Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1020/19.7T8PTL.G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: ÁGUAS PÚBLICAS
PREOCUPAÇÃO
PRESUNÇÕES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
– A prova de que determinadas águas originariamente públicas entraram no domínio privado por preocupação, em data anterior a 21 de março de 1868 (art. 1386º, nº 1 – d) do C. Civil) é difícil, mas não impossível, pois além da prova testemunhal o autor pode apresentar prova por documentos, podendo ainda recorrer-se à prova por presunção desde que se prove o facto que estará na base da presunção.
- As presunções decorrem da prova de um facto conhecido que constitui a base da presunção, para depois, daí inferir, através das máximas da experiência, o facto desconhecido, não servindo para descobrir o que se ignora de todo.
- O respeito pelas normas de direito probatório material, não consiste numa violação do art. 20º da C.R.P.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: 

Relatório:

AA, intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB e mulher CC, todos identificados nos autos, formulando os seguintes pedidos:

a) Se declare que:
i.) A Autora é dona e legítima possuidora do prédio referido no artigo 1º da petição.
ii.) O prédio referido no artigo 1º da petição tem direito, para rega, às águas da nascente do “Monte ...”, represadas na poça denominada de “...”, no período assinalado no artigo 8º da petição.
b) Se condenem os Réus:
i.) A reconhecerem os direitos da Autora que acima se pede sejam declarados;
ii.) A reporem a situação no estado que se encontrava anteriormente, isto é, reconstruindo a caixa de derivação e o respetivo rego condutor, referido nos artigos 10º a 14º da petição, permitindo que a Autora utilize a água para regar o seu prédio, melhor identificado no artigo 1º, de forma totalmente livre e desimpedida.
iii.) A não impedirem que futuramente a Autora, no período de rega, proceda à tapagem da água na “...” deixando-a seguir pelo rego existente até chegar e cair no prédio da Autora, referido no artigo 1º, na caixa de derivação aí colocada, abstendo-se da prática de quaisquer atos que possam prejudicar o exercício dos direitos da Autora.
iv.) A indemnizarem a Autora nos prejuízos que se liquidarem em execução de sentença e v.) Nas custas e procuradoria.

Para tanto, e em síntese, alegou ser proprietária do prédio rustico que identifica no art. 1º da petição, sendo que, desde tempos imemoriais, que, por si e antecessores, utiliza para a rega do seu prédio, as águas que nascem no Monte ... – nascente pública utilizada pelos habitantes do lugar ..., cujo uso é a utilização do público em geral, especialmente pelos proprietários dos prédios mais próximos da “...” – em sistema de tapa-tapa, a contar do S. João, dia 24 de Junho até 8 de Setembro de cada ano, descrevendo o percurso da água depois da “...”, sendo o seu prédio, o último prédio a regar. Contudo, por iniciativa dos Réus, a caixa de derivação e respetivo rego condutor que levam as aguas ao prédio da A. foram destruídos, impossibilitando a condução da água de rega para o prédio da Autora. Mais refere que a privação da água tem causado elevados prejuízos à Autora, pois não pode cultivar convenientemente o seu prédio, por falta de água no período de Verão, sendo que os mesmos não se podem quantificar no montante exato e enquanto perdurar a impossibilidade de utilizar a água.
Citados, os RR contestaram, defendendo-se por exceção, visto que a agua em causa é publica, o que inviabiliza a aquisição da mesma pela A., e por impugnação, apresentando uma versão diversa da autora.
Concluem, pugnando pela procedência da exceção invocada e pela consequente absolvição da instância, pela improcedência da ação e consequente absolvição de todos os pedidos, caso assim não se entenda.
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A A. apresentou resposta à contestação, pugnando pela improcedência da exceção, concluindo pela procedência do pedido.
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Foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.
A A. apresentou nova petição, reduzindo o pedido (não manteve o pedido indemnizatório, não alegando a respetiva causa de pedir), o que foi admitido.
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Realizou-se o julgamento e foi proferida sentença que julgou a ação nos seguintes termos:

“Nos termos e com os fundamentos expostos, decido julgar parcialmente procedente, a presente acção e, em consequência:
a) Declaro que a A. é dona e legitima possuidora do prédio mencionado em 1 dos factos provados; b) Condeno os Reus a reconhecerem ao mencionado em a);
c) Absolvo os Réus do mais peticionado.”
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Inconformada veio a Autora recorrer formulando as seguintes conclusões:

1ª) O artigo 1386º, nº 1, alínea d), do Código Civil, estabelece a ressalva dos direitos legais adquiridos por preocupação, que de nada servirá, se se tornar impossível fazer prova desse facto.
2ª) A partir de 21 de março de 1868, só são admitidos os aproveitamentos em regime de concessão ou licença e, daqui resulta a conclusão: em princípio, um aproveitamento imemorial, sem licença nem concessão, deverá ser anterior ao Código Civil. Haverá pelo menos uma presunção nesse sentido.
3ª) A douta sentença recorrida, ao exigir a prova direta na indagação da aquisição do direito às águas preocupadas coloca a Recorrente e todos aqueles que, desde tempos imemoriais, regam os seus prédios derivando a água de poças, ribeiros e rios, por meio de aquedutos, sem qualquer tutela jurídica para essa prática imemorial.
4ª) Salvaguardado o devido respeito por melhor opinião, o Tribunal “a quo” fez uma incorreta aplicação do artigo 1386º, nº 1, alínea d) do Código Civil.
5ª) A matéria de facto dada como provada em 1. a 18. dos factos provados, com especial enfâse para os números 6., 7., 8., 10., 16. e 17. impunha ao Tribunal “a quo” julgar a presente acção totalmente procedente e reconhecer o direito da Recorrente à utilização, para rega do seu prédio, das águas da nascente do Monte ....
6ª) A expressão “desde tempos imemoriais”, como ficou provado, no número 6. Dos factos provados não tem limite de temporal, pelo que, abrange não só o ano de 1868, como também os anos anteriores.
7ª) Neste sentido veja-se o decidido nos Acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito dos processos 085611, de 13.01.1994, 07A981, de 08.05.2007 e 272/04.1TBCNF.P1, de 02.03.2011, disponíveis in www.dgsi.pt.
8ª) O Tribunal “a quo” dando como provado que a Recorrente por si e antecessores usa a água da nascente do Monte ... para rega do seu prédio e que as obras existem desde tempos imemoriais, não pode situar a sua origem, pelo que, não pode excluir que as mesmas tivessem sido construídas em data anterior a 21 de março de 1868.
9ª)Nada justifica a exigência de prova direta para demonstração de um facto impossível de provar com recurso a essa prova, uma vez que não existem pessoas vivas com 150 anos.
10ª) A jurisprudência tem considerado a prova indireta suficiente, nesse sentido veja-se o decidido nos Acórdãos, disponíveis proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito dos processos nº 064504, de 29.05.1973, 076431, de 10.11.1988, 205/07.3TBOFR.C1.S1, de 18.12.2012, e, pelo Tribunal da Relação de Guimarães no âmbito dos processos nº 194/14.8TBCBC.G1, de 11.05.2017 e 1837/11.0TJVNF.G1, de 25.05.2017, disponíveis in www.dgsi.pt.
11ª) O Tribunal “a quo” afirma que apesar de as obras existirem há mais de 100 anos, não resultou provado que estas tenham sido construídas até ../../1868 e, por isso, não têm antiguidade suficiente para reconhecer a aquisição das águas por preocupação.
12ª) Salvaguardado o devido respeito por opinião diversa, o Tribunal “a quo”, exige à Recorrente uma prova impossível, impondo-lhe a prova de um facto – da construção das obras até ../../1868- quando admite ser impossível obtê-la dos vivos.
13ª)Ora, não sendo possível produzir prova testemunhal credível sobre tal facto, é exigir à Recorrente a produção de prova impossível – diabólica - que colide com a garantia de acesso ao direito.
14ª) O Tribunal “a quo” deveria no processo valorativo da prova, ter recorrido à prova por presunções regulada nos artigos 349º e 351º do Código Civil.
15ª) A prova dada como provada nos autos permitia ao Tribunal “a quo” estabelecer a correspondência a deduções lógicas e racionalmente fundamentadas naquela prova, concluindo, a final, pelo reconhecimento do direito da Recorrente.
16ª) A douta sentença recorrida errou na avaliação da prova produzida em audiência e errou no pressuposto de que parte – exigência de prova direta - que, no caso em concreto, se traduz numa impossibilidade de prova – cfr. Ac. proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo 04B2638, de 11.02.2004, disponível in www.dgsi.pt.
17ª) A interpretação restritiva (exigência de corroborar a existência das obras por outros elementos de prova) que a douta sentença faz do artigo 1386º, nº 1, alínea d) do Código Civil, torna impossível o reconhecimento da tutela jurídica do direito da Recorrente às águas preocupadas, esvazia de sentido aquela norma que pretendeu dar proteção efetiva aos direitos adquiridos por preocupação.
18ª) E, viola os princípios da proporcionalidade e da proibição da indefesa, emanados do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que, para os devidos e legais efeitos, desde já se argui.
19ª) Assim, o ponto 6. da matéria de facto provada deve ser alterado para a seguinte redação: “Ora, desde tempos imemoriais, há mais de 1, 15, 20, 50, 100 e 200 que a Autora, por si e antecessores, à vista de toda agente, sem oposição de quem quer que seja, sem interrupção temporal, de forma pública, pacífica e continua, na fé e convicção de usar de um direito próprio, utiliza para regado seu prédio identificado em 1, as águas que nascem no Monte ..., sito no lugar ..., cujas águas se armazenam na “...”, onde se tapa a água, sendo tão antiga e secular que o seu início de uso se perdeu na memória dos vivos e em sistema de tapa tapa, a contar do S. João, dia 14 de Junho até 8 de Setembro de cada ano.”
20ª) E, em consequência, devem ser dados como provados os factos constantes das alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i), J), k), l), m), n), o), p), q) e r) dos factos não provados.
21ª) Ao não se decidir assim, violou-se o disposto nos artigos 349º, 351º e 1386º, nº 1, alínea d), do Código Civil e 20º da Constituição da República Portuguesa e, outras eventuais normas legais que Vªs. Exªs. doutamente suprirão.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-o procedente, e a douta sentença recorrida ser declarada nula, e, ser substituída por outra que julgue a acção procedente, e reconheça que desde tempos imemoriais, há mais de 1, 15, 20, 50, 100 e 200 anos, que a Autora, por si e antecessores, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, sem interrupção temporal, de forma pública, pacífica e continua, na fé e convicção de usar um direito próprio, utiliza para a rega do seu prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, as águas que nascem no Monte ..., sito no lugar ..., freguesia ... – nascente pública utilizada pelos habitantes do lugar ..., cujas águas se armazenam na “...”, onde se tapa a água, sendo tão antiga e secular que o seu inicio de uso se perdeu na memória dos vivos, e que apresenta ou revela sinais visíveis e permanentes, percetíveis a qualquer indiferenciada pessoa – em sistema de tapa-tapa, a contar do S. João, dia 24 de Junho até 8 de Setembro de cada ano, e, em consequência, devem ser dados como provados os factos constantes das alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i), J), k), l), m), n), o), p), q) e r) dos factos não provados com o que se fará inteira JUSTIÇA.
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Foram apresentadas contra-alegações que os Recorridos resumiram da seguinte forma:

A) Da leitura das alegações de recurso, o ataque feito pela recorrente à decisão da matéria de facto impugnada é feito sem nenhuma referência e/ou reapreciação da prova constante nos autos, incumprindo a recorrente o legalmente prescrito no artigo 640.º do CPC, pelo que se pugna pela imediata rejeição do recurso no que a esta parte diz respeito;

B) Relativamente ao pedido de alteração do direito aplicado por incorreta aplicação pelo Tribunal “a quo” do artigo 1386.º, n. º1, alínea d) do Código Civil em violação dos princípios da proporcionalidade e da proibição da indefesa, emanados do artigo 20.º da CRP, pugnando a recorrente pela inconstitucionalidade, sugerindo que o tribunal “a quo” tivesse, no processo valorativo da prova, recorrido à prova por presunções regulada nos artigos 349.º e351.º do Código Civil, cumpre reiterar o exposto supra, no sentido de não se conceber a interpretação feita pela recorrente. Relativamente ao período temporal que abrange a expressão “desde tempos imemoriais, há mais de 100 anos” pois é indefensável, para efeitos de aquisição da água por preocupação, considerar que a mesma expressão inclua as situações de facto anteriores a 21 de março de 1868 e consequentemente entender que ao provar-se que os factos ocorreram há mais de 100anos, para aquele efeito, tivesse o tribunal “a quo” que ter presumido, sem mais, que os mesmos ocorreram antes de 21 de março de 1868 C)

C) No que se refere a que a douta sentença recorrida deve ser declarada nula a recorrente não lança mão de nenhum argumento para o efeito. Da leitura das alegações de recurso não se vislumbra qual o motivo que leva a recorrente a querer fazer o tribunal crer que a sentença seja nula, aliás, não se verifica nenhuma das situações previstas no artigo 615.º do CPC.

Sem prescindir,

D) O recurso apresentado pela recorrente, o conteúdo das respetivas alegações e o pedido, salvo o devido respeito por opinião contrária, não têm a virtualidade de conseguir que a ação seja julgada procedente. O pedido que a recorrente quer ver reconhecido como presente recurso em nada é coincidente com os pedidos formulados na petição inicial, como supra se explicou, o que não se aceita e a que os recorridos se opõem expressamente. Ao que acresce que ficou considerado provado e não foi alvo de impugnação no presente recurso a matéria de facto constante nos pontos 11. a 16. Da matéria de facto considerada provada. Tal decisão foi devidamente fundamentada com a prova testemunhal produzida em sede de audiência, com a prova documental apresentada e com a inspeção judicial levada a cabo pelo tribunal. Pelo que ficou provado e claro para a Meritíssima Juiz, que se deslocou ao local, que o percurso da água proveniente da “...” é o descrito no ponto 16. dos factos considerados provados e que a água que rega e sempre regou o prédio da autora, ora recorrente, é água do Ribeiro de ... que entra diretamente no seu prédio através do pijeiro que permite orientar o trajeto da água conforme a necessidade da rega, contrariamente ao que a recorrente quer que seja considerado procedente, que é ter o direito a que o seu prédio seja regado com água que é conduzida através de uma caixa de derivação que se localizava no prédio dos réus e que para chegar ao terreno da autora teria que passar por um rego dentro do próprio terreno daqueles. Com efeito, não pode a ação ser considerada totalmente procedente, nem tão pouco os recorridos serem condenados nos pedidos tal como estão formulados na petição inicial.

