar de considerar-se extinto. É que,
7.ª Se numa acção em que o autor demanda três réus, pedindo deles uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos em consequência dos actos que alega terem sido praticados por estes, o autor desiste totalmente do pedido relativamente a todos os réus, isso faz extinguir esse alegado direito, porque a desistência do pedido extingue, “além da instância, o direito que pela acção se pretendia fazer valer”, sendo certo que “o conflito de interesses, traduzido na lide ou na relação substancial em litígio, fica resolvido e arrumado”, motivo por que “sob este aspecto, a desistência do pedido, a confissão e a transacção exercem a mesma função que a sentença de mérito: como esta, põem têrmo à causa, compondo-a.” – citações retiradas dos locais indicados na motivação;
8.ª. Se esse direito se extingue pela desistência, e se o mesmo autor, depois e como se o direito não estivesse extinto, demandar qualquer um dos mesmos réus para pedir indemnização para reparação dos mesmos danos ou de parte deles, deve ser julgada procedente a excepção peremptória da extinção do direito, e o réu absolvido do pedido, nos termos do disposto no n.º 3, do artigo 576.º, do Código de Processo Civil.

Nestes termos e nos melhores doutamente supridos por V.a.s. Exas, deve a sentença recorrida ser confirmada seja pelos mesmos fundamentos, seja pela procedência da excepção do caso julgado, seja pela procedência da extinção do direito alegado na petição inicial.

Também a chamada/recorrida responde ao recurso nas contra-alegações que apresenta as quais termina pedindo que seja negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA.

Colhidos os vistos legais cumpre conhecer e decidir.

II. Questões a conhecer

Compulsando as conclusões das alegações do presente recurso, delas resulta que o autor se insurge contra a decisão recorrida essencialmente com base em dois fundamentos: a) inexistência, no caso, de excepção de caso julgado (por inverificação de identidade dos pedidos nas acções em confronto); b) impossibilidade legal de formação de caso julgado (por na primeira acção não se ter conhecido do mérito).
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III. FUNDAMENTAÇÃO

Os Factos:

O Tribunal proferiu a seguinte decisão de facto:

Com interesse para a causa dão-se por assentes os seguintes factos:

1.- Em Março de 2016, o aqui autor apresentou, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, uma ação, que foi distribuída à Unidade Orgânica 1, onde passou a correr termos sob o n.º 625/16.2BEBRG, em que demandou a Unidade Local De Saúde ..., o aqui réu, P. M., e a sua já ex-mulher, M. C., pedindo: que os réus fossem “condenados a pagar ao autor a quantia de € 100.000,00 a título de danos não patrimoniais descritos na presente ação, acrescida de juros de mora” .
2.- Para esse pedido, o autor narrou, ainda que de forma algo diferente, os mesmos factos como ressalta da petição junta a fls. 118 v.º a 127 (cfr.doc. 4 da contestação).
3.- O autor alegou – como resulta da petição inicial – os seguintes factos:

