Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5843/15.8T8BRG.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
SEGURO DE VIDA
ÓNUS DA PROVA
DECLARAÇÕES INEXACTAS DO SEGURADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Na reapreciação da matéria de facto, a Relação, não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, avalia livremente todas as provas carreadas para os autos, valorando-as e ponderando-as com recurso às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, no sentido de formar a sua própria convicção.

II - Os relatórios médicos são documentos particulares, da autoria dos clínicos que os elaboraram e assinaram, neles vindo identificadas doenças manifestadas pelos sintomas por estes observados aquando das consultas. Não sendo, pois, da autoria do Autor, e não contendo qualquer declaração pessoal deste, (o que exclui a previsibilidade legal de ter sido feita directamente à Ré) os dizeres de tais relatórios médicos não constituem, pois, uma confissão, no sentido técnico-jurídico definido pelo art.º 352.º do C.C..

III - Cabe à seguradora o ónus da prova de que o segurado ou o tomador do seguro, quando subscreveu a proposta de seguro e respondeu ao questionário clínico apresentado, tinha conhecimento de que padecia da doença que o vitimou, ou de que exarou nessa resposta declarações falsas ou reticentes de factos ou circunstâncias dele conhecidas, susceptíveis de influir na formação do contrato e suas condições.

IV – Enquanto circunstâncias proporcionadoras da exacta apreciação do risco, as declarações inexactas consistem na declaração de factos ou circunstâncias que não correspondem à realidade, e a reticência consiste em silenciar o que se sabia e se tinha o dever de dizer.

V – A avaliação do que sejam declarações inexactas ou omissões relevantes, determinantes do regime de invalidade do negócio, terá de ser feita caso a caso.

VI – Se o proponente sofreu um episódio de uma doença do qual saíu completamente curado, sem recidivas nem sequelas, os sete anos que decorreram entre este episódio e a assinatura da proposta de seguro são justificativos, à luz da experiência comum, que ele o tenha desvalorizado e não tenha, sequer, representado que houvesse interesse em mencioná-lo no questionário médico que lhe foi apresentado, o que afasta, pelo menos, a negligência consciente.
Atendendo à cura total daquele episódio de doença, que não deixou sequelas, não há justificação, à luz do critério da boa fé, para considerar a omissão como relevante.

VII – Numa situação de incapacidade permanente global para o trabalho, de grau abrangido pela apólice, terá de ser com referência à data que foi determinada como a do início da incapacidade que a Seguradora há-de cumprir a sua obrigação contratual, pagando as prestações do empréstimo bancário vencidas a partir dessa data, até atingir o capital seguro.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- JOSÉ e MARIA, residentes na …, freguesia de …, município de Braga, intentaram a presente acção declarativa, sob a forma comum contra “X – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, com sede em Lisboa, pedindo a condenação desta a: a) pagar ao Banco A, na qualidade de tomadora do seguro e beneficiária, do capital em dívida dos empréstimos contraídos por eles, Autores, junto desta, a que foram atribuídos os números 017102646...; 017102646...; e 017102646..., os quais, à data da propositura da acção, ascendiam à importância de € 91.103,77, por forma a extingui-los; b) pagar-lhes, a eles Autores, a totalidade dos valores por estes liquidados ao Banco A, a partir da data da declaração de invalidez do Autor – 31 de Março de 2011 – que totalizam € 43.711,71; c) a pagar-lhes, a eles Autores, os valores das prestações que se forem vencendo na pendência da acção e que paguem ao credor Banco A; d) mais pediram que sobre as quantias que lhes sejam devidas acresçam juros de mora contados desde a citação até integral pagamento.
Fundamentam a sua pretensão no contrato de seguro do ramo vida que celebraram com a Ré, que garante a situação de invalidez que o Autor padece desde 2011.
Contestou a Ré alegando que o Autor não lhe remeteu os elementos clínicos de que necessitava para tomar posição sobre a situação participada, e arguiu a anulabilidade do contrato de seguro por o Autor ter omitido, de forma consciente, informações determinantes para a avaliação do risco, pois que à data da celebração do contrato padecia já da doença que lhe veio a determinar a incapacidade alegada. Acrescenta que caso, à data do preenchimento da proposta de seguro, tivesse tomado conhecimento da real situação clínica do Autor, teria recusado celebrar o contrato ou tê-lo-ia aceite com outro conteúdo.
Conclui, assim, que tendo o Autor prestado falsas declarações aquando da elaboração da proposta de seguro, se deve considerar o contrato anulado.
E com estes fundamentos pede seja julgada a acção improcedente com a sua absolvição do pedido.

Os autos prosseguiram os seus termos vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção totalmente procedente por provada, condenou a Ré a pagar:

A) Ao Banco A, na qualidade de tomadora do seguro e beneficiária, do capital em dívida dos empréstimos números de 017102646..., 017102646... e 017102646... que, na data da propositura da ação ascendem a € 91.103,77 (noventa e um mil cento e três euros e setenta e sete cêntimos), por forma a extinguir os empréstimos concedidos;
B) Aos autores a totalidade dos valores por estes liquidados ao Banco A, a partir da data da declaração de invalidez - 31 de Março de 2011- que na data da propositura da ação totalizam € 43.711,71 (quarenta e três mil setecentos e onze euros e setenta e um cêntimos) bem como o valor das prestações que se forem vencendo na pendência da ação e que sejam pagas pelos Autores ao credor Banco A, acrescida dos juros de mora contados desde a citação até integral pagamento.
Inconformada, traz a Ré o presente recurso pretendendo que seja revogada a sobredita decisão, e ela, Ré, absolvida.
Contra-alegaram os Autores propugnando para que se mantenha o decidido.
O recurso foi recebido como de apelação com efeito devolutivo.
Colhidos que foram os vistos legais, cumpre decidir.
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II.- A Apelante/Ré funda o recurso nas seguintes conclusões (omissis quanto às que são transcrições de meios de prova e simples repetições de argumentos já enunciados)(1):

