Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | CÂNDIDA MARTINHO | ||
Descritores: | PERDA DE BENS FASE DE INQUÉRITO COMPETÊNCIA MATERIAL DO MP | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 12/17/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I) Como titular do inquérito, o Ministério Público pode praticar todos os actos e diligências necessários à investigação da notícia do crime, segundo uma estratégia que delinear, com excepção, claro está, dos actos materialmente jurisdicionais e dos que contendem com os direitos fundamentais, que são da competência do juiz de instrução, enquanto “juiz das garantias”. II) A declaração de perda constituiu uma competência materialmente jurisdicional, na medida em que está em causa um ato que implica uma real e efectiva quebra do vínculo estabelecido entre o titular originário e os bens e valores, desse modo extinguindo o respectivo direito, mas já a determinação do destino final dos bens e valores constitui um ato de natureza administrativa que não contende com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. III) Materialmente, a determinação do destino dos bens – uma “nota” - trata-se de um ato de decisão de inquérito e que, por isso, compete ao Magistrado do Ministério Público titular dessa fase. | ||
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Decisão Texto Integral: | Desembargadora Relatora: Cândida Martinho Desembargador Adjunto: António Teixeira Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães. I. Relatório 1. Nos autos de inquérito nº639/18.8JFLSB a correr termos no DIAP de Esposende, na sequência do despacho de arquivamento, veio o Ministério Público remeter os autos ao Mmo Juiz de Instrução Criminal a quem promoveu que fosse declarada perdida a favor do Estado a nota apreendida à ordem dos auto, por ter servido para a prática de factos ilícitos típicos e oferecer sério risco de ser utilizada para o cometimento de novos crimes, tudo nos termos dos artigos 109º,nº1 e 2 do C.Penal e 186º,nº2, do C.P.P.) Apresentados os autos à Mma Juiz de Instrução Criminal veio a ser proferido o seguinte despacho: “Nos termos do disposto nos arts.11º da Convenção de Genebra para a Repressão da Moeda Falsa, de 20 de abril de 1929(cuja ratificação foi publicada no Diário do Governo de 20 de outubro de 1930), 268º,nº1,e), do Código de Processo Penal, e 109º do Código Penal, declara-se perdida a favor do Estado a nota falsa de 20€, junta a fls. 16 e à qual se reporta o exame de fls. 17, mais se ordenando a respectiva destruição”. 2. Não se conformando com essa decisão veio o Ministério Público recorrer da mesma, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem: “1- De acordo com o art.262,nº1, do Código de Processo Penal, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação. 2- Nos termos do art.263º,nº1, do Código de Processo Penal, a sua direcção cabe ao Ministério Público. 3- Em casos excepcionais previstos na lei e que se prendem com a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, haverá lugar à intervenção de um juiz na fase de inquérito. 4- Dispõe o art. 268º,nº1,e), do Código de Processo Penal, que compete exclusivamente ao Juiz de Instrução Criminal “declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, com expressa menção das disposições legais aplicadas, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos arts. 277º, 280º e 282. 5- A decisão sobre o destino dos objectos apreendidos é distinta da decisão de perda a favor do Estado dos mesmos objectos. 6- Se quanto à perda do bem, o mesmo compreende a extinção do direito de propriedade do respectivo dono, já no que concerne ao seu destino, o mesmo nãos e intromete com quaisquer direitos de terceiros, nomeadamente o de propriedade. 7- Na fase de inquérito, a autoridade competente para decidir sobre o destino dos objectos declarados perdidos a favor do Estado é o Ministério Público no exercício das suas funções de direcção de inquérito. 8 - Foram violados os arts. 109º,nº3, do Código Penal, e o art. 268º,nº1,al.e), do Código de Processo Penal Termos em que se conclui no sentido supra exposto, julgando-se o presente recurso procedente e proferindo-se douto acórdão que revogue o despacho sindicado”. 3. Neste Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, concluindo pela procedência do recurso. 4. Foi cumprido o art.417º,n2, do C.P.P.. 5. Colhidos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser ai julgado, de harmonia com o preceituado n art.419º,nº3,al.c), do diploma citado II. Fundamentação A) Delimitação do Objeto de Recurso. Dispõe o art. 412º,nº1, do Código de Processo Penal ( diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer referência) que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”. O objeto do processo define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º- naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, VolIII, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103). O âmbito do recurso é dado, assim, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem, as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam. No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir é a seguinte: Saber a quem compete dar destino final à nota apreendida em sede de inquérito, se ao Juiz de Instrução, se ao Ministério Público. B) Apreciação do Recurso De acordo com o disposto no art. 263º,nº1, a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal. O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação, cfr. n.