Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7293/21.8T8VNF-D.G1
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA DE BENS
DIREITO DE REMIÇÃO
FALTA DE NOTIFICAÇÃO DOS INTERESSADOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A defesa do património familiar está subjacente ao exercício do direito de remição.
2. A venda dos bens é feita pelo administrador da insolvência, sendo que a única audição prévia sobre a modalidade de alienação que a lei impõe é a do credor com garantia real, que também é informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.
3. Nenhuma das normas referentes à remição (artºs 842º a 845º do CPC, ex vi artº 17º, do CIRE) impõe a notificação dos interessados/legitimados a remir, sequer uma qualquer comunicação aos autos sobre o valor da proposta e a identificação do proponente.
4. Mesmo se tivessem sido preteridas as formalidades legais atinentes à remição, no caso a alegada falta de comunicação nos autos da existência da proposta e da identificação do alegado novo proponente, sempre a pretensão formulada seria processualmente inidónea à requerida anulação da venda. Com efeito, a preterição de formalidades legais na venda efetuada pelo administrador de insolvência não constitui fundamento da declaração de ineficácia do ato de alienação dos bens, nem de nulidade da venda.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório:

Em 14 de julho de 2023 foi prolatado o seguinte despacho:
AA veio requerer a anulação da venda efetivada no dia 26-5-2023 nos termos do disposto no artigo 839º, nº1, c) por remissão do artigo 17º CIRE, alegando não ter sido notificada para poder exercer o direito de remição.
No entanto, sendo declarada anulada a venda a requerente deixa de poder exercer o direito de remição numa venda que deixa de existir. A requerente deveria ter comprovado o seu estado de casada com o insolvente e depositado a quantia correspondente ao preço de venda do imóvel pedindo para exercer o direito de remição ao sr AI, até ao momento da entrega do bem ao comprador, na venda efetuada.
Por outro lado, a alegada omissão da sua notificação para remir não existe, pois a lei não a prevê.
Neste sentido, a jurisprudência é unânime. Vejam-se os Ac disponíveis em www.dgsi.pt, do TRL de 21-10-2021: “Pela natureza deste direito e pela qualidade de terceiro do interveniente que pretende exercer o direito de remição, tem entendido a doutrina e a jurisprudência que se mostra dispensável a necessidade da notificação do remidor para exercer tal direito, presumindo a lei que o executado dará conhecimento oportuno ao interessado na remição das circunstâncias relevantes para o atempado exercício de tal direito. Ac STJ de 13-9-2012: “(…) Do estatuto processual do interessado na remição, como terceiro relativamente à execução, decorre que não tem o mesmo de ser pessoalmente notificado dos atos e diligências que vão ocorrendo na tramitação da causa, presumindo a lei que o executado – ele, sim, notificado nos termos gerais -, lhe dará conhecimento atempado das vicissitudes relevantes para o eventual exercício do seu direito”.
Assim sendo, tem de ser indeferida a requerida anulação da venda de 26-5-2023.

Inconformado com a decisão, o insolvente apelou, formulando as seguintes conclusões:

1. No dia 23/10/2017, a recorrente deu entrada de Requerimento do despacho recorrido, o tribunal a quo refere que o cônjuge do insolvente alegou não ter sido notificado para exercer o direito de remição, e bem assim, que a alegada omissão da sua notificação para remir não existe, porquanto a lei não a prevê. – (transcreveu-se a redação efetuada pela recorrente sendo, todavia, percetível, o que pretende, a despeito do lapso também quanto à data).
2. Não foi isto que foi alegado, pelo que foi requerida a retificação de tal despacho, uma vez que a sua prolação assentou em pressupostos errados, certamente por manifesto lapso.
3. Até à presente data não foi proferida qualquer decisão a este propósito e não tendo tal pedido de retificação efeito suspensivo, vê-se o aqui recorrente obrigado a deitar mão do presente recurso, na expetativa de lograr obter decisão contrária à que foi proferida.
4. O cônjuge do insolvente/recorrente tomou conhecimento em 22/06/2023, da celebração de uma escritura pública de compra e venda relativa à fração ... - que constitui, de resto, a sua casa de morada de família -,
5. cuja transmissão foi feita a favor de BB, BB e CC, respetivamente, pelo valor de € 112.500,00.
6. O cônjuge do recorrente (assim como o próprio recorrente), não era conhecedor de qualquer proposta pelos aludidos compradores, mas tão só, de uma proposta apresentada por DD, por tal facto, ficou impedida de exercer o seu direito de remissão.
7. Em face da modalidade de venda adotada pelo Sr. A.I. (venda por negociação particular), tinha legitimidade de exercer o seu direito até ao momento da entrega do bem,
8. sendo que, por via da omissão de formalidades por parte do Sr. A.I. - que não comunicou aos autos alteração da pessoa do comprador, nem tão pouco, o preço de venda -, o referido cônjuge não teve conhecimento atempado da venda, de modo a reunir os necessários meios para que lograsse exercer o seu direito.
9. Salvo melhor opinião, não resta outra alternativa ao cônjuge do recorrente, senão a anulação da venda, com a consequente anulação de todos os atos subsequentes.
10. Como poderia a esposa do recorrente, especificamente, ao desconhecer que o imóvel tinha sido vendido à família “BB”, exercer de forma correta e cabal o seu direito?
11. É que até agora, desconhece-se qual foi a proposta apresentada junto do Sr. A.I. pelos referidos compradores e as condições inerentes à mesma.
12. Não existindo outra forma de solucionar o problema do cônjuge do insolvente, nomeadamente, de exercer atempadamente o direito que lhe assiste, vem apelar a V. EXª que atenda ao que aqui é alegado, que é ao que efetivamente resulta dos autos, conforme se poderá constatar.
Termos em que - deve proceder-se à revogação do douto despacho que indeferiu a anulação da venda de 26/05/2023, fazendo Vossas Excelências a habitual justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Os autos foram aos vistos das excelentíssimas adjuntas.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
A questão a decidir traduz-se em apurar se foi postergada alguma formalidade conducente à anulabilidade da venda.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os constantes do relatório deste acórdão.
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B. Fundamentos de direito. 
A questão decidenda afigura-se de meridiana simplicidade.
Desde logo, e como questão prévia, verificamos que o despacho recorrido foi prolatado na sequência de requerimento aos autos feito pela mulher do insolvente. Ora, face ao regime do artº 631º, nº 1, do CPC, não se pode considerar o insolvente como parte vencida.
Mais, mesmo para efeitos do nº 2 do citado preceito, que confere legitimidade ativa às pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão, não resulta do recurso interposto qual é esse efetivo prejuízo.
Sem embargo do exposto, admitindo que legalmente subjacente ao exercício do direito de remição está a defesa do património familiar (cfr. AcRP de 15/12/2021, processo nº 11715/19.0T8PRT.P1; e AcRG de 24/11/2022, processo nº 968/12.4TBLLE-E.E1, disponíveis em www.dgsi.pt, como os demais referidos sem indicação diversa), admitindo-se que, nesta perspetiva lata, o insolvente tenha um interesse direto, e aceitando-se a legitimidade ativa para efeitos do presente recurso, é patente a falta de razão do recorrente.

Vejamos.

Dispõe o artº 164º do CIRE:
Modalidades da alienação
1 - O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
2 - O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.
3 - Se, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.
4 - A proposta prevista no número anterior só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 10 /prct. do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º do Código de Processo Civil.
5 - Se o bem tiver sido dado em garantia de dívida de terceiro ainda não exigível pela qual o insolvente não responda pessoalmente, a alienação pode ter lugar com essa oneração, exceto se tal prejudicar a satisfação de crédito, com garantia prevalecente, já exigível ou relativamente ao qual se verifique aquela responsabilidade pessoal.
6 - À venda de imóvel, ou de fração de imóvel, em que tenha sido feita, ou esteja em curso de edificação, uma construção urbana, é aplicável o disposto no n.º 6 do artigo 833.º do Código de Processo Civil, não só quando tenha lugar por negociação particular como quando assuma a forma de venda direta.