− que em 9 de Março de 2013, foi notificado do despacho de arquivamento do primeiro processo crime por imputada violência doméstica, após o que, a conselho da sua mulher, consultou o aqui réu, tendo em vista “restabelecer a harmonia do seu lar” e que nunca mais consultou o aqui réu fosse para o que fosse – cf. artigos 5.º a 13.º
− que essa visita alteraria a sua vida, que esteve emigrado, tendo regressou a 25 de Fevereiro de 2014, quando foi surpreendido pela notícia de que a sua então mulher não queria restabelecer laços conjugais – artigos 14.º a 24.º
− que, com o correr do tempo se apercebeu que a sua então mulher “vinha arquitetando um plano para se divorciar”, “sem que aos olhos do meio social onde a mesma se move a mesma ficasse com o ónus de ter requerido o divórcio”, tendo-se valido das funções do aqui réu, que lhe passou receitas e certificados de incapacidade para o trabalho, bem como relatórios que estiveram na génese de outros relatórios elaborados por outras instituições e que conduziram à sua condenação pela prática do crime de violência doméstica – artigos 25.º a 27.º 25/151 PÁGINA 24 DE 55
− que não compareceu a nenhuma consulta nos dias 23 de Maio, 26 de Setembro, 3 de Outubro, 15 e Outubro,7 de Novembro, 14 de Novembro, todos de 2013, nem a 9 de Janeiro de 2014, e que o aqui réu aferia do estado de saúde do autor através do relato da sua então-mulher – artigos 28.º a 32.º
− que foram elaborados dois relatórios, um em 20 de Outubro de 2013 e outro em 12 de Dezembro de 2013, que ali transcreve, sem que fossem precedidos de exame direto ao autor, e destinando-se a prejudicar os interesses do autor quer na CPCJ quer no Tribunal – artigos 33.º a 40.º
− que o plano arquitetado pela sua então mulher resultara porque o autor fora condenado pela prática do crime de violência doméstica, o que lhe causou forte abalo emocional – artigos 50.º a 52.º
− que as informações clínicas levantam questões de violação de segredo médico, citando as normas dos artigos 85.º, 86.º e 91.º do Código deontológico da Ordem dos Médicos, o que só foi possível atentas as relações profissionais entre a sua então mulher e o aqui réu – artigos 59.º a 70.º
− que a terem existido práticas de consultas não presenciais, elas são manifestamente violadoras das legis artis e de inúmeros preceitos legais, como o de reserva sobre a intimidade da vida privada (consagrado no artigo 26.º, da Constituição da República, e no artigo 80.º, do Código Civil), o de confiança em certos grupos profissionais (consagrado no artigo 195.º, do CP), o de proteção da segurança e credibilidade na prática jurídica probatória (consagrado no artigo 260.º, do CP) – artigos 72.º a 84.º;
− que dúvidas não há que o réu violou com a sua conduta diversas normas de natureza constitucional, legal, deontológicas e legis artis – artigo 106.º
− que a atuação do réu foi dolosa, porque com o propósito único de fazer crer às autoridades policiais e judiciais, bem como à comunidade, que o autor padecia de patologia mental grave – artigo 113.º
− que assiste ao autor o direito a ser “ressarcido por todos os danos que lhe foram causados pelas condutas adotadas pelos ora réus”, porquanto “as mesmas foram não só lesivas dos direitos à reserva da vida privada, à confidencialidade sobre o seu estado de saúde, mas também de outros direitos do autor” – artigos 118.º a 120.º
− que o autor sofreu e sofre um enorme desgaste emocional, tendo perdido amizades, sentido humilhação, vexame, o que o levou a mudar de residência para o Porto e depois para Barcelos – artigos 126.º a 128.
4.- O aqui réu, em conjunto com a Unidade Local De Saúde ..., contestaram a referida ação. (Cf. doc. 5 da contestação junto a fls. 166 a 189).
6.- O autor apresentou naqueles autos do Tribunal Administrativo e Fiscal um requerimento em que consta, com interesse,

“Eu, […] vem desistir do pedido quanto aos réus Dr. P. M., Unidade Local De Saúde ... e M. C., nos termos das disposições conjugadas nos art.º 285.º n.º 1, 286.º n.º 2 e 290.º, do Código de Processo Civil”. (Cf. doc. 6 da contestação junto a fls. 190).
7.- Em 11 de Julho de 2016, a Ex.ma Senhora Juíza de Direito do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga proferiu a seguinte decisão:

“Pelo exposto, atentas as razões e as normas invocadas supra mencionadas admito a desistência total do pedido formulado pelo Autor conforme disposto nos artigos 283.º.285.º n. º1, 286 n. º2 do CPC, aplicável ex. vi do artigo 1.º do CPTA.” (Cfr.doc junto a fls 190v.º e 191)
8.- A referida decisão transitou em julgado.
9.- Na presente ação o Autor pede que o réu seja “condenado a pagar ao autor a quantia de 20.000,00 € (vinte mil euros), acrescida de juros”
10.- Para esse pedido, o autor narrou pela mão de outro Sr: º Advogado, os seguintes factos
− que no início de Março de 2013, consultou o aqui réu – cf. artigos 3.º a 4.º
− que essa visita alteraria profundamente a sua vida, que esteve emigrado – artigo 21.º e 22.º
− que não compareceu a nenhuma consulta nos dias 23 de Maio, 5 de Setembro, 26 de Setembro, 3 de Outubro, 15 e Outubro, 7 de Novembro, 14 de Novembro, todos de 2013, e que o aqui réu prescrevia e relatava sem a presença do autor e sem o seu consentimento – artigo 12.º e 15.º
− que foi elaborada uma informação clínica (muda o nome, mas a informação é a mesma), que ali transcreve, sem que fossem precedidos de exame directo ao autor – artigos 6.º e 10.º
− que foi condenado pela prática do crime de violência doméstica com base nesse elemento de prova – artigos 5.º a 9.º
− que a atuação do réu não se pautou pela sua ciência e consciência, violando ostensivamente os seus principais deveres deontológicos, a dignidade e o segredo médico, transcrevendo os artigos 10.º, 86.º e 98.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos – artigos 15.º a 18.º, 39.º a 43.º
− que a atuação do réu (pensamos que nas consultas não presenciais em que se renovou receituário e os referidos documentos), violou as regras médicas e agrediu os direitos de personalidade do autor, concretamente o seu direito ao bom nome, à imagem e reserva da intimidade da vida privada (consagrado no artigo 26.º, da Constituição da República), o de confiança em certos grupos profissionais (consagrado no artigo 195.º, do Código Penal), causando-lhe danos irreversíveis – artigos 19º, 20.º, 25.º a 36.º;
− que assiste ao autor o direito a ser indemnizado pelas “afrontas aos direitos de personalidade”, pela ofensa à sua integridade física (o que é um lapso porque não há facto nenhum relativo a ofensa física) e moral – artigos 37.º, 43.º, 44.º, 45.º
− que o autor sofreu enorme perturbação emocional, amargura, revolta, vexames, perda de oportunidade de emprego, má reputação, mal-estar, desgosto, mudanças de residência e outros “danos não patrimoniais” – artigos 46.º a 51.º

Motivação da decisão de facto

Ao dar-se os factos como provados o tribunal valorou toda a prova documental junta com a p. i. e com a contestação apresentada pelo Réu. Dada evidência dos documentos a que se faz referência a cada facto a sublinhado o tribunal alicerçou a sua convicção com base na veracidade dos mesmos. Na verdade, as declarações neles marradas são verdadeiras, os factos a que se faz referência na realidade aconteceram e a autoria de tais declarações também não foi posta em causa.
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O Direito:

A decisão recorrida termina com o seguinte dispositivo:

a). Julgar improcedente a exceção dilatória do caso julgado invocada pelo Réu;
b). Julgar verificada a exceção perentória processual imprópria da autoridade do caso julgado, julgando-se, consequentemente, a presente ação totalmente improcedente, absolvendo-se o Réu e a chamada Companhia de Seguros do pedido.

Defende-se o Apelante/autor dizendo o seguinte:

Comparados ambos os processos, nomeadamente a identidade de partes, de pedidos e da causa de pedir, resulta clarividente que não se encontram preenchidos quaisquer requisitos que a lei faz depender para que se possa invocar a excepção do caso julgado – cf. artigo 581º do C.P.C, tal como o Mmo. Juiz a quo bem entendeu/decidiu.

Relativamente aos sujeitos processuais, constata-se que apesar do aqui Recorrente (Autor) e Réu intervirem na mesma qualidade na Acção Administrativa n.º 625/16.2BEBRG, aí existiram outros dois Réus (Unidade Local De Saúde ..., EPE e a M. C.).

Quanto ao pedido, temos que na Acção Administrativa n.º 625/16.2BEBRG o Recorrente pediu a condenação solidária dos ali Réus ao pagamento de uma indemnização nunca inferior a 100.000,00€. Enquanto nesta acção o Recorrente pede a condenação do Réu ao pagamento da quantia de 20.000,00€.

Além disso, o pedido formulado numa e noutra acção não é de todo semelhante, não se vislumbrando com rigor a identidade do pedido (Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado vs Responsabilidade Civil do Réu). E também a causa de pedir, numa e noutra acção, é diferente.

Na verdade, na presente acção o Recorrente alegou factos que inexistiam à data em que Acção Administrativa n.º 625/16.2BEBRG deu entrada no TAF de Braga (Março de 2016), como é o caso da pena disciplinar de advertência em que o Réu foi condenado pelo Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos.
(…)
Quanto à excepção peremptória da autoridade do caso julgado, reitera-se a doutrina e jurisprudência referida ao longo das alegações, salientando:

A excepção da autoridade do caso julgado está intimamente interligada com a força do caso julgado material, que abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.

