Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6416/21.1T8BRG.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: SANEADOR-SENTENÇA
CADUCIDADE
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - Não deve conhecer-se imediatamente do mérito da causa, após os articulados, quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, existe matéria controvertida que importa apurar.
2 –Não pode esquecer-se o que atualmente resulta do disposto no artigo 5.º do CPC quanto ao ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal, devendo o juiz, na sentença, ponderar os factos complementares e os factos concretizadores de anteriores afirmações de pendor mais genérico que tenham sido feitas e, acautelando, sempre, o exercício do contraditório, verter na sentença aquilo que emergir da apreciação livre e crítica dos elementos probatórios,
3 – Assim, a eventual incompletude no cumprimento do ónus de alegação das partes, relativamente a factos complementares ou concretizadores dos inicialmente alegados, não tem efeitos preclusivos, pois os mesmos podem chegar à sentença em face do que resulte da instrução.
4 – Por outro lado, o juiz deve assegurar um processo equitativo, convidando as partes a suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada nos seus articulados, em fase anterior à audiência prévia ou no decorrer desta.
5 – Trata-se de um verdadeiro dever legal do juiz, traduzindo-se num despacho de aperfeiçoamento vinculado, no sentido de identificar os aspetos merecedores de correção, traduzindo-se a omissão desse despacho em nulidade processual por omissão de ato que influi na decisão da causa (artigo 195.º do CPC), que deverá ser apreciada no âmbito do recurso interposto (por a nulidade estar coberta por decisão judicial que sancionou a respetiva omissão).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

AA, por si e na qualidade de cabeça de casal das heranças abertas e indivisas por óbito de BB e de CC, casados que foram no regime de comunhão geral de bens, falecidos, respetivamente, em ../../1980 e ../../2003, deduziu ação declarativa contra DD, EE, FF e GG e mulher HH pedindo que:

