Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
423/17.6T8GMR.G1
Relator: ANTÓNIO BARROCA PENHA
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
CONTRAPARTIDA PECUNIÁRIA
ALTERAÇÃO DO ACORDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/14/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

I- Não tendo ficado explicitamente estabelecido e decidido, por acordo entre os ex-cônjuges, que a atribuição da casa de morada da família a um deles dependeria de uma contrapartida pecuniária a prestar ao outro, fica excluída a possibilidade deste último vir ulteriormente, em ação declarativa comum (por via principal ou reconvencional), pedir e obter essa mesma contrapartida pecuniária, unicamente fundamentada nesse direito, que eventualmente lhe assistiria, mas que do mesmo acordo não fez constar.

II- No entanto, sempre assistirá ao ex-cônjuge, que se veja posteriormente desfavorecido com tal acordo celebrado sobre o destino da casa de morada da família, alterar tal resolução tomada em processo de jurisdição voluntária, lançando mão do processo (ou incidente) de “atribuição/alteração da casa de morada da família”, com base nas disposições conjugadas dos arts. 1793º, n.º 3, do C. Civil, e 988º, n.º 1 e 990º, do C. P. Civil.

III- De qualquer modo, esta alteração, com recurso aos meios processuais próprios da jurisdição voluntária, designadamente em face do disposto no art. 988º, n.º 1, do C. P. Civil, pressupõe necessariamente a alegação e demonstração de uma “alteração superveniente das circunstâncias” que estiveram na base daquele acordo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

A. C. intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra A. T., pedindo que se condene o réu a reconhecer que integram o património comum do ex-casal formado por demandante e demandado, determinados bens móveis, que enumera; bem como em reconhecer que ela não lhe deve o montante correspondente a metade do valor das prestações que o R. pagou, após Dezembro de 2012 para amortização do crédito hipotecário por ambos contraído na vigência do matrimónio.

Subsidiariamente, para a hipótese de improcedência deste último pedido, peticiona o reconhecimento de um crédito dela, demandante, sobre o R. referente ao uso exclusivo da casa de morada de família (bem comum do casal) por parte deste após a separação do casal.

Alega, para o efeito e em síntese, ter sido decretado o divórcio entre A. e R. em Julho de 2013, tendo posteriormente sido instaurado inventário para partilha de meações no Cartório Notarial de C. T., no âmbito do qual assumiu funções como cabeça-de-casal o aqui R.

Mais alega que, tendo no âmbito desse processo de inventário, sido apresentada relação de bens, a demandante reclamou da mesma, acusando a falta de relacionação de alguns bens móveis, que enumera.

Afirma que, tendo reconhecido a existência de alguns bens cuja falta foi acusada, o demandado, contudo, não reconheceu a falta de outros, que elenca, e que, diz, integram efetivamente o património comum do extinto casal.

Igualmente aduz que tendo sido relacionado, do lado do passivo, um débito da autora para com o cabeça de casal referente a metade do valor que o demandado terá pago ao Banco, a título de amortização do crédito contraído por ambos para construção da casa de morada de família, o mesmo o foi abusivamente, por um lado, porque parte do valor das prestações foi liquidado com dinheiro comum e, por outro, porque o R. se manteve a disfrutar exclusivamente do imóvel, após a separação do casal.

Regularmente citado, contestou o R., por um lado excecionando a ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir, porquanto afirma não pode a A. reconhecer a existência de um bem comum do casal e, simultaneamente, negar a sua responsabilização pela dívida por ambos contraídos para a sua construção, e, por outro, reconhecendo integrarem o património comum parte dos bens em causa, mas impugnando a demais alegação, afirmando que os bens cuja falta a A. persiste em acusar foram vendidos à mãe desta, sua ex-sogra, pelo preço de € 260.
Por despacho de fls. 58 e 59, foi julgada improcedente a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, suscitada pelo réu.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento.

Na sequência, por sentença de 26 de Fevereiro de 2018, veio a julgar-se parcialmente procedente a ação e, consequentemente, foi o réu condenado a:

- Reconhecer que integram o património comum do casal uma máquina de lavar roupa, uma máquina de lavar loiça, um fogão com forno incluído, loiça variada, um microondas, um esquentador e torradeiras;
- Reconhecer não ser–lhe devido, pela A., metade do valor das prestações por ele pagas relativas ao crédito hipotecário no período compreendido entre Dezembro de 2012 e a data da entrada da acção de divórcio n.º 1832/13.5TJVNF em juízo, absolvendo-o do mais peticionado.

Inconformada com o assim decidido, veio a autora A. C. interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