Ou seja, através daquela excepção visa-se o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito.Mas para se saber se uma dada decisão tem “autoridade de caso julgado” noutro processo, é necessário proceder-se à determinação dos limites daquela decisão, ou seja, dos “termos em que a sentença julga”.

Neste conspecto, a desistência do pedido formulada pelo Recorrente no processo administrativo n.º 625/16.2BEBRG, constituiu um negócio processual (unilateral) efectivamente firmado pela parte interveniente na acção, correspondente àquilo que ela realmente quis (a desistência do pedido é livre – ex. vi do n.º 2 do artigo 286º do C.P.C.).
Ao homologar tal declaração de desistência, a Mma. Juiz do TAF de Braga, nos termos do disposto no art.º 290.º, n.º 3 do C.P.C., limitou-se a fiscalizar a legalidade, a verificar a qualidade do objecto desse negócio jurídico e a averiguar a qualidade da pessoa que fez tal declaração.
Portanto, em momento, a Mma. Juiz tomou qualquer posição acerca do litígio propriamente dito, isto é, jamais dirimiu jurisdicionalmente o pleito.

Apreciando

▪. Excepção do caso julgado

Conforme supra se transcreve a decisão recorrida considerou inverificada a excepção do caso julgado. Tal significa que em relação a esta questão o recorrente não ficou vencido na sua pretensão, pelo contrário a sua pretensão de não verificação da excepção do caso julgado foi atendida.

Carece, portanto, o autor de interesse em recorrer nesta parte - artº 631º do CPC, o que se declara.

Prejudicado fica assim o conhecimento do recurso subordinado acima identificado. - Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 115.

▪. Autoridade do caso julgado e desistência do pedido

Por ter interesse para a apreciação da questão supra enunciada começaremos, antes de mais, por fazer uma abordagem teórica da controversa figura processual do caso julgado caracterizando-a.

O caso julgado constitui uma excepção dilatória (artigo 577º alínea i) do Código de Processo Civil), que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigo 576º nº 2 do Código de Processo Civil).

A excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e/ou reclamação (denominado trânsito em julgado, artº artigo 628º do Código de Processo Civil) e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, conforme resulta do artigo 580º do Código de Processo Civil.

Quanto aos requisitos do caso julgado (e da litispendência) diz-nos o artigo 581º do Código de Processo Civil que:

“1. Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”
E, diga-se ainda, o que releva para efeitos de apreciação temporal do caso julgado, não é a decisão que se refere ao processo que foi intentado em primeiro lugar, mas a que primeiro transitar em julgado (cf. artigo 625º nº 1 do Código de Processo Civil).
No que concerne ao alcance do caso julgado, a sentença constitui caso julgado nos limites e termos em que julga (artigo 621º do Código de Processo Civil).

A lei distingue nos artigos 619º, nº 1, e 620º do Código de Processo Civil entre o caso julgado material e o caso julgado formal, conforme a sua eficácia se estenda ou não a processos diversos daqueles em que foram proferidos os despachos, as sentenças ou os acórdãos em causa.

A propósito do caso julgado material, expressa a lei que, transitados em julgado os despachos, as sentenças ou os acórdãos, a decisão sobre a relação material controvertida tem força obrigatória nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º do Código de Processo Civil (artigo 619º, n.º 1, do Código de Processo Civil) acima enunciados.

A propósito do caso julgado formal, expressa a lei que os despachos, as sentenças e os acórdãos que recaiam unicamente sobre a relação processual apenas têm força obrigatória dentro do processo (artigo 620º do Código de Processo Civil).

Assim, a excepção do caso julgado pode assentar em decisão de mérito proferida num processo anterior ou em decisão anterior proferida sobre a relação processual.

O caso julgado material tem força obrigatória no processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material objecto do litígio.

O caso julgado formal apenas tem força dentro do processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impede que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal ou por outro, entretanto chamado a apreciar a causa.

Ainda no campo do caso julgado material, há que distinguir, como ensina Antunes Varela Manual de Processo Civil, pág. 685, nota (1) entre a exceção do caso julgado – se volta a ser proposta uma ação idêntica à anterior – e a força do caso julgado – que respeita às questões prejudiciais já decididas.

