Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2760/16.8T8VCT.G1
Relator: FERNANDA PROENÇA FERNANDES
Descritores: EXECUÇÃO
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
PRESSUPOSTOS
IMPULSO PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DO EXEQUENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
“Não decorrendo da tramitação processual que nesta fase do processo os autos aguardem por um acto que cumpria à exequente/apelante praticar; nem decorrendo que esteja em causa uma paragem relativa à falta de um acto imposto pelo cumprimento de um ónus, que impeça o normal prosseguimento dos autos; ou que se tenha verificado uma atitude omissiva da exequente, reveladora da falta de diligência normal e exigível em face das circunstâncias do caso concreto, não se mostrarem reunidos os requisitos legais previstos no artigo 281º nº 5 do CPC, para a declaração da deserção da instância executiva”.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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I. Relatório.

O exequente “Banco 1..., SA” instaurou a presente execução para pagamento de quantia certa, tendo por base e como título executivo uma escritura pública de “Mútuo com Hipoteca e Fiança”.
Alegou o exequente no requerimento executivo, o seguinte: “Sucede que o executado não pagou a prestação que se venceu na data identificada no capítulo do presente requerimento referente a liquidação da obrigação, pelo que se venceu o capital então em dívida, acrescido dos juros compensatórios calculados à taxa então em vigor, relativos ao período decorrido entre a última prestação paga e a primeira vencida e não paga e dos juros moratórios calculados à mesma taxa, mais 3%, desde esta data, até integral pagamento e ainda do montante pré-fixado para despesas judiciais e extrajudiciais. O Banco Exequente tem, pois, o direito de haver dos Executados em regime de solidariedade (o executado AA como devedor principal e os executados BB e CC como fiadores e principais pagadores que renunciaram ao benefício da excussão prévia) e estes têm a obrigação de pagar-lhe as parcelas vindas de indicar, devidamente contabilizadas em sede de liquidação da obrigação”.
Por intermédio do Sr. Agente de Execução nomeado nos presentes autos, o Exequente logrou penhorar, entre outros, quatro imóveis.
A 16.12.2020, o Sr AE decide vender por leilão electrónico 3 desses imóveis penhorados.

A 19.12.2021 veio a ser proferido o seguinte despacho:
“Assim sendo, inexistindo acordo entre Exequente e Executado quanto ao valor de venda da verba n.º 1, determina-se que o AE encete as diligências necessárias à sua fixação de acordo com o seu valor de mercado, nos termos do nº 5 do art.º 812.º do Cód. Proc. Civil.---“
Por requerimentos de 11.02.2022 e de 06.11.2023 (este já após a decisão apelada), veio o Sr. AE solicitar ao Tribunal que se proceda à nomeação de perito avaliador, para que o mesmo venha indicar qual o valor a atribuir às verbas penhoradas.
A 17.02.2022 foi proferido despacho ordenando a notificação de exequente e executado para sobre tal requerimento se pronunciarem.
Surge depois um incidente de habilitação de cessionário, que apenas vem a terminar por decisão de 31.03.2023, que homologou por sentença a desistência de tal incidente. Nessa mesma decisão, ficou igualmente a constar:
“Entretanto, deverá o Exequente primitivo ser notificado do teor do requerimento que antecede, designadamente atendendo à previsão do art.º 281.º, n.º 1 do CPC.---“
No silêncio do exequente, foi proferida a seguinte decisão, a 25.10.2023:
“Uma vez que o processo se encontra a aguardar o impulso processual do Exequente há mais de seis meses, declara-se deserta a presente instância [art.º 281.º, n.º 1 do CPC].---
Registe e notifique.---“
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Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o exequente.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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O exequente/apelante, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“CONCLUSÕES

A. Foi proferida sentença a julgar a instância deserta por falta de impulso processual do exequente;
B. Ora, atentas as circunstâncias do caso concreto não pode, a recorrente, conformar-se com tal decisão, não podendo o Tribunal a quo ter decidido como decidiu uma vez que a recorrente, indicou desde logo no seu requerimento as disposições legais que obstam a que seja mantida a suspensão.
C. O artigo 281º do Código de Processo Civil, estabelece os casos em que ocorre a deserção da instância, nomeadamente se os autos permitirem concluir que i) decorreu um prazo de seis meses sem impulso processual da parte sobre a qual impende o respectivo ónus, o que não equivale necessariamente a um incumprimento da obrigação do agente de execução de manter atualizado o registo dos actos por si praticados ii) a falta desse impulso seja imputável a negligência activa ou omissiva da parte assim onerada, em termos de poder concluir-se que a falta de tramitação processual seja imputável a um comportamento da parte dependente da sua vontade.
D. Das várias situações que podem conduzir à deserção da instância deve ser feita uma ponderação relativamente à actividade das partes, sendo que em determinados casos o iter processual está tão perfeitamente delimitado na lei que a mera inércia das partes:
E. Contudo, podem existir situações em que porventura o ónus de promoção da atividade processual não seja claro ou mesmo em que, sem embargo da actuação da parte nesse sentido, recaia também sobre o Tribunal o dever de cooperar com as partes exercendo o dever de gestão processual;
F. Nos presentes autos, em virtude da reclamação dos executados quanto ao valor atribuído ao imóvel, aguardava a nomeação de um perito pelo Tribunal, pelo que não se verifica a inércia do Exequente;
G. O Tribunal deveria ter procedido à notificação do Exequente, dando-lhe oportunidade de se pronunciar sobre as mesmas, sendo que só assim dava cabal cumprimento, não só ao princípio do contraditório, como ao seu dever de gestão processual e de cooperação com as partes.
H. Foram violadas, violadas, entre outras disposições, o previsto n o artigo 3º n.ºs 1 e 2, artigo 6º, 7º e 281º todos do Código de Processo Civil.

NESTES TERMOS, E NOS QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS MUI DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO DE APELAÇÃO, E CONSEQUENTEMENTE SER REVOGADA A SENTENÇA DE DESERÇÃO PROFERIDA, E CONSEQUENTEMENTE DETERMINADO O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS, COM A CONSEQUENTE NOMEADO UM PERITO AVALIADOR.”.
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Não houve contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.             

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca à apreciação deste Tribunal é a de saber se deveria ter sido declarada deserta a presente instância executiva.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do relatório supra.
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IV. Do objecto do recurso.            

1. Delimitada que está, sob o n.º II, a questão a decidir, é o momento de a apreciar.

Dispõe o artigo 281º nº 5 do CPC que:
“No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.

De tal norma resulta que são pressupostos para que a deserção da instância executiva possa ser declarada:
a) que o processo se encontre parado há mais de 6 meses;
b) que essa paragem do processo (ou o seu prolongamento) tenha como causa a omissão de um acto das partes que impulsionaria a execução;
c) que essa omissão seja imputável à parte faltosa a título de negligência, ou seja, que sobre ela recaísse o ónus da prática de determinado acto, naquele momento do processo e que o pudesse praticar.

Face à remissão efectuada nesta norma para a negligência das partes, entende-se que não basta a existência de uma paragem no processo para além de seis meses para que se considere que a mesma lhes é imputável e logo que essa paragem determina automaticamente a deserção da instância: apenas no caso de a parte dever praticar determinado acto que despolete o andamento do processo e omita tal acto é que se pode responsabilizá-la pela inércia no andamento do processo.
Como se afirma no Ac. do STJ de 20.04.2021, processo 27911/18.4T8LSB.L1.S1 in www.dgsi.pt “Para apurar da ocorrência de negligência das partes, ao juiz compete analisar o comportamento processual das partes no âmbito do processo, isto é, se a parte (ou partes) demonstraram no processo as dificuldades em impulsionar os autos, as diligências necessárias para remover os eventuais obstáculos com que se tem deparado para afastar a causa que levou à suspensão, e, inclusive, solicitar o contributo do tribunal para que as razões impossibilitadoras do prosseguimento normal dos autos sejam afastadas ou se a parte (ou partes) se manteve numa inação total, desinteressando-se do prosseguimento normal dos autos.”.
Por outro lado, para apurar se a parte deve praticar determinado acto, há que recorrer à lei: só quando a lei exige a prática de um acto concreto no processo é que se encontra um dever que a parte devia ter cumprido e não fez, não bastando a menção a um abstracto dever de promover a execução.
Nessa medida, entendemos que só nos casos em que decorre directamente da lei que naquela fase do processo os autos aguardam por um acto que cumpria à parte praticar (ou nos casos sem que a parte foi alertada pelo juiz da necessidade da prática de determinado acto necessário para o desenvolvimento do processo, no âmbito dos poderes de gestão do processo) é que a omissão da prática desse acto se pode considerar como a falta ao dever de acção que em concreto se impunha e cuja falta conduz à deserção da instância. (cfr. Ac. desta RG de 24.04.2019, proferido no processo nº 1923/15.8T8CHV-C.G1, em que a aqui relatora interveio como 2ª adjunta)
Ou seja, alargar o âmbito do dever de impulsionar a execução à prática de todos os actos que indirectamente podem conduzir ao seu andamento (como o controle dos atrasos dos agentes de execução ou outros), sem que exista uma obrigação directamente imposta por lei para a prática desse acto ou convite judicial nesse sentido, seria onerar os exequentes pelas omissões dos outros intervenientes processuais e eventualmente até serviços, para além do que pode conter a noção de negligência da parte que fundamenta a deserção.
Para além disso, o comportamento omissivo da parte a quem incumbe a prática do acto não se confunde, nem importa, de forma automática, a sua imputação a título de negligência, já que para além de ter de estar em causa uma paragem relativa à falta de um acto imposto pelo cumprimento de um ónus, que impeça o normal prosseguimento dos autos; tem tal omissão que, em concreto, evidenciar uma atitude negligente da parte, ou seja, uma atitude omissiva reveladora da falta de diligência normal e exigível em face das circunstâncias do caso concreto, a qual deve ser aferida em face dos dados conferidos pelo processo.
Na situação dos autos, temos que da tramitação processual acima assinalada, não decorre que nesta fase do processo os autos aguardem por um acto que cumpria à exequente/apelante praticar (mas antes e sim ao Tribunal); nem decorre que esteja em causa uma paragem relativa à falta de um acto imposto pelo cumprimento de um ónus, que impeça o normal prosseguimento dos autos; ou que se tenha verificado uma atitude omissiva da exequente, reveladora da falta de diligência normal e exigível em face das circunstâncias do caso concreto.
Nessa medida, contrariamente ao decidido, entendemos não se mostrarem reunidos os requisitos legais previstos no artigo 281º nº 5 do CPC, para a declaração da deserção da instância executiva.
Procede, pois, a apelação.
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V. Decisão.

Perante o exposto, acordam as Juízes desta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a apelação totalmente procedente, em consequência do que revogam a decisão recorrida.
Custas da apelação, pelos apelados (art. 527º nº 2 do CPC).
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Guimarães, 29 de Fevereiro de 2024

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
Maria Amália Santos
Sandra Melo
(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)