Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
596/22.6T8VNF.G2
Relator: PAULO REIS
Descritores: SEGURO DE VIDA
PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES DE SAÚDE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A presente ação tem por finalidade tornar efetivo o acionamento das garantias previstas em contrato de seguro de grupo, ramo vida, pelo qual ré/seguradora assumiu a cobertura do risco relativo ao pagamento do montante mutuado à autora e seu falecido marido, obrigando-se a realizar tal prestação em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato - no caso, a morte da pessoa segura.
II - Com a ocorrência do sinistro durante a vigência do contrato de seguro, no caso, o falecimento da pessoa segura, enquanto evento de risco acionador do direito e condição de exigibilidade do mesmo, estão reunidos todos os requisitos constitutivos e condições de exigibilidade da obrigação de pagamento da quantia segurada.
III - Resultando devidamente assente nos presentes autos que a autora/apelante subscreveu, em 6-07-2020, participação de sinistro respeitante ao óbito do marido, também segurado, à qual anexou relatório de autópsia médico-legal do qual constam as eventuais causas da ocorrência do sinistro e respetivas consequências, nos termos antes enunciados, tanto basta para que se considere que a apelante/segurada cumpriu o ónus de participação do sinistro e o dever de informação complementar sobre o mesmo, na parte que lhe era exigível, nos termos e para os efeitos previstos no citado artigo 100.º, n.º 2 do RJCS.
IV - A informação de saúde é propriedade da pessoa, devendo a circulação da informação de saúde ser assegurada com respeito pela segurança e proteção dos dados pessoais e da informação de saúde, pelo que só o próprio deles podia dispor, não podendo sequer a sua vontade ser substituída pela vontade de quem lhe sucede nos seus direitos patrimoniais.
V - Beneficiando a seguradora de autorização escrita, específica e autónoma, do falecido segurado para obtenção dos elementos pretendidos, podia ela própria obter os elementos que entendesse necessários para se certificar de que devia cumprir a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato de seguro.
VI - Deste modo, não pode a seguradora pretender prevalecer-se da invocada necessidade de mais informação para avaliar o sinistro, em concreto sobre a data de diagnóstico de determinadas patologias de que padecia o segurado falecido, impondo à ora apelante, que também figura como segurada no contrato em referência, o envio de relatório do médico assistente do falecido segurado, com indicação da data de diagnóstico das patologias referidas no relatório de autópsia (diabetes, hipertensão arterial e tabagismo) - carta datada de 05-08-2020 - e, mais tarde, o envio de relatório com indicação da data de diagnóstico das seguintes patologias: diabetes mellitus tipo II e doença hepática crónica (carta datada de .../.../2020), por se tratarem de elementos que têm por objeto dados pessoais de saúde deste segurado, os quais a ré não demonstrou, nem alegou, estarem na disponibilidade da segurada, ora autora, nem se encontram expressa ou especificamente previstos como requisito da liquidação das importâncias seguras na correspondente cláusula das condições gerais da referida apólice.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra EMP01... - Companhia de Seguros de Vida, S.A., pedindo a condenação da ré no acionamento do seguro de vida contratualizado pela autora e seu falecido marido, BB e, em consequência, condenada no pagamento integral do capital seguro, com todas as devidas e legais consequências.
Para tanto, alegou, em síntese, que a autora e o seu falecido marido contraíram, no ano de 2004, com “Banco 1...” - à data, Banco 2..., S.A., - um crédito à habitação, cujo capital inicial era de 54.500,00€, tendo celebrado com a ré um contrato de seguro de vida associado ao referido credito, titulado pela apólice n.º ...96, tendo como cobertura principal e complementar, respetivamente, o risco de morte e de invalidez absoluta definitiva.
Mais alega que, entre 2004 e 2020, autora e seu marido nunca deixaram de cumprir pontualmente com o pagamento das prestações mensais do crédito habitacional e do respetivo seguro.
Acontece que o marido da autora faleceu no dia .../.../2020, em virtude de falência cardíaca, na sequência de fibrose do miocárdio, conforme se alcança do relatório de autópsia que juntou; a autora participou o sinistro à ré, fornecendo-lhe as informações e os documentos necessários ao pagamento do capital seguro, o que a ré ainda não fez, apesar de interpelada para esse efeito.
A ré contestou, impugnando parcialmente os factos alegados na petição inicial e invocando a incompetência territorial do Juízo Local Cível ...; mais alegou, em síntese, que a obrigação de pagamento do capital seguro não se venceu, pois, não obstante a ré ter solicitado o envio de relatório do médico assistente com indicação da data de diagnóstico das patologias que causaram o óbito, a autora nunca enviou o mesmo, instaurando a presente ação.
A autora respondeu às exceções invocadas pela ré, pugnando pela respetiva improcedência.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador a julgar improcedente a exceção dilatória de incompetência territorial invocada pela ré. No mais, foram delimitados os termos do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença julgando a ação improcedente, absolvendo a ré do pedido.

Inconformada, a autora apresentou-se a recorrer, pugnando no sentido da revogação da sentença, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1 - A A./Apelante e o seu falecido marido contratualizaram, com a R./Apelada, “EMP01... – Companhia de Seguros, S.A”, o contrato de seguro de vida, associado ao crédito à habitação celebrado com o Banco 1..., quando tinham já cerca de 44 anos de idade.
2 - Volvidos dezasseis (16) anos desde a celebração do seguro de vida - de 2004 a 2020 - associado ao crédito à habitação contraído, foi a A./Apelante constrangida a accionar o respectivo seguro de vida contratualizado, por forma a obter o pagamento do capital seguro, em virtude do inesperado falecimento do senhor seu marido, no dia .../.../2020.
3 - Após o infeliz e inesperado falecimento do senhor seu marido, a A. participou, conforme exigência legal, o sinistro à R./Apelada, “EMP01... - Companhia de Seguros de Vida, S.A”.
4 - A Apelante entregou todos os documentos e informações necessários à comprovação do falecimento do senhor seu marido, bem como da causa de morte e, ainda, os relatórios médicos que posteriormente foram solicitados pela R./Apelada.
5 - Sendo certo que nada fazia antever este infeliz acontecimento, como, aliás, se pode perceber das conclusões extraídas do relatório de autópsia médico-legal, na medida em que ficou demonstrado que a causa de morte do marido da Apelante/A. se deveu a causa de morte natural - conforme tudo melhor se alcança do relatório de autópsia, junto aso autos.
6 - De igual modo, também nos autos, em momento algum, ficou demonstrado e, ou, provado, que a causa de morte do falecido marido da A./Apelante se deveu a qualquer das patologias de que o mesmo veio a padecer.    
7 - Pelo que, percute-se, a A./Apelante nunca omitiu o seu dever de informação, na medida em que prestou todas as informações e forneceu todos os documentos que tinha em seu poder, para comprovar a morte e respectiva causa do falecimento do senhor seu marido, bem todos os relatórios clínicos complementares do mesmo. 
8 - A R./Apelada foi protelando no tempo a conclusão do processo de accionamento da apólice do seguro de vida, contraído pela A./Apelante e pelo seu, então, falecido marido.  
9 - Daí que, não restou outra solução à A. que não fosse a de intentar a presente ação declarativa pedindo a condenação da R. no accionamento do seguro de vida contratualizado pelo A./Apelante e pelo seu falecido marido, BB na sequência do crédito à habitação contraído com o “Banco 1...” e, em consequência, no pagamento integral do capital seguro.    
10 - Salvo o devido respeito, não pode ser imputado à Apelante/A., a violação de qualquer dever de informação, seja porque a A./Apelante forneceu e prestou à R./Apelada todos os documentos e informações de que dispunha acerca da causa e circunstancialismo da morte do senhor seu marido seja, sobretudo, porque das Condições Gerais do Seguro de Vida subscrito pela Apelante/A. e o senhor seu marido com a Apelada/R., não resulta a obrigação da Recorrente prestar informação sobre as patologias de que padecia o senhor seu falecido marido, mas, tão só, das “causas e evolução da doença que ocasionou o falecimento” - conforme decorre da cláusula 15.1 das Condições Gerais do Seguro de Vida, junta na Contestação pela Apelada/R..