a) Seja declarado que BB e CC construíram e conservaram, às suas expensas, uma habitação composta de ..., com duas divisões e cozinha, ... andar com quatro divisões, uma dependência anexa destinada a WC, com logradouro, no imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...75, que se encontra descrito na ... CRP ... sob o n.º ...03;
b) Seja declarado que BB e CC aí residiram, e estiveram na posse, agindo como de proprietários se tratassem e na convicção de o serem, durante mais de quinze e vinte anos, respetivamente, continuadamente, de forma pública, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, conscientes de exercerem um direito próprio e convencidos de não lesarem direitos de terceiros e, inclusivamente, com o conhecimento e concordância do falecido II (filho daqueles) e das rés DD, EE e FF (respetivamente, viúva e filhas do II);
c) Seja declarado que BB e CC adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre tal imóvel, pelo facto de terem estado na posse do mesmo durante mais de quinze e vinte anos, respetivamente, nos termos da alínea anterior;
d) Caso assim não se entenda e sem prescindir e caso seja julgada improcedente a alínea anterior, seja declarado que foi transmitido para BB e CC, por acessão industrial imobiliária, o direito de propriedade sobre o referido prédio, incluindo a construção nele implantada;
e) Seja declarado que esse prédio integra as heranças ilíquidas e indivisas por óbito de BB e CC, pertencendo em comum aos seus herdeiros legais, ou seja, JJ, KK, LL, AA, MM e, em representação de II, as rés DD, EE e FF;
f) Seja declarado nulo o registo de aquisição a favor de II, assim como os registos de aquisição a favor das rés DD, EE e FF;
g) Seja declarada nula, por constituir venda de coisa alheia, a aquisição pelos réus GG e HH e, consequentemente, declarado nulo o registo de aquisição a favor dos mesmos;
h) Seja declarado que os réus GG e HH são adquirentes de má-fé, porquanto sabiam que a habitação em causa não pertencia às rés DD, EE e FF;
i) Sejam os réus condenados a restituir a parcela de terreno e a habitação nela implantada às autoras ou, se tal não for possível, a pagar o respetivo valor em execução de sentença.
Contestaram as rés DD, EE e FF, excecionando a ilegitimidade do autor, por não ser o cabeça de casal da herança e por não estarem em juízo todos os herdeiros e, por impugnação, alegando ser o seu falecido marido e pai o proprietário do imóvel em causa. Pedem, ainda, a condenação do autor como litigante de má-fé, em multa e indemnização, nunca inferior a três mil euros a favor de cada uma das rés.
Contestou, também, o réu GG, alegando ser maior e solteiro e que comprou o prédio nessa qualidade, apesar do lapso que consta na escritura e que passou para o registo, onde consta como casado, pelo que a ré HH é parte ilegítima. Excecionou, também, a ilegitimidade do autor e das rés EE e FF, por estarem desacompanhados dos respetivos cônjuges. Excecionou, ainda, a caducidade do direito do autor e demais herdeiros de aceitarem a herança de seus pais, face ao tempo decorrido desde a morte destes. Contestou por impugnação. Pediu que se reconheça ao réu o seu direito de propriedade exclusiva, plena e privada sobre o imóvel em causa, desde ../../2011 até ../../2021, data em que vendeu o imóvel, por o ter adquirido por meio de escritura de compra e venda, reconhecendo-se que tal propriedade, se outro título não houver, lhe adveio por usucapião, reconhecendo-se como válido e plenamente eficaz o registo que dessa propriedade foi feito a seu favor. Finalmente, pede que o autor e a herança que representa, sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 64.276,00, a título de danos patrimoniais.
Contestou, ainda, HH, excecionando a ilegitimidade do autor por estar desacompanhado dos demais herdeiros. No mais, alegou que nunca foi casada com GG e que, à data da compra do imóvel viviam em união de facto, tendo a contestante contribuído com metade do valor da aquisição e tendo ficado acordado entre todos os herdeiros que o valor de € 15.000,00, relativo ao negócio de aquisição da casa de morada de família dos seus avós, incluindo o logradouro e terreno adjacente, seria distribuído por todos na medida e proporção dos respetivos quinhões, o que acabou por não ser feito. Pede que a ação venha a ser julgada na medida da prova que vier a ser produzida e que, em caso de restituição do preço declarado no contrato de compra e venda celebrado em ../../2011, deve a ré ser reintegrada da quantia de € 7.500,00 diretamente das respetivas vendedoras e co-rés DD, EE e FF por haverem embolsado tal quantia a título do preço pago pelo negócio.
O autor replicou respondendo à matéria de reconvenção.
A convite do tribunal, respondeu, também, à matéria de exceção, designadamente, quanto à exceção de caducidade, que aqui nos interessa, como se verá à frente, alegando ter aceite as heranças abertas por óbito dos seus pais logo após a morte destes.
A sociedade “EMP01..., Lda.” veio deduzir incidente de intervenção principal espontânea, por ter interesse paralelo ao dos réus, alegando ser a atual proprietária do imóvel em discussão nos autos, que adquiriu em novembro de 2021, intervenção que foi admitida.
O autor respondeu à intervenção da EMP01... pugnando pela má-fé do vendedor e do comprador do negócio em questão.
Foi proferido, a 16/11/2022, despacho do seguinte teor:
“Pondera-se a possibilidade de dispensar a realização de audiência prévia, uma vez que serviria apenas para os fins indicados nas als. a), c), d), e) e f) do nº 1 do artº 591 do CPC e pretende-se, desta forma, optimizar a agenda e evitar deslocações acrescidas das partes ao Tribunal
Resulta, ainda, dos autos que o autor já tomou posição sobre as excepções deduzidas na contestação.
Assim ao abrigo dos princípios do contraditório e gestão processual (artºs 3º e 6º do CPC), determino a notificação das partes para que:
- informem se concordam com a dispensa de realização de audiência prévia;
- dão por reproduzidos os argumentos que já expenderam nos articulados existentes nos autos no que toca às questões “supra” referidas;
- ou têm algo mais a acrescentar sobre os assuntos em causa, podendo fazê-lo, por escrito, no pressuposto que dispensam a audiência prévia”.
Por despacho proferido a 06/12/2022, foi o autor convidado a sanar a sua ilegitimidade, através da intervenção na ação de todos os herdeiros, o que este fez, requerendo a intervenção principal provocada de KK, JJ e MM e dando conta que a herdeira LL faleceu sem descendentes, intervenção que foi admitida e citados os chamados, que vieram aos autos dizer que pretendem fazer seu o articulado do autor, a fim de fazer valer o seu direito paralelo ao do dito.
A 30/04/2023 foi renovado o despacho proferido a 16/11/2022 relativo à dispensa da audiência prévia, tendo todas as partes dado a sua anuência.

