Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | LÍGIA VENADE | ||
| Descritores: | ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 11/09/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I A aplicação do instituto do enriquecimento sem causa não serve para tutelar situações em que o Autor não prova a causa do direito que pretende fazer valer, sendo necessário para a sua aplicação que este alegue e prove da falta de causa do enriquecimento, seja uma falta inicial, seja uma perda de causa. II A falta de causa é um elemento constitutivo do direito do Autor, ainda que seja um facto negativo. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães: I RELATÓRIO (seguindo até certo ponto o elaborado em 1ª instância). Por meio da presente ação de processo comum, vem o A., AA, solteiro, reformado, titular do número de identificação fiscal ...97 e residente no Bloco ..., ..., ...., ..., ..., requerer a condenação de: EMP01... Lda., com NIPC ...09, com sede na Rua ..., Edifício ..., ..., ...89, ...; e BB, representante legal da sociedade EMP01... Lda., casado, titular do número de identificação fiscal ...65, e seu cônjuge CC, administrativa, ambos residentes na Av. ...., ...41 em ..., no pagamento da quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescido de juros de mora, desde a data de 17-12-2017, bem como no pagamento de sanção pecuniária compulsória na quantia diária de € 50,00 (cinquenta euros), por cada dia de atraso na restituição do montante peticionado. Alega, para o efeito e em síntese, que, por lapso originado pelo transtorno decorrente do falecimento da sua progenitora, efetuou, na data de .../.../2019, uma transferência bancária no montante de € 10.000,00 (dez mil euros) para a conta bancária da 1ª R., quando, na realidade, pretendia movimentar a referida quantia para uma conta bancária por si titulada e domiciliada no Banco 1.... Invocando, como tal, a inexistência de qualquer motivo que justifique o enriquecimento de que beneficiaram os R.R., e pugna pela restituição do montante transferido. * Citados, apresentaram os RR. a sua contestação, invocando a verificação, no presente caso, da exceção de ilegitimidade passiva dos 2ºs. RR. e sustentando a absolvição do peticionado. Alegam, para o efeito, que tratando-se de uma quantia depositada na conta titulada pela 1ª R., os 2º RR. não são devedores do valor peticionado pelo A. Adicionalmente – e no essencial -, invocam que, ao contrário do alegado pelo A., o montante transferido para a conta da 1ª R. foi o resultado de um acordo verbal celebrado com o A., com vista a evitar um processo judicial. Pugnam, como tal, pela procedência da exceção invocada e pela absolvição de todos os RR. do peticionado. * O A. respondeu à matéria de exceção.* Foi designada data para realização de audiência prévia; nesse contexto, foi proferido despacho saneador e julgada improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade processual invocada pelos RR., e determinou-se que as custas seriam pelos RR., a fixar a final. Foi fixado o valor da acusa em € 10.000,00. Foi determinado o objeto do litígio e elencados os temas da prova. * Realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que absolveu os RR. do peticionado. Mais condenou A. e RR. no pagamento das custas do processo, na proporção do respetivo decaimento que se fixou em 95%-5%, respetivamente. * Inconformado, o A. apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes -CONCLUSÕES-(que se reproduzem) “1. O presente recurso vem interposto da Sentença do Tribunal ad quo proferida nos autos aqui identificados, quer no que toca à discordância quanto a sua fundamentação sem qualquer critério de razoabilidade, quer, em concreto, quanto á decisão de não existência dos pressupostos do enriquecimento sem causa. 