E) Considerando o exposto nas alegações/resposta e conclusões supra, que por uma questão de economia e simplicidade processual aqui se dão por integralmente reproduzidas, o Tribunal “a quo” não merece reparo quando decide julgar parcialmente procedente a ação nos exatos termos que o fez.

TERMOS EM QUE, e nos melhores de direito que V. Exas mui doutamente suprirão, deve, de acordo com o exposto supra, ser rejeitado o recurso no concernente à matéria de facto por não obedecer às prescrições legais e, sem prescindir, ser julgado totalmente improcedente o recurso apresentado pela recorrente e, consequentemente, ser confirmada a douta sentença por não carecer de qualquer reparo, devendo ser, por isso, mantida nos seus precisos termos.

Assim se fazendo BOA E SÃ JUSTIÇA.
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Questões a decidir:   

- Analisar se a sentença padece de qualquer nulidade;
- Verificar se o recurso da matéria de facto obedece aos requisitos legais;
- Em caso afirmativo, verificar se a prova foi bem analisada na decisão recorrida;
- Caso se justifique em face da alteração da matéria de facto provada, proceder ao enquadramento jurídico dos factos provados.
- Verificar se a sentença violou o disposto no art. 20º da C.R.P..
           
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Os Factos provados na decisão recorrida são os seguintes:

1. O prédio rústico correspondente a “Terra de cultivo e ramada, denominado de “Campo ...”, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., com a área matricial de 3.750 m2, a confrontar do Norte e Poente com DD, Nascente com Ribeiro ..., e do sul com Caminho ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...97º, com valor patrimonial de 51,95 € (cinquenta e um euros e noventa e cinco cêntimos) e omisso na Conservatória de Registo Predial mostra-se inscrito na matriz a favor da A.

2. A Autora, por si e respetivos antecessores, há mais de 1, 10, 20 e 30 anos, vem, em relação ao prédio identificado em 1, cultivando-o, dele colhendo todos os frutos e produtos que é suscetível de produzir,

3. aproveitando todas as utilidades, com o conhecimento, a aceitação e à vista de toda a gente, com exclusão de outrem, e sem oposição de quem quer que seja.

4. Sem interrupções no tempo, de forma pública, pacífica. 5. Como de coisa sua se tratasse.

6. Ora, desde tempos imemoriais, há mais de 1, 15, 20, 50, 100, que a Autora, por si e antecessores, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, sem interrupção temporal, de forma pública, pacífica e continua, na fé e convicção de usar um direito próprio, utiliza para a rega do seu prédio identificado em 1, as águas que nascem no Monte ..., sito no lugar ..., freguesia ... – nascente pública utilizada pelos habitantes do lugar ..., cujas águas se armazenam na “...”, onde se tapa a água, sendo tão antiga e secular que o seu inicio de uso se perdeu na memória dos vivos e em sistema de tapa-tapa, a contar do S. João, dia 24 de Junho até 8 de Setembro de cada ano.

7. A água do Monte ..., é proveniente de uma nascente natural ou espontânea, que é utilizada para rega dos terrenos pertencentes a vários proprietários incluindo os prédios dos Réus e da Autora.

8. Os Réus taparam a caixa de derivação e respetivo rego condutor mencionados em j) dos factos não provados e atualmente apenas se encontra uma tampa de caixa igual às existentes nas outras caixas de derivação.

9. No início do ano de 2015 a Autora fez uma plantação de vinha no seu prédio.

10. Desde o dia ../../2016, a Autora não consegue regar o seu prédio rústico com a água da nascente do “Monte ...”, represada na “...”, através da caixa de derivação e o rego, situados a Norte/Poente do prédio mencionado em 1, mas no interior prédio dos Réus (artigo ...).

11. O prédio da autora sempre foi regado com a água do Ribeiro de ..., através do pijeiro já colocado há mais de 60 anos

12. Foi construído um pijeiro em pedra para orientar o trajeto da água conforme a necessidade de rega.

13. O pijeiro permite colocar uma atola de madeira (tábua) nas ranhuras de frente, encaminhando a água para o prédio da autora.

14. Quando o prédio da autora não necessita de água para rega, é colocada a atola nas ranhuras da direita encaminhando a água para o seu trajeto natural do ....

15. A limpeza e reparação deste pijeiro, e da zona envolvente, sempre esteve a cargo dos proprietários do artigo rústico mencionado em 1 de modo a poderem aproveitar as águas para rega, o que foi deixado de fazer pela autora por a mesma durante vários anos ter deixado o terreno sem trabalhar e por isso não se ter servido da água para rega.

16. Da “...” a água segue pelo Ribeiro ..., passados aproximadamente 20 metros existe uma partição da água, a saber:

- parte da água do ribeiro segue o percurso natural deste e tem saídas de água que se destinam a servir de rega para alguns terrenos, incluindo o da autora, como consta na planta topográfica junta com a contestação como documento n.º... e dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos e para o qual se remete, assinalado a verde;

- outra parte da água é encaminhada para uma conduta subterrânea, seguindo no sentido Norte/Sul, circulando numa caleira de céu aberto até junto da Estrada Municipal, e atravessa, em aqueduto, a Estrada Municipal que liga a freguesia ... e ... onde é conduzida para uma “guia” com saídas para servir de rega para outros terrenos a jusante daquela Estrada, tal como consta na dita planta topográfica, assinalado a linha vermelha.

17. Na parte norte do terreno da autora e dos réus, na estrema em que os mesmos se juntam existe um rego de drenagem das águas pluviais que depois de atravessar a já referida Estrada Municipal se vai juntar à água da Ribeira.

18. Os réus taparam as manilhas por si colocadas de forma a que a água siga o trajeto natural do regadio e se evite a inundação do terreno dos réus, por não ter havido necessidade de rega.

Factos não provados

a) O mencionado em 6 ocorre há mais de 200 anos
b) Por intervenção humana, a agua armazena-se na referida “...”, formada por uma poça escavada na terra e com uma presa em pedra e cimento, apenas por um dos lados, situada junto ao prédio de ....
c) Depois de armazenada na “...”, a água proveniente do Monte ... passa a incorporar ou integrar o domínio particular, segue pelo ribeiro numa distância de 20 metros, até um pequeno açude de pedra, onde é derivada para um rego a céu aberto, ladeado por um carreiro de soma em terra batida, com a largura aproximada de 30 cm de largura e altura, que a encaminha para os prédios dos consortes, designadamente para o prédio da Autora, referido em 1 supra.
d) As obras referidas em b) e c) existem há mais de 1, 5, 10, 15, 20, 50, 100 e 200 anos, sendo tão antigas e seculares, que o seu início se perdeu na memória dos vivos, isto é imemorial e, concretamente, essas obras são anteriores a 21 de Março de 1868, feitas à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, sem interrupção temporal, de forma pública, pacífica e continua, na fé e convicção de usarem um direito próprio.
e) Há mais de 30 anos, o rego a céu aberto foi substituído por uma conduta subterrânea com cerca de 0,30 m de largura, seguindo no sentido Norte/Sul até ao ponto 14.23, circulando, depois, numa caleira a céu aberto (carreiro de soma) até junto da Estrada Municipal, regando no seu percurso diversos prédios.
f) A água para rega dos prédios rústicos dos consortes, designadamente o prédio da Autora identificado em 1, é derivada por meio de caixas em cimento, colocadas na conduta principal, com a dimensão aproximada de 0,50 m x 0,50 m e a altura de 0,70 m, com comportas de derivação no interior da caixa.
g) O prédio da Autora, situado a montante da Estrada Municipal que liga ... a ..., é o último prédio a regar.
h) A água de rega do prédio da Autora sempre foi conduzida pela conduta principal e tinha a boca de saída em manilha de cimento com o diâmetro aproximado de 0,20 m.
i) Seguindo depois num rego, que tem atualmente vestígios até ao canto Norte/Poente do prédio da Autora, pertencendo-lhe, para regas periódicas das culturas existentes, em regime de tapa- tapa, a partir de 24 de Junho (S. João) até 8 de Setembro, de cada ano.
j) Para que a água corra para o prédio da Autora, existia, junto da boca de saída, uma caixa de derivação e o rego a céu aberto, de condução da água para o prédio da Autora k) A água quando não era utilizada nas regas era conduzida para um rego que se situa a Poente do prédio da Autora (artigo ... que pertence aos Réus) e lançada no ribeiro despois de atravessar, em aqueduto, a Estrada Municipal, que liga as freguesias de ... e ....
l) A Autora e seus antecessores, e, os demais consortes, sempre limparam as poças de represa ou armazenamento de água, e o rego ou levada condutora, quando necessário, antes de S. João (24 de junho) de cada ano.
m) Assim, há mais de 1, 15, 20 e 100 anos que a Autora, por si e antecessores, limpam a poça de represa e o rego ou levada, captam as sobras de água da nascente do “Monte ...”, na poça, tanque de represa ou armazenamento e a conduzem no período a que tem direito, pela levada ou rego assinalado a cor azul na planta junta, para rega do seu prédio.
n) À vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem nisso mostrasse interesse, designadamente dos Réus e antecessores,
o) de forma pública, pacífica e continua. p) sem interrupções no tempo.
q) Na fé e convicção de exercer um direito próprio.
r) No ano de 2015, a Autora utilizou na rega do seu prédio rústico em causa, a água da nascente do “Monte ...”, represada na “...”, sem quaisquer problemas, seguindo o trajeto indicado em b) e c).
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Cumpre apreciar e decidir:

Da alegada nulidade da sentença:

A Recorrente termina as conclusões das suas alegações dizendo que “deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-o procedente, e a douta sentença recorrida ser declarada nula, e, ser substituída por outra que julgue a ação procedente, e reconheça que desde tempos imemoriais, há mais de 1, 15, 20, 50, 100 e 200 anos que a Autora, por si e antecessores, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja (…)”

As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no art. 615º do C. P. Civil que, na parte com interesse para o caso em apreço, diz o seguinte:

“1 – A sentença é nula quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Antunes Varela (in Manuel de Processo Civil, pág. 686) diz-nos que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”.
           