11 - Tal como resulta dos autos, foi realizada autópsia pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Cávado ao falecido marido da Recorrente, cujo relatório apresentou nas conclusões como causa de morte, o seguinte:
Conjugados os dados necrópsicos, os resultados dos exames complementares efectuado (anatómo-patológicios e taxocológicos) e a informação circunstancial (social, colhida neste GMLF, e clínica), atrás transcritas tudo se harmoniza em causa de morte natural.” - sublinhados nossos -. “Vide gratiae”, documento n.º ... junto com a Petição Inicial.
12- De acordo com os ensinamentos médicos, como causa de “morte natural” é aquela em que não houve nenhum factor externo determinante, e causa de “morte não natural”, a morte que resulta de uma causa externa, aqui se incluindo homicídios, suicídios, acidentes, erros médicos, intoxicações alcoólicas e overdoses - Maurice Zeegers, in “Epidemiologia Forense: Princípios e Prática”, 2016 e Universidade de Melbourne, “Causas Externas de Morte”, 2019.
13 - A autópsia é um ato médico que se consubstancia na análise das causas da morte, mostrando-se concluída quando se esgote a apreciação conjunta e concatenada de todos os elementos recolhidos e se formula tal juízo causal.
14 - O juízo pericial - relatório de autópsia, no caso em apreço - impunha-se ao Tribunal, para assim concluir que a causa e circunstância da morte do marido da A. se deveu a causa natural e não na sequência de qualquer doença e, ou, patologia – “vide gratiae” Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. n.º 9170/2008-5, de 17/02/2009, acessível em www.dgsi.pt.
15 - Pelo que, não podia o Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito, imputar à Apelante/A. a omissão de um dever essencial de informação, alicerçando-se no facto de que a data de diagnóstico das patologias constituía fundamento essencial para o apuramento das causas e circunstâncias do sinistro, quando o circunstancialismo da morte do marido da Recorrente se deveu a morte natural, tal como foi determinado no Relatório de Autópsia Médico-Legal.
Por outro lado, 
16 - Mais nenhum relatório e, ou, declaração médica, foi emitido, pela medica de família do senhor seu falecido marido, para alem daquela que a Recorrente juntou aos autos.   
17 - Em face desta alegada e invocada impossibilidade da A./Apelante obter a exacta data de diagnóstico das patologias de que padecia o senhor seu marido, o Tribunal “a quo”, podia, por força do dever de colaboração probatória, ínsito nos arts.6º e 411º do C.P.Civil, ordenar a junção aos autos de declaração e, ou, relatório clínico de onde constasse a indicação da data de diagnóstico das patologias de que sofria o segurado - o art.411º do C.P.Civil 
18 - O inquisitório passou a ter um papel de “inverso da controvérsia”, ou seja, cabe ao juiz, “no campo da instrução do processo, a iniciativa, e às partes incumbe o dever de colaborar na descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados (art. 417.º-1). 
19 - Não deixam de assistir ao tribunal poderes oficiosos em matéria instrutória que se fundam na relação que, num modelo social do processo civil (por oposição a um modelo liberal e individualista), se pretende exista entre o processo e a verdade.
20 - O Tribunal deve providenciar pela obtenção das provas que permitam demonstrar a realidade dos factos - arts. 7º, n.º 1 do CPC e 341º do C.Civil - realizando ou ordenando, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer - art. 411º do C.P.Civil.
21 - Norteado pelos princípios da verdade e da justiça material, o Tribunal poderá e deverá desenvolver a prática da actividade de indagação e esclarecimento dos factos relevantes para o desfecho do litígio.
22 - Sem prejuízo de, em obediência ao princípio do dipositivo estabelecido no n.º 1 do art.º 5º, caber às partes o ónus de invocar os “factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”, o princípio do inquisitório impõe ao juiz, quanto àqueles factos e aos demais de que lhe é lícito conhecer, o poder/dever de diligenciar pelo apuramento da verdade e a justa composição do litígio - “vide gratiae” a este respeito o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/02/2023. 
23 - Assim, e não obstante a Apelante/A. ter prestado todas as informações que tinha ao seu dispor sobre a causa e circunstancialismo da morte do senhor seu marido, na qualidade de segurado no seguro de vida contratualizado com a R./Apelada, bem como das patologias que o mesmo passou a padecer, com o avançar da idade, face à dúvida sobre se a data de diagnóstico das patologias influenciaria a exactidão da declaração inicial de risco, não deveria o julgador, ter decidido, sem mais, pela omissão do cumprimento de um dever de informação essencial pela Apelante/A..

POR OUTRO LADO, AINDA,
24 - O acesso das Companhias de Seguros de dados pessoais, em particular, de dados de saúde da pessoa segurada, na tentativa de obtenção de informação clínica é uma realidade reforçada com a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (comumente designada de “LADA”) - Lei n.º 26/2016, de 22 de Agosto-.
25 - As Companhias de Seguro têm, por isso, através desta lei acesso aos dados médicos das pessoas seguradas, através de canal próprio a CADA - Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.
26 - A propriedade da informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos é da pessoa a quem essa informação respeita - art. 3.º n.º 1 da Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro - regime jurídico que define o conceito de informação genética pessoal e informação de saúde -.
27 - No caso dos autos, a autorização prestada pela Apelante e o seu falecido marido na proposta de contrato consubstancia uma autorização explícita e específica, nos termos do art.6º n.º 5 da LADA.
28 - Motivo pelo qual, não podia a Apelada fazer impender sobre a Apelante a obrigação de fornecer elementos clínicos acerca da data de diagnóstico das patologias de que padecia o seu falecido marido, como para conclusão do processo de sinistro - e aos quais não tinha acesso…, como declarou -.
29 - Também a Apelada, “EMP01..., Companhia de Seguros S.A”, tinha a obrigação de solicitar um pedido de acesso à informação clínica de utente do falecido marido da A., encontrando-se, para esse efeito, munida de autorização expressa, prestado pela Apelante e pelo seu falecido marido.
30 - Não podia a Apelada, seguradora, escudar-se a honrar o contrato de seguro de vida contratualizado com a Apelante e o seu falecido marido, condicionando a conclusão do processo de sinistro à apresentação, pela Apelante de exames complementares de diagnóstico das patologias de que padecia o seu falecido marido, quando cabia à Apelada/R. tentar obter a informação atinente à data do início das patologias do marido da Apelante, através da intervenção da CADA.
31 - Os Tribunais Superiores têm proferido jurisprudência unânime quanto à possibilidade de acesso pelas Companhias de Seguros a dados pessoais, designadamente de dados de saúde, das pessoas seguradas. 
32 - Nesse conspecto têm vindo a reconhecer que as Companhias de Seguro, são titulares de um interesse direto, pessoal e legítimo, suficientemente relevante segundo o princípio da proporcionalidade, no acesso a tal informação nominativa.
33 - O que, no presente caso, decorre da subscrição do contrato de seguro de vida e do objetivo próprio da companhia de seguros em causa - 2ª parte do nº 5 do artº 6º da Lei nº 46/2007, de 24/08.
34 - O acesso das Companhias de Seguros aos dados clínicos das pessoas seguradas vem, assim, permitir, a celeridade na conclusão dos processos de sinistro e colmatar as dificuldades sentidas pelos segurados, parte mais débil no contrato, na obtenção de determinados elementos e dados clínicos.
35 - Até porque, não raras as vezes - e como é o caso dos autos -, os segurados, que pagam o prémio do seguro às empresas seguradoras, sofrem as gravíssimas consequências económicas pela prolação no tempo da conclusão dos processos de sinistro pela entidade tomada do seguro.
36 - Neste sentido, também a Comissão Nacional de Protecção de Dados em diversas deliberações, deixou assente que os hospitais e outras instituições de saúde podem comunicar às seguradoras os dados pessoais de saúde, mediante consentimento expresso dos titulares.
37 - Sendo entendimento da Comissão Nacional de Protecção de Dados que é no momento da celebração do contrato, que as Seguradoras devem medir o risco da outorga do contrato de seguro.
38 - Neste momento, ou requerem ao segurando consentimento expresso - como foi o caso - para aceder aos seus dados pessoais de saúde, ou requerem que este realize exames e análises para aferir o estado de saúde do segurado.