2. Resultou provado que existiu uma deslocação patrimonial da esfera jurídica do A, ora recorrente, para a dos RR – enriquecimento - e que estes não só incorporaram no seu património o produto dessa deslocação financeira, como, ademais, o usaram em seu benefício ou utilidade 3. e que tal transferência monetária foi feita à custa alheia e exclusiva do A e, numa altura de 17/12/2019, ainda o corpo da progenitora não tinha sido enterrado, em que inexiste qualquer relação [de trabalho, comercial, contratual ou extra contratual, amizade, de trato, … ] entre as partes ou facto que, de acordo com as regras e os princípios da nossa ordem jurídica justifique a deslocação patrimonial ocorrida e legitime o enriquecimento obtido pelos RR à custa do A. 4. Os RR, sendo pessoas diversas daquela a quem, segundo a lei, deveria beneficiar, in casu, o A como único filho e herdeiro legal da progenitora DD, nunca devolveram ao A o valor que incorporaram na sua esfera jurídica e carece de causa justificativa, pois, o motivo por eles alegado foi considerado não provado, e 5. o enriquecimento criado não está de harmonia com a correta ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, em virtude de determinado valor se achar no património dos beneficiados, quando o seu lugar era no património do prejudicado. 6. Entendeu o tribunal recorrido que pelo facto de o recorrente não ter provado o facto negativo – ausência de causa justificativa do enriquecimento – não consegue obter o preenchimento completo dos requisitos do instituto sem causa. 7. Deve-se discordar deste entendimento, pois, tendo ambas as partes, de boa-fé, alegado causas diferentes para a justificação da transferência bancária – o A alegou a notória falta de causa justificativa e os RR a existência de um acordo verbal – deixou por uma questão lógica de haver necessidade de provar o requisito negativo da ausência de causa justificativa, pois, segundo o alegado pelas próprias partes, a causa da transferência bancária seria uma outra. 8. Na falta de demonstração de qualquer uma delas, torna-se impossível encontrar ou admitir a existência de uma outra causa justificativa. 9. Tendo havido uma actividade probatória direta e ativa de ambas as partes no sentido de demonstrarem a causa que cada uma alegou e ao não conseguirem essa demonstração, não restará outra hipótese ao julgador considerar demonstrada a inexistência lógica de causa justificativa do enriquecimento, que foi expressamente alegada, tendo o Tribunal elementos suficientemente fortes, neste caso, fornecidos por ambas as partes, para ficar convencido da falta de causa e assim concretizar a solução mais justa. 10. Segundo o art. 342º nº 1 do C.C. “ àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado “. 11. No entanto, tem de ser introduzida uma precisão interpretativa na aplicação deste normativo e não deve nem pode ser feita uma interpretação meramente literal, ponderando-se adequadamente a situação e verificar caso a caso, se não será necessário introduzir uma adaptação, desvio ou restrição e, assim, o A (empobrecido) deve tão só alegar e provar o montante do enriquecimento e do empobrecimento, 12. e demonstrar, não que não existe qualquer causa, seja ela qual for, mas sim que aquela que foi alegada pelos RR ( enriquecidos) não existe, - cfr. j) da matéria não provada - ou que não há nem pode (logicamente) haver qualquer (outra) causa justificativa para a deslocação patrimonial do A para a 1ª R, o que foi feito. 13. Resulta assim dos factos que foi deslocado para o património dos RR um montante em dinheiro equivalente a 10.000,00 €, deslocação essa que imediatamente tem a sua causa na diminuição do património do A em igual montante, sem qualquer causa justificativa. 14. Em razão do exposto, estamos convencidos que no caso sub judice, estamos perante uma situação de enriquecimento sem causa, pelo que deverão serem os RR condenados na devolução do montante com que indevidamente se locupletaram á custa do A, nos termos estabelecidos no arts. 473º e 479º do C.C.” Pede que se revogue a sentença recorrida, determinando a devolução por parte dos RR da quantia de € 10.000,00. * Os R.R. apresentaram contra-alegações que terminam com as seguintes-CONCLUSÕES-(que se reproduzem) (…) * Após os vistos legais, cumpre decidir.*** II QUESTÕES A DECIDIR.Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos. Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir: -se deve ser revogada a vertente absolutória da decisão, e por via do enriquecimento sem causa a pretensão do A. proceder. *** III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria, que se reproduz (negrito nosso): “Julgam-se provados os seguintes factos: 1. No dia .../.../2019 faleceu DD, progenitora do A. 2. No dia 17 de Dezembro de 2019, o A. deslocou-se à agência da Banco 2... de .... 