Como se afirma no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/03/2021 (Processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, Relatora Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt) “I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento, seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual - nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma - ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
           
Ora, tendo em conta o que se expôs, vemos que o que que foi alegado pela Recorrente não se enquadra em qualquer das causas de nulidade da sentença, representando sim, um descontentamento relativamente aos fundamentos fáticos e jurídicos da sentença recorrida, o que não configura qualquer nulidade da mesma.

Improcede, pois, a invocada da nulidade da sentença.
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Da reapreciação da matéria de facto:
           
Nas suas alegações de recurso, a Recorrente pretende que a redação do ponto 6 dos factos provados seja alterada para: “Ora, desde tempos imemoriais, há mais de 1, 15, 20, 50, 100 e 200 que a Autora, por si e antecessores, à vista de toda agente, sem oposição de quem quer que seja, sem interrupção temporal, de forma pública, pacífica e continua, na fé e convicção de usar de um direito próprio, utiliza para regado seu prédio identificado em 1, as águas que nascem no Monte ..., sito no lugar ..., cujas águas se armazenam na “...”, onde se tapa a água, sendo tão antiga e secular que o seu início de uso se perdeu na memória dos vivos e em sistema de tapa tapa, a contar do S. João, dia 14 de Junho até 8 de Setembro de cada ano.” E que, em consequência, sejam julgados provados os factos constantes dos pontos a), b), c), d), e), f), g), h), i), J), k), l), m), n), o), p), q) e r) dos factos não provados.

Para fundamentar tal pretensão entende que a sentença não deveria ter exigido prova direta de que a construção das obras para aproveitamento das águas públicas foram efetuadas até ../../1868, exigindo à Recorrente uma prova impossível, por ser impossível obtê-la dos vivos. Diz ainda que no processo valorativo da prova, deveria o Tribunal ter recorrido à prova por presunções.

Vejamos, se a Recorrente respeitou os requisitos da impugnação dos fundamentos de facto da sentença, previstos no art. 640º, nº 1 do C. P. Civil.

Quando o recorrente pretende impugnar os fundamentos de facto da sentença, deve especificar, obrigatoriamente e sob pena de rejeição, o seguinte (v. artigo 640º n.º 1 do CPC):

“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
           
Conforme refere Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., pág. 139 a 141), sempre que o recurso envolva a impugnação da matéria de facto deve o recorrente, nomeadamente:

a) Em quaisquer circunstâncias, indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Deixar expressa na motivação, a decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos.

Os requisitos acima enunciados impedem “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 129).

Acresce que, quanto ao recurso da matéria de facto não existe despacho de aperfeiçoamento ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, por aplicação do disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C.       
           
Ora, analisando o formalismo imposto pelo art. 640º do C. P. Civil, vemos que a Recorrente não o observou, pois, desde logo, não indicou os meios de prova que imporiam decisão diversa. Assim, é de rejeitar o recurso nesta parte.

De qualquer forma, relativamente às questões invocadas pela Recorrente, diremos o seguinte:

A prova exigida pela Exmª Juiz  a quo, não é uma prova impossível, já que, a prova testemunhal não é a única prova possível do facto em apreço.
Na verdade, tal como se refere no Acórdão desta Relação, de 11/05/2017, Relator Fernando Fernandes Freitas (in www.dgsi.pt ) sobre uma questão semelhante à que ora se discute, “da antiguidade destes sistemas de rega, não pode ser exigida uma prova formal (neste caso transformada em «prova diabólica») da data de construção dos açudes e das levadas, porque é impossível de ser obtida de pessoas vivas, sem prejuízo de não raras vezes essa prova poder ser colhida de outros indícios, como, por exemplo, a confrontação do prédio com “a levada”, quando a inscrição matricial ou o registo na Conservatória sejam de data aproximada das primeiras décadas do século XIX, um documento a regular o uso da água ou a reconhecer um direito especial de rega a algum dos prédios, uma sentença sobre um conflito de utilização da água, etc.”.
José Cândido Pinho (in As Águas no Código Civil”, Almedina, 1985, págs. 35-36), citado no Acórdão acima referido, diz que o mais evidente elemento de prova se cifra na demonstração da existência de obras visíveis com carácter de permanência, tendentes à derivação das águas para determinados fins (rega, lima ou merugem, moagem, etc.). Esta prova será corroborada ou completada, normalmente, através do recurso à análise documental (datas gravadas na pedra; documentos escritos com referência àquele uso, etc.) e depoimento testemunhal (testemunhos de pessoas idosas portadoras de conhecimentos que lhes tenham sido transmitidos pelos seus antepassados, etc.) .”
Assim, a prova testemunhal apresentada em julgamento poderia/deveria ter sido complementada com a apresentação de documentos nos termos acima descritos.