1- A discordância da recorrente com a sentença ora recorrida prende-se com a decisão sobre o concreto ponto de condenar o Réu: “- a reconhecer não ser–lhe devido, pela A., metade do valor das prestações por ele pagas relativas ao crédito hipotecário no período compreendido entre Dezembro de 2012 e a data da entrada da acção de divórcio n.º 1832/13.5TJVNF em juízo, absolvendo-o do mais peticionado”.
2- O que faz com que seja devido a metade do valor das prestações pagas pelo Réu desde 22 de Junho de 2013 até à presente data.
3- Pois, se decorre do disposto do art. 1789.º, n.º 1 do Código Civil, concorda a recorrente com a sentença ora recorrida, na parte em que durante o lapso temporal ocorrido entre a sua saída de casa e a data da entrada em tribunal da petição inicial não ser devido da sua parte ao Réu metade das prestações relativas ao crédito hipotecário que pagou até então.
4- Porém não concorda a aqui recorrente com o facto de ter de pagar metade do valor das prestações pagas pelo Réu desde 22 de Junho de 2013 até à presente data.
5- Invoca a recorrente a figura do Abuso de Direito, a fim de não lhe ser reconhecida tal obrigação para com o Réu.
6- Dos factos dados como provados, é manifesto que desde Dezembro de 2012, a aqui recorrente não vive na casa de morada de família, não usufrui da mesma e das suas potencialidades.
e) Por sentença datada de 08.07.2013, transitada em julgado em 23.09.2013 e proferida no âmbito do processo n.º 1832/13.5TJVNF que correu termos 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Famalicão, foi decretado o divórcio entre a A. e R.;
f) Foi decidido, entre outros, por acordo judicialmente homologado celebrado no âmbito do processo referido em a), atribuir ao R., até à partilha, a casa de morada de família, situada na Travessa …, Guimarães;
g) Mais foi decidido, por acordo judicialmente homologado celebrado no âmbito do processo referido em a), entregar a guarda da filha menor do casal ao pai;
h) Desde Dezembro de 2012 que a A. não reside naquela que era a casa de morada de família;
7- Inicialmente o Réu ficou a viver na casa de morada de família com a filha menor, A. L., facto que não se mantém atualmente.
8- Significa, pois, que à exceção dos primeiros meses após o divórcio, o Réu passou a utilizar em seu proveito próprio, sem prestar contas e sem pagar qualquer quantia à Autora a título de utilização exclusiva da casa de morada de família.
9- A Autora, por sua vez, e em consequência, viu-se obrigada a ir ocupar uma outra casa, o que para além do incómodo e transtorno, constituiu-se na obrigação de pagar um valor para auxiliar despesas, inicialmente - por um período de três meses com uma amiga -, e posteriormente na casa do atual namorado.
10- Sempre participando em despesas/gastos/encargos que não teria se tivesse acesso ao bem que também é seu.
11- Face ao exposto, a solicitação para pagamento – reconhecido como crédito do Réu sobre a aqui recorrente - de metade da quantia por si paga (na secção do “Passivo” - verba (verba n.º 5) do inventário in casu), não se coaduna com o princípio da boa-fé.
12- É facto que, aquando a atribuição da casa de morada de família em sede de divórcio, esta foi atribuída ao aqui Réu, não estando associada a algum condicionamento quanto à guarda da filha menor – não tendo nada ficado escrito.
13- Porém, teve em consideração o facto de a guarda provisória da filha menor do ex-casal ser atribuída na altura do acordo ao aqui Réu.
14- Face a tal situação acima configurada, a aposição de uma verba no processo de inventário (verba n.º 5) como um crédito do Réu sobre a recorrente em metade da quantia de € 12.806,83, referente ao pagamento das prestações dos créditos supra referidos nas verbas n.º 1 e 2 do passivo, que este efetuou, desde Dezembro de 2012 até Maio de 2015 no valor de seis mil quatrocentos e três euros e quarenta e dois cêntimos – parece-nos injusta.
15- Mesmo com a decisão da sentença a quo que retificou para desde a entrada da petição inicial do divórcio (22/06/2013) até à presente data, a solicitação para pagamento de tal verba mostra-se contrária à boa fé.
16- O Réu tem um direito válido, porém, concretamente, ao ser exercido cria uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício desse direito e as consequências a suportar pela Recorrente – e tal situação não pode ignorar.
17- Ao pretender obter o pagamento de metade das prestações por si pagas referentes ao crédito hipotecário que incide sobre a casa de morada de família, exerce ilegitimamente esse direito, excedendo com essa pretensão, e atento aos factos alegados, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico desse direito, nos termos do art.º 334, do Código Civil.
18- Não deverá, assim, ser considerada devida pela Autora a compensação ao Réu, relacionada como verba n.º 5, do passivo, da relação de bens apresentada.
19- A sentença ora recorrida é nula em primeiro lugar por não especificar os fundamentos de facto e de direitos que justificam a decisão quando no que concerne ao abuso de direito invocado. (art. 615.º, n.º 1, al. b) CPC).
20- Conforme se pode ler da sentença a quo “Não logrou a A., desde logo, provar qualquer um dos factos em que alicerçou a invocação do instituto do abuso de direito. Mas não poderá deixar de se referir, sem que se desenvolva a questão, que mesmo que os tivesse logrado demonstrar nem assim se vislumbra como poderia a situação sub iudice ser subsumida a tal instituto.
21- Não se entende, assim, porque afasta o tribunal a quo o instituto do abuso de direito quando, decorre da matéria dada como provada (Cfr al, A, B, C, D, E, e F da matéria de facto dada como provada) a situação de desproporcionalidade do exercício do direito.
22- Subsidiariamente, e na hipótese de o tribunal não perfilhar o entendimento da existência de abuso de direito, avançou a recorrente com o nascimento da sua esfera de um direito de crédito também sobre o Réu.
23- Tal direito de crédito nasce do uso exclusivo por parte do cabeça de casal do imóvel que era a casa de morada de família e bem comum, sem que o mesmo compensasse a aqui Recorrente por isso.
24- O valor do uso desse prédio representa uma vantagem económica que não pode deixar de ser considerada.
25- Por sua vez, a privação do uso do imóvel representa uma diminuição na esfera jurídica da Autora.
26- Quanto à concretização deste valor, poderia ser referido o critério do valor locativo (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-03-2012, relator Helena Melo, alusivo ao Proc. 5372/04.5TBGMRA.G1), porém será mais razoável atender ao concreto circunstancialismo.
27- Assim, visto que durante o período que vai de Dezembro de 2012 até à presente data a Autora ter estado privada do uso do referido imóvel, bem comum do ex-casal, deverá o valor da privação e uso exclusivo do cabeça de casal ser coincidente com a parte a que estava obrigada a pagar relativamente à verba n.º 5 do passivo relacionado.
28- Pelo que deverá ser reconhecida a existência de um crédito da Autora sobre o cabeça de casal, aqui Réu, referente ao uso exclusivo da casa de morada de família (bem comum do ex-casal) por parte deste.
29- Assim, deverá, em consequência, ser acrescentada uma nova verba ao Passivo – “verba n.º 7” – descrita como “Crédito da requerente sobre o cabeça de casal referente ao uso exclusivo da casa de morada de família (bem comum do ex-casal) por parte deste, com exclusão completa da requerente”, à qual se atribui o valor que resultar de metade das compensações pagas pelo Réu desde Junho de 2013 até sentença homologatória da partilha”.
30- Na verdade, no entender do tribunal a quo, o facto de não ter ficado a constar do acordo de divórcio homologado por sentença que a atribuição da casa teria como contrapartida uma renda, ou melhor ser (sic) dada em arrendamento, tal afasta a possibilidade de a posteriori, ver-se a Recorrente “compensada pecuniariamente por essa utilização exclusiva na qual a própria anuiu”.
31- Porém, em momento algum sopesou a existência de um acréscimo/diminuição patrimonial advindo do uso exclusivo/privação, quando foi dado como provado que a recorrente saiu de casa, e lhe é exigido a meação do valor pago por conta do crédito hipotecário, pelo que os fundamentos não se encontram conformes com a decisão final, nos termos do art. 615.º, n.º 1, als. b) e c) do CPC.