3. Entende a R. que a matéria de facto dada como não provada merece resposta positiva por diversas razões uma delas (ponto 1 e 2) porque tais factos foram objeto de confissão por parte do A., já que constam dos relatórios médicos juntos ao autos pelo próprio (Doc. 5, informação médica sem numeração, Doc. 4-1, Doc. 4 -2 Doc. 4 -3 Doc. 4, Doc 5 e Doc. 6 todos parte integrante do boletim de informação médica junto aos autos pelo A.) pelo que nem este nem o tribunal podem negar o respetivo conteúdo nem teor.
5. Ou seja, analisados todos os documentos constantes do boletim de informação médica, conclui-se que, pelo menos, desde 1995, o A. padece de problemas de saúde graves e que fruto de uma personalidade ansiosa, somatogênica, acabou por ser internado por sintomas psicossomáticos nomeadamente por uma colite ulcerosa infeciosa.
6. Mais se conclui que essa personalidade ansiosa/depressiva foi agravada em 1999, fruto do acidente que o filho sofreu.
7. À matéria constante dos relatórios respondeu o Dr. M. M., psiquiatra que assistiu o A. desde 2007, que apesar das nítidas dificuldades de comunicação fruto de um AVC de que foi vítima, lembrava-se do paciente, de o ter acompanhado e de que o mesmo sofria de depressão desde 95, confirmou, ainda ter escrito e assinado o relatório constante do verso do supra referido boletim de informação médica,
8. Também o Dr. JF médico de família do A. desde 1987, até se reformar em Maio de 2013, confirmou que o A. teve uma colite ulcerosa infeciosa, e que na sequência do acidente do filho este ficou triste e deprimido e que um quadro depressivo pode dar origem a muitos sintomas diversos, inclusive ficamos com as defesas diminuídas o que pode originar um processo inflamatório.
9. O mesmo médico lembra-se que na sequência do acidente do filho o A. ficou doente, mais triste e que foi acompanhado por um psiquiatra já em 1999.
10. O A. foi ainda assistido por um médico gastroenterologista que o acompanhou desde 1992 até 1997 que afirmou que assistiu o A. em episódios relacionados com as seguintes doenças: 1992 Esofagite de refluxo, 1995 episódio de colite infeciosa com internamento de 8 dias, 1997 fissura anal, não tendo sido capaz de afirmar de forma clara que o A. ficou curado. Tendo afirmado que a esofagite pode recorrer.
11. A propósito da cura das patologias de que padeceu, nomeadamente da colite ulcerosa infeciosa cumpre remeter para o relatório de alta do internamento, assinadas pelo gastroentologista JB, onde se verifica que o A. teve alta por “melhorado “ com indicação para medicação e acompanhamento médico, ou seja efetivamente após o internamento o A. não ficou curado, sendo certo que após estas consultas o A. desaparecia, pressupondo o médico que se ficaria bem …
14. Ou seja, aquando a celebração das apólices o A. omitiu que desde 1992 sofria de diversas patologias do foro gastrointestinal, algumas das quais só foram conhecidas pela R. na sequência da prova produzida nos presentes autos, das quais segundo os relatórios médios que o A. juntou aos autos nunca mais se curou.
15. Acresce dizer que, quer a esofagite de refluxo, quer a colite ulcerosa são doenças crónicas que relacionadas com o sistema nervoso e como doenças crónicas que não se curam, apenas se controlam, com medicação conforme resulta dos depoimentos das testemunhas JB e da Dra. Joaquina acima transcritos.
17. Demonstrado ficou ainda pelos depoimentos prestados pela Dra. Joaquina e pelo Dr. M. que se a R. tivesse tido conhecimento de todas estas patologias, (…) a cobertura de invalidez por doença não seria aceite.
20. Quanto à questão do conhecimento por parte do A. das patologias de que sofria também os depoimentos da Dra. Joaquina e do gastroenterologista Dr. JB, foram demonstrativos de que o doente na altura, teve conhecimento de que teve estas doenças
25. Ora, o que está em causa na presente apelação é saber se o A., ao responder ao questionário da proposta de seguro, produziu declarações inexatas ou reticentes.
26. As declarações inexatas consistem em declarar factos que não correspondem à realidade e a reticência em calar o que se sabe e se tem o dever de declarar para a exata avaliação do risco.
27. O A. preencheu o questionário clínico cuja cópia está junta aos autos, sendo que este questionário é um instrumento, a prestar pela pessoa segura, imprescindível para a R., tendo em vista a avaliação do risco seguro importante até por questões de resseguro
28. No referido questionário clínico, bem como no questionário formulado pela médica aquando da entrevista clínica, o A. declarou, respondendo negativamente a todas as questões que lhe foram feitas sobre antecedentes pessoais.
30. Sendo certo que se a R. tivesse tido conhecimentos das patologias trazidas à luz do dia no decurso do presente processo judicial, teria agido de outra forma, teria solicitado relatórios dos médicos e face às patologias detetadas, não aceitaria a cobertura de invalidez permanente,
40. Recai sobre o segurado o ónus de não encobrir qualquer fator que possa contribuir para a apreciação do risco por parte da seguradora e se o fizer, tendo conhecimento de tais factos que de alguma maneira possam influir sobre a formação do contrato e as condições do mesmo, perde o direito à contraprestação da seguradora, não sendo necessário que tenha agido com dolo (cfr. CJ, CCII, V, 99 e José Vasques “O contrato de seguro”, pag. 211.235, Ac. RP, 06/11/2007 (JTRP 00040736), Ac. RP de 12/02/2008 (JTRP 000 41 107), Ac. TP de 06/11/2006 (JTRP 00039 687), Ac. RP de 20/12/2005 (JTRP 000 38 644), Ac. RP de 15/06/2004 (JTRP 000 37 009), ac. RL de 13/03/2007, Ac. RL de 08/02/2007, Ac. RL de 17/02/2005, Ac. do STJ de Julho de 2006, CJ XIV, II, 151, Ac. do STJ de 27/05/2008, CJ XVI, II, 81.
42. A caracterização do seguro como contrato de boa fé não pretende apenas reforçar a ideia de que nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé (artº. 227º, n.º 1 CC), mas sublinhar a necessidade absoluta de lealdade do segurado para manter a equidade da relação contratual, uma vez que a seguradora é normalmente obrigada a confiar nas suas declarações, sem poder verificá-las aquando da subscrição. Na formação do contrato, a declaração do risco, no sentido da declaração do proponente que permitirá à seguradora avaliar o risco e calcular o prémio, integra a formação do contrato de seguro.
43. Basta que a proponente do seguro omita, falseie as suas declarações, para que o contrato seja nulo, ou anulável, não estabelecendo aquele artº 429º do CComercial o requisito da existência do nexo de causalidade entre os factos omitidos ou entre estes e o sinistro.
44. Com efeito, o incumprimento do seu dever pré-contratual de boa fé por parte do tomador do seguro, ora recorrido – cfr. artº 227º do CC -, e, como tal a anulabilidade do contrato, verifica-se independentemente da circunstância daquela omissão e/ou falsidade ter nexo de causalidade com a causa da morte ou invalidez (cfr. por ex. Ac. da RL de 12/03/2009, in CJ de 2009, Tomo II, pág. 74, do STJ de 21/04/2009 (proc. 636/09), e de 27/05/2008 (proc. 1373/08-1), entre outros.
47. Trata-se de um critério objetivo, que impõe apenas a análise dessas declarações a fim de se determinar se, interpretadas por um declaratário normal colocado na situação do declaratário real que é a ré seguradora, dispõem de tal susceptibilidade. Sobre a ré seguradora, por se tratar aqui de matéria de exceção perentória na medida em que as declarações inexatas ou reticentes se traduzem num facto impeditivo ou extintivo da validade do contrato de seguro (art.º 493º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil), recai, em consequência, apenas o ónus da prova (art.º 342º, n.º 2, do Cód. Civil) de lhe terem sido prestadas declarações inexatas ou reticentes que, objetivamente analisadas, se conclua serem dotadas dessa susceptibilidade de formação da sua vontade contratual em sentido diferente do que foi adotado perante as declarações que efetivamente lhe foram prestadas.” – Ac. STJ 24 de Abril de 2007 proc. nº 07S851.
50. Ainda que à data da contratação do seguro o A. não tivesse, ainda, a noção de que sofria de depressão, o que é de todo impossível uma vez que o referiu nas consultas com o psiquiatra, a verdade é que “Não é exigível, como pressuposto da anulabilidade do contrato de seguro, que a doença omitida na declaração tenha sido a causa directa e necessária do sinistro, apenas se exige que o segurado soubesse, quando prestou as declarações, que sofria de doença susceptível de influenciar a decisão da seguradora em contratar e que a omissão ou falsa declaração ocorridas sejam suscetíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar.
53. Dispõe o artº 287º, nº 2 do CC, que enquanto o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de ação como por via de execução.
54. A sentença em crise violou, entre outras disposições, os artºs. 227º, 247º, 251º, 252º, 254º, 256º e 257º, 287º, 406º, 762º, todos do Código Civil, e 429º do Código Comercial.
55. Ainda que assim se não “intendesse”, nunca a R. poderia ser condenada ao pagamento da indemnização com efeitos a partir da data da declaração da invalidez, já que no presente caso se verificou existir mora do credor.
56. Já que com a participação do sinistro não foi remetida à R. toda a documentação necessária a uma cabal regularização do sinistro. A este propósito remetemos o depoimento do Dr. M. referindo-se ao facto de não ter sido enviada qualquer documentação adicional que permitisse a regularização do sinistro, sendo certo que parte da documentação recebida estava ilegível.
57. Ora perante a ausência da remessa de elementos e de documentação legível a R. encontrava impossibilitada de resolver o sinistro termos em que verificando-se a mora do credor, só a partir da presente ação se verificariam estar reunidos os pressupostos para o cumprimento do contrato.
58. Pelo que a eventual obrigação de o pagamento de uma indemnização não poderá reportar à data da incapacidade mas à data em que foi possível conhecer os factos (ação) já que o cumprimento se deveu a conduta (omissa) do A. em remeter à seguradora todos os elementos necessários a uma correta averiguação das circunstâncias do sinistro.
59. Neste ponto a sentença de que se recorre violou o disposto nos Artº 813º e ss do Código Civil.
Deste modo impõe-se alterar a decisão relativamente ao contrato de seguros dos autos, ou, sem prescindir alterar a data em que a R. estaria obrigada ao pagamento, que nunca poderá ser anterior à entrada da presente ação em juízo, já que
A – A sentença em crise violou, entre outras disposições, os artºs. 227º, 247º, 251º, 252º, 254º, 256º e 257º, 287º, 406º, 762º, todos do Código Civil, e 429º do Código Comercial. Sem Prescindir
B- A sentença violou o disposto nos Artº 813º e ss do código civil, pelo que a data a partir da qual a R. estaria obrigada a qualquer pagamento deverá ser alterada.
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III.- Nas suas contra-alegações o Autor recusa ter confessado o que quer que fosse, e afirma que ficou totalmente curado da colite ulcerosa infecciosa de que foi acometido em 1995, nunca havendo padecido de qualquer doença ou doenças graves, não existindo qualquer nexo de causalidade entre a doença que determinou a invalidez e os episódios clínicos, normais, que teve ao longo da vida.
Afirma ainda ter facultado à Apelante a documentação essencial pelo que a sua recusa em pagar o capital seguro, seja por demora burocrática ou por entendimento diferente do seu não é causa de mora da sua parte.
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IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Como se extrai das conclusões acima transcritas, cumpre:
- reapreciar a decisão da matéria de facto quanto aos segmentos fácticos impugnados;
- reapreciar, sendo caso disso, a decisão de mérito, nos dois segmentos pretendidos pela Apelante: se é devida a obrigação e, sendo-o, a partir de que data se deve considerar vencida.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