Nem se diga, como faz a Recorrente, que o juiz podia ter julgado que há mais de 200 anos que a A. e seus antecessores captam as águas em causa, com base em presunções.
Presunções são as ilações que a lei ou julgador, tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (v. art. 349º, do C. Civil). Ora, como decorre deste preceito as presunções decorrem da prova de um facto conhecido que constitui a base da presunção, para depois, daí inferir o facto desconhecido.

Conforme diz Luís Filipe Pires de Sousa (in Direito Material Probatório comentado, 2ªed., pág. 75) “A inferência não serve para descobrir o que se ignora de todo, mas sim para estabelecer se um enunciado de facto, que foi formulado pelas partes, é ou não confirmado com base no facto conhecido”

No caso, não existe qualquer presunção legal que beneficie a A.
Por outro lado, não há qualquer facto conhecido a partir do qual e através de um juízo de probabilidade qualificada se pudesse concluir pela prova do facto desconhecido.
Na verdade, não ficou nos autos provado qualquer facto a partir do qual, recorrendo às máximas da experiência, possamos afirmar que há mais de 200 anos a A. e seus antecessores utilizam as águas em causa. Nem sequer se encontra provado que a caixa de derivação e respetivo rego condutor se encontram no terreno da A., estando, segundo esta, no terreno dos RR., ou seja, nem sequer se encontra provado que foram os antecessores da A. a efetuar as obras de captação das águas para apropriação das mesmas ou que essas obras foram feitas em proveito do prédio da A., pelo que, nem este facto poderia servir de base a uma eventual presunção.
Com efeito, do facto de A. e seus antecessores utilizarem essas águas há 100 anos, não podemos inferir que também o faziam já desde de data anterior 21 de março de 1868 ou que se apropriaram das mesmas através da realização de obras que beneficiam o seu prédio.

Na decisão recorrida refere-se a esse propósito o seguinte:
Por outro lado, os factos descritos o elenco dos não provados, assim resultaram em virtude de não ter sido produzida prova a respeito ou em face da demonstração dos factos assentes.
Especialmente quanto à al. a) dos factos não provados, saliente-se que, não sendo o Tribunal alheio ao facto de, em razão da antiguidade destes sistemas de rega, não poder ser exigida uma prova formal (o que implicaria uma verdadeira “prova diabólica”) da data da realização das obras, por já não ser possível obtê-la dos vivos, o certo é que, a existência de tais obras – que resultaram demonstradas, de per si, não nos permitem, neste caso, fazer remontar a sua existência a data prévia a 1868, pois esta circunstancia não foi corroborada por nenhum outro elemento de prova”.

Acresce que, nem sequer sabemos se o imóvel em causa nos autos tem sido sempre transmitido ao longo das gerações por transmissão derivada, podendo em alguma altura, para lá dos 100 anos referidos na matéria de facto, ter ocorrido a aquisição desse prédio por usucapião, por exemplo, que como se sabe consiste numa aquisição originária em que o direito de propriedade é um direito autónomo, independente do direito de propriedade anterior e, neste caso, o direito à captação da água não se teria transmitido à A. e seus antecessores.

Deste modo, não tendo a Recorrente apresentado mais elementos de prova, designadamente escritos, que permitissem demonstrar que as obras para a captação de águas foram construídas por si ou pelos seus antecessores até ../../1868 e que desde, pelo menos esta data se apropriaram das mesmas, improcede a pretensão da Recorrente de alterar o ponto 6 dos factos provados na sentença.
Quanto à matéria dos factos não provados que a A. pretende ver provados (alíneas a) a r)), a mesma, ao contrário do que refere aquela, não resultaria provada em consequência da alteração do ponto 6, estando devidamente explicado na decisão recorrida a razão de não se ter considerada provada tal matéria, não tendo a A. apresentado razões para que tal entendimento fosse alterado.
Assim, mesmo alterando-se o ponto 6 dos factos provados no sentido pretendido pela A., sempre a sua pretensão soçobraria em face de não terem resultado provados os factos das alíneas a) a r), que são essenciais para demonstrar que houve da parte da A. e seus antecessores aquisição das águas as que nascem no Monte ... por preocupação, pois não basta a prova da utilização dessa água desde a data referida no art. 1386º do C. Civil, sendo ainda necessário demonstrar que “por si e pelos seus antecessores, ininterruptamente há mais de 150 anos [no caso 155 anos], à vista e com conhecimento de toda a gente e mediante regime estável da sua distribuição entre eles estabelecido, vêm aproveitando a água da referida corrente para rega e lima desses seus prédios, por meio de obras visíveis e aparentes, designadamente uma presa, feitas no leito da corrente pelos seus antepassados e por estes e seus sucessores permanentemente mantidas e reparadas para aquele efeito, à vista de toda a gente e sem oposição de quem nisso mostrasse interesse” (v. Ac. do STJ de 29/5/1973 in BMJ 227º, págs 159-164, citado no Ac. desta Relação de 11/5/17 in www.dgsi.pt ).
Deste modo, não há qualquer fundamento que determine a alteração da matéria de facto fixada na sentença.
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Alega a Recorrente que na decisão recorrida houve violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da proibição da indefesa.