Finaliza, pugnando que se anule a sentença recorrida, sendo substituída por outra que reconheça:

i) que não é devido pela Autora ao Réu o montante de metade do valor das prestações por ele pagas relativamente ao crédito hipotecário (Verba n.º 5 do Passivo da Relação de Bens), visto tratar-se de valores pagos com dinheiro comum do ex-casal (de Dezembro de 2012 até 22 de Junho de 2013), e posteriormente a tal data, por tratar-se de uma compensação abusiva, devido ao uso exclusivo do aqui Réu da casa de morada de família;

ii) Caso assim não se entenda,
que se reconheça a existência de um crédito da Autora sobre o cabeça de casal, aqui Réu, referente ao uso exclusivo da casa de morada de família (bem comum do ex-casal) por parte deste, com exclusão completa de outrem;
devendo, em consequência, ser acrescentada uma nova verba ao Passivo da Relação de Bens– “verba n.º 7” – descrita como “Crédito da requerente sobre o cabeça de casal referente ao uso exclusivo da casa de morada de família (bem comum do ex-casal) por parte deste, com exclusão completa da requerente”, à qual se atribui o valor que resultar de metade das compensações pagas pelo Réu desde Junho de 2013 até sentença homologatória da partilha”.
*
O réu apelado apresentou contra-alegações, nas quais deduziu as seguintes

CONCLUSÕES

1. A. e R., enquanto casal contraíram duas dívidas junto do extinto Banco X, verbas essas relacionadas como nº 1 e 2º do Passivo, no inventário respetivo;
2. Está provado que as prestações referentes à amortização dessas dívidas foram pagas exclusivamente pelo R. a partir de Dezembro de 2012, data em que a R. abandonou o lar conjugal;
3. A divida e o seu pagamento é da responsabilidade de A. e R. nos termos do artigo 1691º nº 1 e 1695º nº 1 ambos do Código Civil;
4. Na solidariedade passiva, os devedores comparticipam em partes iguais na dívida (art. 516º CC) pelo que o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir, tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete (art. 524º C. Civil;
5. Após a instauração do Divórcio, tendo o R. suportado exclusivamente as prestações do Crédito hipotecário, face ao disposto nos artigos 516º e 524º do Código Civil, tem o direito de reclamar da A. (como fez) o pagamento de metade do valor suportado a este título;
6. A questão sub iudice não poderia alguma vez ser subsumida ao instituto do abuso de direito;
7. A sentença sub iudice cumpre escrupulosamente todos os preceitos, contendo o Relatório, o Saneamento, a sua fundamentação indicando os factos provados e não provados e indicando a motivação dos mesmos, faz o enquadramento jurídico da decisão e DECIDE;
8. A sentença faz o enquadramento do instituto, indica o pedido da A., enquadra os factos no conceito jurídico e conclui pela improcedência do pedido decidindo mesmo que não vislumbra como a questão sub iudice poderia ser subsumida a tal instituto.
9. No acordo celebrado no processo de divórcio, A. e R. foi acordado atribuir a casa de morada de família ao R. até à partilha;
10. No acordo foi fixada a “atribuição” sem o pagamento de qualquer contrapartida;
11. Não pode agora a A. a posteriori, ver-se pecuniariamente compensada por uma utilização exclusiva que ela própria anuiu;
12. Nesse sentido vai o douto Acórdão do STJ de 13.10.2016, disponível em www.dgsi.pt, relatado pelo Con. Lopes Rego, que decidiu “O acordo dos cônjuges, judicialmente homologado, no qual se não prevê o pagamento de qualquer compensação pecuniária pelo uso exclusivo da casa, nele atribuído a um dos cônjuges, deve ser interpretado à luz do princípio da impressão no destinatário, no sentido de que as partes não contemplam o pagamento de qualquer quantia como contrapartida da utilização do imóvel.

Termina, defendendo a confirmação da sentença recorrida.
*

Após os vistos legais, cumpre decidir.
*

II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.

Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes:

- Saber se sentença deverá ser considerada nula por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; ou por oposição entre os fundamentos com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; ou por omissão de pronúncia.
- Saber se assiste direito à autora recorrente em ver integralmente reconhecida a pretensão formulada sob a al. d) do pedido, designadamente por funcionamento do instituto do “abuso de direito” ou, subsidiariamente, sob o ponto ii) do mesmo pedido, por verificação de um direito de crédito da autora sob o réu.
*
*

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1.1. FACTOS PROVADOS

O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

a) Por sentença datada de 08.07.2013, transitada em julgado em 23.09.2013 e proferida no âmbito do processo n.º 1832/13.5TJVNF que correu termos 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Famalicão, foi decretado o divórcio entre a A. e R.;
b) Foi decidido, entre outros, por acordo judicialmente homologado celebrado no âmbito do processo referido em a), atribuir ao R., até à partilha, a casa de morada de família, situada na Travessa …, Guimarães;
c) Mais foi decidido, por acordo judicialmente homologado celebrado no âmbito do processo referido em a), entregar a guarda da filha menor do casal ao pai;
d) Desde Dezembro de 2012 que a A. não reside naquela que era a casa de morada de família;
e) A A. instaurou junto do Cartório Notarial do Dr. C. T. inventário para partilha de bens por divórcio, a que foi atribuído o n.º 1020/2015;
f) No âmbito do processo referido em d), foi apresentada relação de bens onde, entre outros, foi relacionada como verba n.º 5 do passivo:

Deve a requerida ao cabeça de casal A. T. metade da quantia de € 12.806,83, referente ao pagamento das prestações dos créditos supra referidos nas verbas nºs 1 e 2 do passivo [dívidas do extinto casal ao Banco X, expressamente reconhecidas pela aqui A.] que este efectuou, desde Dezembro de 2012 até Maio de 2015, no valor de seis mil, quatrocentos e três euros e quarenta e dois cêntimos.
g) Em sede de reclamação da relação de bens referida em f), a aqui A. acusou, entre outros, a falta de relacionação dos seguintes bens móveis:

i. Uma máquina de lavar roupa;
ii. Uma máquina de lavar loiça;
iii. Um fogão com forno incluído;
iv. Loiça variada;
v. Uma arca frigorífica;
vi. Um micro-ondas;
vii. Torradeiras;
viii. Duas máquinas de café;
ix. Dois écrans LCD pequenos;
x. Um esquentador;
xi. Um motor de puxar água;
h) Os bens enumerados em g) i. a x. foram adquiridos por A. e R. na constância do matrimónio;
i) Os bens enumerados em g), v., viii. e ix. foram vendidos em data não concretamente apurada;
j) O bem identificado em g) v. encontra-se em casa da mãe da A.;
k) Desde Dezembro de 2012 que o R. suporta a prestação mensal reportada à amortização do mútuo contraído por A. e R. com vista à construção da casa da morada de família referida em b).
*
*
1.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevância para a decisão da causa não se demonstraram quaisquer outros factos que não os enumerado supra, designadamente que:

a) O motor de água mencionado em 1.1. g). xi. tivesse sido adquirido por A. e R. na constância do matrimónio;
b) A autora tenha contribuído monetariamente para pagamento das prestações mencionadas em 1.1. j) entre Dezembro de 2012 e 22.06.2013;
c) A atribuição da casa de morada de família ao R. referida em 1.1. b) tivesse sido condicionada pela atribuição da guarda da filha menor do casal ao pai mencionada em 1.1.c);
d) Que em Novembro de 2014 a guarda da filha menor de A. e R. tenha sido atribuída à A.;
e) A A. tenha tomado de arrendamento uma habitação para aí residir, suportando as despesas a ela inerentes.
*
*
IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A) Da Nulidade da Sentença

A.1) Da nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto e de direito que a justificam.

A primeira questão que importa dirimir, em função das conclusões do recurso, refere-se à alegada nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação de facto e de direito.

Resulta do disposto no art. 607º, n.º 3, do C. P. Civil que, na elaboração da sentença, e após a identificação das partes e do tema do litígio, deve o juiz deduzir a fundamentação do julgado, explicitando “os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.”

Por seu turno, sancionando o incumprimento desta injunção, prescreve o art. 615º, n.º 1, al. b), do C. P. Civil que é nula a sentença que “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Na realidade, não basta que o juiz decida a questão posta; é indispensável, do ponto de vista do convencimento das partes, do exercício fundado do seu direito ao recurso sobre a mesma decisão (de facto e de direito) e do ponto de vista do tribunal superior a quem compete a reapreciação da decisão proferida e do seu mérito, conhecerem-se das razões de facto e de direito que apoiam o veredicto do juiz. (1)

Neste sentido, a fundamentação da decisão deve ser expressa, clara, suficiente e congruente, permitindo, por um lado, que o destinatário perceba as razões de facto e de direito que lhe subjazem, em função de critérios lógicos, objetivos e racionais, proscrevendo, pois, a resolução arbitrária ou caprichosa, e por outro, que seja possível o seu controle pelos Tribunais que a têm de apreciar, em função do recurso interposto. (2)

Todavia, ao nível da fundamentação de facto e de direito da sentença, como é lição da doutrina e da jurisprudência, para que ocorra esta nulidade “não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito” (nosso sublinhado). (3)

Neste sentido, que é o tradicionalmente perfilhado, referia J. Alberto dos Reis (4), a propósito da especificação dos fundamentos de facto e de direito na decisão, que importa proceder-se à distinção cuidadosa entre a “falta absoluta de motivação, da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.” (sublinhado nosso). (5)

Todavia, a nosso ver, no atual quadro constitucional (art. 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas (cfr. art. 154º do C. P. Civil), parece que também a fundamentação de facto ou de direito gravemente insuficiente, isto é, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do ato decisório. (6)

Feitas estas considerações, de todo o modo, no caso em apreço, é nosso entendimento que não ocorre a invocada nulidade por falta de fundamentação de facto e/ou de direito.

Com efeito, do teor da decisão recorrida é perfeitamente possível alcançar o quadro factual e jurídico subjacente ao sentido decisório contido na mesma decisão, nomeadamente é possível alcançar, sem particular esforço, que o Juiz a quo definiu concretamente a matéria de facto relevante para a decisão da causa, discriminando ainda a factualidade não considerada provada, apreciando ainda os meios probatórios produzidos, designadamente do ponto de vista documental e testemunhal.

Subsequentemente, na mesma decisão, subsumiu a factualidade assente ao Direito, fundamentando juridicamente a decisão em causa, concluindo fundadamente pela parcial procedência da ação, nos termos acima expostos no Relatório.

Cabe dizer, ainda, que na sentença recorrida foi devidamente analisada a questão do “abuso de direito” suscitada pela autora, assim como se decidiu fundadamente pela inexistência de qualquer direito de crédito da autora sobre o réu no que se refere à utilização da casa de morada de família, após a instauração da ação de divórcio.

Porque tal ocorre, e nesta perspetiva, a fundamentação constante da decisão recorrida é a bastante para a decisão que ali era suposto ser proferida, sendo certo que é perfeitamente claro o enquadramento factual tido por assente e considerado relevante pelo tribunal de 1ª instância, assim como o quadro normativo aplicável e subjacente à decisão, permitindo, pois, aos respetivos destinatários exercer, de forma efetiva e cabal, a sua análise e a sua crítica, suscitando a sua reapreciação, como ora sucede nesta instância.

Não pode, pois, sustentar-se que a sentença em crise seja nula por “falta de fundamentação de facto e de direito”, pois que os pressupostos de facto e de direito que conduziram ao sentido decisório acolhido na mesma sentença se mostram nele evidenciados de forma objetiva, lógica e racional.

A recorrente discorda da subsunção jurídica operada na sentença recorrida, em face da matéria factual demonstrada sob as als. A a F, concluindo pela existência do alegado “abuso de direito” e, subsidiariamente, pelo nascimento na esfera jurídica da autora de um direito de crédito sobre o réu no que se refere à utilização da casa de morada de família, contrariamente ao que ficou decidido na decisão recorrida.

Porém, como já vimos, não podemos confundir a ausência ou falta de fundamentação com a deficiência da mesma.

A recorrente pode, naturalmente, discordar do sentido decisório acolhido na sentença em apreço ou até considerar a fundamentação do mesmo insuficiente ou errónea, designadamente no que se refere à subsunção jurídica operada e à respetiva decisão de mérito, e que pode conduzir à sua revogação ou alteração, mas não pode sustentar, de forma procedente, que a decisão em crise é nula por falta de fundamentação, sendo que, conforme o exposto, apenas a absoluta ausência ou grave deficiência de fundamentação (de facto e/ou de direito) – de forma que impeça o destinatário de alcançar o quadro factual e jurídico subjacente à decisão em crise – pode levar ao decretamento da nulidade da decisão.

Destarte, neste segmento, improcede a apelação.
*
A.2) Da nulidade da sentença por a sua fundamentação estar em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível

De acordo com o disposto na al. c), do n.º 1, do citado art. 615º, do C. P. Civil, a sentença será nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Quanto à hipótese de contradição entre os fundamentos e a decisão, ela bem se compreende, pois que os fundamentos de facto e de direito, que fundamentam ou justificam a decisão, funcionam na estrutura expositiva e argumentativa em que se traduz a mesma, como premissas lógicas necessárias para a formação do denominado silogismo judiciário. Trata-se, pois, de a conclusão decisória decorrer logicamente das respetivas premissas argumentativas.

Assim sendo, existirá violação das regras necessárias à construção lógica da sentença quando os seus fundamentos conduzam logicamente a conclusão oposta ou diferente da que no mesmo resulta enunciada.
A propósito da nulidade de que ora curamos, de forma clara, refere Antunes Varela, em comentário ao preceituado no art. 668º, n.º 1, al. c), do pretérito CPC – correspondente ao atual art. 615º, n.º 1, al. c) do NCPC –, o que está em causa refere-se à “contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão.” (sublinhámos).

No fundo, trata-se de “um vício real no raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente.(7)
Trata-se, pois, de um vício lógico, de uma contradição lógica entre a fundamentação convocada e o sentido decisório.

A fundamentação aponta, de forma inequívoca, no sentido da procedência da causa e a decisão é a oposta – improcedência da causa –, a fundamentação aponta no sentido da improcedência da causa e a decisão é a oposta – procedência – ou, ainda, a fundamentação aponta num determinado sentido decisório e este último acaba por seguir direção oposta ou contraditória. Tratar-se-á de um vício ostensivo para um leitor minimamente diligente e sagaz em face do conteúdo do ato jurisdicional proferido (despacho/sentença/acórdão) e a respetiva parte decisória final.

Em suma, colhendo a lição de J. Alberto dos Reis, “quando os fundamentos estão em oposição com a decisão, a sentença enferma de vício lógico que a compromete. A lei quer que o juiz justifique a sua decisão. Como pode considerar-se justificada uma decisão que colide com os fundamentos em que ostensivamente se apoia?”. E acrescenta ainda o mesmo autor que há contradição entre os fundamentos e a decisão “quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”. (8)
Por sua vez, a sentença será obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e será ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.

Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpetrações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz.(9)

Feitas estas considerações e compulsada a sentença recorrida resulta, a nosso ver, evidente que não ocorre a alegada contradição, pois que a argumentação de facto e de direito nela convocada, sem prejuízo de a apelante discordar da sua interpretação ou da sua aplicação, só podia conduzir à decisão que foi proferida, ou seja, no sentido unicamente da procedência parcial da ação, no que se refere ao peticionado sob a al. d).

Por outro lado, também não vislumbramos em que medida é que a decisão recorrida enferma de ambiguidade ou obscuridade, que a torna ininteligível.

Naturalmente, a recorrente pode discordar da factualidade que o tribunal a quo considerou relevante para a decisão tomada, como pode sustentar que o mesmo tribunal deveria ter considerado outra factualidade, ou, ainda, pode considerar que a factualidade revelada nos autos não resulta da prova produzida ou que houve erro na interpretação ou valoração da prova produzida e de subsunção jurídica aos factos apurados.

Todavia, uma tal argumentação não consubstancia uma qualquer contradição lógica entre os fundamentos de facto e de direito considerados pelo tribunal a quo e, igualmente, qualquer ambiguidade ou obscuridade da sentença recorrida, mas, quando muito, um erro de julgamento («error in iudicando»), que interfere, não com a conformidade lógico-formal da decisão em crise, mas com o seu mérito.

Por conseguinte, a questão suscitada pela apelante não contende, pois, com a nulidade da sentença recorrida, enquanto vício ou erro formal ou de procedimento, mas com a sua fundamentação fáctico-jurídica.

