Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO INDEMNIZAÇÃO REPARAÇÃO DE VEÍCULO DANO DA PRIVAÇÃO DO USO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 11/09/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
Sumário: | I . Os artigos 41º e 42º do DL 291/2007, de 21/8 dizem respeito a uma fase de simplificação dos processos extrajudiciais resultantes de acidentes de automóveis, por forma a incentivar o acordo entre as seguradoras e os lesados, sem que, no entanto, se possa atribuir a essas disposições legais um efeito vinculativo no processo judicial, onde serão aplicáveis as regras dos artigos 562º e 566º do Código Civil II - A falta de reparação ou quando esta não seja viável pela sua grande onerosidade, não retiram ao lesado o prejuízo que sofreu pela privação do veículo, pelo menos até à data em que receba da seguradora a indemnização correspondente, na medida em que, só nesse momento, é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que substitua o que foi danificado. III - À luz da teoria da causalidade adequada, os danos posteriores que se verificarem eventualmente até à resolução do litígio (com o pagamento da indemnização relativa à perda total ou ao custo da reparação) não deixam de ter como causa adequada o facto/evento determinante do acidente, pelo que, há que ter em conta que é ao lesante (ou à sua seguradora) que compete repará-los o mais depressa possível, de modo a que estes se não agravem. | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
* Contestou a ré, impugnando a extensão dos danos alegados pela autora. * Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, sendo proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré Companhia de Seguros A S.A., a pagar à autora Maria, a quantia de € 4.150,00 (quatro mil cento e cinquenta euros), acrescida dos juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento.* II. O RecursoNão se conformando com a decisão proferida veio a A. apresentar recurso, nele formulando as seguintes conclusões: 1 - A Meritíssima Juíza a quo julgou a presente acção parcialmente procedente, tendo entendido que a matéria de facto alegada pela recorrente nos artigos 30.°, 32.°, 36.° (no que respeita às identificadas feiras), 37°, 38°, 39°, última parte, 40°, 2a parte, 45°, 50° a 52°, 53°, 2a parte e 55° da petição inicial deveria ser considerada não provada. 2 - E o que terá motivado essa decisão terá sido, conforme referiu, a falta de prova que sobre esses factos recaiu, isto é, enquanto foi capaz de considerar válido o depoimento da única testemunha arrolada pela recorrente - B. F. - para determinada matéria de facto, já não o foi para o restante. 3 - E, pelo que se retira da decisão recorrida, isso assim terá sucedido pelo facto de a recorrente apenas ter apresentado aquele meio de prova, que, diga-se em abono da verdade, conhecia melhor que ninguém toda a realidade da recorrente, sua mãe, que sempre acompanhou para as feiras, como sucedeu no dia do acidente. 4 - Por isso, se nenhum outro meio de prova colocou em crise aquele depoimento, jamais, com o devido respeito, a Meritíssima Juíza a quo o deveria ter desmerecido ou desconsiderado, tanto mais que nem tampouco o classificou, fosse em que aspecto fosse, como inverosímil, inseguro, parcial, tendencioso ou qualquer outro adjectivo capaz de o levar à desconsideração. 5 - E a crítica que a Meritíssima Juíza a quo dirigiu àquele mero de prova, que, com o devido respeito, nos parece perfeitamente válido, tão válido como qualquer outro, acabou por se centrar no facto de ser a única testemunha arrolada pela recorrente, pelo facto de ser filha daquela e, mais curioso, foi o facto de ter concluído que aquela testemunha tinha interesse directo no desfecho daquela acção. 6 - Ora, como resultou do depoimento daquela testemunha, absolutamente sincero, nenhum interesse a mesma terá no desfecho da presente lide, tanto mais que, como referiu, a sua mãe emigrou, no final daquele ano de 2013, para França, onde ainda se encontra, estando essa testemunha, desde essa altura, afastada da sua mãe...! 7 - Por isso, seja qual for o desfecho desta lide, esse facto é absolutamente indiferente para a testemunha B. F., pois não será com a quantia que a recorrente possa receber nestes autos como indemnização que fará com que a mesma regresse a Portugal, para junto da sua filha. 8 - Assim, quanto aos pontos que a Meritíssima Juíza a quo entendeu classificar como não provados, de acordo com o depoimento daquela testemunha, que não foi contrariado por qualquer outro meio de prova, deveriam os mesmo ter sido dados como provados. Mas para a Meritíssima Juíza a quo isso não teria sido possível pelo facto, perceba-se, de o mesmo não ter sido acompanhado de outros meios de prova. Ocorre, assim, perguntar se o depoimento dessa testemunha é ou não válido? É ou não suficiente? A resposta que ambas as questões merecem é apenas uma. SIM. 9 - E, com o devido respeito, se cabia a alguém fazer a contraprova seria à recorrida que, com a excepção do valor venal do veículo da recorrente, nada mais provou. E permita-se-nos aqui o parêntesis para referir que a Meritíssima Juíza a quo não estranhou o facto de o depoimento da testemunha arrolada pela recorrida não se ter feito acompanhar de outros elementos/meios de prova, tendo valorado positivamente o seu depoimento...! 10 - Por isso, e se a Meritíssima Juíza a quo tivesse valorado, como podia e devia, o depoimento da testemunha B. F., jamais teria tido necessidade de fazer as contas que fez na sua decisão para a privação do uso a que esteve sujeita a recorrente. 11 - E diga-se que foi a primeira vez, em muitos anos e muitos processos judiciais, que se viu uma factura recibo (doc. 2 junto com a petição inicial) ser totalmente desconsiderada; mas será que a recorrente não sofreu aquele prejuízo ali retratado? Será que não utilizou aquele veículo para substituir o sinistrado (que foi até, e bem, entendido pela Meritíssima Juíza a quo como o principal instrumento de trabalho da recorrente) e poder continuar a exercer a sua actividade de feirante?! Bem se percebe que sim. 12 - Quanto à matéria de facto impugnada no presente recurso, depois de se ler a transcrição integral constante das presentes alegações ou escutar em áudio esse depoimento, jamais se poderá ter seja que dúvida seja quanto à validade desse mesmo depoimento. 13 - Daí que não possa deixar de se considerar como provada a matéria de facto que a Meritíssima Juíza a quo qualificou como não provada. 14 - É que, não obstante a Meritíssima Juíza a quo ter referido que a testemunha indicada pela recorrente era sua filha, logo parte interessada, fez também referência ao facto de a mesma ter apenas 19 anos de idade à data do acidente dos presentes autos. Ora só quem andar de costas voltadas para a realidade e para a vida poderá entender que os 19 anos de idade dessa testemunha serão iguais aos 19 anos de idade de uma qualquer outra adolescente que não acompanhava a sua mãe para as mais diversas feiras, fizesse solou fizesse chuva, e tivesse tido uma adolescência de frequência de escola, faculdade, etc ... 15 - Por isso, e tendo no decurso daquele depoimento, como resulta do supra alegado em II destas alegações, sido feita prova bastante de toda a matéria de facto alegada pela recorrente nos artigos 36.° (no que respeita às identificadas feiras), 37.°, 38.°, 39.°, última parte, 40.°, 2a parte, 45.°, 50.° a 52.°, 53.°, 2a parte e 55.° da petição inicial, não poderá a mesma deixar de se considerar como provada. 16 - Já no que respeita à matéria constante do artigo 30.° e 32.° da petição inicial, em boa verdade, nenhuma prova foi realizada pela recorrente, tendo aqui a Meritíssima Juíza a quo seguido, e bem, aquilo que foi referido pela testemunha arrolada, a esse propósito, pela recorrida. Pelo exposto, deverá a matéria constante dos artigos 36° (no que respeita às identificadas feiras), 37°, 38°, 39°, última parte, 40°, 2a parte, 45°, 50° a 52°, 53°, 2a parte e 55° da petição inicial ser considerada como provada e, em consequência, ser a recorrida condenada a pagar à recorrente as quantias ali referidas, assim se fazendo são e acostumada JUSTIÇA. * A Ré veio apresentar as suas contra-alegações, concluindo que o facto de haver uma contradição entre o valor peticionado e aquele referido em sede de produção de prova testemunhal, a juntar ao facto de a prova produzida não ter força valorativa suficiente para formar a convicção da vontade do Tribunal na matéria, não poderia, para a Recorrida, ter sido julgado de forma diferente por parte da Mmª Juíza a quo, motivo pelo qual mantém a Recorrida a consideração de que assiste razão à Mmª Juíza a quo na consideração dos danos invocados para o quantum indemnizatório em que deveria a Recorrida ser condenada. Com o que, negando provimento ao recurso, e mantendo a douta sentença recorrida, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA! * O recurso foi recebido como de apelação, nos próprios autos e efeito devolutivo. * Foram colhidos os vistos legais. * III. O objecto do recursoO objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos art.º 608.º, nº. 2, 635.º, nº. 4 e 639.º, nº. 1 e 2, todos do Novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013, de 26/6. As questões a resolver, partindo das conclusões formuladas pela apelante, são as seguintes: ▪ da verificação dos requisitos legais relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto; ▪ caso estejam verificados tais requisitos, analisar se a prova foi bem analisada em 1ª instância; ▪ verificar se a prova produzida em audiência permite extrair as conclusões de facto e de direito expressas na sentença; ▪ verificar se, consequentemente, é de manter a solução jurídica do caso. * IV - Fundamentação de facto Factos provados 1º - Cerca das 13h20 do dia 8 de Maio de 2013 ocorreu um acidente de viação na E.M. 306, ao Km 65,200, sito em … – Barcelos, em que intervieram os veículos ligeiros: a) MG, de mercadorias, conduzido pela autora, a quem pertence e b) HI, de passageiros, pertencente a A. F. e conduzido por E. F.. 2º - O veículo da autora circulava no sentido Fontainhas – Macieira de Rates, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o referido sentido e a uma velocidade de 40 Kms por hora. 3º - O veículo HI circulava em sentido contrário, ou seja, Macieira de Rates – Fontainhas, com uma velocidade superior a 50 Kms por hora, estando o tempo de chuva e o piso escorregadio. 4º - O local constitui uma localidade com casas de habitação e de comércio de um e do outro lado da estrada. 5º - Ao acabar de descrever uma curva para a sua direita, perdeu o controlo do veículo que conduzia, o condutor do HI despistou-se para a sua direita e invadindo a berma do seu lado direito, onde embateu no muro ali existente, 6º - Após o que se retornou à estrada municipal por onde circulava, que atravessou da direita para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, passou pela frente do veículo da autora, acabando por lhe embater na parte da frente do lado direito com a sua parte lateral direita, 7º - Embate que ocorreu na metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Fontainhas – Macieira de Rates. 8º - Após esse embate, prosseguiu a sua marcha em direcção à berma do seu lado esquerdo, que invadiu, acabando por embater num muro ali existente, 9º - Após o que rodopiou no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, acabando por embater na parte lateral direita do veículo da autora, imobilizando-se na berma do lado direito da E.M. 306, atento o sentido Fontainhas – Macieira de Rates, com a frente voltada para o sentido de onde provinha. 10º - Em consequência do embate o veículo da autora ficou muito danificado. 11º - De tal modo que não era económica e tecnicamente aconselhável a sua reparação. 12º - Era um Iveco Daily do ano de 1998, com rodado duplo e bem conservado. 13º - Valendo à data do acidente a quantia de € 4500,00 (quatro mil e quinhentos euros). 14º - O que restou dele foi vendido, para a sucata, pela quantia de € 910,00 (novecentos e dez euros). 15º - A autora exercia a actividade de feirante, comercializando produtos para o lar (loiças, electrodomésticos, vassouras, cutelarias, etc.). 16º - Fazendo feiras semanais. 17º Auferindo um apuro líquido por feira não concretamente apurado. 18º - Utilizava o seu veículo, que era o seu instrumento de trabalho, para se deslocar às feiras onde vendia. 19º - Entre os dias 9 de Maio de 2013 a 18 de Maio de 2013, a autora não teve qualquer veículo disponível. 20º - Motivo pelo qual não pôde fazer as feiras correspondentes. 21º - Entre os dias 18 de Maio de 2013 a 30 de Maio de 2013, a autora teve à sua disposição um veículo que lhe foi cedido pela ré. 22º - Entre os dias 31.05.2013 a 14.06.2013, a autora recorreu ao aluguer de um veículo ligeiro de aluguer sem condutor. 23º - Despendendo a quantia de € 1313,09 (mil trezentos e treze euros e nove cêntimos). 24º - Por missiva com data de 2 de Julho de 2013, a autora comunicou à ré o seguinte: “(…) Serve a presente para solicitar a v. exas. o pagamento do material danificado em sequência do sinistro no valor de 1.897.05 € e a factura do aluguer de uma viatura de substituição pelo período de 31 de Maio de 2013 a 14 de Junho de 2013. Nesta sequência, anexo à presente carta a lista de material danificado em sequência do sinistro, no valor de 1.897.06 €, bem como cópia das respectivas facturas. Anexo ainda cópia da factura nº … no valor de 1.313,09 referente ao aluguer de uma viatura de substituição. Nesta conformidade fico a aguardar o pagamento dos valores acima reclamados. (…)”, conforme documento junto a fls. 11 “verso”, cujo teor se dá aqui como integralmente reproduzido. 25º - Por missiva com data de 16 de Maio de 2013, remetida à autora, a ré comunicou à autora o seguinte: “(…) Exma. Senhora Vimos pela presente informar que foram apurados para o veículo em referência os seguintes valores que, determinam estarmos perante uma Perda Total: Custo da reparação: 12828,33 € Valor venal do veículo: 4.500 € Valor de veículo danificado: 910 € (…) Assim, apura-se um montante de 3590 €, tendo em conta a melhor valorização obtida para o veículo, já deduzido do valor que o mesmo tem danificado. (…) Logo que a instrução do nosso processo se encontrar concluída, voltaremos à V/presença. (…), conforme documento junto a fls. 29, cujo teor se dá aqui como integralmente reproduzido. 26º - Por missiva com data de 29 de Maio de 2013, remetida à autora, a ré comunicou à autora o seguinte: “(…) Exma. Senhora Reportamo-nos ao sinistro acima indicado e que oportunamente nos foi comunicado. De acordo com os elementos disponíveis, estamos em condições de assumir a responsabilidade dos prejuízos dele resultantes. Ficamos à V/ disposição para qualquer outro esclarecimento. (…)”, conforme documento junto a fls. 29 “verso”, cujo teor se dá aqui como integralmente reproduzido. 27º - Através do contrato de seguro titulado pela apólice nº 90….., a ré assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo HI. * Factos não provados Não se provaram, com relevância para a decisão da causa, os restantes factos alegados na petição inicial, designadamente a matéria de facto alegada nos artigos 30º, 32º, 36º (no que respeita às identificadas feiras), 37º; 38º; 39º, última parte; 40º,2ª parte; 45º; 50º a 52º, 53º, 2ª parte e 55º, da petição inicial. * V- Fundamentação de direitoQuanto à Impugnação da Matéria de facto Enumera o art.º 640.º do C.P.C. os ónus que ficam a cargo do(s) recorrente(s) que pretenda(m) impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada. Assim, deve o recorrente obrigatoriamente especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados [alínea a)]; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [alínea b)]; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [alínea c)]. Recai, assim, sobre a parte Recorrente um triplo ónus: - primeiro, o de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; - segundo, o de fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; - terceiro, o de enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas. Exigências que, pretendendo evitar o “abuso” da impugnação da matéria de facto, que vinha sendo utilizada sem critério e sem regras, levou o legislador do Novo Código de Processo Civil a estabelecer critérios mais exigentes, concretamente a necessidade das partes concretizarem as passagens da gravação em que a impugnação se funda, e não da mera "transcrição” de excertos ou da totalidade dos depoimentos, para se poder aquilatar da bondade das suas posições e do acerto da decisão recorrida - neste sentido ver acórdão da RG de 8/01/2015, proc. nº. 1514/12.5TBBRG. Também no acórdão do STJ de 25/11/2014, proferido no proc. nº. 100482/10.6YIPRT, acessível em www.dgsi.pt, escreveu-se o seguinte: «Esta exigência visa permitir que, nomeadamente nos depoimentos longos, se possa encontrar fácil e rapidamente “as passagens da gravação em que se funda” a impugnação de forma a, num primeiro momento, se avaliar se tais “passagens” são, por si só, idóneas a delas se extrair conclusão diversa da extraída pelo tribunal a quo, sem prejuízo de, em caso afirmativo, depois ter que se ir para além desses trechos, pois só assim se poderá formular um juízo definitivo. E ao obrigar o recorrente a, neste aspecto, melhor fundamentar o seu recurso, evita-se o uso abusivo e injustificado da faculdade de impugnar a decisão relativa à matéria de facto». Como tal, importa apurar se tais requisitos do ónus impugnativo devem constar, formalmente, das conclusões recursórias ou se bastará incluí-los no corpo alegatório. Segundo certo entendimento, a lei não consagra norma expressa sobre tal inclusão no quadro conclusivo, como o faz relativamente à impugnação de direito, nos termos do artigo 639.º, n.º 1 e 2, do CPC. Outro entendimento vai no sentido de que, constituindo a especificação dos pontos concretos de facto um factor de delimitação do objecto de recurso, nessa parte, pelo menos a sua especificação deverá constar das conclusões recursórias, por força do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugadamente com o art.º 640.º, n.º 1, alínea a), aplicando-se, subsidiariamente o preceituado no n.º 1 do art.º 639.º, todos do CPC. Nesta segunda linha de entendimento, não parece que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam figurar da síntese conclusiva, já que não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória. Como tal, a assim não se entender, julgamos que, constando esses elementos das alegações, só não das conclusões, tal daria lugar ao respectivo aperfeiçoamento e não a rejeição do recurso. Ora, com base nessa prova testemunhal, conjugada com a documental, o tribunal a quo, baseou a sua fundamentação, referindo o seguinte: “Relativamente à factualidade constante em 15º a 20º dos factos provados, o Tribunal valorou o depoimento prestado por B. F., filha da autora. * Quanto à decisão jurídicaPerante esta factualidade cumpre agora apurar se é de alterar o decidido tendo em conta que, por via da acção instaurada pretendia a Autora ser ressarcida dos danos por si alegadamente sofridos em consequência do acidente imputável por culpa e em exclusivo ao segurado da Ré, para quem a responsabilidade civil decorrente da circulação da viatura segurada na companhia de seguros demandada havia sido transferida. Delimitada a questão que cumpre apreciar e decidir, há que ter em conta, para o caso que agora nos interessa apreciar e decidir, que a imobilização de veículo sinistrado é passível de ocasionar ao seu proprietário danos que, em função dos factos provados, podem ser: - danos não patrimoniais, correspondente aos transtornos ocasionados na sua vida pessoal ou familiar, susceptíveis de serem ressarcíveis quando se revistam de gravidade suficiente nos termos do art. 496.º, n.º 1, do CC; e - danos patrimoniais, distinguindo-se de entre estes: a) os lucros cessantes — os rendimentos que o lesado deixou de obter com a utilização que fazia do veículo, no exercício de actividade lucrativa (ex. veículo de aluguer, táxi, transporte de mercadorias); b) os danos emergentes — as despesas que o lesado teve com a utilização (mais onerosa) de transporte alternativo (ex. aluguer de veículo) ou com o aparcamento da viatura sinistrada; c) o dano da mera privação do uso do veículo privação do uso do veículo — traduzido na impossibilidade do seu proprietário dele livremente dispor, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender. Neste particular, que cumpre ter em conta, estabelece-se no n.º 2 do art. 42.º, do DL n.º 291/2007, que, no caso de perda total do veículo imobilizado, a obrigação de colocar ao dispor do lesado um veículo de substituição cessa “no momento em que a empresa de seguros coloque à disposição do lesado o pagamento da indemnização”, sem que se possa olvidar que, no seu n.º 5, se ressalva “o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transporte em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição”. Contudo, importa atentar no facto dos artigos 41º e 42º do DL 291/2007, de 21/8 dizerem respeito a uma fase pretendida de simplificação dos processos extrajudiciais resultantes de acidentes de automóveis, por forma a incentivar o acordo entre as seguradoras e os lesados, sem que, no entanto, se possa atribuir a essas disposições legais um efeito vinculativo no processo judicial, onde serão aplicáveis as regras dos artigos 562º e 566º do Código Civil (v. neste sentido Ac. Do STJ de 6/10/16, e Acs. deste Tribunal de 27/10/16 e de 9/2/17, todos em www.dgsi.pt ). Assim, por força dessas normas, o lesado deve ser colocado na situação em que se encontrava antes da lesão, devendo haver lugar à reconstituição natural, a não ser nos casos em que esta não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor. Pois, sendo a responsabilidade civil uma modalidade da obrigação de indemnizar, que visa eliminar o dano ou prejuízo reparável, em consagração do princípio da restauração ou reposição natural, estipula-se no artigo 562º, do Código Civil (CC), que “quem estiver obrigado a reparar um dano, deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, assumindo, porém, a indemnização em dinheiro carácter subsidiário, enquanto sucedâneo, como acontece quando não seja possível a reconstituição da situação anterior à lesão, isto é, a reposição das coisas no estado em que estariam se não se tivesse produzido o dano, mas, também, quando não repare, integralmente, os danos ou seja, excessivamente, onerosa para o devedor, em conformidade com o disposto pelo artigo 566º, nº 1, do mesmo diploma legal – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª edição, Almedina, 2011, 905 e 906; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 576 e 577; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, reelaborada, Almedina, 2006, 770 a 772. Como tal, tendo sido danificado o veículo da autora, esta, em princípio, tem direito a que o lesante lhe restitua um veículo idêntico ou, então, que proceda à sua reparação, se tal for possível, sendo que a reparação do bem danificado, em consequência do acidente, constitui a forma de indemnização, por reposição natural, e não de indemnização por equivalente. A tudo isto acresce o facto de não se poder concluir que, com a missiva remetida à A. em que a Ré refere estar ‘em condições de assumir a responsabilidade dos prejuízos dele resultantes’ possa ser entendido como marco do momento em que a empresa de seguros colocou à disposição do lesado o pagamento da indemnização, dado que aí nada é referido quanto ao valor que se dispõe a pagar por todos os danos ou mesmo só pela perda total do veículo imobilizado. Por outro lado, mesmo que esse valor se reduzisse ao valor indicado na missiva anterior, sempre o lesado não estaria obrigado a aceitar esse valor, quando considerasse não ressarci-lo do respectivo dano decorrente da imobilização da sua viatura, por se entender, para além do mais, que o Tribunal não está vinculado à aplicação das normas do mencionado diploma. Concretamente, no caso em apreço, certamente, que a lesada não seria ressarcida do prejuízo verificado no seu veículo, se viesse a receber, em pagamento, o seu valor venal, deduzido do valor dos salvados, dado que não foi sequer alegado e provado que com esse valor seria possível adquirir um outro com idênticas características que satisfizesse as necessidades da A. De qualquer das formas sempre se teria de entender que a falta de aceitação da prestação pela A. enquanto credora, por justificada, não a faria incorrer em mora (v. art. 813.º do C. Civil e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anot., vol II, pág. 84), tanto mais que não estava obrigada a aceitar um montante que só a compensava em parte pelo dano sofrido (v. 763.º, n.º 1 do C. Civil), tal como se entendeu no acórdão proferido neste tribunal com o n.º 474/13.0TBFAF.G1, publicado no site da dgsi, subscrito pela presente relatora como adjunta. Acresce que, a este respeito, conforme enuncia Abrantes Geraldes (Indemnização do Dano da Privação do Uso), em conformidade com o entendimento que maioritariamente vem sendo seguido, a privação é geradora de dano ou prejuízo e a privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar - uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem nos termos genericamente consentidos pelo art.º 1305º, do CC. Já quanto aos demais danos, quer referentes ao valor que deixou de auferir em consequência do facto de não ter podido exercer a sua actividade, como o fazia até à data do acidente, pelo facto de não ter o seu veículo e não dispor de recursos para suportar o custo de um outro veículo, quer referentes ao valor dos produtos que ficaram danificados, por não se dispor de elementos susceptíveis de concretizar a indemnização devida por tais danos sofridos pela A., mesmo com recurso à equidade, relega-se para execução de sentença, ao abrigo do disposto no art. 609.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, a sua fixação. * VI – Decisão Pelo exposto, nos termos supra referidos, os Juízes da 2.ª Secção Cível, deste Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela A., condenando, em consequência, a Ré a pagar à A. a quantia de 5.463,09 (cinco mil quatrocentos e sessenta e três euros e nove cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, bem como no pagamento do que vier a ser liquidado quanto aos demais danos supra mencionados. Custas por A./Apelante e Ré/Apelada na proporção do respectivo decaimento. Notifique. * TRG, 9.11.2017 (O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária) Maria dos Anjos S. Melo Nogueira Desembargador José Carlos Dias Cravo Desembargador António M. A. Figueiredo de Almeida |