AINDA SEM PRESCINDIR,
39 - A participação do óbito do tomador do seguro pela A./Apelante, instruído com os relatórios clínicos, consubstancia o ónus de informação que recaía sobre a Apelante/Recorrente, constituindo um abuso por parte da Apelada/R. prevalecer-se do facto de precisar de mais informação para avaliar as circunstâncias do sinistro, declinando, assim, sem mais, o pagamento da quantia segurada.
40 - Como também não podia, desde logo, a Apelada/R., que aceitou o contrato de seguro, prevalecer-se da invocação de uma eventual prestação de declarações falsas e, ou, inexactas pelo segurado, BB, sobre o seu estado de saúde no momento da celebração do seguro de vida, pois, deixando asseverado que à data da celebração do contrato de seguro de vida a Apelante e o seu marido, na qualidade de segurados, encontravam-se ambos saudáveis, não padecendo de qualquer doença e, ou, patologia que pudesse influenciar na celebração do contrato de seguro, e, consequentemente, não se provando que à data em que o falecido marido da Apelante subscreveu a proposta de contrato, padecia de eventuais patologias, o certo é que a Apelada aceitou e celebrou o contrato de seguro do ramo vida com a Apelante e o senhor seu marido.
41 - A Apelada, ao condicionar a conclusão do processo de sinistro e, consequente pagamento do capital seguro à Apelante, na apresentação de relatórios clínicos com indicação da data de diagnóstico das patologias, viola os mais elementares princípios da boa-fé contratual, actuando com abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium” - veja-se a este propósito, o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/04/2022, proc. n.º 20078/19.2T8LSB.L1-2, acessível em www.dgsi.pt.
42 - Daí que, não podia a Apelada/R. condicionar a conclusão do processo de sinistro e, consequentemente, recusar o pagamento do capital segurado, sem antes proceder à recolha dos elementos tidos necessários à aferição do estado de saúde do segurado, BB, como era obrigação da mesma, escusando-se na alegação da violação e, ou, omissão de um dever de informação pela Apelante.
43 - A apresentação de documento onde se declarem as circunstâncias, causas, início de evolução de doença ou patologias não são condições de procedibilidade para liquidação da importância segura.
44 - As condições de exigibilidade da liquidação da importância segura e de verificação do direito, é a verificação do sinistro - no caso, o falecimento do titular do contrato -: ou seja, o evento de risco acionador do direito à indemnização é condição de exigibilidade do direito, tal como decorre da própria noção legal de contrato de seguro.
45 - O seguro de vida vincula a entidade seguradora à realização da prestação acordada se a pessoa segura falecer antes do termo do contrato de crédito, cobrindo, portanto, o risco de morte desta pessoa.
46 - O Tribunal “a quo” ao decidir pela omissão do dever de informação pela Apelante, não julgou justamente e conforme à lei aplicável, padecendo a douta Sentença de erro na determinação e, ou, interpretação do direito aplicável, devendo aquela decisão proferida no Tribunal “a quo” ser agora revogada, por forma a que seja dada aplicação efectiva ao disposto nas normas constantes dos arts. 1.º n.º 3, 3.º n.º 1, alínea b), 6.º n.º 5 e 7.º n.º 3, todos da Lei n.º 26/2016 - Lei de Acesso aos Documentos Administrativos.
47- Ao mesmo passo que, salvo o devido respeito, foi violado o dever que a lei impõe ao julgador de indagar e de tomar as necessárias iniciativas, que sejam essenciais, ou até instrumentais, para a descoberta da verdade e para a justa composição do litígio, por forma da aplicação conjugada do disposto nos arts.6º e 411º do C.P.Civil.
Pelo que,
48 - Pelo que, salvo o devido respeito, que é muito, a douta Sentença proferida violou e, ou, interpretou erradamente, entre outras, a aplicação conjugada das normas constantes dos arts. 2º e 20ª da Constituição, arts. 340º e sgts. do Cód. Civil, arts. 2º, 4º, 5º,6º, 7º, 410º, 411º, 417º e 429º do C.P. Civil, n.º 1 do art. 3º da Lei 12/2022 de 26 de Abril, Lei n.º 26/2016 de 22/8 e art. 6 da Lei n.º 46/2007 de 24/8.

TERMOS EM QUE E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXAS VENERANDOS DESEMBARGADORES, DEVE SER DADO INTEIRO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE A DOUTA SENTENÇA AQUI APELADA, POR SER DE INTEIRA JUSTIÇA».

A apelada apresentou resposta, sustentando a improcedência da apelação e a consequente manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, tendo o recurso sido admitido nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente, e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º, n.º 1, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) -, o objeto do presente recurso circunscreve-se a aferir se a sentença recorrida incorreu em erro na interpretação e aplicação do direito ao considerar que a autora omitiu o cumprimento de um dever de informação essencial para que a ré - seguradora - pudesse avaliar da exatidão da declaração inicial do risco, o que passa por saber se era exigível à autora, ora recorrente, a prestação da informação solicitada pela ré sobre a data de diagnóstico das patologias referidas no relatório de autópsia médico-legal referente ao seu falecido marido, mediante:
-  o envio de relatório do médico assistente do segurado BB, com indicação da data de diagnóstico das patologias referidas no relatório de autópsia (diabetes, hipertensão arterial e tabagismo) - carta datada de 5-08-2020 enviada pela ré à autora;
- o envio de relatório do médico assistente do falecido BB, com indicação da data de diagnóstico das seguintes patologias: diabetes mellitus tipo II e doença hepática crónica - cartas datadas de 09-11-2020 e 31-01-2022 enviadas pela ré à autora.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda os seguintes factos considerados provados pela 1.ª Instância:
1. A Autora e BB contraíram entre si, aos ...3....8....87.
2. No ano de 2004, a Autora e o seu marido decidiram comprar uma habitação para aí viveram com a família, tendo, para o efeito, recorrido ao crédito à habitação.
3. Naquele ano, a Autora e o seu marido, contraíram com “Banco 1...” - naquela altura, Banco 2... - um crédito à habitação, cujo capital inicial era de € 54.500,00.
4. Uma das exigências daquela instituição bancária para concessão do crédito à habitação foi a celebração de um contrato de seguro de vida associado àquele credito.
5. A Autora e o seu marido celebraram, então, com a Ré, “EMP01... - Companhia de Seguros de Vida, S.A” - anteriormente denominada de “EMP02... Seguros de Vida - Banco 1...” - o contrato titulado pela apólice n.º ...96.
6. Esse contrato tinha, como cobertura principal e complementar, respectivamente, a morte e a invalidez absoluta definitiva.
7. No dia .../.../2020, faleceu o marido da Autora.
8. A causa de morte do marido da Autor foi uma falência cardíaca na sequência de fibrose do miocárdio.
9. A Autora participou o óbito do seu marido à Ré.
10. Nessa altura, a Autora requereu à Ré, o accionamento do contrato referido em 5.
11. O valor das prestações mensais do empréstimo referido em 3 ascende à quantia de € 225,77.
12. A Autora dirigiu interpelação escrita à Ré, através da sua mandatária forense, aos 28.05.2021, solicitando o “integral pagamento do Capital Seguro”.
13. A Autora e o falecido BB subscreveram, em .../.../2003, a proposta respeitante ao contrato titulado pela apólice n.º ...96.
14. A Ré aceitou a celebração desse contrato
15. Na proposta do contrato titulado pela apólice n.º ...96 a Autora e o falecido BB declararam: “Autorizamos a COMPANHIA DE SEGUROS EMP03... a inquirir junto de qualquer entidade que nos tenha tratado ou examinado, pedindo todos os detalhes que julgar necessários acerca do nosso estado de saúde para aceitação do nosso pedido de adesão ou em caso de liquidação de eventual sinistro”.
16. Consta do artigo 15.1 das condições gerais do contrato titulado pela apólice n.º ...96 que:
O pagamento das importâncias seguras será efetuado nos escritórios da seguradora, na localidade da emissão deste contrato, após entrega pelo tomador de seguro ou beneficiários do certificado individual, documento de identificação do segurado/pessoa segura (ou dos segurados no caso do seguro ser sobre duas vidas), documentos comprovativos da qualidade de beneficiário e certificado de óbito do segurado/pessoa segura.
Se a morte for devida a acidente poderão ser solicitados outros documentos elucidativos do acidente, nomeadamente, policiais, judiciais e hospitalares.
A seguradora poderá também exigir atestado médico, indicando as causas e evolução da doença que ocasionou o falecimento”.