Nesta mesma linha sustentam Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª edição, pág. 354 citando Castro Mendes, que a exceção do caso julgado se não confunde com a autoridade do caso julgado, já que pela primeira se visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, configurando-se o caso julgado como obstáculo a nova decisão de mérito, enquanto a segunda tem, diversamente, o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Segundo estes autores, “este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.

Ainda segundo Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, pág. 579 O caso julgado da decisão também possui um valor enunciativo: essa eficácia de caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada. Excluída está, desde logo, a situação contraditória: se, por exemplo, o autor é reconhecido como proprietário, então não o é o demandado (…)”

A autoridade do caso julgado funciona independentemente da verificação da tríplice identidade exigida no art. 498º do CPC, então vigente, “pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.”- Acórdão do STJ de 21.03.2013, Cons. Álvaro Rodrigues, Proc. 3210/07.6TCLRS.L1.S1, e bem assim os demais nele mencionados: de 13.12.2007, processo nº 07A3739; de 06.03.2008, processo nº 08B402, e de 23.11.2011, processo nº 644/08.2TBVFR.P1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.»

Por outro lado, é dominante o entendimento jurisprudencial segundo o qual a força do caso julgado material abrange “para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedentes lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.” – ver citado acórdão do STJ de 21.03.2013.
Em face do que nos diz a doutrina e jurisprudência podemos concluir que a consequência prática do caso julgado traduz-se em dar por esgotado um «thema decidindo».

“No plano dos fundamentos de facto, preclude-se ao autor a possibilidade de, em nova acção, e dentro da mesma causa de pedir, vir carrear outros fundamentos, de facto ou de direito, não produzidos no processo anterior.

Por insuficiência de matéria de facto, não pode vir a discutir-se na nova acção a factualidade que deveria ter sido alegada naquela primeira acção e que na realidade o não foi.

Sustentando tais pretensões no mesmo título jurídico ou causa de pedir, que não sofre, para esse efeito, modificação relevante pela circunstancia do Autor alegar e procurar provar no segundo processo factos anteriores ou contemporâneos do primeiro pleito judicial, que então não equacionou articular e demonstrar e que estiveram na base do decaimento dos correspondentes pedidos” (Ac. do TRL de 13-05-2015/Proc. 105/13.8TTALM.L1-4 (JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO))

Também, com grande pertinência a este respeito, se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18/04/2013, no processo 2204/10.9TBTVD.L1-2, disponível em www.dgsi.pt “Como refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., 176, “Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspeto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de ação ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjetiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior”.
A autoridade do caso julgado abrange, pois, para além da componente decisória da sentença, as questões preliminares que constituam pressupostos lógicos e necessários indispensáveis à emissão da parte dispositiva do julgado – v. neste sentido, Ac. STJ de 29.06.76, anotado na R.L.J. 110.º, 232.

É que, o trânsito em julgado de uma qualquer sentença de mérito é suscetível de produzir outros efeitos, mais difusos, mas não menos importantes quando se trata de relevar os valores da certeza e da segurança jurídica que qualquer sistema deve buscar e proteger. Trata-se da eficácia preclusiva dos fundamentos de defesa que, em regra, se esgotam com o decurso do prazo para a dedução da contestação.

Por isso, em princípio, todos os fundamentos de defesa que não sejam apresentados na primeira ação ficam cobertos pela autoridade do caso julgado formado pela sentença - cf. neste sentido Acs. do STJ, de 13.12.07 (P. º 07A3739), de 23.11.11 (P. º 644/08.2TBVFR.P1. S1) e de 10.10.2012 (P. º 1999/11.7TBGMR.G1. S1). (…) mesmo os que ele não chegou a deduzir, e, até os que poderia ter deduzido com base num direito seu (por ex., ser ele, réu o proprietário do prédio reivindicado), cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil págs. 306 e 324.

Com o trânsito em julgado de uma sentença fica excluída a possibilidade de confrontar o tribunal com qualquer situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada- acórdão da Relação de Guimarães datado de 10.07.2018 e proferido no processo nº 6090/17.0T8GMR.G1. acessível em www.dgsi.pt.

Se a decisão em causa foi decisiva para a procedência ou improcedência da acção, impõe-se aquela autoridade, não podendo o tribunal da segunda acção julga-la em contrário mesmo que a causa de pedir seja diferente - Silva Carvalho, O Caso Julgado na Jurisdição Contenciosa (como excepção e como autoridade-limites objectivos e na jurisdição Voluntária (haverá caso julgado) citado no acórdão desta Relação suprarreferido.