Foi, então, proferida sentença que julgou parte ilegítima a ré HH e declarou a total improcedência dos pedidos efetuados nos autos face à procedência da invocada exceção da caducidade do direito de aceitação da herança por parte dos autores “que se estende necessariamente, e porque perderam os autores a qualidade de herdeiros (atenta a caducidade ora declarada) ao direito de reivindicar, como aqui pretendiam os autores, com base na qualidade de herdeiros de BB e CC, o imóvel que alegadamente a integrava, fosse por usucapião ou por acessão industrial imobiliária”. Mais se considerou prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional.

O autor interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1. A decisão recorrida conheceu imediatamente do mérito da causa e da exceção de caducidade invocada, nos termos do art.º 595.º n.º 1 b) e n.º 3 do CPCiv, porque o Tribunal recorrido entendeu que havia condições para decidir de imediato, atendendo aos factos que considerou assentes.
2. Sucede, porém, que o estado do processo não permitia, sem mais, o conhecimento do mérito da causa, o qual estava prejudicado pela necessidade de produção de prova adicional, designadamente no que respeita à matéria subjacente à própria exceção de caducidade invocada nos autos.
3. Toda a fundamentação da decisão decorrida foca-se na doutrina e jurisprudência sobre a matéria controvertida – em que termos ocorre a aceitação da herança e o que consubstancia uma aceitação da mesma.
4. Dispõe, a este respeito, o art.º 2056.º do CCiv que a aceitação pode ser expressa ou tácita; é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir.
5. A Lei não define o que consubstancia uma aceitação tácita da herança, pelo que se tem como aplicável o critério consignado no art.º 217.º do CCiv, devendo entender-se como aceitação tácita da herança a manifestação de vontade que se deduz de simples factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
6. Decisivo é, pois então, saber se existem elementos reconhecíveis da intenção do herdeiro em adquirir a herança, caso em que se tem de entender que ocorreu a sua aceitação.
7. Em resposta à exceção de caducidade invocada na contestação do Recorrido, o Recorrente alegou a aceitação prévia da herança.
8. Face à invocação da exceção da caducidade em sede de contestação, este facto – a aceitação prévia da herança - era um facto essencial constitutivo da causa de pedir e fundamento de direito subjacente à própria ação.
9. O Recorrente não afirmou se tal aceitação fora expressa ou tácita, tendo-se limitado a alegar que a herança fora aceite previamente.
10.Tendo sido alegado esse facto – a aceitação da herança - tal alegação não carecia de ter sido preenchida pela alegação de qualquer outro facto concreto de aceitação expressa ou tácita da herança.
11.Tal exigência, conforme sustentada pela douta sentença recorrida, carece de fundamento legal.
12.O alegado nos articulados não constitui prova ou meio de produção de prova, sendo meramente aquilo que as partes submetem à apreciação do Tribunal e que permitirá a este, designadamente, determinar o objeto do litígio e dos temas da prova, conforme decorre do art.º 5.º do CPCiv.
13.Do confronto do alegado pelo Autor/Recorrente e pelo Réu, decorre que a aceitação tempestiva da herança era um facto essencial controvertido, para efeitos do art.º 581.º n.º 4 do CPCiv.
14.O facto ‘Os Autores aceitaram previamente a herança’ era um facto que carecia de produção de prova.
15.Nos termos do art.º 342.º CPCiv competiria ao Recorrente – por ter invocado a aceitação da herança – provar esse facto.