V.- 1.- A Apelante insurge-se contra a decisão da matéria de facto, quanto à facticidade, julgada “não provada”, constante dos números 1; 2; e 3, pretendendo ver invertido o sentido da decisão, para o que invoca os relatórios médicos juntos aos autos pelo próprio Autor, e os depoimentos testemunhais que refere, transcrevendo, no corpo das alegações, as passagens de cada um desses depoimentos que, a seu ver, suportam a decisão que propõe, fazendo a indicação dos tempos da gravação.
Cumpriu, pois, a Apelante com os ónus impostos pelo art.º 640.º do C.P.C., não havendo, assim, obstáculo legal à reapreciação da decisão quanto aos pontos de facto impugnados.
2.- Na reapreciação da matéria de facto, a Relação, não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, avalia livremente todas as provas carreadas para os autos, valorando-as e ponderando-as com recurso às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, no sentido de formar a sua própria convicção.
As regras e princípios por que se rege a reapreciação da prova são os mesmos que presidiram ao julgamento na 1.ª Instância, devendo, por isso, a Relação ter em consideração os factos admitidos por acordo, os que estiverem provados por documentos (que tenham força probatória plena) ou por confissão, desde que tenha sido reduzida a escrito, extraindo dos factos que forem apurados as presunções legais e as presunções naturais, advindas das regras da experiência, sendo que o princípio básico continua a ser o da livre apreciação das provas relativamente aos documentos sem valor probatório pleno, aos relatórios periciais, aos depoimentos das testemunhas, e também às declarações de parte – cfr. art.os 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.) e 607.º, n.os 4 e 5 e ainda 466.º, n.º 3 do C.P.C..
Poderá ainda a Relação recorrer às presunções naturais, nos termos do disposto no art.º 349.º do C.C.
Como referem Antunes Varela et Al., “as presunções naturais, judiciais ou de facto são aquelas que se fundam nas regras práticas da experiência, nos ensinamentos havidos através da observação (empírica) dos factos”. Admitindo prova em contrário, ela “dirige-se contra o facto presumido, visando convencer o juiz de que, não obstante a realidade do facto que serve de base à presunção, o facto presumido não se verificou …” (in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 486-488).
Complementarmente àquelas regras e princípios de direito material, cumpre ainda ter presente o princípio de direito adjectivo consagrado no art.º 414.º do C.P.C., que rege sobre a interpretação da dúvida insanável acerca da realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, que se resolvem contra a parte a quem o facto aproveita.
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VI.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:

a) julgou PROVADO que:

1. Os autores propuseram ao “Banco A, S.A.”, a concessão de três empréstimos para a aquisição de habitação própria e permanente e para investimentos múltiplos a esta associados.
2. O Banco A aceitou a concessão dos empréstimos aos autores.
3. O primeiro e segundo contrato de empréstimo, no valor de, respetivamente, € 68.011.43 e € 48.882,19, foram formalizados em 27 de Março de 2002.
4. Por sua vez, a formalização do terceiro contrato de mútuo, no valor de € 50.000,00 reporta-se à data de 21 de Março de 2005.
5. Para segurança do reembolso do capital mutuado, dos juros e demais despesas, ao “Banco A, S.A.” exigiu a constituição de hipoteca sobre o prédio urbano composto por casa sobradada, destinada exclusivamente a habitação, sita no lugar …, freguesia de …, Braga, inscrito na matriz respetiva sob o artigo …, descrito na Conservatória sob o número ….
6. Assim como exigiu que fosse efetuado um seguro de vida, por via do qual, em caso de morte ou de invalidez total e permanente das pessoas seguras, ao Banco A teria direito ao pagamento imediato do valor correspondente ao capital mutuado e seguro, ainda não amortizado, a efetuar pela Ré “X – Companhia de Seguros, S. A.”.
7. Para cumprimento do acordado, foi celebrado um contrato de seguro vida grupo, titulado pela apólice n.º …, em que é Seguradora a “X – Companhia de Seguros, S.A.” – ora Ré, - o tomador do seguro e beneficiário irrevogável ao Banco A, S.A.. e as pessoas seguras os autores, responsáveis pelo pagamento dos prémios.
8. Deste contrato de seguro ramo vida resultou como garantido o pagamento ao Banco A, S.A. dos capitais seguros pelas coberturas contratadas correspondentes à totalidade ou a parte da dívida do aderente, e o pagamento aos Beneficiários de eventual capital remanescente, nos termos da cláusula 2.3 da apólice de seguro.
9. As coberturas contratadas foram: Morte por Doença e Acidente, Invalidez Total e Permanente de grau igual ou superior a 66,6% por Doença e Invalidez Total e Permanente de grau igual ou superior a 50% por Acidente (cláusula 2.4 da apólice de seguro).
10. Nos termos do art. 3º das condições particulares do contrato de seguro, na garantia de invalidez total e permanente por doença, entende-se por inválida a pessoa segura que apresente um grau de desvalorização igual ou superior a 66,6%, de acordo com a tabela nacional de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais em vigor na data da desvalorização sofrida pela pessoa segura, não entrando para o cálculo quaisquer capacidades ou patologias pré-existentes.
11. Em meados de Janeiro de 2007, o autor marido começou a manifestar uma sintomatologia compatível com problemas do foro psiquiátrico, por força da qual recorreu a ajuda de um profissional de psiquiatria que lhe prestou o devido acompanhamento e lhe instituiu a medicação.
12. O quadro clínico do autor agravou-se progressivamente, e em dezembro de 2010 este apresentava um surto depressivo grave com reação hipocondríaca centrada num discurso alucinatório delirante fruto da involução.
13. O autor esteve internado durante 10 (dez) dias devido a agitação psico-motora, labilidade emocional, insónia, ruminações digestivas vinculadas ao delírio e alucinações cinestésicas.
14. Em meados de março de 2011 o autor entrou numa depressão com perda de memória, falta de concentração e pensamento embotado com delírios voltados para a perseguição.
15. Em junho de 2011, o autor abandonou a sua atividade profissional, por se sentir incapaz de a exercer com a lucidez e discernimento necessários para o efeito.
16. O quadro clínico do autor continuou a agravar-se progressivamente, a ponto de este apresentar um discurso pobre, incoerente, vitimizado, com ideias de suicídio e de vazio existencial.
17. O autor apresentou junto do Instituto da Segurança Social, pedido para que lhe fosse atribuída uma pensão por invalidez.
18. Após a sujeição a vários exames e avaliação efetuada pelo Sistema de Verificação de Incapacidades, o pedido foi deferido, tendo sido atribuída ao autor uma reforma por motivo de invalidez relativa, com início fixado em 31 de Março de 2011
19. Em 19 de junho de 2014 o autor foi sujeito a uma Junta Médica, que lhe fixou um grau de incapacidade de 78%, com carácter definitivo e sem possibilidade de melhoria e reportada à data da atribuição da invalidez relativa: 31 de Março de 2011.
20. Em 15 de setembro de 2014 foi feita participação à Ré X – Companhia de Seguros, S.A do sinistro ocorrido em face da situação clínica do autor, pela qual se requereu o pagamento do capital seguro e em dívida à data da declaração de invalidez, 31 de Março de 2011.
21. Aquando da referida participação foi junto atestado médico de incapacidade multiusos pelo qual foi fixada uma incapacidade permanente global de 78% (setenta e oito por cento).
22. A ré X – Companhia de Seguros, S.A., na sua resposta de 25 de Novembro de 2014, enviou ao autor um Relatório de Avaliação de Incapacidade, requerendo o seu preenchimento pelo Médico Assistente do autor.
23. O qual não foi remetido, por entender o autor não ser este relatório elemento necessário para validar a situação de invalidez.
24. Por comunicação de 25 de março de 2015 e de 29 de junho de 2015, a ré X – Companhia de Seguros, S.A. informou que por não terem sido facultados elementos essenciais para o prosseguimento do processo de sinistro, na ausência de tais elementos se justificava o encerramento.
25. Consta do art. 8º, nº 2.2 das condições gerais, que constituem obrigações da pessoa segura, em caso de invalidez: “Promover o envio a médico designado pelo segurador de relatório do médico assistente que indique as causas, data de início, a evolução e as consequências da lesão corporal e ainda a informação sobre o grau de invalidez verificada e provável duração (…)”.
26. O autor esteve internado no período compreendido entre 13.06.1995 e 20.06 1995, por colite ulcerosa infecciosa.
27. Da informação médica do autor de 24 de Março de 2011, o médico refere que o autor “sofre de patologia psíquica de longa evolução que venho a acompanhar desde 2007 por uma sintomatologia ansioso/depressiva que, em tempo se cristalizou por compensação dos sintomas. A personalidade ansiosa (…) já em 1995 lhe valeu internamento por sintomas psicossomáticos (…).
28. No preenchimento do denominado “Questionário Clínico” junto às propostas de adesão às apólices de grupo em 22.03.2002, 27.03.2002 e 17.02.2005, foi aposta em todas as quadrículas respeitantes à rubrica “ANTECEDENTES PESSOAIS – indique se sofreu ou sofre de qualquer das seguintes perturbações ou doença”, inclusive naquelas que se destinam a “Doenças dos intestinos (diarreia frequentes, prisão de ventre, colite) e Doenças nervosas (depressão, epilepsia, convulsões)”, a cruz na quadrícula “Não”.
29. O autor à data da concessão do crédito hipotecário e da adesão ao seguro de grupo foi submetido aos exames médicos exigidos pela ré.
30. À data da propositura da ação, o capital em divida ao Banco A, dos empréstimos contraídos com os números 017102646...; 017102646... e 017102646... ascendia a € 91.103,77.
31. Desde a data da declaração de invalidez, 31 de Março de 2011, até à data da propositura da ação os autores pagaram ao Banco A € 43.711,71.

b) julgou NÃO PROVADO que:

1. À data do preenchimento das propostas de seguro, o autor padecia de distúrbios de personalidade ansiosa/depressiva.
2. O autor tinha conhecimento de que padecia destas perturbações e omitiu-as do questionário clínico que preencheu.
3. A ré não teria aceitado celebrar o contrato se tivesse conhecimento dessas patologias, ou tê-lo-ia celebrado com outro conteúdo.
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VII.- Na fundamentação da decisão de facto o Tribunal a quo refere, de forma minuciosa, os elementos probatórios que alicerçaram a sua convicção.
Assim, enunciando a “questão principal” que “consiste em saber se o autor à data da celebração das propostas de seguro (27 de Março de 2002 e 21 de Março de 2005), padecia de distúrbios de personalidade ansiosa/depressiva e se tendo conhecimento de que padecia destas perturbações as omitiu deliberadamente do questionário que preencheu”, concluiu que a resposta a esta questão “não poder ser senão negativa”, em face “do depoimento das testemunhas JF, médico de família do autor de 1987 até 2013, JB, médico gastrenterologista e PC, filho do autor, conjugados com os elementos clínicos juntos aos autos”.
Depois de reproduzir, por súmula, cada um daqueles depoimentos, refere ainda o Tribunal a quo que “Foi ouvido o médico assistente de psiquiatria, M. M., que acompanhou o autor desde 2007. Contudo, foi manifesto não ter a testemunha aptidão mental (ao que foi possível apurar em virtude de um AVC) para depor sobre os factos que constituíam objeto da prova.”.
Da análise da informação médica relativa ao Autor, constante de fls. 138 a 143, tirou o Tribunal a quo a conclusão da impossibilidade da afirmação de “pré-existência da doença, muito menos que aquando da celebração dos contratos de seguro, o autor era conhecedor da patologia e que omitiu tal facto no boletim de adesão ao seguro”.
Relativamente aos factos não provados, a decisão radicou “na circunstância de se ter provado realidade distinta da alegada pela ré, quanto a uns e, quanto a outros, na insuficiência probatória para que, com a segurança que se impõe, se pudesse dar tal factualidade como provada.”.
Defende a Apelante que os factos constantes dos números 1 e 2 (que “à data do preenchimento das propostas de seguro o autor padecia de distúrbios de personalidade ansiosa/depressiva” e que o mesmo autor “tinha conhecimento de que padecia destas perturbações e omitiu-as do questionário clínico que preencheu”), “foram objecto de confissão por parte do A. já que constam dos relatórios médicos juntos aos autos pelo próprio” pelo que “nem este nem o tribunal podem negar o respectivo conteúdo nem teor”(cfr. conclusão 3).
De acordo com a definição conceptual constante do art.º 352.º do C.C., a confissão é “o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária”.
Nos termos do art.º 358.º do mesmo Cód., a confissão extrajudicial, ou seja, “aquela que é feita por algum modo diferente da confissão judicial”, que é a confissão feita “em juízo”, nos articulados ou em qualquer outro acto do processo (cfr. art.os 355.º e 356.º do referido Cód.) feita “em documento autêntico ou particular”, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos, só tendo força probatória plena se “for feita à parte contrária”.
Os documentos autênticos só fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora. Excluem-se daquela força probatória “os meros juízos pessoais do documentador”, que estão sujeitos à livre apreciação do julgador – cfr. n.º 1 do art.º 371.º do C.C..
Os documentos particulares cuja autoria, da letra e da assinatura, seja reconhecida faz prova plena “quanto às declarações atribuídas ao seu autor”.
Em todo o caso, salvo se a lei o dispensar (designadamente nos casos em que admite a confissão tácita), a declaração confessória tem de ser inequívoca.
Os relatórios médicos invocados pela Apelante são documentos particulares, da autoria dos clínicos que os elaboraram e assinaram, neles vindo identificadas doenças manifestadas pelos sintomas por estes observados aquando das consultas.
Como resulta claro, não são da autoria do Autor e não contêm qualquer declaração pessoal deste, (o que exclui a previsibilidade legal de ter sido feita directamente à Ré) não se vendo, pois, como possam ser tomados como confissão, no sentido técnico-jurídico, os dizeres constantes de tais atestados médicos.
Cumpre, pois, revisitar os depoimentos testemunhais que fundamentaram a convicção do Tribunal a quo e nos quais, de resto, também a Apelante se funda, ainda que interpretando-os de modo radicalmente diverso.
Ora, ouvidos atentamente os referidos depoimentos, feito o juízo de credibilidade sobre cada uma das testemunhas, tendo em consideração a sua razão de ciência e o modo como depuseram, atentas as afirmações que produziram, conclui-se não haver fundamento consistente o bastante para alterar a decisão, nos três segmentos fácticos impugnados.
Com efeito, a testemunha PC que, apesar de ser filho do Autor, convenceu ter sido sincero quando afirmou que o seu pai «nunca teve qualquer tipo de doença» e que quando ele, depoente, sofreu o acidente de viação, em 1999, o (seu) pai «é que me deu força. Acompanhou-me, levou-me ao hospital. Foi ele que me deu força».
A testemunha JF (Dr.), médico de família do Autor desde 1987 até 2013, afirmou também que o Autor «era uma pessoa perfeitamente normal». Antes do período da baixa de psiquiatria ele só fez «consultas vulgares de rotina. Nada mais», considerando-o «uma pessoa saudável». Relativamente à “colite ulcerosa infecciosa”, referida no documento do Hospital constante de fls. 139, disse ter sido «uma inflamação passageira do intestino» e que «foi tratada e ficou curada». Mais afirmou que por si não via motivo para “dar baixa” ao Autor «mas ele trazia uma carta de um psiquiatra de Famalicão a dizer que ele lhe dava baixa … e pronto», mas «antes disso ele nunca se queixou» - o documento de fls. 138, emitido pela Segurança Social, sob o título “Informação Médica” “Avaliação de incapacidade” também só regista o episódio de 1995 - “Relatório de Alta por Internamento”, ocorrendo a “1ª baixa” somente em “07/02/07”.