3. A conta bancária com n.º ...85 tem conta de crédito/débito associado. 4. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 2., o A. solicitou ao funcionário da mencionada agência que fossem efectuadas as seguintes transferências: a.12.190,00€ (doze mil, cento e noventa euros), da conta poupança, n.º ...61, titulada por DD, para a conta n.º ...00. b.10.000,00€ (dez mil euros), da conta n.º ...00 para conta bancária titulada pela 1ª R. 5. Pelo menos entre 01-07-2018 e 01-10-2018, o A. exerceu a actividade de motorista de veículos pesados, sob ordem e direcção da 1ª R., mediante o pagamento de retribuição mensal no valor de 1.200,00€ (mil e duzentos euros). 6. No âmbito da acção nº 1827/18...., a 1ª R. não formulou pedido de condenação do A. no pagamento de qualquer montante. * (…) Com exclusão dos factos irrelevantes para o objecto do processo, factos conclusivos ou conceitos de direito, não se provou que: a) O funeral de DD ocorreu no dia 18 de Dezembro de 2019. b) O A. é co-titular da conta com o n.º ...00, domiciliada na Banco 2.... c) Nas condições de tempo e lugar descritas em 2., era intuito do A. efectuar uma transferência bancária no valor de 10.000,00€ (dez mil euros) da conta com n.º ...00, domiciliada na Banco 2..., titulada por DD, para a conta n.º ...85, titulada pelo A. e domiciliada no Banco 1.... d) A conta bancária com n.º ...00, não tem cartão de crédito/débito associado. e) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 4., o A. solicitou ao funcionário da mencionada agência bancária que fosse efectuada a transferência do montante de 12.270,00€ (doze mil, duzentos e setenta euros), da conta poupança n.º ...61, titulada por DD, para a conta n.º ...00. f) Na operação referida 4b., o A. pretendia indicar como conta de destino a conta n.º ...85, titulada pelo A. e domiciliada no Banco 1.... g) Na operação referida em 4b. o A. indicou como conta de destino a conta titulada pela 1ª R. e não a conta por si titulada e domiciliada no Banco 1..., por lapso resultante do estado de trauma e confusão em que se encontrava, provocado pelo falecimento da progenitora, circunstância de que, no momento, não se apercebeu. h) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 4., o funcionário da agência bancária alertou o A. que a conta de destino para a qual foi solicitada a transferência no montante de 10.000,00€ (dez mil euros) se encontrava domiciliada em .... i) No seguimento do contacto efectuado pelo A., os 2ª RR. informaram que não iriam devolver o montante referido em 4b., que já o tinham levantado e que o iriam utilizar em férias. j) O A. acordou, verbalmente e no dia 20-05-2019, a pagar à 1ª R., valor indemnizatório de 10.000,00€ (dez mil euros), até ao final do ano de 2019. “ Mais se declarou: “Os demais factos alegados, por serem irrelevantes, conclusivos ou por reproduzirem conceitos de direito, não foram levados em conta nos elencos de factos provados e não provados.” *** IV MÉRITO DO RECURSO.-DECISÃO DE DIREITO. Em primeiro lugar cabe frisar que o recorrente não impugnou a matéria de facto da causa, tal como fixada pelo Tribunal de 1ª instância, pelo que a mesma estabilizou, e assim será tida em consideração para apreciação do mérito do recurso. A sua apreciação prende-se com as regras do ónus da prova, aplicadas ao caso concreto. Dúvidas não há de que a quem invoca um direito cabe provar os respetivos factos constitutivos –artº. 342º, nº. 1, do C.C. (“Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”). Aplicando ao caso, ao A. competia a prova dos factos constitutivos do direito por si alegado e reivindicado. Apliquemos agora em particular ao instituto do enriquecimento sem causa, já que era com base na alegação da transferência da quantia aqui peticionada do seu património para a 1ª R., e usufruída pelos 2º e 3º R.R., que o A. pedia a sua restituição. E alegava que tal transferência se deu por lapso seu, e por isso que não tinha causa jurídica justificativa. Por sua vez os R.R. apresentavam como motivo a existência de um acordo verbal nesse sentido. Começando por esta parte final, não se