16.Perante tal alegação impunha-se ao Tribunal apurar e permitir ao Recorrente usar os meios de prova ao seu dispor – prova testemunhal ou prova documental – para concretizar os termos dessa aceitação e as circunstâncias de tempo e de lugar em que a mesma ocorreu, para o que estava em prazo nos termos dos art.ºs 423.º n.º 1 e n.º 2, 552.º n.º 6, 598.º n.º 1 e n.º 2
17.Para que o Tribunal recorrido pudesse aplicar a norma jurídica da caducidade, seria necessário que se encontrassem provados os factos que essa norma pressupõe.
18.E ao ter decidido conforme decidiu, o Tribunal recorrido simplesmente não permitiu ao Recorrente provar que a herança fora previamente aceite.
19.Embora a jurisprudência vá no sentido de que tal participação do óbito às Finanças é insuficiente para dar a herança como aceite, o certo é que tal facto deve ser conjugado com outros que resultem da prova a produzir.
20.Dos autos resulta que, em 2004, após a morte da mãe do Recorrente, foi feita uma participação do óbito às Administração Tributária, tendo sido, nessa ocasião, indicados como herdeiros o Recorrente e os seus irmãos.
21.Resulta também dos autos que uma das herdeiras reside no imóvel em apreço.
22.De tudo quanto exposto resulta que, ao contrário do considerado pelo tribunal recorrido, a produção de prova era necessária, não sendo possível concluir, sem mais, que a exceção da caducidade é procedente.
23.Em suma, o apuramento dos factos pode afastar o fundamento proclamado para decidir pela procedência da exceção de caducidade, apresentando-se a decisão de mérito tomada no saneador, apenas com os dados já assentes, indubitavelmente como prematura.
24.Para além da solução de direito encontrada na decisão recorrida, os autos impõem que se ponderem outras possibilidades, considerando a factualidade alegada e o direito aplicável, pelo que, e mostrando-se controvertida a correspondente matéria fáctica, deveriam os autos prosseguir.
25.Como consequência do que se deixa exposto, impõe-se a revogação da decisão proferida e o prosseguimento dos autos, para averiguação dos factos controvertidos relevantes para a decisão da causa, tendo em vista as várias soluções plausíveis para a resolução da questão de direito.
26.Nestes termos, incorreu aqui o Tribunal a quo num erro de juízo e de julgamento, não decidindo corretamente a questão que lhe foi submetida, porque apreciou incorretamente os factos, o que consubstancia um vício de conteúdo que põe em causa o fundo ou o mérito da decisão.
Caso assim não se entenda e sem prescindir,
27.Ainda que seja defensável que “face à invocada caducidade não bastava aos AA alegar que logo aceitaram a herança após os falecimentos, antes se lhes impondo alegar quando e de que modo concreto tal sucedeu”, sempre se dirá que o Tribunal recorrido deveria ter convidado o Recorrente a aperfeiçoar o seu articulado, por considerar o mesmo deficitário, imperfeito, incompleto ou pouco claro, nos termos do art.º 590.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4 do CPCiv..
28.Com efeito, decorre do art.º 590.º, n.º 2, alínea b) do CPCiv que, findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados.
29.Nos termos do n.º 4 do mesmo preceito, incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
30.Estamos, pois então, perante uma nulidade processual, nos termos dos art.ºs 195.º, n.º 1, 197.º, 199.º, 200.º, n.º 3 e 201.º do CPCiv, nulidade essa que aqui vai arguida para os legais efeitos.
31.Foram violadas as normas ínsitas nos artigos 2047.º, 2056.º, 2059.º e 2065.º, n.º 2, 236.º do CCiv, bem como os artigos 5.º, 217.º, 218.º, 236.º, 342.º, 423.º, n.º 1 e n.º 2, 552.º, n.º 6, 581.º, n.º 4, 590.º, n.º 2, alínea b), 595.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3, 598.º, n.º 1 e n.º 2, todos do CPCiv.
Termos em que deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, e determinada a remessa dos autos à primeira instância para que ali prossigam a sua marcha.