A testemunha JB (Dr.) foi o médico gastroenterologista que tratou o Autor: - em 1992 «a um problema de esofagite, relacionado com refluxo», referindo ser este «um problema muito frequente que não dá incapacidade»; - em 1995 «a um episódio de uma colite infecciosa. Fez um tratamento curto. Precisou de uma medicação a nível hospitalar. Tratou-se, ficou bem», acrescentando que «Posteriormente (o Autor) fez um exame de controlo e estava completamente curado»; - em 1997 viu-o «por causa de um problema insignificante: uma fissura anal, que se tratou, e depois disso não o voltei a ver». Questionado “se estes são problemas para comunicar à Seguradora?” respondeu de pronto «Não. São problemas ultrapassáveis», acrescentando ainda «Os problemas foram todos solúveis. Todos se resolveram». Reafirmando que (nenhum deles) «é um problema crónico. Todos eles foram situações temporárias que se trataram». Questionado “se a esofagite e a colite infecciosa podem ter tido origem nervosa?” respondeu que «a colite infecciosa não. Acontece a qualquer pessoa» e «a esofagite, uma pessoa nervosa, com arrotos fortes tem mais tendência para ter esofagite». Reafirmando que não considera nem uma nem a outra «com origem nervosa», acrescentou «Não lhes quero chamar doenças. Teve estes episódios», afirmando ainda que o Autor «não teve recidivas».
Certo que a testemunha Joaquina (Drª.) médica, que disse ter um contrato de prestação de serviços com a Apelante, sendo a responsável «pelo ramo vida há 25 anos», afirmou que «a colite ulcerosa não é uma doença curável», sendo antes «uma doença crónica do intestino. Para andar controlado tem que andar com medicamentos», reafirmando que para o Autor «estar controlado por esta patologia tem que haver medicação permanente».
Sem embargo, atendendo ao declarado pelos dois médicos acima referidos, julga-se que aquela testemunha estar-se-ia a referir a um estado da doença mais grave, com afectação, com carácter duradouro, do intestino.
Ora, não conhecendo ela o Autor e nunca o tendo observado clinicamente, aquela sua convicção não conseguiu sobrepor-se ao conhecimento directo dos dois médicos que trataram o Autor e o acompanharam ao longo dos anos, tanto mais que não deram motivos para se duvidar dos seus conhecimentos técnicos e científicos e da sua isenção.
Ouvido o depoimento da testemunha M. M. (Dr.) o psiquiatra que manuscreveu a “informação médica” de fls. 138v.º, a apreciação que dele se pode fazer é de todo coincidente com a do Tribunal a quo – devido a doença de que terá sido acometido, foi manifesta a sua incapacidade para alinhavar uma sequência de respostas minimamente coerente às perguntas que lhe foram colocadas, entrando em monólogos frequentes, sem sentido. Com clareza, confirmou que a letra do documento acima referido era sua e que “acompanhou” clinicamente o Autor “desde 2007”, acrescentando «era o filho que o trazia» referindo que «antigamente o filho é que era o cliente». Já não conseguiu explicar, porém, os fundamentos da associação que fez entre a colite ulcerosa e a “personalidade ansiosa” que refere na supramencionada “informação médica” (que está datada de “2011/24/03”), não tendo, por isso, sido possível confrontá-lo com a divergência manifestada pelo médico de família e pelo próprio gastroenterologista.
Confirma-se, pois, a decisão de facto quanto aos pontos 1 e 2, que se mantêm como “não provados”.
Outro tanto se decide quanto ao ponto 3 já que, quer a testemunha M., profissional de seguros, trabalhando para a Apelante há 29 anos, e a já referida (Drª.) Joaquina, havendo referido que «a cobertura por invalidez teria sido excluída», reportaram esta afirmação à «patologia psiquiátrica», de que se não provou que o Autor sofresse antes de 2007. Por outro lado, não vindo devidamente suportada aquela afirmação, porque o primeiro também colocou a hipótese de poder ocorrer (apenas) um aumento do prémio do seguro, e porque ambos manifestaram um forte comprometimento com a defesa dos interesses da Apelante, ficou a dúvida, que se revelou insanável, sobre qual a decisão que seria tomada se fosse conhecido o provado historial clínico do Autor.
Confirma-se, pois, a decisão de facto, recusando-se provimento à pretensão da Apelante.
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VIII.- É pacífico que a Apelante e o Autor celebraram um contrato comummente designado de seguro de vida, estando abrangida igualmente a invalidez.
Com efeito, nos termos do artigo 1.º das Condições Particulares, o contrato celebrado “cobre os riscos de morte e invalidez ligados a contratos de mútuo de crédito à habitação, garantindo o pagamento ao beneficiário designado do capital seguro em caso de morte ou invalidez total e permanente” (cfr. fls. 76v.º).
O contrato de seguro é um contrato sinalagmático e oneroso – dele emergem obrigações para ambas as partes e implica vantagens também para ambas.
É ainda um contrato aleatório já que a prestação da seguradora fica dependente de um evento futuro e incerto, o qual, a verificar-se, poderá ser de valor superior ao que o segurado suporta.
É ainda um contrato de adesão já que uma das partes limita-se a aderir às cláusulas que lhe são apresentadas, sem possibilidade de lhes introduzir alterações ou ajustamentos.
Enquanto contratos de adesão é-lhe aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais, consagrado no Dec.-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (com as alterações introduzidas pelos Dec.-Leis n.os 220/95, de 31/08; 249/99, de 07/07; e 323/2001, de 17/12).
Com efeito, a posição de fragilidade do tomador do seguro em relação à outra parte contratante, que tem quase o exclusivo da interpretação das cláusulas que, unilateralmente, propõe, impõe que se recorra a mecanismos de correcção que consigam introduzir algum equilíbrio.
E foi com a intenção de proteger os consumidores contra as cláusulas abusivas que o, à altura, Conselho das Comunidades Europeias aprovou a Directiva n.º 93/13/CEE, de 05/04/1993, com vista à uniformização do direito interno dos Estados-Membros, a qual, no art.º 5.º estabelece o princípio da interpretação mais favorável ao consumidor no caso dos contratos em que as cláusulas propostas estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, impondo ainda que a redacção dessas cláusulas seja “clara e compreensível” (in J.O. n.º L 095, de 21/04/1993).
É ainda a intenção de manter o equilíbrio possível entre os contratantes, pressuposto de um contrato sinalagmático, que o art.º 3.º, n.º 1 daquela Directiva classificou como abusiva qualquer cláusula contratual que “não tenha sido objecto de negociação individual” quando, “a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor”.
O risco é um elemento essencial do contrato de seguro e por isso, como escreve Calvão da Silva, “impõe-se a análise e avaliação do risco pela seguradora, na conclusão e no cumprimento do contrato. Daí a obrigação de o segurado ou tomador do seguro informar a seguradora na negociação do contrato e mesmo da evolução do risco na execução do programa negocial, valendo o princípio da ubérrima fides” (in “Rev.ª Legislação e Jurisprudª., ano 136º., 2006/2007, nº. 3942, pág. 168).
Também Filipe Albuquerque Matos, faz ressaltar aquela obrigação, escrevendo que, aceitando a seguradora “tornar o património do tomador do seguro indemne à imprevisibilidade registável em determinados sectores da actividade social”, os segurados “ao serem inquiridos pelas seguradoras acerca de certas características atinentes à pessoa e ou objecto segurado, têm o dever de informar correctamente a contraparte, na medida em que tais circunstâncias possam, de acordo com as regras normais da experiência, determinar um agravamento do tipo de risco garantido” (in “As Declarações Reticentes e Inexactas no Contrato de Seguro”, incluído no volume II, “ARS IUDICANDI”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, pág. 466).
Esta asserção está de acordo com o disposto no artº. 429º., do Código Comercial (C.Com.) (a ter em consideração atenta a data da celebração dos contratos de seguro: 22 e 27 de Março de 2002 e 17 de Fevereiro de 2005) que inclui na sua previsibilidade não só as acções, isto é, a produção de afirmações contrárias à verdade, como as omissões - a não comunicação de circunstâncias factuais que, pelas regras da experiência, sejam capazes de distorcer a vontade negocial.
Também o art.º 24.º da Lei do Contrato de Seguro (L.C.S.) (mais precisamente o Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, entrado em vigor em 01/01/2009), que dispõe sobre a “declaração inicial do risco”, impõe a obrigação ao segurado ou ao tomador do seguro de, “antes da celebração do contrato”, “declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador” (n.º 1).
Esta obrigação é igualmente válida para as circunstâncias “cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito” (n.º 2).
Estamos em presença de afloramentos concretos do princípio geral consagrado no art.º 227.º do Código Civil (C.C.), que impõe uma actuação de boa fé nas negociações pré-contratuais.
Cabe à seguradora o ónus da prova de que o segurado ou o tomador do seguro, quando subscreveu a proposta de seguro e respondeu ao questionário clínico apresentado, tinha conhecimento de que padecia da doença que o vitimou, ou de que exarou nessa resposta declarações falsas ou reticentes de factos ou circunstâncias dele conhecidas, susceptíveis de influir na formação do contrato e suas condições, enquanto relacionadas com a avaliação do risco a assumir (cfr., por todos, Ac. do S.T.J. de 4/03/2004, in C. J., Acs. do S.T.J., ano XII, Tomo I/2004, págs. 102 a 104) porquanto a declaração inexacta ou reticente traduz-se num facto impeditivo do direito do primeiro – cfr. artº. 342º., nº. 2 do C.C..
As declarações inexactas consistem “na declaração de factos ou circunstâncias que não correspondem à realidade”, enquanto que a reticência consiste em “silenciar o que se sabia e se tinha o dever de dizer, é a omissão de factos e circunstâncias que servem para a exacta apreciação do risco” – Ac. do S.T.J. de 11/07/2006 (in C. J., Acs. do S.T.J., ano XIV, Tomo II/2006, págs. 151 a 157, maxime 153).
Como alerta ainda o mesmo Acórdão, “a declaração de risco é uma declaração unilateral, de ciência do proponente, a qual é aceite pela seguradora e que se destina a avaliar o risco e a permitir o cálculo do prémio. Por isso se exige especial lisura e total boa fé” e, prossegue, “enquanto no direito comum se admitem as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, bem como a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar resulte da lei ou daquelas concepções (artº. 253º., nº. 2, do Cód. Civil), no contrato de seguro, pelo contrário, a seguradora baseia toda a sua prestação nas declarações do tomador do seguro, nas quais deve ter toda a confiança. Apresentam, assim, a maior relevância as omissões e reticências, designadamente quando possam influir sobre a existência ou condições do contrato”.
Com a L.C.S. (que não tem aplicação à situação sub judicio, atento o disposto no art.º 2.º do Dec.-Lei n.º 72/2008) só o incumprimento doloso do dever de declaração exacta dos factos e circunstâncias é que permitirá à seguradora anular o contrato – cfr. art.º 25.º, n.º 1.
Porém, em face do art.º 429.º do C.Com. a anulabilidade pode resultar de actuação negligente do segurado quanto prestou as declarações inexactas, desde que, como se referiu, elas tenham inquinado a vontade da seguradora.
O Ac. do S.T.J. de 27/05/2008 referiu que “a lei não supõe o carácter doloso das omissões ou reticências de factos com relevância para a determinação da probabilidade ou grau de risco, mas pressupõe que o declarante conheça os factos ou as circunstâncias passíveis de influir sobre a aceitação ou as condições do contrato, ou seja, que haja negligência” (ut Proc.º 08A1373, Cons.º Moreira Camilo, in www.dgsi.pt).
Com o Ac. do S.T.J. de 27/03/2014, podemos dizer que, nos termos que vêm previstos no art.º 429.º do C.Com, a seguradora poderá anular o contrato, celebrado com erro-vício da vontade “quando o segurado:
- omitiu, no preenchimento do questionário clínico que lhe foi apresentado, determinada patologia actual e consumada, explicitamente mencionada naquele questionário clínico;
- sendo essa patologia por ele perfeitamente conhecida, não podendo razoavelmente desconhecer que, pela sua gravidade e relevância, era – segundo as regras da sua experiência comum – significativa para a aferição do risco pela seguradora;
- e tal omissão influenciou casualmente a celebração do concreto contrato de seguro, nos termos clausulados” (ut Proc.º 2971/12.5TBBRG.G1.S, Cons.º Lopes do Rego, in www.dgsi.pt).
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IX.- Como refere o S.T.J. no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 10/2001, de 21/11/2001 (publicado no D.R. n.º 298, série I-A, de 27/12/2001, e referente a contratos de seguros de acidente de trabalho) “a avaliação do que sejam declarações inexactas ou omissões relevantes, determinantes do regime de invalidade do negócio, terá de ser feita caso a caso…”.
Na situação sub judicio ficou provado que em 22/03/2002, e em 27 dos mesmos mês e ano, e ainda em 17/02/2005, o Autor, no questionário que lhe foi apresentado sobre os “Antecedentes Pessoais”, em que lhe era pedido que assinalasse com “x” se “sofre ou sofreu” de qualquer das perturbações ou doenças ali listadas, assinalou o não em todas as quadrículas.
Dentre essas doenças vinham referidas “Doenças dos intestinos (diarreias frequentes, prisão de ventre, colite)” e “Doenças nervosas (epilepsia, convulsões)”.
Em 2005, nas “Doenças nervosas” acrescentou-se a “depressão”.