Improcede, pois, a apelação da recorrente neste particular.
*
*
B) Da nova fundamentação de direito

B.1) Do Abuso de Direito

Aqui chegados, cumpre, nesta fase, avaliar se o tribunal a quo cuidou de efetuar uma correta subsunção jurídica à factualidade apurada.

Desde logo, a recorrente entende que, em face da factualidade dada como assente sob as als. A a F, o tribunal a quo deveria ter concluído pela existência de desproporcionalidade do exercício de direito por parte do réu.

Invoca ainda que, no âmbito do identificado processo de divórcio, as partes acordaram na atribuição da casa de morada de família, até à partilha, ao cônjuge marido, aqui réu, tendo em consideração o facto de a guarda da filha menor do casal ser atribuída, na altura do acordo, ao pai; situação que se alterou passado cerca de um ano do acordo alcançado, tendo a guarda da filha menor do casal sido atribuída à autora.

Importa, desde já, considerar que tal factualidade não resultou assente, conforme aliás melhor resulta da matéria de facto dada como não provada sob as als. c) e d), sendo certo que a recorrente não impugna a decisão do tribunal recorrido que incidiu sobre a matéria de facto.

Ademais, não vemos como podemos concluir pela verificação do invocado “abuso de direito”, por via da factualidade dada como assente.

O abuso do direito – art. 334º, do C. Civil – traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Para Manuel de Andrade “há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual”. (10)

Para Vaz Serra, o ato abusivo é, em regra, o exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na coletividade social. Só excecionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede. (11)

Noutra perspetiva, para Antunes Varela, “para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.(12)

Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante. (13)

No entanto, aceitamos que para a verificação do abuso de direito não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo; basta que, objetivamente, esses limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito exercido tenham sido excedidos de forma evidente, sendo esta a conceção objetivista do abuso do direito adotada pelo legislador. (14)

Isto não significa, porém, que ao conceito de abuso do direito sejam alheios fatores subjetivos, como por exemplo a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes fatores pode relevar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito. (15)
O abuso de direito tem sido analisado nas modalidades de “venire contra factum proprium”, de “inalegabilidades formais”, de “suppressio”, de “tu quoque” e de “desequilíbrio entre exercício do direito e os efeitos dele derivados.(16)
O abuso de direito na modalidade do “desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados”, abrange subtipos diversificados, nomeadamente: i) o do exercício de direito sem qualquer benefício para o exercente e com dano considerável a outrem; ii) o da atuação dolosa daquele que vem exigir a outrem o que lhe deverá restituir logo a seguir; iii) e o da desproporção entre a vantagem obtida pelo titular do direito exercido e o sacrifício por ele imposto a outrem. (17)
No caso em apreço, tal como resulta da sentença recorrida, a factualidade essencial com que a autora fundamenta a verificação do instituto jurídico do abuso de direito não resultou provada (cfr. als. c), d) e e) dos factos não provados).

Ainda assim, mesmo que tal factualidade tivesse sido dada como assente, não poderíamos concluir pela existência, in casu, de exercício abusivo de direito por parte do réu, mormente ao reclamar da autora o pagamento de metade da prestação mensal reportada à amortização de empréstimo bancário contraído pelo casal para a construção da casa de morada de família.

O direito do réu a habitar, em exclusivo, na casa de morada de família resulta de um acordo livremente alcançado entre os ex-cônjuges, sendo certo que o réu vem suportando uma prestação bancária referente a uma dívida comum do casal, cuja responsabilidade solidária incide sobre ambos (arts. 1691º, n.º 1 e 1695, n.º 1, do C. Civil); pelo que, em caso de pagamento integral da dívida de ambos, por parte unicamente do réu, como tem vindo a suceder, assistirá a este o direito de regresso sobre a co-devedora autora (arts. 512º, 516º e 524º, do C. Civil).

No fundo, o réu vem pagando, com dinheiros próprios, uma dívida que também é, em parte, da responsabilidade da autora, atuando assim em seu benefício, sem que exista qualquer acordo judicial ou extrajudicial entre os devedores que o vincule a fazê-lo.

Por conseguinte, independentemente do réu estar a usufruir da casa de morada de família, cuja atribuição a este foi acordada por ambos os cônjuges, a exigência pelo réu de metade do valor pago pela amortização do referido empréstimo bancário, na parte que cabe à autora, não consubstancia um “abuso de direito”, em qualquer uma das modalidades acima elencadas, as quais sempre deveriam conduzir a uma manifesta e intolerável violação dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, o que manifestamente não se verifica in casu.
*
B.2) Do direito de crédito da autora

Defende, por último, a autora que, a partir do momento em que o réu ficou a usufruir exclusivamente do imóvel que constituía a casa de morada de família, nasceu na esfera jurídica da autora um direito de crédito sobre o réu, correspondente a uma compensação pela utilização exclusiva do réu de um bem comum do casal, compensação essa que a autora pretende que seja coincidente com a parte a que estava obrigada a pagar relativamente à verba n.º 5 do passivo relacionado no identificado inventário para separação de meações.

Da factualidade dada como assente resultou, designadamente, que:

a) Por sentença datada de 08.07.2013, transitada em julgado em 23.09.2013 e proferida no âmbito do processo n.º 1832/13.5TJVNF que correu termos 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Famalicão, foi decretado o divórcio entre a A. e R.;
b) Foi decidido, entre outros, por acordo judicialmente homologado celebrado no âmbito do processo referido em a), atribuir ao R., até à partilha, a casa de morada de família, situada na Travessa …, Guimarães.

c) Mais foi decidido, por acordo judicialmente homologado celebrado no âmbito do processo referido em a), entregar a guarda da filha menor do casal ao pai;

d) Desde Dezembro de 2012 que a A. não reside naquela que era a casa de morada de família.

Na sequência, a sentença recorrida fez constar, neste circunspecto, que:

Resulta do disposto no art. 1793.º/1 CC que a casa de morada de família, ainda que bem comum do casal, poderia ter sido dada em arrendamento ao R., ao invés de lhe ter sido meramente atribuída, o que, se se tivesse optado por tal solução, redundaria na obrigação de pagamento de uma qualquer quantia, por força do respectivo gozo, à aqui A.