Os réus contra-alegaram, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a decidir traduz-se em saber se era possível já, na fase pós articulados, conhecer da eventual caducidade do direito dos autores ou se o processo necessitava de ulterior instrução.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:

- BB e CC faleceram em 1980 e 2003 respetivamente, sem testamento ou disposição de última vontade;
- Sucederam-nos os filhos, AA; MM, LL, solteira, entretanto falecida sem descendentes; JJ e KK, e as suas duas netas, FF e EE, filhas do filho pré-falecido, II.
- Foi instaurado junto da AT a 24.3.2004 processo de ..., por morte de CC – ver certidão de fls. 22v.
- A habilitação de herdeiros dos falecidos foi feita a ../../2021 – ver fls. 12 e ss.
- Os prédios em causa nos autos nunca foram registados a favor dos falecidos, enquanto vivos, nem pelos seus herdeiros, a favor da herança, após os falecimentos – ver teor das certidões de fls. 17 e ss.
- O prédio em causa nos autos foi registado a favor da herança de II no ano de 2006, estando anteriormente e desde 1963, registado a favor do referido II.
- As herdeiras do referido II venderam o prédio ao R. GG em 2011, que a 18.11.2021, o transmitiu à Sociedade EMP01..., Lda
-  A presente ação, onde os AA reivindicam para a herança dos seus pais o prédio inscrito na matriz predial urbana sob o º 275 e descrito na CRpredial de ... sob o nº ...03, foi intentada a 24.11.2021.

A sentença recorrida considerou que, caducando o direito de aceitar a herança ao fim de 10 anos contados desde que o sucessível teve conhecimento de a ela ser chamada, e tendo os pais dos autores falecido em 1980 e 2003, respetivamente, não estando alegada a aceitação expressa ou tácita da herança, caducou o direito que os autores pretendem ver reconhecido, uma vez que, com esta caducidade se perde a própria qualidade de herdeiro e, como tal, a possibilidade de reivindicar bens pertença da herança.

O autor, enquanto herdeiro dos falecidos BB e CC (posteriormente acompanhado pelos demais herdeiros), reivindicou para a herança a propriedade de determinado imóvel (seja por usucapião, seja por acessão industrial imobiliária), com a nulidade dos registos a favor dos réus e dos negócios que lhe estão subjacentes, por entender que consubstanciam venda de coisa alheia.
Notificado para se pronunciar sobre as exceções invocadas pelos réus, designadamente a caducidade invocada pelo réu GG, o autor alegou que “aceitou as heranças abertas por óbito de seus pais, logo após a morte destes”.
Vejamos, então, se podia ser conhecida, de imediato, a caducidade, com base nos elementos existentes nos autos.
Como é sabido e decorre do disposto no artigo 2050.º, n.º 1 do Código Civil, a aceitação da herança é necessária para a aquisição da qualidade de herdeiro, sendo que a aceitação pode ser expressa ou tácita – artigo 2056.º do Código Civil.
O n.º 2 deste artigo estabelece que a aceitação é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir, sendo que os atos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança (n.º 3).
Já quanto à aceitação tácita, tem sido aceite a noção geral dada no artigo 217.º, n.º 1 do Código Civil – “quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam” -, sendo múltiplos os meios admitidos. Veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, pág. 209. “Qualquer processo de expressão direta ou indireta da vontade é, em tese geral, relevante. Todos os meios de comunicação do pensamento são admitidos como forma de manifestação do consentimento (…) Deve verificar-se (citando Manuel de Andrade) aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões, prevalecendo um critério prático, social e não rigorosamente lógico ou formal”. Conforme referem os mesmos autores, agora no vol. VI, pág. 93: “na prática, a herança é, as mais das vezes, aceite tacitamente, por factos e não por palavras”.
No que respeita ao critério para aferir da inequivocidade dos factos concludentes na declaração tácita, “sustenta Mota Pinto, in, Teoria Geral do Direito Civil, 3a edição, página 425 que o art.º 217º n.º1 do Código Civil “não exige que a dedução, no sentido de auto regulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade”, arrimando, assim, a um critério prático e não estritamente lógico, outrossim, Rui de Alarcão, in, A confirmação dos negócios anuláveis, Volume I, página192, “há que buscar um grau de probabilidade da vida da pessoa comum, de os factos serem praticados com determinado significado negocial, ainda que não seja afastada a possibilidade de outro propósito” e ainda, no mesmo sentido, Manuel de Andrade, in, Teoria Geral da Relação Jurídica, 1953, página 81 “aquele grau de probabilidade que baste na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões” – Acórdão do STJ de 30/05/2023, processo n.º 28471/17.9T8LSB.L1.S1 (Pedro de Lima Gonçalves), in www.dgsi.pt.
Neste sentido, e citando as disposições legais, veja-se, também, o Acórdão da Relação de Guimarães de 01/03/2018, processo n.º 384/17.1.T8GMR-A.G1 (Sandra Melo), in www.dgsi.pt: “Existe aceitação tácita da herança quando o sucessível tem comportamentos que criam uma situação da qual se conclua que com toda a probabilidade aceitou a herança (artigo 217º do Código Civil), sendo esta aferida com os padrões que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento daquele (artigo 236º do Código Civil)”.
Ora, conforme decorre do disposto no artigo 2059.º, n.º 1 do Código Civil, o direito de aceitar a herança caduca ao fim de dez anos, contados desde que o sucessível tem conhecimento de haver sido a ela chamado.
Foi com base nesta norma que se considerou na sentença recorrida a caducidade do direito dos autores de aceitação da herança e consequente perda da qualidade de herdeiros.
Contudo, deve dizer-se, o apelante tem razão quando diz que a decisão de mérito no saneador foi prematura.