17. A Autora subscreveu, em 6.07.2020, participação de sinistro respeitante ao óbito de BB e anexou relatório de autópsia médico-legal.
18. Por carta datada de 5.08.2020 que enviou à Autora, a Ré solicitou o envio de relatório do médico assistente do segurado BB, com indicação da data de diagnóstico das patologias referidas no relatório de autópsia (diabetes, hipertensão arterial e tabagismo).
19. A Autora enviou à Ré relatório médico datado de 7.09.2020 emitido pela Dra. CC sobre o segurado BB, em que consta:
“(…) declara para os devidos efeitos que do registo clínico do processo informático do BB, nascido a .../.../1961, constam os seguintes problemas de saúde:
Tabagismo, consumo crónico e excessivo de álcool, doença hepática alcoólica, dislipidemia, hipertensão arterial, cardiopatia hipertensiva, diabetes tipo 2, hipotiroidismo, patologia venosa crónica dos membros inferiores, fraturas ósseas (ramo isquiopúbico esquerdo e fratura distal do rádio esquerdo - 2018), 5.º dedo da mão em gatilho”.
20. Por carta datada de 9.11.2020, que enviou à Autora, a Ré solicitou o envio de relatório do médico assistente do falecido BB, com indicação da data de diagnóstico das seguintes patologias: diabetes mellitus tipo II e doença hepática crónica.
21. Por carta datada de 31.01.2022 que enviou à Autora, a Ré insistiu no envio de relatório do médico assistente do falecido BB, com indicação da data de diagnóstico das referidas patologias (diabetes mellitus tipo II, e doença hepática crónica).
22. Por carta datada de 17.02.2022, que enviou à Ré, a mandatária forense da Autora informou da instauração da presente acção.
23. A Autora nunca enviou à Ré relatório médico com a informação referida em 20 e 21.
1.2. Factos considerados não provados pela 1.ª instância na sentença recorrida:
Artigo 7.º da Petição Inicial - “Durante dezasseis (16) anos - entre 2004 e 2020 -, nunca a A. e o seu marido deixaram de cumprir pontualmente com o pagamento das prestações mensais do crédito habitacional e do respectivo seguro”.
Artigo 16.º da Petição Inicial - Na parte em que se diz “Desde Novembro de 2020 (…) e que, de imediato, a A. tratou de fornecer -, que o processo de acionamento da apólice do seguro se encontra totalmente parado”.
Artigo 17.º da Petição Inicial - “Apesar das sucessivas e reiteradas interpelações da A., através de contacto telefónico, à R., no sentido de saber em que fase de encontrava o processo de accionamento do seguro”.
Artigo 18.º da Petição Inicial - “Nenhuma resposta e, ou, esclarecimento nesse sentido, foi dado pela R.”.
Artigo 19.º da Petição Inicial - “A qual, até aos dias de hoje, continua sem prestar qualquer esclarecimento à A., nem apresenta qualquer resolução”.
Artigo 21.º da Petição Inicial - Na parte em que se diz “o único rendimento de que dispõe a A. é o seu salário mínimo”.
Artigo 22.º da Petição Inicial - Na parte em que se diz “Acrescendo, ainda, a tudo isto, o facto de a A., ter vindo a auxiliar economicamente as suas duas filhas, que consigo vivem, e que, devido às adversidades (…) causadas pela pandemia Covid-19, se encontram desempregadas”.
Artigo 28.º da Contestação - Na parte em que se diz “que causaram o óbito”.
Artigo 30.º da Contestação - Na parte em que se diz “que causaram o óbito”.
Artigo 31.º da Contestação - Na parte em que se diz “que causaram o óbito”.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

A presente ação tem por finalidade tornar efetivo o acionamento das garantias previstas em contrato de seguro de grupo, ramo vida, pelo qual a ré - seguradora -  garantiu a restituição da quantia mutuada pelo banco - “Banco 1...” - à data, Banco 2..., S.A., - cujo capital inicial era de € 54.500,00, em caso de morte e invalidez absoluta definitiva (cobertura principal e complementar, respetivamente), de qualquer um dos segurados/pessoas seguras, assumindo aquele banco a qualidade de tomador e de beneficiário.
A recorrente insurge-se contra a sentença final que, após produção de prova, veio a julgar a ação improcedente e, em consequência, absolveu a ré - seguradora - do pedido formulado.
Para a apreciação do objeto da presente apelação importa considerar que a qualificação do contrato em apreciação nos presentes autos, como seguro de grupo, ramo vida, contributivo, não vem questionada pelas partes no presente recurso.
O «Seguro de grupo» vem definido no artigo 1.º, al. g), do Dec. Lei n.º 176/95, de 26-07[1], como «seguro de um conjunto de pessoas ligadas entre si e ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum».
Por sua vez, o atual artigo 76.º, n.º 1 do RJCS, enuncia que «[o] contrato de seguro de grupo cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo que não seja o de segurar», explicitando ainda, no respetivo artigo 77.º, que o seguro de grupo pode ser contributivo ou não contributivo, sendo contributivo quando do contrato de seguro resulta que os segurados suportam, no todo ou em parte, o pagamento do montante correspondente ao prémio devido pelo tomador do seguro (artigo 77.º, n.º 2, do RJCS).
A respeito da peculiar natureza e fisionomia do seguro de grupo, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-02-2017[2]: «Um contrato de seguro de grupo (ramo vida) em que são intervenientes uma seguradora, uma instituição financeira (como tomadora e credora beneficiária) e uma pessoa singular (como aderente-segurada) constitui um contrato celebrado no âmbito de um esquema contratual com uma estrutura tripartida complexa, tendo por base um plano de seguro e, na sua execução, várias adesões/celebrações de contratos de seguro concretizados nas declarações de vontade das pessoas seguras de aderirem ou fazerem parte do referido plano de seguro.
(…) Nestas situações, a seguradora e o tomador do seguro (a instituição bancária) celebram entre si um contrato de seguro que vai funcionar como o quadro em que, posteriormente, se estabelecem as situações ou relações de seguro (situações de risco) propriamente ditas».
Nos termos do disposto no artigo 183.º do RJCS, no seguro de vida, o segurador cobre um risco relacionado com a morte ou a sobrevivência da pessoa segura.
Tal como salientou a sentença recorrida, a propósito da factualidade vertida nos pontos 2 a 6 dos factos provados, no seguro em causa nos autos a ré assumiu a cobertura do risco relativo ao pagamento do montante mutuado à autora, obrigando-se a realizar tal prestação em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato - no caso, a morte da pessoa segura.
Como conteúdo típico do referido contrato temos que o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente (artigo 1.º do RJCS).
Neste contexto, e em face da matéria de facto vertida nos pontos 7 e 8 dos factos provados - dos quais resulta que, no dia .../.../2020, faleceu o marido da Autora; a causa de morte do marido da Autor foi uma falência cardíaca na sequência de fibrose do miocárdio - a decisão recorrida veio a entender que ocorreu o sinistro previsto no contrato de seguro em apreço: no decurso da sua vigência, o cônjuge da Autora e segurado faleceu, em face do que concluiu: «verificado o sinistro, poderá dizer-se que devia a Ré realizar a prestação a que se obrigou pelo contrato de seguro, sendo certo que revestindo o contrato de seguro a natureza de contrato a favor de terceiro, ao promissário assiste nos termos do art.º 444.º, n.º 2, do Código Civil, o direito de exigir ao promitente que efectue a prestação ao beneficiário (…)».
Apesar de julgar verificado o sinistro previsto no contrato de seguro em apreço, o Tribunal recorrido veio a entender que a autora omitiu o cumprimento de um dever de informação essencial para que a ré - seguradora - pudesse avaliar da exatidão da declaração inicial do risco [enquanto facto impeditivo do vencimento da obrigação de pagamento da quantia segurada, nos termos dos artigos 102.º, n.º 1, e 104.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16-04].