provando a razão adiantada pelos R.R., daqui não se retira a falta de justificação para o benefício patrimonial que supostamente os R.R. obtiveram; a não prova de uma realidade não significa que se provou que ela não se configure. Por outro lado, não tinham os R.R. de provar a justificação para a transferência (não se trata no caso de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do A., de acordo com o nº. 2 do artº. 342º do C.C.); alegaram-na no âmbito de uma impugnação motivada. Na sequência deste raciocínio, também não se pode concluir pela ausência de causa justificativa do facto de, nem a versão dos R.R., nem a versão do A., se ter apurado. Esta situação resolve-se com a aplicação das regras do ónus da prova, como veremos. Mas, antes disso, e embora os restantes requisitos do instituto não estejam em discussão, façamos uma breve incursão sobre a figura em causa. Este instituto do enriquecimento sem causa está regulado no artº. 473º, do C.C. que dispõe que “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” (nº. 1) e que “A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” (nº. 2). Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (“Código Civil Anotado”, Vol. I, 3ª ed., págs. 427 a 431), a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à coisa alheia pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes três requisitos: . haja um enriquecimento; este enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, tanto podendo traduzir-se num aumento do ativo patrimonial, como numa diminuição do passivo, como, inclusive, na poupança de despesas; . o qual careça de causa justificativa (quer porque nunca a tenha tido, quer porque, tendo-a inicialmente, a haja entretanto perdido); o enriquecimento carecerá de causa sempre que o direito não o aprove ou consinta; . e tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição. A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduz-se, como regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro. O benefício obtido pelo enriquecido deve resultar de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido tendo de existir um nexo (causal) entre a vantagem patrimonial auferida por um e o sacrifício sofrido por outro. Tem-se acrescentado um outro requisito ainda: que a vantagem económica do enriquecido deve ser obtida imediatamente à custa do empobrecido já que a deslocação patrimonial para o enriquecido tanto pode ocorrer por via direta ou por via indireta, pelo que se vem entendendo que se deve exigir que entre o ato gerador do prejuízo do empobrecido e a vantagem conseguida pela outra parte não deve existir qualquer ato jurídico – veja-se Ac. da Rel. de Coimbra de 02/11/2010 (relator Isaías Pádua), em www.dgsi.pt como todos os que se citarão sem indicação de outra fonte. Assim, é necessário que a vantagem de um (enriquecido) e o prejuízo do outro (empobrecido) estejam em imediata conexão e que aquela e este derivem do mesmo facto; assim, o autor da prestação só pode dirigir-se contra aquele a quem, com base numa causa jurídica suposta, inexistente ou desaparecida, prestou, não contra um terceiro a quem não prestou –Menezes Cordeiro, “Direito das Obrigações”, II, pag. 54. Este autor (agora em “Tratado de Direito Civil Português”, volume II, Tomo III, pág. 234), sustenta a necessidade da imediação entre o enriquecimento de uma das partes e o empobrecimento da outra e que a relação entre o enriquecido e o empobrecido deve ser directa, na medida em que “Um certo enriquecimento pressupõe uma precisa relação jurídica (logicamente) entre dois sujeitos. Essa relação é determinada por um juízo de valor…”, o qual “vai ter por base a ideia fecunda do conteúdo da destinação”. Inocêncio Galvão Telles (“Direito das Obrigações”, 7ª edição, págs. 197 e 198), e Mário Júlio de Almeida Costa, (“Direito das Obrigações”, 12ª edição, págs. 495 e 496, defendem igual entendimento (-enquanto o património de um valoriza, aumenta ou deixa de diminuir, com o outro dá-se o inverso: desvaloriza, diminui ou deixa de aumentar). * Ora, no caso não se verifica a inexistência de causa, na versão apresentada pelo A.; este apontou a causa –um lapso seu-, apenas não a provou. A verificação do lapso é que corresponderia à inexistência