Vejamos melhor.
Tendo sido invocada a caducidade, o autor respondeu, alegando que aceitou as heranças abertas por óbito de seus pais, logo após a morte destes.
Trata-se de facto que não pode ser desprezado e que, a provar-se, é impeditivo da caducidade invocada, pelo que, existindo factos controvertidos, não poderia ter sido proferida decisão de mérito no saneador.
Veja-se que resulta dos articulados, para além da participação do óbito da mãe do autor à Administração Tributária, tendo sido indicados como herdeiros os autores e as rés EE e FF (ainda que este simples facto, desacompanhado de outros, venha sendo entendido pela jurisprudência como insuficiente para dar a herança como aceite), que uma das herdeiras residiu sempre no imóvel em apreço, sendo que a residência no imóvel objeto da herança pode já ser considerado um fator de aceitação tácita da mesma, conjugado com a alegação do conhecimento de todos acerca da realidade da herança e, ainda, dos acordos existentes no momento da venda, para que o montante obtido com a mesma fosse dividido por todos os herdeiros na proporção dos seus quinhões.
Finalmente, não pode esquecer-se o que atualmente resulta do disposto no artigo 5.º do CPC quanto ao ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal, pois, se é certo que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, além destes, serão ainda considerados pelo tribunal, os factos instrumentais que resultem da instrução da causa e os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
Ou seja, na sentença, o juiz deve ponderar os factos complementares e os factos concretizadores de anteriores afirmações de pendor mais genérico que tenham sido feitas, acautelando, sempre, o exercício do contraditório, vertendo na sentença aquilo que emergir da apreciação livre e crítica dos elementos probatórios, designadamente, da prova testemunhal, documental e/ou pericial – cfr. Abrantes Geraldes e outros, in CPC Anotado, vol. I, pág. 27.
Pode, assim, concluir-se que a eventual incompletude no cumprimento do ónus de alegação das partes, relativamente a factos complementares ou concretizadores dos inicialmente alegados, não tem efeitos preclusivos, pois os mesmos podem chegar à sentença em face do que resulte da instrução.
Tendo sido alegado o facto essencial de que a herança foi aceite logo após a morte dos pais dos autores, cabe a estes efetuar tal prova, pois se trata de facto impeditivo da exceção de caducidade invocada – cfr. artigo 342.º do Código Civil, quanto ao ónus da prova – não estando o tribunal dispensado de considerar os factos instrumentais e/ou complementares que resultem da instrução da causa e que sejam concretização daqueles, conforme supra salientámos.