Assim, aquele tribunal entendeu que o processo de regularização de sinistros é composto, entre outras, por uma fase de instrução, correspondente ao conjunto de atos internos e externos tendentes à confirmação da ocorrência e circunstâncias do sinistro, à análise do seu enquadramento nas cláusulas contratuais e a uma decisão acerca do mesmo, e que, em tais casos, a cooperação devida no apuramento das circunstâncias do sinistro, suas consequências e danos corresponde, desde logo, a um dever acessório decorrente da boa fé, sem prejuízo das exigências de cumprimento, por parte da empresa de seguros, de determinadas exigências relacionadas com o ónus de autoinformação, de necessidade da informação e de assimetria informacional, necessárias a fazer nascer, na parte contrária, um especial dever de informação, em face do que enunciou a seguinte fundamentação: «(…) no caso dos autos encontra-se provado que:
“A Autora subscreveu, em 6.07.2020, participação de sinistro respeitante ao óbito de BB e anexou relatório de autópsia médico-legal (…);
Por carta datada de 5.08.2020 que enviou à Autora, a Ré solicitou o envio de relatório do médico assistente do segurado BB, com indicação da data de diagnóstico das patologias referidas no relatório de autópsia (diabetes, hipertensão arterial e tabagismo) (…);
A Autora enviou à Ré relatório médico datado de 7.09.2020 emitido pela Dra. CC sobre o segurado BB, em que consta:
“(…) declara para os devidos efeitos que do registo clínico do processo informático do BB, nascido a .../.../1961, constam os seguintes problemas de saúde:
Tabagismo, consumo crónico e excessivo de álcool, doença hepática alcoólica, dislipidemia, hipertensão arterial, cardiopatia hipertensiva, diabetes tipo 2, hipotiroidismo, patologia venosa crónica dos membros inferiores, fraturas ósseas (ramo isquiopúbico esquerdo e fratura distal do rádio esquerdo - 2018), 5.º dedo da mão em gatilho” (…);
Por carta datada de 9.11.2020, que enviou à Autora, a Ré solicitou o envio de relatório do médico assistente do falecido BB, com indicação da data de diagnóstico das seguintes patologias: diabetes mellitus tipo II e doença hepática crónica (…);
Por carta datada de 31.01.2022 que enviou à Autora, a Ré insistiu no envio de relatório do médico assistente do falecido BB, com indicação da data de diagnóstico das referidas patologias (diabetes mellitus tipo II, e doença hepática crónica) (…);
Por carta datada de 17.02.2022, que enviou à Ré, a mandatária forense da Autora informou da instauração da presente acção (…);
A Autora nunca enviou à Ré relatório médico com a informação referida em 20 e 21”
- Cfr., os pontos 17 a 23 dos Factos Provados.
Dir-se-á, em face da matéria de facto acima transcrita, que, ao não facultar à Ré relatório contendo a indicação da data de diagnóstico das patologias de que padecia a pessoa segura, a Autora omitiu o cumprimento de um dever de informação essencial para que aquela pudesse avaliar da exactidão da declaração inicial do risco, facto impeditivo do vencimento da obrigação nos termos dos artigos 102.º, n.º 1, e 104.º, do RJCS».
Mais considerou ser exigível à autora a prestação da informação sobre a data de diagnóstico das patologias de que padecia o seu falecido marido e, dada a sua essencialidade para o apuramento das causas e circunstâncias do sinistro, mormente, para que a seguradora pudesse avaliar da exatidão da declaração inicial do risco, concluiu que, não tendo aquela facultado tal informação, não se venceu - ainda - a obrigação da Ré nos termos dos artigos 102.º, n.º 1, e 104.º, do RJCS.
Em consequência, foi a ação julgada totalmente improcedente.
Contra tal decisão insurge-se a recorrente/autora, discordando das consequências extraídas pelo Tribunal recorrido da matéria de facto dada como provada, ao entender legitimado o condicionamento suscitado pela ré - seguradora - em relação à conclusão do processo de sinistro e consequente pagamento do capital seguro, com base na imposição da apresentação por esta de relatório clínico com indicação da data de diagnóstico das patologias de que padecia o seu falecido marido.
Na apelação que interpôs, a recorrente sustenta que o evento de risco acionador do direito à indemnização é condição de exigibilidade do direito, como decorre da própria noção legal de contrato de seguro, o que, alega, se verifica no caso em análise por via do falecimento do titular do contrato.
Deste modo, face à participação do óbito do tomador do seguro pela autora/apelante, instruído com todos os documentos e informações que tinha em seu poder acerca da causa e circunstancialismo da morte do seu marido, na qualidade de segurado no seguro de vida contratualizado com a ré/apelada, bem como das patologias que o mesmo passou a padecer, não devia o julgador ter decidido, sem mais, pela omissão do cumprimento de um dever de informação essencial pela apelante, perante a dúvida sobre se a data de diagnóstico das patologias influenciaria a exatidão da declaração inicial de risco.
No essencial, a recorrente defende o seguinte: - não lhe pode ser imputada a violação de qualquer dever de informação, seja porque forneceu e prestou à ré/apelada todos os documentos e informações de que dispunha acerca da causa e circunstancialismo da morte do seu marido, seja, sobretudo, porque das Condições Gerais do Seguro de Vida subscrito pela apelante/autora e o seu marido com a apelada/ré não resulta a obrigação da recorrente prestar informação sobre as patologias de que padecia o seu falecido marido, mas, tão só, das “causas e evolução da doença que ocasionou o falecimento” - conforme decorre da cláusula 15.1 das Condições Gerais do Seguro de Vida, junta aos autos -, as quais decorrem do relatório da autópsia realizada pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Cávado ao falecido marido da recorrente; - nenhum outro relatório e/ou declaração médica, foi emitido, pela médica de família do seu falecido marido, para além daquela que a recorrente também juntou aos autos; - ademais, a autorização prestada pela apelante e pelo seu falecido marido na proposta de contrato consubstancia uma autorização, explícita e específica, para acesso da ré - seguradora - aos dados pessoais, em particular, aos dados de saúde da(s) pessoa(s) segurada(s), motivo pelo qual não podia a apelada/seguradora, para conclusão do processo de sinistro, fazer impender sobre a ora apelante a obrigação de fornecer elementos clínicos acerca da data de diagnóstico das patologias de que padecia o seu falecido marido, aos quais a apelante não tinha acesso, conforme esclareceu em declarações de parte prestadas na audiência de julgamento que teve lugar no dia 10 de fevereiro de 2023; - a apelada/seguradora tinha a obrigação de solicitar o acesso à informação clínica de utente do falecido marido da autora, posto que se encontrava para esse efeito munida de autorização expressa prestada por aquele, o que lhe confere a possibilidade de acesso a esses dados, como tem vindo a ser entendimento da Comissão Nacional de Proteção de Dados em diversas deliberações; - assim, pretendendo a apelada, ainda que de forma dilatória, certificar-se da causa de morte do segurado, BB, era exigível, segundo as regras de boa-fé, obter, diretamente, os elementos tidos como necessários a tal aferição, oficiosamente, junto das instituições de saúde e não invocar a omissão de um dever essencial de informação pela apelante, para, dessa forma, se eximir, sem mais, ao pagamento do capital seguro; ainda que, e por hipótese meramente académica, a apelante/autora tivesse a obrigação de prestar informação à ré/apelada acerca da data de diagnóstico das patologias de que padecia o seu falecido marido, a recorrente, em declarações de parte, explicou ao Tribunal a quo que não tinha como obter tal informação, pois, mais nenhum relatório e, ou, declaração médica, foi emitido, pela medida de família do seu falecido marido, pelo que, por força do princípio do inquisitório e do disposto nos artigos 6.º e 411.º do CPC, incumbia ao Tribunal recorrido ordenar a junção aos autos de declaração e/ou relatório clínico de onde constasse a indicação da data de diagnóstico das patologias de que sofria o segurado.
Conclui a recorrente que a participação que fez à ré do óbito do outro segurado, instruído com os relatórios clínicos que tinha em seu poder, consubstancia o cumprimento do ónus de informação que sobre si recaía, constituindo um abuso por parte da apelada/seguradora pretender prevalecer-se do facto de precisar de mais informações para avaliar as circunstâncias do sinistro, declinando o pagamento da quantia segurada com base na invocação de eventuais declarações falsas e/ou inexatas pelo segurado BB sobre o seu estado de saúde no momento da celebração do seguro de vida, pois, deixando asseverado que à data da celebração do contrato de seguro de vida a apelante e o seu marido, na qualidade de segurados, encontravam-se ambos saudáveis, não padecendo de qualquer doença e/ou patologia que pudesse influenciar na celebração do contrato de seguro, o que a recorrida aceitou, e não se provando que à data em que o falecido marido da apelante subscreveu a proposta de contrato, padecesse de eventuais patologias, a imposição da apresentação de relatórios clínicos com indicação da data de diagnóstico das patologias, viola os mais elementares princípios da boa-fé contratual.
Analisada a matéria de facto provada, que permanece inalterada, não podemos sufragar o entendimento, vertido na sentença recorrida, que considera ser exigível à autora a prestação de informação sobre a data de diagnóstico das patologias de que padecia o seu falecido marido[3], imputando-lhe a omissão de um dever de informação essencial para que a seguradora/ré pudesse avaliar da exatidão da declaração inicial do risco, enquanto facto impeditivo do vencimento da obrigação nos termos dos artigos 102.º, n.º 1, e 104.º, do RJCS.
Em primeiro lugar, entendemos que se verificam todos os requisitos constitutivos e condições de exigibilidade da obrigação de pagamento da quantia segurada, com a verificação do sinistro durante a vigência do contrato de seguro, no caso, o falecimento da pessoa segura, enquanto evento de risco acionador do direito e condição de exigibilidade do mesmo.
Como bem considerou a sentença recorrida, dúvidas não subsistem sobre a ocorrência do sinistro previsto no contrato de seguro em apreço, uma vez provado que no decurso da sua vigência, em .../.../2020, faleceu o cônjuge da autora, o segurado BB - cf. o ponto 7 dos factos provados -, sendo que o contrato titulado pela apólice n.º ...96, celebrado pela autora e seu marido com a ré, tinha como cobertura principal e complementar, respetivamente, a morte e a invalidez absoluta definitiva - cf. os pontos 5 e 6 dos factos provados - e considerando que a autora e o falecido BB subscreveram, em .../.../2003, a proposta respeitante ao referido contrato, que a ré aceitou - pontos 13 e 14 dos factos provados.
Por outro lado, à luz dos elementos que constam dos autos, julgamos que a apelante cumpriu o ónus de participação do sinistro e o dever de informação complementar sobre o mesmo, na parte que lhe era exigível, pelo que competia à ré/seguradora o ónus de provar a verificação de alguma circunstância que permitisse excluir a sua responsabilidade, nos termos do artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, por se tratar de matéria de exceção.
Tal como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-03-2016[4],  «incumbe ao segurado o ónus de provar as ocorrências concretas em conformidade com as situações hipotéticas configuradas nas cláusulas de cobertura do risco, como factos constitutivos que são do direito de indemnização, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC.
(…) Por sua vez, à seguradora cabe provar os factos ou circunstâncias excludentes do risco ou aqueles que sejam suscetíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual, a título de factos impeditivos nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do CC», esclarecendo-se, ainda, que «[n]em sequer se afigura que recaia sobre o segurado o ónus de provar a causa específica que teve na origem das ocorrências configuradas no contrato como integradoras do risco, o que constituiria, de resto, uma tarefa quantas vezes impossível para o próprio segurado. O que se lhe impõe, nos n.º 2 do artigo 100.º da LCS, é que explicite as circunstâncias do sinistro e as eventuais causas da sua ocorrência com vista a permitir à seguradora, precisamente, fazer tal indagação por via pericial.
E mesmo em caso de eventualidade de fraude - com o que, aliás, fica prejudicada a natureza fortuita do próprio evento -, é sobre a seguradora que impende o ónus de provar que a ocorrência de facto integrador de qualquer das situações contratualmente previstas em sede de delimitação do risco foi causado dolosamente pelo tomador do seguro ou do segurado, o que se traduz num facto impeditivo do efeito jurídico potenciado por aquele ocorrência, nos termos conjugados do art.º 46.º da LCS e do n.º 2 do art.º 342.º do CC».
No caso em análise, resulta definitivamente assente nos autos que a autora participou o óbito do seu marido à ré, requerendo, nessa altura, o acionamento do contrato referido em 5 - cf. os pontos 9 e 10 dos factos provados.
Consta do artigo 15.1 das condições gerais do contrato titulado pela apólice n.º ...96 - sob a epígrafe “Liquidação das importâncias seguras”- que «O pagamento das importâncias seguras será efetuado nos escritórios da seguradora, na localidade da emissão deste contrato, após entrega pelo tomador de seguro ou beneficiários do certificado individual, documento de identificação do segurado/pessoa segura (ou dos segurados no caso do seguro ser sobre duas vidas), documentos comprovativos da qualidade de beneficiário e certificado de óbito do segurado/pessoa segura.
Se a morte for devida a acidente poderão ser solicitados outros documentos elucidativos do acidente, nomeadamente, policiais, judiciais e hospitalares.
A seguradora poderá também exigir atestado médico, indicando as causas e evolução da doença que ocasionou o falecimento».

O artigo 100.º do RJCS, sob a epígrafe Participação do sinistro, dispõe o seguinte:

1 - A verificação do sinistro deve ser comunicada ao segurador pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo beneficiário, no prazo fixado no contrato ou, na falta deste, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento.
2 - Na participação devem ser explicitadas as circunstâncias da verificação do sinistro, as eventuais causas da sua ocorrência e respectivas consequências.
3 - O tomador do seguro, o segurado ou o beneficiário deve igualmente prestar ao segurador todas as informações relevantes que este solicite relativas ao sinistro e às suas consequências.
Por sua vez, o artigo 102.º do RJCS, com a epígrafe Realização da prestação do segurador, prevê o seguinte:
1 - O segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, dependendo das circunstâncias, pode ser necessária a prévia quantificação das consequências do sinistro.
3 - A prestação devida pelo segurador pode ser pecuniária ou não pecuniária.

Densificando os traços essenciais do regime que decorre dos preceitos legais acabados de citar, em termos que entendemos de sufragar integralmente, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2021[5]:  «Não se pode concluir destas normas que a informação complementar sobre as circunstâncias do sinistro, que os autores se encontravam obrigados a entregar, seja elemento constitutivo do respetivo direito ao pagamento da quantia segurada (devida ao Banco mutuante), porquanto se trata de regras que visam, essencialmente, disciplinar a fase da liquidação e da determinação do montante a pagar. Elemento constitutivo do direito dos autores é a existência do sinistro, ou seja, a morte de um dos cônjuges mutuários. Não é a prova de que a morte ocorreu em determinadas circunstâncias, e não noutras.
Assim, provada a morte de um dos cônjuges, tem a Seguradora a faculdade de se eximir ao pagamento, demonstrando que essa morte ocorreu em circunstâncias que, nos termos do contrato, excluíam essa obrigação. A obrigação de entregar o relatório médico, exigida na cláusula 29º, alínea b) das condições gerais do contrato de seguro, serve este interesse da Seguradora».
Tal como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-03-2015[6], a propósito de cláusula contratual aposta em contrato de seguro com a cobertura do risco de morte ou invalidez, associado a contrato de mútuo, em tudo idêntica à que consta do contrato em causa nos presentes autos, com a epígrafe Condições de Liquidação das importâncias seguras: «[t]rata-se, assim, de condições de liquidação do pagamento da importância segura e condições de procedibilidade respectiva, e, em caso, algum de condições de exigibilidade e de verificação do direito, pressupondo-se, aliás, na cláusula em referência, que tais procedimentos de liquidação terão lugar caso a tal haja direito - “sempre que a ela houver direito”; sendo a verificação do sinistro, in casu o falecimento do titular do contrato, o evento de risco accionador do direito à indemnização e condição de exigibilidade do direito, tal como da própria noção legal de contrato de seguro decorre, cfr. artº 1º da LCS - “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”, sendo, assim, o contrato de seguro aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante o pagamento, por outra, de determinado prémio, a indemnizá-la ou a terceiro pelos prejuízos decorrentes da verificação de certo evento de risco, sendo que “a relação de seguro comporta o prémio, a cobertura do risco, a eventualidade do sinistro e a indemnização dele resultante” - Menezes Cordeiro, in “Direito dos Seguros”, pg. 525, sendo estes os seus elementos essenciais e constitutivos do direito».
Assim, «[o] contrato de seguro caracteriza-se pela obrigação, assumida pelo segurador, de realizar uma prestação (maxime, pagar uma quantia) relacionada com o risco do tomador de seguro ou de outrem (segurado, eventualmente, pessoa segura), sendo estes os seus elementos essenciais e constitutivos do direito»[7].
Ademais, do relatório de autópsia médico-legal que foi junto aos autos, referente a BB, constam, no que aqui releva, as seguintes conclusões: «1ª - A morte de (…) pode ter sido devida a falência cardíaca na sequência de fibrose marcada do miocárdio assocada a lesões moderadas de aterosclerose coronária.
2ª - Conjugando os dados necrópsicos, os resultados dos exames complementares efetuados (anátomo-patológicos e toxicológicos) e a informação circunstancial (social, colhida neste GMLF, e clínica), atrás transcritas, tudo se harmoniza com uma causa de morte natural.
(…)».
Deste modo, resultando devidamente assente nos presentes autos que a autora/apelante subscreveu, em 6-07-2020, participação de sinistro respeitante ao óbito de BB e anexou relatório de autópsia médico-legal (ponto 17 dos factos provados), do qual constam as eventuais causas da ocorrência do sinistro e respetivas consequências, nos termos antes enunciados, tanto basta para que se considere que a apelante/segurada cumpriu o ónus de participação do sinistro e o dever de informação complementar sobre o mesmo, na parte que lhe era exigível, nos termos e para os efeitos previstos no citado artigo 100.º, n.º 2, 102.º, n.º1 e 104.º do RJCS.
Note-se, a propósito, que o Tribunal a quo deu como provado que a causa de morte do marido da Autor foi uma falência cardíaca na sequência de fibrose do miocárdio (ponto 8 dos factos provados), sendo esta a concreta causa indicada no relatório de autópsia médico-legal que foi junto aos autos, que a autora anexou à participação de sinistro respeitante ao óbito de BB (subscrita em 6-07-2020).
É certo que, posteriormente à participação do sinistro, a seguradora, ora ré, por carta datada de 5-08-2020 que enviou à autora, solicitou o envio de relatório do médico assistente do segurado BB, com indicação da data de diagnóstico das patologias referidas no relatório de autópsia (diabetes, hipertensão arterial e tabagismo).
Apesar de a ora autora, em resposta, ter enviado à ré relatório médico datado de 7-09-2020 emitido pela Dra. CC sobre o segurado BB, certo é que de tal relatório não decorre qualquer indicação da data de diagnóstico das patologias referidas no relatório de autópsia (diabetes, hipertensão arterial e tabagismo)[8], o que levou o Tribunal recorrido a consignar, no ponto 23 dos factos provados, que, a autora nunca enviou à ré relatório médico com a informação referida em 20 e 21.
Sucede que o envio de relatório do médico assistente do segurado BB, com indicação da data de diagnóstico das patologias referidas no relatório de autópsia (diabetes, hipertensão arterial e tabagismo) - conforme solicitado pela ré/seguradora por carta datada de 05-08-2020 - e, mais tarde, a solicitação sobre o envio de relatório do médico assistente do falecido BB, com indicação da data de diagnóstico das seguintes patologias: diabetes mellitus tipo II e doença hepática crónica (carta datada de .../.../2020), implicam o acesso a informações do foro privado do falecido BB, traduzindo solicitações que têm por objeto dados pessoais de saúde deste segurado, os quais a ré não demonstrou, nem alegou, estarem na disponibilidade da segurada, ora autora, não obstante ter sido casada com falecido/segurado desde .../.../1987.
Estamos, efetivamente, perante dados relativos à saúde, contidos na esfera pessoal do falecido/segurado, integrando o âmbito de proteção legal (cf., entre o mais, os artigos 70.º e 80.º do Código Civil) e constitucional (artigos 26.º e 35.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa) da reserva da intimidade da vida privada.
Neste domínio, a Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 95/2019, de 04-09, consagra na sua Base 15.ª, n.º 1, que, a informação de saúde é propriedade da pessoa, devendo a circulação da informação de saúde deve ser assegurada com respeito pela segurança e proteção dos dados pessoais e da informação de saúde, pela interoperabilidade e interconexão dos sistemas dentro do SNS e pelo princípio da intervenção mínima (n.º 2), pelo que só o próprio deles podia dispor, não podendo sequer a sua vontade ser substituída pela vontade de quem lhe sucedesse nos seus direitos patrimoniais.
A recorrente alega, entre o mais, que a autorização prestada pela apelante e pelo seu falecido marido na proposta de contrato consubstancia uma autorização, explícita e específica, para acesso da ré - seguradora - aos dados pessoais, em particular, aos dados de saúde da(s) pessoa(s) segurada(s), motivo pelo qual não podia a apelada/seguradora, para conclusão do processo de sinistro, fazer impender sobre a ora apelante a obrigação de fornecer elementos clínicos acerca da data de diagnóstico das patologias de que padecia o seu falecido marido, aos quais a apelante não tinha acesso, no que lhe assiste razão.
Com efeito, estão em causa dados relativos à saúde, contidos na esfera pessoal do falecido/segurado, e não da aqui autora, ainda que esta figure também como segurada no contrato em referência e não obstante o vínculo conjugal que os unia, sendo evidente que esta última não tem livre acesso aos dados do falecido, cuja reserva continua a ser protegida após a sua morte.
Tal como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-06-2012[9], o regime previsto no citado artigo 100.º do RJCS, «não concede, pois, à seguradora, ao contrário do que a uma exegese mais apressada possa parecer, a faculdade de exigir nomeadamente ao beneficiário, de forma ilimitada, quaisquer informações: estas normas carecem de ser conjugadas com os princípios e demais regras do ordenamento jurídico, entre as quais as constitucionais (cf. art.º 26, n.º 1, CRP), de valor hierarquicamente superior. Exigirá, sim, aquilo que normas e princípios de valor superior não proíbam.
É esse o caso: nem a seguradora nem o beneficiário podem obter livremente elementos relativos à saúde e causa de morte do segurado».

Delimitando os traços essenciais do acesso a dados pessoais de saúde de titulares já falecidos, quer por parte de Companhias de Seguros do ramo Vida, quer por parte de familiares desses titulares, para apresentarem junto das seguradoras para efeitos de recebimento de compensações por morte dos segurados, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) na Deliberação n.º 72/2006, de 30-05-2006[10], enunciou, as seguintes conclusões:
«(…)
1 - O actual contexto jurídico é igual àquele que se verificava quando a CNPD elaborou a Deliberação 51/2001.
2 - As normas constitucionais e os diplomas legais em vigor proíbem o acesso das Seguradoras aos dados pessoais de saúde dos titulares segurados já falecidos, sem o consentimento expresso destes para esse efeito.
3 - Quanto aos familiares, gozam estes de um certo “direito à curiosidade”, o que lhes permite aceder apenas ao relatório da autópsia ou à causa de morte, mas não lhes abre a faculdade de aceder a mais informação de saúde nem a dados pessoais que se encontram na esfera mais íntima do titulares falecido(s). Só em casos concretos em que haja direitos e interesses ponderosos, tais como o exercício de direitos por via da responsabilização civil e/ou disciplinar ou penal dos prestadores de cuidados de saúde, e exclusivamente com esta finalidade, podem os familiares aceder aos dados pessoais de saúde dos titulares falecidos.
4 - No entanto, “não parece haver qualquer fundamento legal, na Lei 67/98, que permita o fornecimento da documentação clínica aos beneficiários de um seguro de vida para, depois, entregarem essa informação à seguradora”.
5 - Em condições de normalidade na execução do contrato de seguro do ramo Vida, os beneficiários das compensações devidas pelos seguros do ramo VIDA, a partir do facto relevante MORTE do segurado, têm, na sua esfera jurídica, um direito subjectivo à compensação. Por sua vez, na esfera jurídica das Seguradoras existe uma obrigação de pagar a compensação.
6 - A posição processual mais onerada de qualquer das partes, seja a das Seguradoras, não pode ser aliviada à custa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
7 - A contracção dos direitos fundamentais à privacidade e à protecção dos dados pessoais dos titulares falecidos não se apresenta como necessária ao não desaparecimento ou inviabilidade da actividade económica das Companhias de Seguros na contratação do ramo Vida.
8 - Não havendo lei com regime habilitante ao acesso aos dados pessoais dos segurados falecidos, as Companhias de Seguros e os familiares destes titulares, para efeitos de pagamento/recebimento de indemnização decorrente da morte do segurado em virtude de contrato de seguro do ramo Vida, só podem aceder aos dados pessoais de saúde dos titulares se estes tiverem dado o seu consentimento informado, livre, específico e expresso para esse acesso, conforme atrás se explicitou.
9 - O consentimento para o tratamento - acesso - dos dados pessoais deve ser autónomo das restantes cláusulas contratuais, mormente quando estas são pré-definidas pelas Companhias de Seguros.
10 - Os dados pessoais necessários e suficientes para essa finalidade são os que respeitam exclusivamente à origem, causas e evolução da doença que provocou a morte dos titulares segurados.
Mantém-se em vigor, desta forma e o esclarecimento saído desta reapreciação, o regime da CNPD espelhado na Deliberação 51/2001».

De forma idêntica, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) tem vindo a entender que, nos casos em que existe subscrição, pelo segurado, de apólice cujas condições gerais ou particulares prevejam a obrigação de, por sua morte, serem apresentados à seguradora certos documentos nominativos a ele respeitantes, isso equivale a autorização escrita para a seguradora ter acesso a tais documentos[11].
Em face da matéria de facto vertida nos pontos 13 a 16 dos factos provados, a sentença recorrida entendeu que, quer na proposta, quer nas condições gerais do contrato de seguro, a autora e o seu falecido marido deram consentimento explícito para o tratamento de dados pessoais relativos ao seu estado de saúde para a específica finalidade de regularização do sinistro, conclusão que, como se viu, não vem posta em causa pela apelante nem vemos razões para sindicar à luz da matéria de facto que permanece inalterada.
Efetivamente, dos elementos juntos aos autos resulta que, na proposta do contrato titulado pela apólice n.º ...96, a autora e o falecido BB, enquanto pessoas seguras, declararam que «Autorizamos a COMPANHIA DE SEGUROS EMP03... a inquirir junto de qualquer entidade que nos tenha tratado ou examinado, pedindo todos os detalhes que julgar necessários acerca do nosso estado de saúde para aceitação do nosso pedido de adesão ou em caso de liquidação de eventual sinistro».
Neste enquadramento, beneficiando a seguradora de autorização escrita, específica e autónoma, do falecido segurado para obtenção dos elementos pretendidos, podia ela própria obter os elementos que entendesse necessários para se certificar de que devia cumprir a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato de seguro, pois, tal como sublinha o citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-06-2012, «[u]ma tal certificação cabe à própria seguradora; ocorrida a morte é a ela que incumbe verificar se a mesma ocorreu em circunstâncias que impedem ou extinguem a sua responsabilidade.  
Não há motivo para as consequências da falta de prova da demonstração da inexistência de impedimento da responsabilidade da R. recaírem sobre o beneficiário, a quem cabe simplesmente provar a morte do segurado».
Deste modo, não pode a seguradora pretender prevalecer-se da invocada necessidade de mais informação para avaliar o sinistro, em concreto sobre a data de diagnóstico de determinadas patologias de que padecia o segurado falecido, impondo à ora apelante, que também figura como segurada no contrato em referência, o envio de relatório do médico assistente do segurado BB, com indicação da data de diagnóstico das patologias referidas no relatório de autópsia (diabetes, hipertensão arterial e tabagismo) - carta datada de 05-08-2020 - e, mais tarde, o envio de relatório do médico assistente do falecido BB, com indicação da data de diagnóstico das seguintes patologias: diabetes mellitus tipo II e doença hepática crónica (carta datada de .../.../2020), por se tratarem de elementos que têm por objeto dados pessoais de saúde deste segurado, os quais a ré não demonstrou, nem alegou, estarem na disponibilidade da segurada, ora autora, nem se encontram expressa ou especificamente previstos como requisito da liquidação das importâncias seguras na correspondente cláusula das condições gerais da referida apólice.
Tal como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2022[12], «[a]s seguradoras não podem recusar o pagamento do capital segurado com base em indícios não comprovados de declarações inexactas, sob pena de incorrerem em incumprimento do contrato e de poderem dar causa a danos não patrimoniais que terão de indemnizar (…)».
Pelo exposto, entendemos que se verificam todos os requisitos constitutivos e condições de exigibilidade da obrigação de pagamento da quantia segurada, com a verificação do sinistro durante a vigência do contrato de seguro, no caso, o falecimento da pessoa segura, enquanto evento de risco acionador do direito e condição de exigibilidade do mesmo, mais se constatando que a apelante cumpriu o ónus de participação do sinistro e o dever de informação complementar sobre o mesmo, na parte que lhe era exigível, o que impõe se considere abrangido pelo seguro o referido sinistro, com a inerente responsabilidade da ré/seguradora, que permanece obrigada à sua contraprestação.
Procedem, assim, as conclusões da apelação, impondo-se a revogação da decisão recorrida.
Quanto à determinação do valor a pagar, a autora pediu a condenação da ré no acionamento do seguro de vida contratualizado pela autora e seu falecido marido, BB e, em consequência, condenada no pagamento integral do capital seguro, com todas as devidas e legais consequências.
Contudo, da factualidade provada não consta qual era o montante segurado efetivamente em dívida à data da petição inicial.
Nos termos do disposto no artigo 609.º, n.º 2 do CPC, se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.
À luz das considerações antes enunciadas, não pode deixar de se julgar a ação procedente, condenando-se a ré no acionamento do seguro de vida contratualizado pela autora e seu falecido marido, BB e, em consequência, a pagar o montante segurado em função do sinistro, em débito à data da petição inicial, referente ao empréstimo aludido em 3 dos factos provados, no valor que se apurar em liquidação de sentença.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1 do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada procedente, as custas da ação e da apelação são integralmente da responsabilidade da ré/apelada, atento o seu decaimento.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por decisão a julgar a ação procedente, condenando-se a ré no acionamento do seguro de vida contratualizado pela autora e seu falecido marido, BB e, em consequência, a pagar o montante segurado em função do sinistro, em débito à data da petição inicial, referente ao empréstimo aludido em 3 dos factos provados, no valor que se apurar em liquidação de sentença.
Custas da ação e da apelação pela ré/apelada.
Guimarães, 08 de fevereiro de 2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
Alexandra Rolim Mendes (Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
Alcides Rodrigues (Juiz Desembargador - 2.º adjunto)



[1] Entretanto revogado pelo artigo 6.º do RJCS.
[2] Relatora: Fernanda Isabel Pereira, revista n.º 620/09.8TBCNT.C1. S1, 7.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Em concreto, o «envio de relatório do médico assistente do segurado BB, com indicação da data de diagnóstico das patologias referidas no relatório de autópsia (diabetes, hipertensão arterial e tabagismo)» - carta datada de 5-08-2020 enviada pela ré à autora - e o «envio de relatório do médico assistente do falecido BB, com indicação da data de diagnóstico das seguintes patologias: diabetes mellitus tipo II e doença hepática crónica» - cartas datadas de 09-11-2020 e 31-01-2022 enviadas pela ré à autora.
[4] Relator Manuel Tomé Soares Gomes, p. n.º 4990/12.2TBCSC.L1. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Relatora Maria Olinda Garcia, p. 908/18.7T8PDL.L1. S1 disponível em www.dgsi.pt.
[6] Relatora Maria Luísa Duarte, p. 4975/12.9TBBRG.G1; disponível em www.dgsi.pt.
[7] Cf. o Ac. TRE de 09-09-2021 (relator: Manuel Bargado), p. 1863/19.1T8EVR.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Do qual consta o seguinte:
«(…) declara para os devidos efeitos que do registo clínico do processo informático do BB, nascido a .../.../1961, constam os seguintes problemas de saúde:
Tabagismo, consumo crónico e excessivo de álcool, doença hepática alcoólica, dislipidemia, hipertensão arterial, cardiopatia hipertensiva, diabetes tipo 2, hipotiroidismo, patologia venosa crónica dos membros inferiores, fraturas ósseas (ramo isquiopúbico esquerdo e fratura distal do rádio esquerdo - 2018), 5.º dedo da mão em gatilho».
[9] Relator Sérgio Almeida, p. 208/10.0YXLSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Relator Eduardo Campos, acessível em https://www.cnpd.pt.
[11] Cf., por todos, o Parecer n.º 28/2011 (Relator: João Perry da Câmara), p. n.º 730/2010, acessível em https://www.cada.pt.
[12] Relator Pedro Martins, p. 20078/19.2T8LSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.