Do referido preceito resultam logo duas evidências: a primeira, a de que a venda dos bens é feita pelo administrador da insolvência; a segunda, a de que a única audição prévia sobre a modalidade de alienação que a lei impõe é a do credor com garantia real, que também é informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.
Aliás, a discricionariedade do administrador da insolvência é tão grande que, mesmo em termos de consequências da venda de bens onerados com direitos reais de garantia em violação do disposto nos nºs 2, e 3, do artº 164º, do CIRE, não ouvindo quem tinha unicamente de ouvir, o credor com garantia real, constitui opinião maioritária, doutrinal e jurisprudencialmente, que a ilicitude de tal atuação e omissão não afeta a validade ou eficácia da venda efetuada, apenas constituindo, ou podendo constituir, causa de destituição e de responsabilidade civil do administrador da insolvência perante o credor garantido que não foi ouvido – vide, por todos, AcRG de 13/06/2019, processo nº 231/17.4T8VNF-C.G1.
Alegou o recorrente que o que estava em causa não era a alegada omissão da notificação da sua mulher para remir, mas, antes, a circunstância de a cônjuge do recorrente (como, segundo alega, também o próprio) não ser conhecedor da proposta pelos aludidos compradores, conhecendo tão-só uma proposta apresentada por DD, ficando assim impedida de exercer o direito de remição. E não conhecia a proposta, alegou, porque o senhor administrador da insolvência não comunicou aos autos a alteração da pessoa do comprador, nem o preço da venda.
Resulta de tudo o abundantemente exposto que o comportamento processual do senhor administrador judicial relativamente à alegadamente omitida notificação é inatacável. Não tinha o mesmo que comunicar nos autos, até em benefício de potenciais remidores, a existência das propostas de aquisição quanto ao bem e identificar os proponentes. Aliás, fazê-lo, equivaleria a uma obrigação de notificação. É, objetivamente, disto que se trata, e bem andou a 1ª instância a qualificar essa alegada obrigação como tal.
Acresce que nenhuma das normas referentes à remição (artºs 842º a 845º do CPC, ex vi artº 17º, do CIRE) impõe a notificação dos interessados/legitimados a remir, sequer uma qualquer comunicação aos autos.
Como decorre do já citado artº 164º do CIRE, a única entidade a ser notificada é o credor com garantia real sobre o bem.
Aliás, é jurisprudencialmente pacífico que os titulares do direito de remição não têm de ser notificados de que vai ser realizado o ato jurídico no qual têm o direito de remir, ou para exercerem, querendo, este direito, não lhes sendo aplicável analogicamente a norma do artº 818º do CPC que prevê a notificação dos preferentes (para além da jurisprudência citada no despacho recorrido, assinalamos, com interesse, os AcRP de 23/11/2015, processo nº 4666/11.8TBMAI-AA.P1; AcRE de 11/07/2019, processo nº 238/17.1T8ETZ-I.E1; AcRE de 24/11/2022, processo nº 968/12.4TBLLE-E.E1; AcRE de 02/03/2023, processo nº 2146/16.4T8STR-H.E1; AcRE de 25/06/2020, processo nº 1242/12.1TBSLV-F.E1).
Acresce que, mesmo se tivessem sido preteridas as formalidades legais atinentes à remição, no caso a alegada falta de comunicação nos autos da existência da proposta de aquisição e da identificação do alegado novo proponente, ou seja, de notificação para remir (e, como se viu, não foram preteridas, porque tal comunicação aos autos/notificação não tinha de ser feita), sempre a pretensão formulada seria processualmente inidónea à requerida anulação da venda. Com efeito, “A preterição de formalidades legais na venda efetuada pelo administrador de insolvência não constitui fundamento da declaração de ineficácia do ato de alienação dos bens nem de nulidade da venda. – cfr. AcRG de 17/12/2018, processo nº 721/17.9T8GMR-F.G1, e AcRG de 17/12/2020, processo nº 1258/19.7T8VCT-H.G1.

Face ao supra exposto, tornam-se desnecessárias considerações adicionais, havendo que considerar improcedente o recurso interposto, confirmando-se o despacho recorrido.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente – artº 527º, nº1, e 2, do CPC.
Notifique.
Guimarães, 14 de março de 2024.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1ª Adjunta: Maria Gorete Morais.
2ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos.