Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
455/16.1T8BCL.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
REPARAÇÃO DE VEÍCULO
DANO DA PRIVAÇÃO DO USO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I . Os artigos 41º e 42º do DL 291/2007, de 21/8 dizem respeito a uma fase de simplificação dos processos extrajudiciais resultantes de acidentes de automóveis, por forma a incentivar o acordo entre as seguradoras e os lesados, sem que, no entanto, se possa atribuir a essas disposições legais um efeito vinculativo no processo judicial, onde serão aplicáveis as regras dos artigos 562º e 566º do Código Civil

II - A falta de reparação ou quando esta não seja viável pela sua grande onerosidade, não retiram ao lesado o prejuízo que sofreu pela privação do veículo, pelo menos até à data em que receba da seguradora a indemnização correspondente, na medida em que, só nesse momento, é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que substitua o que foi danificado.

III - À luz da teoria da causalidade adequada, os danos posteriores que se verificarem eventualmente até à resolução do litígio (com o pagamento da indemnização relativa à perda total ou ao custo da reparação) não deixam de ter como causa adequada o facto/evento determinante do acidente, pelo que, há que ter em conta que é ao lesante (ou à sua seguradora) que compete repará-los o mais depressa possível, de modo a que estes se não agravem.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES


I. Relatório

Maria, residente na Rua …, Barcelos, intentou contra Companhia de Seguros A, S.A., com sede no Largo …, Açores, acção sob a forma de processo comum, peticionando a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 20.500,14, acrescida de juros, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, alegando que foi interveniente num acidente de viação, que ocorreu por culpa do segurado da ré, que ao descrever uma curva perdeu o controlo do veículo que conduzia, invadindo a faixa de rodagem onde seguia a autora, acabando por embater na parte da frente e na lateral direita do veículo da autora, causando-lhe danos patrimoniais.

*
Contestou a ré, impugnando a extensão dos danos alegados pela autora.
*
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, sendo proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré Companhia de Seguros A S.A., a pagar à autora Maria, a quantia de € 4.150,00 (quatro mil cento e cinquenta euros), acrescida dos juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento.
*
II. O Recurso

Não se conformando com a decisão proferida veio a A. apresentar recurso, nele formulando as seguintes conclusões:

1 - A Meritíssima Juíza a quo julgou a presente acção parcialmente procedente, tendo entendido que a matéria de facto alegada pela recorrente nos artigos 30.°, 32.°, 36.° (no que respeita às identificadas feiras), 37°, 38°, 39°, última parte, 40°, 2a parte, 45°, 50° a 52°, 53°, 2a parte e 55° da petição inicial deveria ser considerada não provada.
2 - E o que terá motivado essa decisão terá sido, conforme referiu, a falta de prova que sobre esses factos recaiu, isto é, enquanto foi capaz de considerar válido o depoimento da única testemunha arrolada pela recorrente - B. F. - para determinada matéria de facto, já não o foi para o restante.
3 - E, pelo que se retira da decisão recorrida, isso assim terá sucedido pelo facto de a recorrente apenas ter apresentado aquele meio de prova, que, diga-se em abono da verdade, conhecia melhor que ninguém toda a realidade da recorrente, sua mãe, que sempre acompanhou para as feiras, como sucedeu no dia do acidente.
4 - Por isso, se nenhum outro meio de prova colocou em crise aquele depoimento, jamais, com o devido respeito, a Meritíssima Juíza a quo o deveria ter desmerecido ou desconsiderado, tanto mais que nem tampouco o classificou, fosse em que aspecto fosse, como inverosímil, inseguro, parcial, tendencioso ou qualquer outro adjectivo capaz de o levar à desconsideração.
5 - E a crítica que a Meritíssima Juíza a quo dirigiu àquele mero de prova, que, com o devido respeito, nos parece perfeitamente válido, tão válido como qualquer outro, acabou por se centrar no facto de ser a única testemunha arrolada pela recorrente, pelo facto de ser filha daquela e, mais curioso, foi o facto de ter concluído que aquela testemunha tinha interesse directo no desfecho daquela acção.
6 - Ora, como resultou do depoimento daquela testemunha, absolutamente sincero, nenhum interesse a mesma terá no desfecho da presente lide, tanto mais que, como referiu, a sua mãe emigrou, no final daquele ano de 2013, para França, onde ainda se encontra, estando essa testemunha, desde essa altura, afastada da sua mãe...!
7 - Por isso, seja qual for o desfecho desta lide, esse facto é absolutamente indiferente para a testemunha B. F., pois não será com a quantia que a recorrente possa receber nestes autos como indemnização que fará com que a mesma regresse a Portugal, para junto da sua filha.
8 - Assim, quanto aos pontos que a Meritíssima Juíza a quo entendeu classificar como não provados, de acordo com o depoimento daquela testemunha, que não foi contrariado por qualquer outro meio de prova, deveriam os mesmo ter sido dados como provados.
Mas para a Meritíssima Juíza a quo isso não teria sido possível pelo facto, perceba-se, de o mesmo não ter sido acompanhado de outros meios de prova.
Ocorre, assim, perguntar se o depoimento dessa testemunha é ou não válido? É ou não suficiente?
A resposta que ambas as questões merecem é apenas uma. SIM.
9 - E, com o devido respeito, se cabia a alguém fazer a contraprova seria à recorrida que, com a excepção do valor venal do veículo da recorrente, nada mais provou.
E permita-se-nos aqui o parêntesis para referir que a Meritíssima Juíza a quo não estranhou o facto de o depoimento da testemunha arrolada pela recorrida não se ter feito acompanhar de outros elementos/meios de prova, tendo valorado positivamente o seu depoimento...!
10 - Por isso, e se a Meritíssima Juíza a quo tivesse valorado, como podia e devia, o depoimento da testemunha B. F., jamais teria tido necessidade de fazer as contas que fez na sua decisão para a privação do uso a que esteve sujeita a recorrente.
11 - E diga-se que foi a primeira vez, em muitos anos e muitos processos judiciais, que se viu uma factura recibo (doc. 2 junto com a petição inicial) ser totalmente desconsiderada; mas será que a recorrente não sofreu aquele prejuízo ali retratado? Será que não utilizou aquele veículo para substituir o sinistrado (que foi até, e bem, entendido pela Meritíssima Juíza a quo como o principal instrumento de trabalho da recorrente) e poder continuar a exercer a sua actividade de feirante?!
Bem se percebe que sim.
12 - Quanto à matéria de facto impugnada no presente recurso, depois de se ler a transcrição integral constante das presentes alegações ou escutar em áudio esse depoimento, jamais se poderá ter seja que dúvida seja quanto à validade desse mesmo depoimento.
13 - Daí que não possa deixar de se considerar como provada a matéria de facto que a Meritíssima Juíza a quo qualificou como não provada.
14 - É que, não obstante a Meritíssima Juíza a quo ter referido que a testemunha indicada pela recorrente era sua filha, logo parte interessada, fez também referência ao facto de a mesma ter apenas 19 anos de idade à data do acidente dos presentes autos.
Ora só quem andar de costas voltadas para a realidade e para a vida poderá entender que os 19 anos de idade dessa testemunha serão iguais aos 19 anos de idade de uma qualquer outra adolescente que não acompanhava a sua mãe para as mais diversas feiras, fizesse solou fizesse chuva, e tivesse tido uma adolescência de frequência de escola, faculdade, etc ...
15 - Por isso, e tendo no decurso daquele depoimento, como resulta do supra alegado em II destas alegações, sido feita prova bastante de toda a matéria de facto alegada pela recorrente nos artigos 36.° (no que respeita às identificadas feiras), 37.°, 38.°, 39.°, última parte, 40.°, 2a parte, 45.°, 50.° a 52.°, 53.°, 2a parte e 55.° da petição inicial, não poderá a mesma deixar de se considerar como provada.
16 - Já no que respeita à matéria constante do artigo 30.° e 32.° da petição inicial, em boa verdade, nenhuma prova foi realizada pela recorrente, tendo aqui a Meritíssima Juíza a quo seguido, e bem, aquilo que foi referido pela testemunha arrolada, a esse propósito, pela recorrida.
Pelo exposto, deverá a matéria constante dos artigos 36° (no que respeita às identificadas feiras), 37°, 38°, 39°, última parte, 40°, 2a parte, 45°, 50° a 52°, 53°, 2a parte e 55° da petição inicial ser considerada como provada e, em consequência, ser a recorrida condenada a pagar à recorrente as quantias ali referidas, assim se fazendo são e acostumada JUSTIÇA.
*
A Ré veio apresentar as suas contra-alegações, concluindo que o facto de haver uma contradição entre o valor peticionado e aquele referido em sede de produção de prova testemunhal, a juntar ao facto de a prova produzida não ter força valorativa suficiente para formar a convicção da vontade do Tribunal na matéria, não poderia, para a Recorrida, ter sido julgado de forma diferente por parte da Mmª Juíza a quo, motivo pelo qual mantém a Recorrida a consideração de que assiste razão à Mmª Juíza a quo na consideração dos danos invocados para o quantum indemnizatório em que deveria a Recorrida ser condenada.
Com o que, negando provimento ao recurso, e mantendo a douta sentença recorrida, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!
*

O recurso foi recebido como de apelação, nos próprios autos e efeito devolutivo.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
III. O objecto do recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos art.º 608.º, nº. 2, 635.º, nº. 4 e 639.º, nº. 1 e 2, todos do Novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013, de 26/6.
As questões a resolver, partindo das conclusões formuladas pela apelante, são as seguintes:
▪ da verificação dos requisitos legais relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
▪ caso estejam verificados tais requisitos, analisar se a prova foi bem analisada em 1ª instância;
▪ verificar se a prova produzida em audiência permite extrair as conclusões de facto e de direito expressas na sentença;
▪ verificar se, consequentemente, é de manter a solução jurídica do caso.
*

IV - Fundamentação de facto

Factos provados

- Cerca das 13h20 do dia 8 de Maio de 2013 ocorreu um acidente de viação na E.M. 306, ao Km 65,200, sito em … – Barcelos, em que intervieram os veículos ligeiros:
a) MG, de mercadorias, conduzido pela autora, a quem pertence e
b) HI, de passageiros, pertencente a A. F. e conduzido por E. F..
- O veículo da autora circulava no sentido Fontainhas – Macieira de Rates, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o referido sentido e a uma velocidade de 40 Kms por hora.
- O veículo HI circulava em sentido contrário, ou seja, Macieira de Rates – Fontainhas, com uma velocidade superior a 50 Kms por hora, estando o tempo de chuva e o piso escorregadio.
- O local constitui uma localidade com casas de habitação e de comércio de um e do outro lado da estrada.
- Ao acabar de descrever uma curva para a sua direita, perdeu o controlo do veículo que conduzia, o condutor do HI despistou-se para a sua direita e invadindo a berma do seu lado direito, onde embateu no muro ali existente,
- Após o que se retornou à estrada municipal por onde circulava, que atravessou da direita para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, passou pela frente do veículo da autora, acabando por lhe embater na parte da frente do lado direito com a sua parte lateral direita,
- Embate que ocorreu na metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Fontainhas – Macieira de Rates.
- Após esse embate, prosseguiu a sua marcha em direcção à berma do seu lado esquerdo, que invadiu, acabando por embater num muro ali existente,
- Após o que rodopiou no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, acabando por embater na parte lateral direita do veículo da autora, imobilizando-se na berma do lado direito da E.M. 306, atento o sentido Fontainhas – Macieira de Rates, com a frente voltada para o sentido de onde provinha.
10º - Em consequência do embate o veículo da autora ficou muito danificado.
11º - De tal modo que não era económica e tecnicamente aconselhável a sua reparação.
12º - Era um Iveco Daily do ano de 1998, com rodado duplo e bem conservado.
13º - Valendo à data do acidente a quantia de € 4500,00 (quatro mil e quinhentos euros).
14º - O que restou dele foi vendido, para a sucata, pela quantia de € 910,00 (novecentos e dez euros).
15º - A autora exercia a actividade de feirante, comercializando produtos para o lar (loiças, electrodomésticos, vassouras, cutelarias, etc.).
16º - Fazendo feiras semanais.
17º Auferindo um apuro líquido por feira não concretamente apurado.
18º - Utilizava o seu veículo, que era o seu instrumento de trabalho, para se deslocar às feiras onde vendia.
19º - Entre os dias 9 de Maio de 2013 a 18 de Maio de 2013, a autora não teve qualquer veículo disponível.
20º - Motivo pelo qual não pôde fazer as feiras correspondentes.
21º - Entre os dias 18 de Maio de 2013 a 30 de Maio de 2013, a autora teve à sua disposição um veículo que lhe foi cedido pela ré.
22º - Entre os dias 31.05.2013 a 14.06.2013, a autora recorreu ao aluguer de um veículo ligeiro de aluguer sem condutor.
23º - Despendendo a quantia de € 1313,09 (mil trezentos e treze euros e nove cêntimos).
24º - Por missiva com data de 2 de Julho de 2013, a autora comunicou à ré o seguinte:
“(…) Serve a presente para solicitar a v. exas. o pagamento do material danificado em sequência do sinistro no valor de 1.897.05 € e a factura do aluguer de uma viatura de substituição pelo período de 31 de Maio de 2013 a 14 de Junho de 2013.
Nesta sequência, anexo à presente carta a lista de material danificado em sequência do sinistro, no valor de 1.897.06 €, bem como cópia das respectivas facturas.
Anexo ainda cópia da factura nº … no valor de 1.313,09 referente ao aluguer de uma viatura de substituição.
Nesta conformidade fico a aguardar o pagamento dos valores acima reclamados.
(…)”, conforme documento junto a fls. 11 “verso”, cujo teor se dá aqui como integralmente reproduzido.
25º - Por missiva com data de 16 de Maio de 2013, remetida à autora, a ré comunicou à autora o seguinte:
“(…) Exma. Senhora
Vimos pela presente informar que foram apurados para o veículo em referência os seguintes valores que, determinam estarmos perante uma Perda Total:
Custo da reparação: 12828,33 €
Valor venal do veículo: 4.500 €
Valor de veículo danificado: 910 €
(…) Assim, apura-se um montante de 3590 €, tendo em conta a melhor valorização obtida para o veículo, já deduzido do valor que o mesmo tem danificado.
(…) Logo que a instrução do nosso processo se encontrar concluída, voltaremos à V/presença. (…), conforme documento junto a fls. 29, cujo teor se dá aqui como integralmente reproduzido.
26º - Por missiva com data de 29 de Maio de 2013, remetida à autora, a ré comunicou à autora o seguinte:
“(…) Exma. Senhora
Reportamo-nos ao sinistro acima indicado e que oportunamente nos foi comunicado.
De acordo com os elementos disponíveis, estamos em condições de assumir a responsabilidade dos prejuízos dele resultantes.
Ficamos à V/ disposição para qualquer outro esclarecimento.
(…)”, conforme documento junto a fls. 29 “verso”, cujo teor se dá aqui como integralmente reproduzido.
27º - Através do contrato de seguro titulado pela apólice nº 90….., a ré assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo HI.
*
Factos não provados

Não se provaram, com relevância para a decisão da causa, os restantes factos alegados na petição inicial, designadamente a matéria de facto alegada nos artigos 30º, 32º, 36º (no que respeita às identificadas feiras), 37º; 38º; 39º, última parte; 40º,2ª parte; 45º; 50º a 52º, 53º, 2ª parte e 55º, da petição inicial.
*
V- Fundamentação de direito

Quanto à Impugnação da Matéria de facto

Enumera o art.º 640.º do C.P.C. os ónus que ficam a cargo do(s) recorrente(s) que pretenda(m) impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
Assim, deve o recorrente obrigatoriamente especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados [alínea a)]; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [alínea b)]; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [alínea c)].
Recai, assim, sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
- primeiro, o de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
- segundo, o de fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
- terceiro, o de enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Exigências que, pretendendo evitar o “abuso” da impugnação da matéria de facto, que vinha sendo utilizada sem critério e sem regras, levou o legislador do Novo Código de Processo Civil a estabelecer critérios mais exigentes, concretamente a necessidade das partes concretizarem as passagens da gravação em que a impugnação se funda, e não da mera "transcrição” de excertos ou da totalidade dos depoimentos, para se poder aquilatar da bondade das suas posições e do acerto da decisão recorrida - neste sentido ver acórdão da RG de 8/01/2015, proc. nº. 1514/12.5TBBRG.
Também no acórdão do STJ de 25/11/2014, proferido no proc. nº. 100482/10.6YIPRT, acessível em www.dgsi.pt, escreveu-se o seguinte: «Esta exigência visa permitir que, nomeadamente nos depoimentos longos, se possa encontrar fácil e rapidamente “as passagens da gravação em que se funda” a impugnação de forma a, num primeiro momento, se avaliar se tais “passagens” são, por si só, idóneas a delas se extrair conclusão diversa da extraída pelo tribunal a quo, sem prejuízo de, em caso afirmativo, depois ter que se ir para além desses trechos, pois só assim se poderá formular um juízo definitivo. E ao obrigar o recorrente a, neste aspecto, melhor fundamentar o seu recurso, evita-se o uso abusivo e injustificado da faculdade de impugnar a decisão relativa à matéria de facto».
Como tal, importa apurar se tais requisitos do ónus impugnativo devem constar, formalmente, das conclusões recursórias ou se bastará incluí-los no corpo alegatório.

Segundo certo entendimento, a lei não consagra norma expressa sobre tal inclusão no quadro conclusivo, como o faz relativamente à impugnação de direito, nos termos do artigo 639.º, n.º 1 e 2, do CPC. Outro entendimento vai no sentido de que, constituindo a especificação dos pontos concretos de facto um factor de delimitação do objecto de recurso, nessa parte, pelo menos a sua especificação deverá constar das conclusões recursórias, por força do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugadamente com o art.º 640.º, n.º 1, alínea a), aplicando-se, subsidiariamente o preceituado no n.º 1 do art.º 639.º, todos do CPC.

Nesta segunda linha de entendimento, não parece que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam figurar da síntese conclusiva, já que não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória.

Como tal, a assim não se entender, julgamos que, constando esses elementos das alegações, só não das conclusões, tal daria lugar ao respectivo aperfeiçoamento e não a rejeição do recurso.
De qualquer das formas, sempre por uma questão de economia processual e porque a recorrente observou os ónus impostos, apenas omitindo nas conclusões do recurso as passagens das gravações referentes ao depoimento da testemunha por si indicada e inquirida em sede de audiência de julgamento, julga-se, por contrabalanço, à exaustiva menção e referência a esse registo de prova e às respectivas passagens no corpo das alegações, despiciendo, por razões meramente formais, exigir-se, previamente ao conhecimento do recurso, a repetição desse segmento também nas conclusões, pelo que, de imediato se passa a conhecer do recurso quanto à concreta impugnação factual a que o mesmo se reporta.
Concretamente, a A./Apelante insurge-se contra o segmento da decisão de facto que considerou não provada a matéria constante dos arts. 36.º (no que respeita às identificadas feiras), 37.º, 38.º, última parte, 40.º, 2.ª parte, 45.º, 50.º a 52.º, 53.º, 2.ª parte e 55.º, da petição inicial, requerendo que tal factualidade seja dada como provada.
Reportam-se eles à seguinte matéria:
36.
fazendo as feiras semanais de Barcelos, Guimarães, Braga e Gondomar
37.
e, ainda, vendia esses mesmos produtos numa loja de revenda em Paredes, duas vezes por semana,
38.
fazendo um apuro liquido, por feira e venda na loja de Paredes, de 150,00 €.
39.
E utilizava o seu veículo, que era o seu instrumento de trabalho, todos os dias, para se deslocar às feiras onde vendia e, bem assim, à referida loja de Paredes.
40.
Para se deslocar às feiras, onde vendia e, bem assim, à referida loja de Paredes
45.
tendo tido, nesse período, de acordo com o alegado nos artigos 34º a 38º desta petição inicial, um prejuízo de 1.200,00 €.
50.
Nos dias que se seguiram, ou seja, entre o dia 15.6.2013 e o dia 31.8.2013 a demandante, por não conseguir suportar a despesa diária com o aluguer de um veículo,
51.
deixou de fazer as feiras de Barcelos, Guimarães, Braga e Gondomar e, bem assim, de ir duas vezes por semana à loja de revenda de Paredes,
52.
motivo por que teve, a este título, um prejuízo de 9.000,00 € (6 dias x 150,00 € x 10 semanas).
53. Por outro lado, conforme a demandante informou atempadamente a demandada, em consequência do acidente alguns objectos que transportava no interior do seu veículo ficaram danificados,
55.
Prejuízo que ascendeu à quantia de 1.897,05.
Em síntese, refere ter existido uma diferente valorização do depoimento da única testemunha arrolada pela recorrente, B. F., num sentido, para determinada matéria de facto dada como provada, e, noutro, para a restante matéria de facto dada como não provada, quando também para esta seria de atender ao facto dessa testemunha, enquanto filha da A., conhecer melhor que ninguém toda a realidade por si vivenciada, por sempre a ter acompanhado às feiras, como sucedeu no dia do acidente, o que permitiria considera também tal factualidade como provada.
Pese embora não caiba a este tribunal, em princípio, sindicar a livre apreciação da prova por parte do tribunal recorrido, estipulada no art. 655.º do CPC, pedida que se encontra a reapreciação da prova deve o Tribunal da Relação apreciar a matéria impugnada efectuando uma apreciação autónoma da prova produzida, no sentido de que o objecto precípuo de cognição não é a coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto, mas antes a apreciação e valoração da prova produzida.
Tal como aponta Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3ª Edição, pág. 245), a Relação deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir modificações na matéria provada e não provada. Acrescentando que, em face da redacção do art. 662º do C. P. Civil, fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe a sua própria convicção, mediante reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis, apenas cedendo nos factores da imediação e oralidade, cabendo-lhe alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Assim sendo, há que ter em conta, face ao que se dispõe no art.º 342º do CPC, que a cada um dos sujeitos processuais competirá convencer o juiz da realidade dos factos por si alegados, que lhe sejam favoráveis, concretamente o autor/requerente da existência dos factos que servem de base legal à sua pretensão e o réu/requerido os factos que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos, isto é, de demonstrar a inexistência desses factos ou a verificação de outros susceptíveis de obstarem ao julgamento do mérito da causa, já que impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão deduzida” - Neste sentido Baptista de Oliveira in “Contratos Privados, das noções à prática judicial” Vol. III, Coimbra Editora pp 184.
Contudo, tais regras invertem-se quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.
Acresce que a dúvida sobre se determinado facto ocorreu ou não, o non liqued converte-se num liquet contra a parte a quem incumbe o ónus da prova do facto.
Mas, vejamos, analisando a prova produzida, ponderando a razão de ciência da testemunha que depôs sobre os factos, sem olvidar o teor da documentação junta aos autos.

Ora, com base nessa prova testemunhal, conjugada com a documental, o tribunal a quo, baseou a sua fundamentação, referindo o seguinte:

“Relativamente à factualidade constante em 15º a 20º dos factos provados, o Tribunal valorou o depoimento prestado por B. F., filha da autora.
Com efeito, a testemunha assegurou que a mãe exercia a actividade de feirante, comercializando produtos para o lar, fazendo feiras semanais, utilizando o seu veículo como instrumento de trabalho, para se deslocar às feiras onde vendia, não tendo disponível qualquer veículo entre os dias 9 de Maio de 18 de Maio de 2013, motivo pelo qual não pôde fazer as feiras correspondentes.
Do mesmo modo, valorou-se o depoimento desta testemunha, conjugado comos documentos juntos a fls. 11 (factura de um aluguer de um veículo), relativamente à factualidade constante em 22º e 23º.
Considerando ainda os documentos juntos a fls. 11 “verso”, 29 e 29 “verso”, o Tribunal deu como provada a factualidade constante em 24º a 26º.
No que respeita à restante factualidade dada como não provada, tal ocorrência por ausência de prova credível da sua verificação.
Na verdade, no que respeita à actividade profissional desenvolvida pela autora, às feiras e loja de revenda onde vendia os seus produtos e ao apuro líquido que obtinha e consequentes prejuízos que sofreu, a autora limitou-se a apresentar uma testemunha, a sua filha, que na altura do sinistro teria 19 anos de idade, não merecendo este depoimento, só por si e desacompanhado de outros elementos probatórios, credibilidade suficiente para dar como provada tal factualidade.
Com efeito, não se podendo olvidar que a testemunha tem interesse no desfecho da acção, atento o parentesco que possui com a autora, também temos de salientar que era possível à autora apresentar outras testemunhas (pessoas que frequentassem as feiras que a autora alega que realizava, pessoas que vendessem nessas feiras, pessoas conhecedoras da vida profissional e económica da autora) e prova documental (licenças para participar nas feiras, declaração de IRS que a mesma possuía, pagamento de taxas para participar nas feiras, entre outros).
Ora, a prova produzida foi frágil, não logrando assim convencer o Tribunal de que a autora participava em quatro feiras semanais e fazia revenda numa loja de Paredes, duas vezes por semana), nem que o apuro líquido da autora, por feira e venda fosse de € 150,00. Aliás, não resultou minimamente demonstrado qual o prejuízo diário sofrido pela autora, nem a prova permitiu ao tribunal calcular tal prejuízo, mesmo fazendo apelo à equidade ou relegando os mesmos para liquidação, atenta a ausência de prova credível, desde logo, da quantidade de feiras que a autora deixou de fazer, ou dos valores que a mesma auferia.
Relativamente aos objectos que a autora alegou que ficaram danificados, tal factualidade também não resultou demonstrada.
Com efeito, muito embora a filha da autora tenha asseverado que os mesmos ficaram danificados, confirmando que se danificaram os objectos constantes da lista junta a fls. 18, lista essa que foi elaborada pela autora, o certo é que também não foi produzida outra prova.
É verdade que a autora procedeu à junção das facturas juntas a fls. 12 a 17, que pretendem comprovar que a autora comprou os produtos que diz terem sido danificados, mas também é certo que tais documentos não tem a virtualidade de provar que a mercadoria constante de tais facturas ainda existia no stock da autora ou que a mesma tenha ficado danificada no sinistro.
Temos ainda que salientar que a testemunha identificou um dos fornecedores da autora, C. F., cujas facturas constam a fls. 12 a 14 verso, como sendo o seu pai, e que a autora e o pai vivem juntos.
Os restantes factos dados como não provados resultaram da ausência de prova credível da sua verificação”.
Ora, se quanto a determinadas circunstâncias necessário seria a sua comprovação através de outra prova, em relação a outras que se prendem com o trabalho executado, a frequência e deslocação às feiras e loja, comprovação dos danos sofridos que constatou, bem como a utilização do veículo para esse fins, tem de se entender que a filha da A., por ser a pessoa que, desde longa data e no momento a que os factos se reportam, a acompanhava e tudo vivenciou, é a pessoa que em melhor posição está, por ter conhecimento directo, concreto e específico, para relatar, descrever e comprovar tais factos, pelo que não se vê porque não valorar tal testemunho quanto a tal factualidade por si confirmada, tanto mais que, sob esse mesmo prisma, foram dados como provados os factos que constam dos pontos 15.º a 23.º, com base também nessa mesma prova.
Nessa conformidade, julgamos que, com base nessa prova, deve ser dado como provado que a A. fazia as feiras semanais referenciadas no art. 36.º, da p.i., e que ainda vendia os seus produtos numa loja de revenda em Paredes, duas vezes por semana, utilizando o veículo sinistrado nessas deslocações, desde terça-feira a Sábado, como especificou, dado que era essa sua filha que a acompanhava e ajudava desde pequenina.
Por outro lado, igualmente não pode ser desvalorizado totalmente o facto de, como o confirmou, não ter tido a sua mãe disponibilidade económica para suportar a aquisição de uma viatura ou o custo de um aluguer de veículo para continuar a exercer a sua actividade como o fazia até aí, levando-a, inclusive, a emigrar para França, onde se encontra a trabalhar.
Como tal, deve ser reformulada a matéria de facto dada como provada, por forma a fazer constar do ponto 16, o seguinte:
-“Fazendo as feiras semanais de Barcelos, Guimarães, Braga e Gondomar e vendendo os produtos que comercializava numa loja de revenda em Paredes, duas vezes por semana” (correspondente aos arts. 36.º e 37.º, da p.i.).
Por sua vez, deve ser aditado ao ponto 17.º, o que passa a resultar da nova redacção do ponto anterior, sem mais, concretamente:
- “Auferindo um apuro líquido, por feira e venda na loja de Paredes, não concretamente apurado”, dado que nem a referida testemunha confirmou o montante certo que era referido na p.i., apontando-o tão só como um valor variável, sem elementos por si conhecidos que o confirmem, uma vez que, essa parte era tratada pela sua mãe, verificando-se oscilações consoante se estivesse mais no início ou fim do mês, o facto dos negócios nunca serem certos, nem saber bem sobre essa parte do negócio, e sem que tivesse apontado com mais precisão os valores ilíquidos e despesas que eram contabilizadas para se encontrar o referenciado valor líquido, o que sempre também deveria ser compaginado com as declarações de rendimentos anuais apresentadas nas finanças, o que a A. não fez, daí que, por isso, não possa lograr pretender ver tal factualidade respeitante ao valor certo por si alegado como provado.
De igual forma deve o ponto 18.º, dos factos apurados, passar a ter a seguinte redacção (embora sem que se dê como assente uma utilização diária do veículo como instrumento de trabalho, por tal ser inclusive desmentido pela testemunha referenciada):
-“Utilizava o seu veículo, que era o seu instrumento de trabalho, para se deslocar às feiras onde vendia e, bem assim, à referida loja de Paredes”.
Quanto ao mais, o que sabemos é que a A. não tinha recursos financeiros para adquirir uma outra viatura ou suportar o custo com o aluguer de uma viatura, acabando por emigrar.
Daqui é possível inferir que, se após 14.6.2013, deixou de ter um veículo, quer próprio ou de aluguer, não pôde fazer o transporte dos seus produtos, pelo menos, para as feiras, dado que, para a loja, bastava que para aí os tivesse levado quando dispunha de veículo e os tivesse aí deixado.
Decorre igualmente do depoimento da referida testemunha que a sua mãe foi para França por altura do Natal, ou desse ano ou do ano seguinte, pelo que possível seria igualmente inferir da referida impossibilidade de realizar as feiras que fazia até Dezembro, pelo menos, desse ano.
Assim, sendo alegado, até por defeito, essa impossibilidade, a ela não se pode deixar de atentar, por ser um elemento que é possível retirar de um facto objectivo conhecido oriundo da falta de viatura que se sabe ser o meio necessário para que se transporte os produtos que se pretende vender numa feira.
Assim sendo, adita-se a seguinte factualidade que se considera ser possível de dar como provada, pelas razões expostas, como ponto 23.º-A:
- “Nos dias que se seguiram, ou seja, entre o dia 15.6.2013 e o dia 31.8.2013 a demandante, por não dispor de um veículo e não conseguir suportar a despesa diária com o aluguer de um, deixou de fazer as feiras de Barcelos, Guimarães, Braga e Gondomar”.
Já quanto aos objectos danificados, é verdade que a testemunha em causa confirmou ter sido feita uma listagem dos produtos que ficaram danificados em consequência do acidente, com indicação dos respectivos valores por via da sua aferição quanto ao montante indicado nas facturas dos mesmos, aquando da sua aquisição.
Contudo, pese embora se considere existir prova de que alguns dos produtos que no dia do acidente se encontravam na viatura da A. pudessem ter ficado danificados, pelo embate sofrido que levou inclusive a considerar a perda total da viatura, conjugado com o facto de, logo no momento da participação, a A. o ter declarado, tal como consta do teor de tal documento, a fls. 10-v.º, do p.p., bem como com a confirmação feita pela testemunha inquirida, B. F., o facto é que tal é insuficiente para permitir efectuar a respectiva correlação entre os produtos que eram transportados e que ficaram danificados, com aqueles elencados nas facturas juntas como sendo os que se encontravam na viatura e permitir, assim, o apuro do seu valor, tendo em conta que as datas que constam de tais facturas são de 2008, 2010, 2011 e 2012, quando o acidente ocorre quase a meio do ano de 2013, passados quase 5 anos daquela factura de 2008, o que causa estranheza o facto de, desde então até aquela data, não se ter vendido tais produtos.
Por outro lado, considera-se que fácil seria efectuar essa ligação, através da captação de fotos de tais produtos danificados para a sua junção aos autos, por forma a permitir, depois, realizar a respectiva conjugação com a descrição dos produtos constantes dessa facturação.
Ao assim não se ter procedido, não é, pois, possível dar como provado, perante a fragilidade da prova produzida nesse sentido, tal como referenciado, muito mais do que o facto de alguns desses produtos terem ficado danificados, dado que, quanto ao mais, não é possível aferir ao certo quantos, quais, seu estado e valor.
Como tal, decide-se aditar, como ponto 23.º-A, o seguinte:
- “Em consequência do acidente alguns objectos que transportava no interior do seu veículo ficaram danificados”.
No mais, mantem-se o decidido.

*
Quanto à decisão jurídica

Perante esta factualidade cumpre agora apurar se é de alterar o decidido tendo em conta que, por via da acção instaurada pretendia a Autora ser ressarcida dos danos por si alegadamente sofridos em consequência do acidente imputável por culpa e em exclusivo ao segurado da Ré, para quem a responsabilidade civil decorrente da circulação da viatura segurada na companhia de seguros demandada havia sido transferida.
Delimitada a questão que cumpre apreciar e decidir, há que ter em conta, para o caso que agora nos interessa apreciar e decidir, que a imobilização de veículo sinistrado é passível de ocasionar ao seu proprietário danos que, em função dos factos provados, podem ser:
- danos não patrimoniais, correspondente aos transtornos ocasionados na sua vida pessoal ou familiar, susceptíveis de serem ressarcíveis quando se revistam de gravidade suficiente nos termos do art. 496.º, n.º 1, do CC; e
- danos patrimoniais, distinguindo-se de entre estes:

a) os lucros cessantes — os rendimentos que o lesado deixou de obter com a utilização que fazia do veículo, no exercício de actividade lucrativa (ex. veículo de aluguer, táxi, transporte de mercadorias);
b) os danos emergentes — as despesas que o lesado teve com a utilização (mais onerosa) de transporte alternativo (ex. aluguer de veículo) ou com o aparcamento da viatura sinistrada;
c) o dano da mera privação do uso do veículo privação do uso do veículo — traduzido na impossibilidade do seu proprietário dele livremente dispor, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender.
Neste particular, que cumpre ter em conta, estabelece-se no n.º 2 do art. 42.º, do DL n.º 291/2007, que, no caso de perda total do veículo imobilizado, a obrigação de colocar ao dispor do lesado um veículo de substituição cessa “no momento em que a empresa de seguros coloque à disposição do lesado o pagamento da indemnização”, sem que se possa olvidar que, no seu n.º 5, se ressalva “o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transporte em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição”.
Contudo, importa atentar no facto dos artigos 41º e 42º do DL 291/2007, de 21/8 dizerem respeito a uma fase pretendida de simplificação dos processos extrajudiciais resultantes de acidentes de automóveis, por forma a incentivar o acordo entre as seguradoras e os lesados, sem que, no entanto, se possa atribuir a essas disposições legais um efeito vinculativo no processo judicial, onde serão aplicáveis as regras dos artigos 562º e 566º do Código Civil (v. neste sentido Ac. Do STJ de 6/10/16, e Acs. deste Tribunal de 27/10/16 e de 9/2/17, todos em www.dgsi.pt ).
Assim, por força dessas normas, o lesado deve ser colocado na situação em que se encontrava antes da lesão, devendo haver lugar à reconstituição natural, a não ser nos casos em que esta não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Pois, sendo a responsabilidade civil uma modalidade da obrigação de indemnizar, que visa eliminar o dano ou prejuízo reparável, em consagração do princípio da restauração ou reposição natural, estipula-se no artigo 562º, do Código Civil (CC), que “quem estiver obrigado a reparar um dano, deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, assumindo, porém, a indemnização em dinheiro carácter subsidiário, enquanto sucedâneo, como acontece quando não seja possível a reconstituição da situação anterior à lesão, isto é, a reposição das coisas no estado em que estariam se não se tivesse produzido o dano, mas, também, quando não repare, integralmente, os danos ou seja, excessivamente, onerosa para o devedor, em conformidade com o disposto pelo artigo 566º, nº 1, do mesmo diploma legal – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª edição, Almedina, 2011, 905 e 906; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 576 e 577; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, reelaborada, Almedina, 2006, 770 a 772.
Como tal, tendo sido danificado o veículo da autora, esta, em princípio, tem direito a que o lesante lhe restitua um veículo idêntico ou, então, que proceda à sua reparação, se tal for possível, sendo que a reparação do bem danificado, em consequência do acidente, constitui a forma de indemnização, por reposição natural, e não de indemnização por equivalente.
A tudo isto acresce o facto de não se poder concluir que, com a missiva remetida à A. em que a Ré refere estar ‘em condições de assumir a responsabilidade dos prejuízos dele resultantes’ possa ser entendido como marco do momento em que a empresa de seguros colocou à disposição do lesado o pagamento da indemnização, dado que aí nada é referido quanto ao valor que se dispõe a pagar por todos os danos ou mesmo só pela perda total do veículo imobilizado.
Por outro lado, mesmo que esse valor se reduzisse ao valor indicado na missiva anterior, sempre o lesado não estaria obrigado a aceitar esse valor, quando considerasse não ressarci-lo do respectivo dano decorrente da imobilização da sua viatura, por se entender, para além do mais, que o Tribunal não está vinculado à aplicação das normas do mencionado diploma.
Concretamente, no caso em apreço, certamente, que a lesada não seria ressarcida do prejuízo verificado no seu veículo, se viesse a receber, em pagamento, o seu valor venal, deduzido do valor dos salvados, dado que não foi sequer alegado e provado que com esse valor seria possível adquirir um outro com idênticas características que satisfizesse as necessidades da A.
De qualquer das formas sempre se teria de entender que a falta de aceitação da prestação pela A. enquanto credora, por justificada, não a faria incorrer em mora (v. art. 813.º do C. Civil e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anot., vol II, pág. 84), tanto mais que não estava obrigada a aceitar um montante que só a compensava em parte pelo dano sofrido (v. 763.º, n.º 1 do C. Civil), tal como se entendeu no acórdão proferido neste tribunal com o n.º 474/13.0TBFAF.G1, publicado no site da dgsi, subscrito pela presente relatora como adjunta.

Acresce que, a este respeito, conforme enuncia Abrantes Geraldes (Indemnização do Dano da Privação do Uso), em conformidade com o entendimento que maioritariamente vem sendo seguido, a privação é geradora de dano ou prejuízo e a privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar - uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem nos termos genericamente consentidos pelo art.º 1305º, do CC.
Pois, a falta de reparação ou quando esta não seja viável pela sua grande onerosidade, não retiram ao lesado o prejuízo que sofreu pela privação do veículo, pelo menos até à data em que receba da seguradora a indemnização correspondente, na medida em que, só nesse momento, é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que substitua o que foi danificado.
Nessa medida, há que ter em conta que se está perante um dano sujeito a evolução expansiva que vai aumentando com o tempo até à entrega do veículo reparado ou do seu valor, podendo, como tal, ser mesmo superior a este.
À luz da teoria da causalidade adequada, os danos posteriores que se verificarem eventualmente até à resolução do litígio (com o pagamento da indemnização relativa à perda total ou ao custo da reparação) não deixam de ter como causa adequada o facto/evento determinante do acidente, pelo que, há que ter em conta que é ao lesante (ou à sua seguradora) que compete repará-los o mais depressa possível, de modo a que estes se não agravem, sem prejuízo de poder alegar e provar que a demora, com a maior extensão temporal daquele período, se ficou a dever à recusa — injustificada — do lesado em aceitar o veículo de substituição disponibilizado, a indemnização em dinheiro oferecida ou a reparação proposta, o que, manifestamente, não se verifica no caso em apreço.
Assim, provando-se, como se provou nos presentes autos, que a A. teve de recorrer ao aluguer de um veículo ligeiro, no que despendeu a quantia de €1.313,09, tem de ser ressarcida pela Ré do dano que teve resultante da privação da sua viatura.
Direito esse que não se considera integrar um qualquer abuso da sua parte, na medida em que, se se contabilizasse o montante diário que é fixado segundo os critérios jurisprudenciais que têm vindo a ser seguidos em casos como o dos autos (e que a título de exemplo se aponta o Ac. do STJ de 09.03.2010, disponível em www.dgsi.pt, em que o valor considerado foi de €10,00 euros diários) sempre esse valor, até à data, seria muito superior ao do aluguer de que se socorreu para colmatar a privação decorrente do facto de ter ficado sem poder utilizar o seu veículo.

Já quanto aos demais danos, quer referentes ao valor que deixou de auferir em consequência do facto de não ter podido exercer a sua actividade, como o fazia até à data do acidente, pelo facto de não ter o seu veículo e não dispor de recursos para suportar o custo de um outro veículo, quer referentes ao valor dos produtos que ficaram danificados, por não se dispor de elementos susceptíveis de concretizar a indemnização devida por tais danos sofridos pela A., mesmo com recurso à equidade, relega-se para execução de sentença, ao abrigo do disposto no art. 609.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, a sua fixação.


*

VI – Decisão

Pelo exposto, nos termos supra referidos, os Juízes da 2.ª Secção Cível, deste Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela A., condenando, em consequência, a Ré a pagar à A. a quantia de 5.463,09 (cinco mil quatrocentos e sessenta e três euros e nove cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, bem como no pagamento do que vier a ser liquidado quanto aos demais danos supra mencionados.
Custas por A./Apelante e Ré/Apelada na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.
*
TRG, 9.11.2017

(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária)


Maria dos Anjos S. Melo Nogueira

Desembargador José Carlos Dias Cravo

Desembargador António M. A. Figueiredo de Almeida