Finalmente, diga-se que, se a Sra. Juíza considerou que tal alegação era insuficiente, deveria, então, ter convidado a parte a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se completasse ou corrigisse o inicialmente produzido – artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b) e 4 do CPC.
Com efeito, em fase anterior à audiência prévia – artigo 590.º, n.º 2 b) e n.º 4 do CPC – ou na própria audiência prévia – artigo 591.º, n.º 1 c) do CPC – cabe ao juiz providenciar pelo suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto e que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate entre as partes, assim assegurando um processo equitativo, conforme decorre do disposto no artigo 547.º do CPC e está expressamente previsto nos artigos 590.º, n.º 2 b) e n.º 4 e 591.º, n.º 1 c), ambos do CPC.
A solução do convite ao aperfeiçoamento teve a sua origem no reforço dos poderes inquisitórios do juiz, vai buscar o seu fundamento à ideia da prevalência da decisão de mérito sobre puras decisões de forma.
Como refere Antunes Varela, in RLJ, ano 130.º, pág. 195, nota 83: “mais do que um poder do juiz, prevê-se um dever oficial de agir”. Pretende-se impedir que o conhecimento do mérito da causa ou a justa composição do litígio sejam prejudicados por razões de pura forma, designadamente, entre outras e para o que aqui releva, relacionadas com a deficiente, insuficiente ou imprecisa articulação da matéria de facto – veja-se Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II volume, 4.ª edição revista e atualizada, pág. 69.
Concede-se ao juiz o poder de proferir uma decisão convidando as partes a suprir insuficiências na exposição ou concretização da matéria de facto. “Trata-se de um poder-dever ou de um poder funcional a desencadear pelo juiz sempre que seja confrontado com uma situação que, não sendo remediada, conduza a uma decisão prejudicial à parte causadora das insuficiências ou imprecisões em qualquer dos articulados” – Abrantes Geraldes, in obra citada, pág. 73.
Tem-se em vista, designadamente, a falta de factos que contendem com as condições de procedência da ação (insuficiência), ou apenas imprecisões da matéria de facto ligadas à deficiente concretização da matéria factual, afirmações de pendor conclusivo ou suscitando dúvidas de interpretação, entre outras. Deve ter-se em vista cercear uma litigância precipitada nas conclusões e aligeirada nas asserções fáticas – CPC Anotado já citado, pág. 679 – convidando-se o réu a completar a sua defesa, alegando os demais factos omitidos com vista à subsunção na norma jurídica de que o réu pretende prevalecer-se (pág. 680).

Não tendo a Sra. Juíza despachado no sentido de providenciar pelo aperfeiçoamento do articulado em questão, e tratando-se de um poder vinculado e não discricionário do juiz, a omissão desse despacho é suscetível de gerar nulidade processual por omissão de ato que influi na decisão da causa (artigo 195.º do CPC), que deverá ser apreciada no âmbito do recurso interposto. Com efeito, estando a nulidade coberta por decisão judicial que sancionou a respetiva omissão, o meio próprio para a arguir é o recurso competente, uma vez que a nulidade processual apenas ganha relevo quando tal se projeta negativamente na decisão que é proferida, sendo a questão apreciada em sede de interposição de recurso – cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes e outros, in CPC Anotado, vol. I, pág. 683, com citação de jurisprudência concordante.

Procede, assim, a apelação, com a consequente revogação do saneador que julgou procedente a exceção de caducidade, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos, com instrução e julgamento da causa, devendo providenciar-se pelo convite ao aperfeiçoamento, caso se entenda necessário o mesmo.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se o saneador-sentença na parte em que julgou procedente a exceção de caducidade e determinando-se que os autos prossigam os seus ulteriores termos, conforme supra definido.
Custas pelos apelados.
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Guimarães, 11 de abril de 2024

Ana Cristina Duarte
Eva Almeida
Alexandra Rolim Mendes