º 1 do artigo 262º. Como titular do inquérito, o Ministério Público pode praticar todos os actos e diligências necessários à investigação da notícia do crime, segundo uma estratégia que delinear, com excepção, claro está, dos actos materialmente jurisdicionais e dos que contendem com os direitos fundamentais, que são da competência do juiz de instrução, enquanto “juiz das garantias”. A intervenção do juiz de instrução no inquérito, como refere Paulo Dá Mesquita, in Direcção de Inquérito Penal e Garantia Judiciária, p. 174, é ocasional, provocada e tipificada. O art. 268º diz respeito aos atos a praticar pelo juiz de instrução e o art. 269º aos atos a ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução. Ou seja, a intervenção do juiz na fase de inquérito preliminar apenas se impõe para acautelar a defesa dos direitos fundamentais dos sujeitos processuais ou de terceiros, relativamente àqueles atos processuais que possam pôr em causa essa mesma defesa. O art.268º enumera os atos, ainda que de forma não exaustiva, como se depreende da alínea f), do nº1, cuja prática, na fase de inquérito, é da competência exclusiva do juiz de instrução e, entre esses atos, encontra-se prevista na alínea e), a “declaração de perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º”. Em tal elenco e, designadamente nesta alínea onde se inclui a declaração de perda, não incluiu o legislador o destino dessa mesma coisa. E cremos que tal ocorreu porque o legislador entendeu que tal competência não deveria ser atribuída em exclusivo ao Juiz de Instrução. Se fosse essa a sua intenção não se vislumbra, de facto, porque não o faria de forma expressa como o fez em relação à declaração de perda. E percebe-se porquê. Com efeito, estão em causa actos de natureza bem distinta. Ora, a declaração de perda constituiu uma competência materialmente jurisdicional, na medida em que está em causa um ato que implica uma real e efectiva quebra do vínculo estabelecido entre o titular originário e os bens e valores, desse modo extinguindo o respectivo direito. Já a determinação do destino final dos bens e valores constitui um ato de natureza administrativa que não contende com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Materialmente trata-se de um ato de decisão de inquérito e que, por isso, compete ao Magistrado do Ministério Público titular dessa fase. A declaração de perda e a declaração do respectivo destino configuram-se como momentos processuais distintos, sendo certo que a representação do Estado – titular dos bens e valores por força da decisão jurisdicional de perda – incumbe ao Ministério Público, não carecendo de qualquer intermediação jurisdicional para o efeito – Acórdão da Relação de Coimbra de 15/7/2009, no âmbito do proc.318/08.4GAACB-A –C1. Assim, sendo o inquérito uma fase processual em que a regra é a competência do Ministério Público na sua direcção, não estando em causa matéria reservada ao juiz de instrução nos termos do citado artigo 268.º, temos que a decisão sobre o destino dos objectos apreendidos é tomada pelo Ministério Público na fase de inquérito, assim como o será pelo juiz de instrução na fase de instrução e pelo juiz presidente na fase de julgamento. Neste sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque – Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e de Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição, página 503. Na senda em que propendemos, vai também a jurisprudência dominante, podendo trazer-se à liça, para além do acórdão já citado da Relação de Coimbra, os acórdãos da Relação do Porto de 9/6/2010, Proc.º 321/07.1EAPRT-A.P1, de 16/3/2011, Proc.º 551/08.9GBVLG-A.P1, de 14/9/2011, Proc.º 271/11.7TASTS-A.P1 e de 7/11/2012, Proc.º 22/08.3FBPVZ-A.P1; da Relação de Lisboa de 26/9/2006, Proc.º 6187/2006-5 e de 28/11/2006, Proc.º 6205/2006-5, todos disponíveis em www.dgsi.pt.. Concluindo-se então que, na fase de inquérito, a autoridade competente para decidir sobre o destino dos objectos declarados perdidos a favor do Estado é o Ministério Público no exercício das suas funções de direção do inquérito, impõe-se a procedência do recurso. III- Dispositivo Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, na parte em que pronunciando-se sobre o destino da nota ordenou a sua destruição, a qual deverá ser substituída por outra que considere pertencer ao Ministério Público a competência para se pronunciar sobre tal destino. Sem tributação. (Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.) Guimarães, 17 de dezembro de 2018 Cândida Martinho António Teixeira |