Para tanto refere o seguinte:

O artigo 1385º do Código Civil faz a classificação das águas: “As águas são públicas ou particulares; as primeiras estão sujeitas ao regime estabelecido em leis especiais e as segundas às disposições dos artigos seguintes.”

E, o artigo 1386º, nº 1, alínea d), do mesmo diploma legal prevê que: “São particulares:
As águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até ../../1868, por preocupação, doação régia ou concessão.”

Deste preceito legal resulta a ressalva dos direitos legais adquiridos por preocupação, que de nada servirá, se se torna impossível fazer prova desse facto.
Tal constituiria um absurdo da Lei se os Tribunais exigissem a prova direta da preocupação, para reconhecimento desses muitíssimo antigos aproveitamentos.
Apenas no regime anterior ao Código Civil de Seabra é que era lícito a qualquer particular aproveitar para fins agrícolas ou fabris as águas públicas, por meio de obras de captação e condução, isto é, a preocupação era inteiramente livre de fiscalização administrativa.
Isto é, a partir de 21 de Março de 1868, só são admitidos os aproveitamentos em regime de concessão ou licença e, daqui resulta a conclusão: em princípio, um aproveitamento imemorial, sem licença nem concessão, deverá ser anterior ao Código Civil de Seabra. Haverá pelo menos uma presunção nesse sentido.”
           
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Ora, como acima se viu, no caso, não se trata da exigência ou não de prova direta dos factos, mas sim da ausência de prova dos mesmos.
Admitimos que se trata de uma prova difícil, mas que não é impossível, pois pode basear-se em documentos, como acima se explicou ou mesmo em presunções, desde que resultem provados que possam servir de base à presunção, o que no caso não ocorreu.
Por outro lado, há razões de interesse público que determinaram que não possa haver apropriação de águas públicas, com a ressalva dos direitos adquiridos na vigência do Código de Seabra e que são a razão da previsão da al. d) do nº 1 do art. 1386º do C. Civil.
Ora a “proibição da indefesa” decorre do reconhecimento do direito geral ao contraditório inerente a um processo justo implicado no direito fundamental de acesso à justiça, consagrado no art. 20º da Constituição. (…) A proibição da indefesa enquanto elemento indispensável da via judiciária da tutela efetiva implica não apenas a impugnação dos fundamentos da ação como a possibilidade de os ver todos apreciados na mesma. Não se trata, no entanto, de um princípio absoluto, devendo antes, ser ponderado com outros princípios conflituantes (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 51/21, de 22 de janeiro de 2021)
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela juris­dicional implica a ga­rantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sen­tido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao pro­cesso, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão funda­mentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 440/94). Contudo, tem sido também entendimento reiterado do Tribunal Constitucional que, embora esteja vinculado a criar meios juris­dicionais de tutela efetiva dos direitos e interesses ofendidos dos cidadãos, “o legislador não deixa de ser livre de os conformar, não sendo de todo o modo obrigado a prever meios iguais para situações diversas, considerando ainda que a identidade ou diversidade das situações em presença háde resultar de uma perspetiva global que tenha em conta a multiplicidade de interesses em causa, alguns deles conflituantes entre si” (cfr. Acórdão n.º 63/2003)” (Acórdão acima citado e ainda Ac. 373/15, de 14/7/2015 e Ac. 674/16, de 13 de Dezembro de 2016).

Assim, o respeito pelas normas de direito probatório material, não consiste numa violação do art. 20º da C.R.P., sendo certo que, como resulta do que acima foi dito, não se está perante uma situação de impossibilidade prática de provar o(s) facto(s) necessário(s) ao reconhecimento de um direito. A acrescida dificuldade da prova que se verifica em casos como o presente, apenas deverá ter, como corolário do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, mas não a fixação de factos de factos sem que haja prova dos mesmos, como pretende a Recorrente

Pelo exposto, improcede totalmente o recurso.

Decisão:

Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
               
Guimarães, 22 de fevereiro de 2024

Alexandra Rolim Mendes
Joaquim Boavida
Raquel Tavares