A preclusão opera, portanto, relativamente a todos os factos que a parte podia ter deduzido na acção anterior.

A ser de outra forma a mesma pretensão poderia ser reapreciada várias vezes perante os mesmos sujeitos, ainda que mediante elementos de facto diversos, de que, segundo a sua conveniência, o autor se iria socorrendo sucessivamente até obter ganho de causa. Se isso fosse consentido, não ficaria salvaguardado o prestígio do órgão-tribunal, pois a todas as luzes ficaria aberta a porta a julgados efectivamente contraditórios, ou, no mínimo, incongruentes.

O caso julgado cobre, por conseguinte, a causa de pedir concretamente aduzida na acção anterior e também aquela que virtualmente o poderia ter sido e por qualquer motivo o não foi (sublinhado nosso).

É que a sentença define a relação material controvertida tal como existia ao tempo em que foi proferida, mais exactamente ao tempo do encerramento da discussão da causa (sem impedir as vicissitudes ulteriores próprias da relação tal como foi definida).

Mas é também esta visão do caso julgado que coloca a identidade das partes no plano da respectiva qualidade jurídica, na expressão do mesmo interesse jurídico que elas representam na causa proposta após o julgamento de uma primeira.

Não releva aqui a identidade física ou nominal, mas o interesse jurídico que a parte concretamente actuou e actua no processo.

Por fim, o pedido deve ser encarado na essência da pretensão, ou seja, no direito que na mesma é objecto de tutela implícita ou explícita, e não nas simples consequências que encontrem a formulação no texto do articulado.

Por virtude desta necessária referência substancial, há sempre que avaliar se o direito que esteve subjacente ou implícito na declaração resultante do julgamento anteriormente prolatado na primeira causa volta a ser alvo de apreciação na segunda- Neste sentido, vide, entre outros, Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 1981, pp. 97-99.

No que se reporta à desistência do pedido resulta do estatuído no artº 286, nº 2, que a desistência do pedido é (ao contrário da desistência da instância - cf. nº 1) livre, determinando, nos termos do disposto no nº 1 do artº 285, nº 1, a extinção do direito que na acção se pretendia fazer valer.

A desistência do pedido significa ou implica, nas palavras do cons. Rodrigues Bastos (in “Notas ao CPC, vol. 2º, pág. 81”), o reconhecimento, por parte do autor, de “não lhe assistir direito à sentença de mérito que pretendia” ou, por outras palavras e no dizer do prof. Alb. dos Reis (in “Comentário ao CPC, vol. 3º, pág. 374”), que o autor “reconheceu implicitamente que a sua pretensão é infundada”.

Dissertando sobre a desistência do pedido, também a ela se refere prof. Lebre de Freitas (in Ob. cit., pág. 524”) como meio por excelência de auto-composição dos litígios, afirmando que o citado nº 1 do artº 291 exprime a “afirmação da directa actuação do negócio de auto-composição do litígio sobre a situação jurídica (material) que é objecto do pedido, a qual, quer existisse quer não anteriormente, é objecto dum negócio que opera como um facto extintivo, precludindo a questão da sua existência e conformação anteriores”. Para mais a frente (a pág. 533) voltar a afirmar que “tratando-se de negócio de auto-composição do litígio, o juiz verificado que o acto é válido e pertinente para o processo, profere sentença homologatória, que, embora não aplicando o direito objectivo aos factos provados na causa, constitui uma sentença de mérito, como tal condenando o réu no pedido ou dele o absolvendo, consoante o negócio jurídico celebrado”. E que, no caso de desistência do pedido, “a sentença homologatória tem, para além deste (referindo-se à extinção da instância), o efeito de constituir caso julgado material (artºs 301, nº 2, e 671, nº 1)”. (sublinhado nosso)

Aliás, no mesmo sentido se pronunciou o STJ na fundamentação do seu assento de 15/06/1988 (hoje com valor de acordão uniformizador de jurisprudência – cfr. artº 17, nº 2, do acima citado DL nº 329-A/95), publicado no DR, Iª S, de 1/8/1988 e no BMJ nº 233 – 474, e do qual resultou, em termos finais, a fixação da seguinte doutrina: “O desistente do pedido de simples apreciação prescinde do conhecimento do respectivo direito e, por isso, o caso julgado impedi-lo-á de estruturar nele um pedido de condenação”- neste sentido acórdão da Relação de Coimbra proferido no processo nº 2792/06.4TBVIS.C1 com data de 22.01.2008/ relator Isaías Pádua.
“A desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer, pelo que os efeitos preclusivos do caso julgado material impedem ao autor que faça emergir novamente um pedido indemnizatório, atribuindo-lhe um diferente valor ou mesma uma diferente construção jurídica…o conflito de interesses, traduzido na lide ou relação substancial em litígio, fica resolvido e arrumado” - v. Ac. do STJ de 14/07/2009 in www.dgsi.pt no processo 115/06.1TBVLG.S1
Expressão recente deste entendimento aponta-se o acórdão desta Relação de Guimarães datado 14.06.2018 proferido no processo nº 364/05.0TBCMN-K. G1 acessível in dgsi.pt, dando conta da modernidade desta posição, com diversa citação da jurisprudência e doutrina.

Ora, de tudo acabado de expor (doutrina e normativos legais citados), resulta a conclusão de que uma sentença judicial homologatória de uma desistência do pedido, devidamente transitada, constitui caso julgado material, isto é, produz eficácia de caso julgado material em relação ao direito que na respectiva acção o desistente pretendia fazer valer, e tendo sempre por base a relação jurídica que pelo mesmo ali foi configurada (pois muito embora não tendo procedido na realidade à apreciação do mérito da causa, tudo se passa ou equivale a como se o tivesse feito).

No caso concreto perante o mesmo Réu, o autor já tinha deduzido um pedido indemnizatório ainda que de menor valor o que fez na perseguição do mesmo interesse substancial ( por ofensa aos direitos fundamentais do autor, por todas as afrontas aos direitos de personalidade do autor e por um vasto rol de danos não patrimoniais), sustentado na alegada violação dos seus direitos de personalidade, a reserva da vida privada, a confidencialidade do seu estado de saúde, consubstanciada nas alegadas consultas não presenciais, alegada emissão de certificados de identidade, de relatórios tudo feito com o propósito de obter a condenação do recorrente no processo crime por violência doméstica, desistindo, porém, do mesmo, ou seja, reconhecendo – bem ou mal, não interessa – que o mesmo não tinha qualquer cabimento.
Significa isto que, com tal desistência, precludiu o direito que o Autor pretendia fazer valer sobre o Réu.
Assim, transitada em julgado a decisão que julgou válida a desistência, nada mais há a fazer do que respeitar a força jurídica da mesma: a composição do litígio ficou definitivamente resolvida.
Cremos, assim, que bem andou o Julgador a quo em absolver o réu da instância, sendo de manter a decisão recorrida.
Desde modo, irrelevam as conclusões do recorrente, sendo de julgar improcedente o recurso.

▪. Das custas

É critério para atribuição do encargo das custas o da sucumbência e na respectiva proporção (artigo 527º, nºs 1 e 2, do código de processo).

Na hipótese, o recurso de apelação é integralmente improcedente; o encargo das custas é, no total, vínculo do apelante que o apresentou e que ficou vencido nas suas pretensões, sem prejuízo da decisão proferia sobre ao apoio judiciário.
**
Podendo, deste modo, concluir-se, sumariando (art. 663º, nº7 CPC), que:

- A desistência do pedido representa o reconhecimento pelo demandante de que a situação jurídica alegada não existe ou se extinguiu, arrastando consigo a extinção da situação jurídica que pretendia tutelar, sendo que a homologação da desistência do pedido, ao contrário do que sucede com a absolvição da instância, constitui caso julgado material.
- Daí que uma sentença judicial homologatória de uma desistência do pedido, devidamente transitada, constitui caso julgado material, isto é, produz eficácia de caso julgado material em relação ao direito que o desistente pretendia fazer valer, muito embora não se tendo procedido na realidade à apreciação do mérito da causa, tudo se passa ou equivale a como se o tivesse feito.
***
IV. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo apelante
Notifique
Guimarães, 16 de Maio de 2019
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

O presente acórdão é assinado eletronicamente pelos respectivos
Maria Purificação Carvalho ( Relatora)
Maria dos Anjos Melo Nogueira
José Cravo