Ficou ainda provado que somente em meados de Janeiro de 2007 o Autor “começou a manifestar uma sintomatologia compatível com problemas do foro psiquiátrico”, tendo este quadro clínico sofrido um agravamento progressivo até que em Dezembro de 2010 o mesmo Autor apresentava “um surto depressivo grave com reacção hipocondríaca centrada num discurso alucinatório delirante fruto da involução.
Não ficou provado que à data em que subscreveu as propostas de seguro o referido Autor padecia de distúrbios de personalidade ansiosa/depressiva, e nem se provou que soubesse que era portador de alguma predisposição para aquela doença.
Não se provou, pois, inexactidão nas suas declarações.
Certo que, como declarou o seu médico assistente, especialista em gastrenterologia, (testemunha Dr. JB) em 1992 tratou o Autor a um problema de esofagite, relacionada com refluxo, e em 1995 o mesmo Autor teve um episódio de uma colite infecciosa, e em 1997 tratou-o a uma fissura anal, a que chamou “um problema insignificante”. Contudo, como o mesmo médico assegurou, o Autor “tratou-se e ficou bem”, não tendo tido recidivas, e tendo feito um “exame de controlo” à colite, o Autor estava “completamente curado”, o que foi confirmado pelo seu médico de família (testemunha Dr. JF).
Ora, para além daqueles “episódios” não serem manifestações nem se poderem relacionar com a doença que se veio a manifestar passados doze anos – surto depressivo –, o facto de o Autor ter ficado completamente curado, e os sete anos que intervalaram entre o “episódio” mais grave (a colite infecciosa) e a assinatura da proposta de adesão, são justificativos, à luz da experiência comum, que o Autor os tenha desvalorizado e não tenha, sequer, representado que houvesse interesse em mencioná-los no questionário, o que afasta, pelo menos, a negligência consciente.
Acresce que o Autor submeteu-se aos exames médicos e fez as análises clínicas que a Apelante lhe determinou, e o parecer sobre o seu estado de saúde, do médico que o examinou, foi de “Bom”, como se vê de fls. 205v.º dos autos.
Do que vem de ser referido se conclui que, na concreta situação sub judicio, atendendo à cura total daqueles “episódios”, que não deixaram sequelas, não há justificação, à luz do critério da boa fé, para considerar a omissão da sua menção como relevante.
E posto que o foco já não reside no estado de saúde, qua tale, que foi reconhecido como bom, a exigência da menção dos referidos episódios configurará uma invasão injustificada da intimidade da vida privada, direito de personalidade que tem consagração na Constituição e no art.º 80.º do C.C., já que, provadamente, eles não deixaram sequelas e o tempo entretanto decorrido sem que se tenham verificado recidivas, permite prognosticar que se não voltarão a repetir.
Por outro lado, a Apelante não conseguiu convencer que, conhecendo das referidas “doenças” não teria celebrado o contrato de seguro ou teria excluído da cobertura a incapacidade profissional.
Não há, pois, fundamento para anular o contrato de seguro em mérito, devendo, por isso, a Apelante cumprir a sua prestação contratual, como bem decidiu o Tribunal a quo.
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X.- Defende ainda a Apelante que não “pode” ser condenada ao pagamento da indemnização com efeitos a partir da data da declaração de invalidez, já que “no presente caso se verificou existir mora do credor” posto não ter remetido, com a participação do sinistro, “toda a documentação necessária a uma cabal regularização”, dizendo-se “impossibilitada de resolver o sinistro” perante “a ausência da remessa de elementos e de documentação legível”.
Não tem a Apelante razão já que, ressalvado o respeito devido, a sua fundamentação deixa transparecer uma confusão de conceitos: o cumprimento da obrigação contratual e a mora no cumprimento.
Pelo contrato de seguro que celebrou obrigou-se ao pagamento do capital seguro “em caso de Invalidez Total e Permanente ocorrida durante a vigência da adesão, provocada por doença”.
A actual L.C.S. define o conceito de sinistro fazendo-o corresponder “à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato” – cfr. art.º 99.º.
In casu, tendo ficado determinada a data do sinistro, ou seja, a data a partir da qual o Autor ficou com uma incapacidade permanente global de grau abrangido pela apólice, terá de ser com referência a essa data que a Seguradora há-de cumprir a sua obrigação contratual.
Com efeito, se a ratio do seguro é dotar o segurado dos meios económicos adequados a suprimir as consequências negativas da verificação de determinado evento, é apodíctico que a obrigação da seguradora terá de ser cumprida com referência à data da verificação.
Com efeito, se estivéssemos em presença de um seguro de incêndio ou furto ou roubo, a própria Apelante não duvidaria, decerto, que o montante da indemnização a pagar era o que correspondesse ao valor das coisas cobertas pelo seguro, determinado à data do incêndio, ou do furto ou roubo, ou seja, do sinistro.
O Autor, sinistrado, cumpriu com a sua obrigação de participar o sinistro, e fez a prova da sua ocorrência. Se dificultou as investigações da Apelante quanto às suas causas e consequências, por esta consideradas essenciais à “regularização do sinistro”, sofreu o prejuízo económico correspondente ao desembolso das prestações do empréstimo bancário que se foram vencendo.
Diversa seria a solução se viesse pedida uma indemnização a título de mora (art.os 804.º e sgs. do C.C.) sobre cada uma das prestações pagas pelos Autores ao Banco, reportando a data da entrada em mora à data do vencimento de cada uma delas, ou até se fossem pedidos juros (indemnização pela mora) a contar da data da participação do sinistro, porque, nos termos que vêm alegados, a demora no cumprimento da obrigação contratual seria de imputar ao próprio credor.
Improcede, pois, também este segmento da pretensão recursiva da Apelante.
Termos em que se impõe confirmar integralmente a douta decisão impugnada, recusando-se provimento ao pretendido pela Apelante.
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C) DECISÃO

Considerando tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, consequentemente confirmando e mantendo a decisão impugnada.
Custas pela Apelante.
Guimarães, 18/12/2017
(escrito em computador e revisto)

(Fernando Fernandes Freitas)
(Alexandra Rolim Mendes)
(Maria Purificação Carvalho)


1. Com efeito, transgressionalmente ao imposto pelo n.º 1 do art.º 639.º do C.P.C., nas conclusões a Apelante limitou-se a reproduzir as alegações omitindo, apenas, os trechos dos depoimentos testemunhais.