de causa, como melhor veremos.Esta figura só tem aplicação quando não há outro regime jurídico específico que se aplique e tutele o litígio sub judice, ou seja, quando inexiste qualquer relação ou facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso ordenamento jurídico, justifique a transferência patrimonial –o que deriva da subsidiariedade prevista no artº. 474º do C.C. –cfr. Ac. do STJ de 28/6/2018 (relator Tomé Gomes), a título exemplificativo dada a abundante jurisprudência. Dispõe o artigo 474º do C.C. que não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento. É desse normativo que resulta que a ação baseada nas regras do instituto do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, só podendo recorrer-se a ela quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reação (o que, no fundo, funcionará como um novo pressuposto ou requisito legal para o recurso à ação de restituição com base no instituto do enriquecimento sem causa –cfr. acórdão citado da Rel. de Coimbra). Quanto a esta matéria, o Ac. do STJ de 4/7/2019 (relator Oliveira Abreu) retrata assim com recurso à doutrina e jurisprudência: “O nosso direito substantivo civil, no que respeita a um dos exigidos requisitos atinentes ao enunciado instituto do enriquecimento sem causa, traduzido na ausência de causa justificativa, e que interessa sobremaneira ao caso sub iudice, conquanto tenha identificado um critério de orientação, uma linha de rumo interpretativa, conforme decorre do consignado n.º 2 do art.º 473.º do Código Civil que estabelece a propósito “A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial, por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” pressupõe, numa enumeração exemplificativa, três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: condictio in debiti (repetição do indevido), condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto), neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, in, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, página 205; Mário Júlio de Almeida Costa, in, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, página 505, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in, Direito das Obrigações, Volume I, 2ª edição, Almedina, página 395, que está longe de conceptualizar a causa do enriquecimento numa fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa. A este propósito, a Doutrina e Jurisprudência tem entendido que a falta de causa justificativa pode resultar da circunstância de nunca ter existido ou, tendo existido, entretanto, se ter perdido, ou seja, a causa do enriquecimento pode resultar do fim imediato da prestação e do fim típico do negócio, donde, se a obrigação não existiu ou se o fim do negócio falhou, deixou de haver causa para a prestação e a obrigação resultante do negócio, importando ainda saber, em cada caso concreto, “se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve”, neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, in, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, páginas 199 e 200, ou, então, se “o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, ou se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa”, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil anotado, Volume I, 4ª edição, páginas 454 e seguintes, e Diogo Leite de Campos, in, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir e Enriquecimento, páginas 317 e 412, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Novembro de 2016 (Processo n.º 390/09.0TBBAO.P1.S1), desta 7ª Secção, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 2018 (Processo n.º 175/05.2TBALR.E1.S1), in, www.dgsi.pt.”. E mais acrescenta que a falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito à restituição, impondo-se, assim, ao demandante que reclama a restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da demonstração dos respetivos factos constitutivos que contém a falta de causa justificativa desse enriquecimento, conforme decorre das regras estatuídas no direito substantivo civil acerca do ónus da prova -artºs. 