Não tendo sido essa a solução adoptada, antes, ao invés, sido decidido atribuir a casa de morada de família ao demandado sem que ficasse previsto o pagamento de qualquer contrapartida por força dessa atribuição, não pode a A., a posteriori, pretender ver-se compensada pecuniariamente por essa utilização exclusiva na qual a própria anuiu.

Em defesa de tal entendimento, o tribunal a quo chamou à colação o Ac. STJ de 13.10.2016 (18), salientando o seguinte:

Com o Ac. STJ de 13.10.2016, disponível em www.dgsi.pt e relatado pelo Con. Lopes do Rego, “O acordo dos cônjuges, judicialmente homologado, no qual se não prevê o pagamento de qualquer compensação pecuniária pelo uso exclusivo da casa, nele atribuído a um dos cônjuges, deve ser interpretado, à luz do princípio da impressão do destinatário, no sentido de que as partes não contemplam o pagamento de qualquer quantia como contrapartida da utilização do imóvel – não sendo admissível uma modificação substancial dos respectivos termos ao pretender transformar-se a utilização incondicionada, efectivamente prevista no acordo, uma utilização condicionada ao pagamento de quantia pecuniária, que não encontra o mínimo rasto ou traço nas cláusulas que o integravam. [sublinhado meu].

Analisando concretamente os fundamentos jurídicos com que a autora recorrente pretende que lhe seja reconhecido este alegado direito de crédito sobre o réu recorrido, consideramos que assiste razão ao tribunal a quo.

De facto, tal como é defendido pelo Ac. RC de 27.04.2017 (19), aderindo à posição defendida por aquele Ac. STJ de 13.10.2016, importa considerar que: “Não constando do acordo outorgado qualquer pagamento pela atribuição do uso da habitação da casa de morada de família ao Réu, qualquer declaratário normal – que de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 236º do C. Civil corresponde ao "bonus pater familias" equilibrado e de bom senso, pessoa de qualidades médias de instrução, inteligência e diligência normais –, entenderá que foi porque as partes o não quiseram convencionar pois se o quisessem o contrário tê-lo-iam deixado expresso, nada permitindo que se equacione coisa diversa.”

Na realidade, resulta do disposto no art. 236º, n.º 1, do C. Civil, que, em consonância com os princípios da proteção da confiança e segurança do tráfico jurídico, dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, a partir da qual a declaração deve ser focada.

Realce-se, porém, que a lei não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjetivo deste) e, por isso, concede-se primazia àquele que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário depreenderia (sentido objetivo para o declaratário).

Tal como salienta Paulo Mota Pinto (20), “há que imaginar uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este concretamente conheceu (…), e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo”; sendo que o declaratário normal corresponde ao bonus pater familias”, equilibrado e de bom senso (21); pessoa de qualidades médias, de instrução, inteligência e diligência normais.

Outrossim, cumpre realçar que, nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto (art. 238º, n.º 1, do C. Civil); ou seja, para que possa va­ler, o sentido atribuído pelo “declaratário normaldeverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento que serve de suporte à declaração.

Todavia, o sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer, em casos excecionais, se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa vali­dade (art. 238º, n.º 2, do C. Civil), o que não se verifica in casu até pela importância e sindicância a que está sujeito o acordo dos cônjuges quanto ao destino da casa de morada de família (cfr. arts. 1775º, n.º 1, al. d) e n.º 2, 1776º, nºs 1 e 3 e 1778º e 1778º-A, todos do C. Civil).

Por conseguinte, não obstante este entendimento jurisprudencial, essencialmente resultante do citado Ac. STJ de 13.10.2016, se nos afigurar correto, como ponto de partida – sendo certo que, no caso em presença até se revela bastante, tal como consta da sentença recorrida –, não deixaremos de salientar que o mesmo terá necessariamente de ser interpretado de acordo com o regime emergente do disposto no atual n.º 3 do art. 1793º, do C. Civil (introduzido pela Lei n.º 61/2008, de 31.10).

Assim, decorre em primeira linha desta última jurisprudência citada que, não tendo ficado explicitamente estabelecido e decidido, por acordo entre os ex-cônjuges, que a atribuição da casa de morada da família a um deles dependeria de uma contrapartida pecuniária a prestar ao outro, fica excluída a possibilidade deste último vir ulteriormente, em ação declarativa comum (por via principal ou reconvencional), pedir e obter essa mesma contrapartida pecuniária, unicamente fundamentada nesse direito, que eventualmente lhe assistiria, mas que do mesmo acordo não fez constar. (22)

Foi aliás o que aconteceu, no caso em presença, e daí que a decisão recorrida julgou improcedente o peticionado, neste âmbito, pela autora, sem necessidade de desenvolver quaisquer outras considerações.

No entanto, sempre se esclarece que isso não significa que qualquer um dos ex-cônjuges se veja privado de recorrer ao tribunal, a fim de alterar a decisão ou o acordo incidente sobre a atribuição da casa de morada da família.

Com efeito, tal como o defendido pelo Ac. STJ de 07.06.2011 (23), que após citar várias decisões judiciais que se pronunciaram no sentido da inalterabilidade do acordo de atribuição da casa de morada da família, homologado por sentença judicial, salientando ainda entendimento diverso na doutrina e na jurisprudência, conclui-se que: “Esta questão foi resolvida na recente alteração do Código Civil introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, que aditou ao artigo 1793.º do Código Civil, com a epígrafe “Casa de morada de família”, o n.º 3 com a seguinte redacção: “o regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.

Assim, sempre assistirá ao ex-cônjuge, que se veja posteriormente desfavorecido com o acordo celebrado sobre o destino da casa de morada da família, alterar tal resolução tomada em processo de jurisdição voluntária, lançando mão de um outro processo (ou incidente), igualmente de jurisdição voluntária, que configuramos como de atribuição/alteração da casa de morada da família, com base nas disposições conjugadas dos artigos 1793º, n.º 3, do C. Civil, e 988º, n.º 1 e 990º, do C. P. Civil.

De qualquer modo, esta alteração, com recurso aos meios processuais próprios da jurisdição voluntária, designadamente em face do disposto no art. 988º, n.º 1, do C. P. Civil, pressupõe necessariamente a alegação e demonstração de uma “alteração superveniente das circunstâncias” que estiveram na base daquele acordo. (24)

Ou seja, a autora não poderia na ação em presença (de legalidade estrita) reclamar, a declaração de crédito que pede a seu favor, fundamentada unicamente numa compensação pecuniária que alegadamente lhe é devida pelo uso exclusivo do réu de um bem que faz parte do património comum do ex-casal, quando é certo que antes celebrara com o seu ex-marido um acordo, no qual não se previa explicitamente qualquer compensação/renda pela utilização exclusiva da casa de morada da família, por parte deste.

Caso pretendesse obter do réu a respetiva compensação pecuniária pelo uso exclusivo que o mesmo faz da casa de morada da família, pertencente ao casal, teria de pedir, através de processo (ou incidente) de jurisdição voluntária, agora expressamente permitido no art. 1793º, n.º 3, do C. Civil, a alteração do mencionado acordo, alicerçado em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração pretendida (art. 988º, n.º 1, do C. P. Civil).

Não foi, porém, este o caminho seguido pela autora.

De todo modo, sempre se dirá que não ficaram demonstradas quaisquer alterações supervenientes, em desfavor da autora, no que se refere ao acordo inicial celebrado, sendo certo que, em princípio, a pretendida compensação só poderia produzir efeitos para o futuro, a partir do momento em que a mesma é pedida, através de processo (ou incidente) para esse efeito intentado, e não, conforme é pretendido pela recorrente, com efeitos a partir de Junho de 2013.

Concluímos, pois, que deverá soçobrar integralmente a pretensão recursiva da autora.
*

V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, pois, a sentença recorrida.

Custas pela apelante (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.
*
*
Guimarães, 14.06.2018

António José Saúde Barroca Penha
Eugénia Marinho da Cunha
José Manuel Alves Flores



1. Vide, neste sentido, J. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, 3ª edição, pág. 139.
2. Sobre a fundamentação das decisões judiciais, vide, por todos, Ac. do STJ de 24.11.2015, Processo n.º 125/14.5FYLSB, relator Souto Moura, acessível em www.dgsi.pt. (além da demais jurisprudência citada neste aresto).
3. Vide, neste sentido, por todos, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 687.
4. Ob. citada, Vol. V, pág. 140.
5. Vide, ainda, no mesmo sentido, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 609; e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, págs. 221-222.
6. Vide, neste sentido, Ac. do STJ de 02.03.2011, proc. n.º 161/05.2TBPRD.P1.S1, relator Sérgio Poças; e Ac. da Relação do Porto de 16.06.2014, proc. n.º 722/11.0TVPRT.P1, relator Carlos Gil., ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
7. Ob. cit., págs. 689/690. Ao nível da jurisprudência, vide, no mesmo sentido, por todos, Ac. RP de 29.06.2015, proc. n.º 1106/12.9YYPRT-B.P1, relator Alberto Ruço; Ac. RP de 01.06.2015, proc. n.º 843/13.5TJPRT.P1, relator Caimoto Jácome; e Ac. STJ de 04.05.2017, proc. n.º 2886/12.7TBBCL.G1.S1, relator Tavares de Paiva, todos in www.dgsi.pt.
8. Ob. citada, pág. 141.
9. Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 151.
10. In Teoria Geral das Obrigações, Almedina, 3ª edição, págs. 63-64.
11. Abuso de Direito, BMJ n.º 85, pág. 253.
12. Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 5ª edição, pág. 499.
13. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 299.
14. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 298.
15. Neste sentido, cfr. Antunes Varela, ob. cit. pág. 499.
16. Cfr. desenvolvimentos doutrinais e jurisprudenciais realizados por António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, V, Parte Geral, Exercício Jurídico, Almedina, 2ª edição, 2015, págs. 295 a 381.
17. Cfr. António Menezes Cordeiro, ob. cit. em nota anterior, págs. 372-381.
18. Proc. n.º 135/12.7TBPBL-C.C1.S1, relator Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt.
19. Proc. n.º 3175/16.3T8VIS.C1, relatora Sílvia Pires, disponível em www.dgsi.pt.
20. Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Almedina, 1995, pág. 208.
21. Neste sentido, cfr. Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2ª edição, Lex, 1996, pág. 348; e Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 3ª edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 415.
22. No mesmo sentido, cfr. Ac. RG de 18.01.2018, proc. n.º 120/16.0T8EPS.G1, relator José Amaral, acessível em www.dgsi.pt.
23. Proc. n.º 4162/09.3TBSTB.E1.S1, relator Salazar Casanova, acessível em www.dgsi.pt.
24. Neste sentido, cfr. por todos, Ac. RG de 28.09.2017, proc. n.º 1163/13.0TBPTL-G.G1, relatora Raquel Baptista Tavares; Ac. RP de 25.02.2013, proc. n.º 2891/11.0TBVNG.P1, relator Caimoto Jácome; Ac. RP de 22.05.2017, proc. n.º 395/12.3TBVLC-I.P1, relator Carlos Querido; e Ac. RL de 08.10.2015, proc. n.º 367/12.8TMLSB-B.L1-8, relator Ferreira de Almeida. Ao nível doutrinal, em especial, sobre os critérios a ter em consideração quanto à “alteração substancial e anormal das circunstâncias” cfr. Nuno de Salter Cid, in A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português, Almedina, 1996, págs. 314-316; e A Alteração do Acordo sobre o Destino da Casa de Morada da Família, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Coimbra Editora, 2004, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, págs. 275-300.