342°, n°.1 do C.C.. Para além da vária jurisprudência nesse sentido (caso dos Acs. da Rel. de Lisboa de 12/4/2018, relatado por Manuel Rodrigues, de Évora de 29/9/2022 relatado por Maria Adelaide Domingos, e STJ de 12/7/2018 relatado por Sousa Lameira), veja-se a clareza do sumário do Ac. da Rel. de Évora de 28/6/2012 (relator Francisco Matos): “- É nula, por excesso de pronúncia, a sentença que condena no pagamento da quantia peticionada com fundamento no enriquecimento sem causa quando ao autor baseou o seu pedido num mútuo. - O enriquecimento sem causa não é um remédio para quem não prova a causa do direito que pretende fazer valer, sendo essencial a alegação e prova da falta de causa do enriquecimento.” * A causa de pedir situava-se no domínio do erro; a sua falta de prova não nos remete para aquele instituto em sede obrigacional, fonte autónoma de obrigações. É verdade que no caso concreto os seus contornos são algo diferentes do habitual. Normalmente o demandante invoca uma causa jurídica, e não a provando pretende recorrer (subsidiariamente) à tutela do enriquecimento sem causa -sem razão como vimos. Neste caso o A. invocava ab initio a falta de causa, suportada num suposto lapso. E por isso recorre diretamente ao enriquecimento sem causa. Esta situação não deve ter diferente tratamento daquela outra, sendo o ónus da prova e as exigências de prova idênticas. A exigência de prova de um facto negativo não seria óbice a esse raciocínio. O ónus da prova previsto no artº. 342º, nº. 1, reporta-se aos factos positivos e a factos negativos (Alberto dos Reis, em “Código de Processo Civil Anotado”, III, pág. 228; Antunes Varela, em “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, 116, pág. 341, e no “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 455; e ainda Castro Mendes, “Direito Processual Civil”, III, pág. 194)." Ainda sobre o tema, Vaz Serra, “Provas”, BMJ, 110, pág. 116). Não existe a esse propósito qualquer inversão do ónus da prova, muito embora se possa defender que nesses casos se adote uma menor exigência quanto à sua demonstração -Pereira Coelho, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, 117, pág. 95. Na jurisprudência veja-se por exemplo o Ac. do STJ de 9/3/2021 (relator Pedro Lima Gonçalves). Mas no caso nem é assim, já que o A. propunha-se provar que estava em erro quanto deu as instruções de transferência –cfr. artºs. 247º e 295º do C.C.. Não o logrou provar, como resulta exemplarmente motivado pelo Tribunal recorrido. Resta a ordem de transferência bancária. Ordenada uma transferência, o Banco fica obrigado a, de acordo com as condições estipuladas e dentro do limite dos fundos disponibilizáveis, executar, usando da devida diligência e de acordo com as instruções recebidas, essa mesma ordem. Se o não fizer, será responsável face ao seu cliente, ordenante da transferência bancária –cfr. Catarina Anastácio, “A Transferência Bancária”, pág. 349. Os atos concretos de transferência de fundos não estão sujeitos a qualquer forma específica, sendo atos de execução do contrato de giro bancário, contrato este que é reconhecido como uma variedade de mandato sem representação (mandato comercial – artº. 231º do C. Comercial). O banco, em nome e por conta do cliente desenvolve a atividade necessária a cumprir uma instrução que aquele lhe dirige, referente à colocação de fundos à disposição de um terceiro (beneficiário). Não se apurando que esta ordem de deslocação patrimonial foi realizada em erro, subsiste o ato jurídico válido, determinativo da transferência, afastando a verificação da falta de causa, como fonte do enriquecimento dos R.R., o que preclude a aplicação do enriquecimento sem causa. Em suma, não basta que não se prove a existência de uma causa para a deslocação patrimonial; é necessário provar a falta de causa de atribuição da vantagem patrimonial. Não tendo sido esse o caso, improcedem as argumentações recursivas. *** V DISPOSITIVO.Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negar provimento à apelação e manter a decisão recorrida. Custas a cargo do recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.). * Os Juízes DesembargadoresRelator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade 1º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte 2º Adjunto: Maria João Marques Pinto de Matos (A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas) * Guimarães, 9/novembro/2023. |