Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3429/13.0TBBCL-B.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - As Atas de audiência de julgamento ou de qualquer diligência judicial são documentos públicos, qualificáveis como documentos autênticos, por força dos artigos 369º e ss. do Código Civil.
II - Os recursos destinam-se a apreciar as decisões impugnadas (cfr. artigo 627º n.º 1 do CPC) e, com exceção de questões de conhecimento oficioso, não podem decidir questões não apreciadas previamente pelas instâncias.
III - Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o venire contra factum proprium, a qual se manifesta no essencial pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou.
IV - Não atua em abuso de direito a interessada que pretende reclamar créditos sobre o património comum do extinto casal relativo a capital, juros, seguros, imposto de selo e comissões, para amortização do empréstimo contraído para aquisição de habitação junto do então Banco 1..., S.A., e relativo a comparticipação nas despesas de conservação e fruição das zonas comuns das frações autónomas, que pagou com o seu dinheiro próprio.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Nos autos de inventário por si instaurados para partilha de bens comuns, na sequência de divórcio, veio a interessada AA, notificada da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal BB, reclamar da mesma, acusando a falta de relacionação de passivo correspondente a dívidas que o património comum do extinto casal teria perante si mesma, reclamante, respeitantes às quantias que diz ter suportado exclusivamente e com dinheiro seu, após a propositura da ação de divórcio e até ../../2018, dívidas essas que assim quantificou:

a) no montante de €12.736,81, relativa a capital, juros, seguros, imposto de selo e comissões, para amortização do empréstimo contraído para aquisição de habitação junto do então Banco 1..., S.A.;
b) no montante de €4.448.10, relativa a comparticipação nas despesas de conservação e fruição das zonas comuns das frações autónomas que haviam sido relacionadas sob as verbas nºs 1, 2 e 3 do ativo;
c) no montante de €285,02, relativa a despesas com eletricidade e água das identificadas frações autónomas.

Foi proferido despacho em 02/03/2023 a determinar a notificação do cabeça-de-casal para, em 10 dias, declarar se impugna ou não (e fazendo-o, com que fundamentos) as dívidas reclamadas pela requerente do inventário, sob cominação de, não o fazendo, as mesmas virem a ser consideradas reconhecidas.
O cabeça-de-casal veio pronunciar-se afirmando manter o que alegara na resposta à reclamação contra a relação de bens, e acrescentado não saber o que a sua ex-cônjuge pagou o não pagou, mas impugnando que ela tivesse liquidado qualquer valor, assim como os documentos por ela juntos, por não provarem que tivesse realizado quaisquer pagamentos.
Acrescentou ainda ter ficado acordado com a interessada AA que esta ficaria a residir na casa de morada de família, enquanto ele passaria a viver numa casa arrendada, acordando ainda que todos os custos referentes à morada da família seriam por ela suportados.
Concluiu o cabeça-de-casal que reivindicar agora o pagamento de custos decorrentes do gozo de um imóvel que só ela usou, enquanto ele teve de suportar uma renda de cerca de € 380,00 mensais para ter uma habitação, constitui um abuso de direito, assim pugnando pela total improcedência da reclamação do passivo.
A interessada AA teve oportunidade de exercer o contraditório sobre esta alegação do cabeça-de-casal, negando que alguma vez tivesse ficado estipulado que ela ficaria a residir na morada de família e que todos os custos referentes a essa casa seriam por si mesma suportados.
Acrescentou ainda que não ficou a residir naquela que era a habitação do extinto casal, nem gozou minimamente do imóvel, na medida em que, já anteriormente à propositura da ação de divórcio, se encontrava a viver com carácter de permanência numa outra habitação.

Finda a produção de prova, foi proferida decisão nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgando pala parcial procedência da reclamação, decido declarar reconhecidos os seguintes créditos da interessada AA sobre o património comum do extinto casal:
a) no montante de € 12.030,57 (doze mil e trinta euros e cinquenta e sete cêntimos), relativo a capital, juros, seguros, imposto de selo e comissões, para amortização do empréstimo contraído para aquisição de habitação junto do então Banco 1..., S.A.;
b) no montante de € 4.048,50 (quatro mil e quarenta e oito euros e cinquenta cêntimos), relativo a comparticipação nas despesas de conservação e fruição das zonas comuns das frações autónomas que haviam sido relacionadas sob as verbas nºs 1, 2 e 3 do ativo.
*
Custas do incidente pela reclamante e pelo cabeça-de-casal, na proporção do respetivo decaimento (artigos 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Notifique.
Após trânsito, conclua”.

Inconformado, apelou o cabeça-de-casal BB concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“CONCLUINDO:

ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
A) Foi considerada não provada a seguinte matéria de facto:
b) No processo de divórcio, as partes acordaram que o cabeça-de-casal passaria a viver numa casa arrendada e que todos os custos referentes à casa de morada de família seriam suportados pela interessada AA
B) O signatário recorda-se perfeitamente de se ter acordado em tribunal que a responsabilidade pelo pagamento das prestações bancárias pela aquisição das frações em causa seria suportado apenas pela interessada AA e convencido que tal constava da ata o recorrente alegou nos autos que tal tinha sido acordado no processo de divórcio.
C) Mas tal não impede que se considere provado o seguinte:
“as partes acordaram que o cabeça-de-casal passaria a viver numa casa arrendada e que todos os custos referentes à casa de morada de família seriam suportados pela interessada AA”
D) Essa prova indicia-se, desde logo, no acordo de conversão do divórcio de litigioso em mútuo consentimento onde está escrito:
”a) Existe casa de morada de família, a qual fica atribuída à requerente AA, ficando o requerido BB a residir na mesma pelo período máximo de noventa (90) dias, até se mudar para nova residência.”
E) Sem margem para dúvidas que a interessada AA ficou a residir na casa de morada de família, embora o tivesse negado nos autos, o que inquina todas as suas declarações. Assim, as declarações do recorrente nesse sentido devem merecer todo o crédito deste Venerando Tribunal.
F) Na fundamentação da decisão da matéria de facto escreveu-se:
Aquela versão do cabeça-de-casal foi negada pela reclamante. A testemunha CC não revelou possuir qualquer razão de ciência direta sobre aquele suposto acordo.”
G) Porém, tal se encontra em contradição com o que se diz antes sobre o depoimento da AA e da sua testemunha e logo a seguir sobre o depoimento da testemunha CC. Citamos:
“Para além da inverosimilhança das declarações a esse respeito prestadas pela reclamante AA e do depoimento da testemunha DD, a versão apresentada por estas foi infirmada pelo testemunho de CC. Esclareceu esta testemunha que mora na mesma rua onde se situa a habitação que era morada da família, e afirmou que depois do divórcio a reclamante ficou a residir na casa que que o casal partilhava antes do divórcio.”
H) O depoimento da AA e da testemunha DD não oferece credibilidade por um lado, mas, contraditoriamente, para o Sr. Juiz oferece por outro. Veja-se a assentada do depoimento do recorrente que consta da ata:
Reconheceu que as prestações bancárias e encargos associados, assim como as despesas de condomínio foram pagas pela requerente do inventário desde o momento em que ele saiu da casa de morada de família, o que sucedeu em 08-01-2014.
Acrescentou que na altura do divórcio ficou acordado entre si e a sua ex-mulher que ficaria ela responsável pelo pagamento das prestações do empréstimo bancário e das despesas de condomínio, uma vez que era ela quem ficaria a viver com os filhos do casal na casa de morada de família, tendo ele que passar a residir em casa arrendada
I)Não só o depoimento do recorrente oferece toda a credibilidade como a da sua ex-mulher AA não merece qualquer credibilidade. Por isso deverá alterar-se o julgamento da matéria de facto, considerando-se provada a existência desse acordo sobre o pagamento dos encargos bancários e outros nos termos referidos.
J) Acresce que, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, a testemunha EE, gravada com início às 11:08 h e fim às 11:16, (gravação de 1:23 a 6:14 minutos) mostrou conhecer os interessados, vivendo na mesma rua, convivendo com eles, e tendo assistido no tribunal recorr Do depoimento da testemunha resulta o seguinte:
a) mora na mesma rua onde se situa o apartamento em causa.
b) Via a AA por lá
c) Que numa audiência em tribunal ouviu da própria AA que suportaria as despesas.
Assim, e ao contrário do que consta da fundamentação do julgamento da matéria de facto, a testemunha tinha conhecimento do acordo pelo que o seu depoimento reforça as declarações do recorrente de que o acordo em causa foi celebrado.
K) Mas além disso há ainda a outras razões para considerar que houve esse acordo, que embora não sendo vertido para a ata do divórcio por mútuo consentimento, existiu.
a) Então houve não houve esse acordo, e a interessada AA estive 5 anos, desde o divórcio até à venda do imóvel, a pagar ao banco e a pagar os encargos de condomínio e nunca pediu ao recorrente a sua parte nesse valor?
b) Seria credível que não tivesse pedido esse valor quando levantou o dinheiro que ambos tinham das contas comuns do casal e tentou, neste inventário, ficar com esse dinheiro só para ela dizendo que era de sua propriedade e não bem comum?
c) E não é compreensível que, tendo-lhe sido atribuído o uso da casa de morada de família no divórcio ela suportasse o valor da prestação bancária, inferior a qualquer renda (ou prestação bancária) que o recorrente tivesse de suportar para ter uma casa onde viver, o que é facto notório pois resulta da experiência comum?
d) E também porque não pediu metade das despesas de eletricidade, água, gás e saneamento?
L) Todas esta razões levariam a considerar provado que “as partes acordaram que o cabeça-de-casal passaria a viver numa casa arrendada e que todos os custos referentes à casa de morada de família seriam suportados pela interessada AA”
Assim, deverá ser revogada a decisão proferida sobre a matéria de facto, dando-se este facto como provado.
M) Foi considerada como não provada a seguinte matéria de facto:
“O cabeça-de-casal teve de suportar uma renda de casa de € 380,00 mensais para ter uma habitação.”
Porém, na própria fundamentação da decisão, o Sr. Juiz do tribunal recorrido afirma que só o recorrente disse que teve de ir habitar uma casa arrendada. Há várias questões aqui a considerar.
a) As declarações de parte podem ou não valer como meio de prova?
Ora é óbvio que são um meio de prova a apreciar livremente pelo juiz, como tantos outros meios de prova. Assim o considera o artigo 466º do CPC.
b)  Sendo afirmativa a resposta a esta pergunta, outra se impõe: As declarações do recorrente são ou não credíveis?
Não considerou o tribunal recorrido que não fossem. Bem pelo contrário considerou que foram credíveis.
c) É ou não aceitável que, tendo de sair de casa e tendo de ir viver noutra casa tenha de se pagar renda ou outra prestação similar (empréstimo bancário, nomeadamente).
Entende o recorrente que sim.
d) Houve alguém que em tribunal tivesse infirmado as declarações do recorrente?
Não houve e o Sr. Juiz não afirmou isso na sentença.
N) Assim, esse facto deve considerar-se com provado, pelo menos no que toca à parte em que se alegada de que o recorrente foi viver para outra casa que arrendou.
O) Por outro lado, não se pronunciou ainda o tribunal sobre a seguinte matéria de facto com interesse para a decisão da causa:
A interessada AA viveu na fração comum do casal desde o divórcio até à venda do imóvel.
Ora deve dar-se como provada esta matéria de facto que tem manifesto interesse para a decisão da causa pelas razões referidas em 3º e 4º destas alegações que, por economia processual, se dão aqui como reproduzidas.
P) Dispõe o artigo 334º do Código Civil
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Tendo em conta estas disposição legal e a doutrina citada nas alegações, é manifesto que a recorrida AA está a cometer um abuso do direito com a sua pretensão de incluir no passivo do património comum do casal o valor das prestações bancárias por si pagas enquanto habitou a casa de morada de família.
Q) Por um lado acordou com o recorrente que suportaria ela o pagamento dos encargos com o uso da casa (prestações bancárias e encargos de condomínio) e vem agora, contra esse acordo, isto é, contra facto próprio, exigir que esses encargos sejam partilhados como passivo no presente inventário.
É uma violação clara do princípio da boa fé.
R) Por outro lado, mesmo que tal não sucedesse, o seu comportamento vai contra o fim social e económico do direito à partilha do passivo do património comum do casal.
S) Essa partilha tem como finalidade fazer com que nenhum cônjuge fique beneficiado ou prejudicado com despesas que fez em proveito do património comum do casal. Mas, como é claro, tal sucede desde que não tenha sido ele o beneficiado com o uso desse património. Caso contrário teria uma dupla vantagem: usava, em proveito exclusivo, o património comum do casal e, por outro lado, exigia do outro cônjuge uma retribuição pelo uso que ele próprio fez em seu proveito exclusivo.
T) Fazendo as contas às prestações bancárias pagas pela recorrida AA, elas são de, em média,190 euros mensais ao longo dos 5 anos, pelo que, habitando a casa de morada de família mediante uma contraprestação tão baixa, vir agora exigir que o que pagou seja considerado passivo dos cônjuges, é eticamente inaceitável, mesmo não tendo em consideração o acordo celebrado e que negou.
U) Dispõe o artigo 473.º do Código Civil
(Princípio geral)
1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.
V) Isto é, constitui enriquecimento sem causa a obtenção de uma vantagem indevida de caráter patrimonial seja qual for a forma que revista.
X) É manifesto que, tendo usado os bens imóveis do casal em seu proveito exclusivo, e vindo, neste inventário, a exigir que o recorrente comparticipe nos encargos decorrentes desse uso, está a recorrida a procurar receber uma vantagem indevida.
Y) A douta sentença recorrida violou os artigos 466º do CPC e 334º e 473º do Código Civil pelo que deverá ser revogada e substituída por outra na qual se considere improcedente a pretensão da requerida AA de que seja relacionadas como passivo do património comum do casal as quantias de 12.736,61 e 4.448,10 euros, verbas números 2 e 3 do passivo reclamado pela recorrida AA”.
A interessada AA apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo Recorrente, são as seguintes:

1 - Saber se há erro no julgamento da matéria de facto;
2 - Saber se há erro na subsunção jurídica dos factos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:
1. AA e BB contraíram entre si casamento civil no dia ../../1995, sem precedência de convenção antenupcial.
2. Esse casamento foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento decretado por sentença proferida a 12 de dezembro de 2013 nos autos de que estes são apenso, pacificamente transitada em julgado.
3. A ação na qual foi proferida essa sentença foi instaurada no dia 18 de novembro de 2013.
4. Desde ../../2014 até ../../2018, inclusive, a interessada AA pagou com o seu dinheiro próprio, através de débito direto na conta nº ...74, aberta no Banco 2..., S.A., anteriormente denominado Banco 1..., S.A., a quantia total de € 12.030,57 (doze mil e trinta euros e cinquenta e sete cêntimos) a título de capital, juros, seguros, imposto de selo e comissões, para amortização do empréstimo contraído pelo ex-casal junto do referido Banco para aquisição de habitação.
5. Desde ../../2014 e setembro de 2018, inclusive, a interessada AA pagou com o seu dinheiro próprio a quantia global de € 4.048,50 (quatro mil e quarenta e oito euros e cinquenta cêntimos) a título de comparticipação nas despesas de conservação e fruição das zonas comuns do Condomínio ... E, localizado na Rua ..., em ..., e do Condomínio ..., localizado na Rua ..., em ..., onde estão localizadas, respetivamente, a fração autónoma designada pela letras ... e às frações autónomas designadas pelas letras ... e ... descritas sob as verbas nºs 1, 2 e 3 da relação de bens.
6. Aquando da realização da tentativa de conciliação no processo de divórcio, acordaram as partes, além do mais, o seguinte: “Existe casa de morada de família, a qual fica atribuída à requerente AA, ficando o requerido BB a residir na mesma pelo período máximo de noventa (90) dias, até se mudar para nova residência”.
***
Factos considerados não provados em Primeira Instância:

a) Desde ../../2013 até ../../2018, inclusive, a interessada AA pagou, com seu dinheiro próprio, a quantia de € 285,02 a título de eletricidade, água e luz da fração autónoma designada pela letras ... e das frações autónomas designadas pelas letras ... e ..., descritas na relação de bens sob as verbas nºs 1, 2 e 3.
b) No processo de divórcio, as partes acordaram que o cabeça-de-casal passaria a viver numa casa arrendada e que todos os custos referentes à casa de morada de família seriam suportados pela interessada AA.
c) O cabeça-de-casal teve de suportar uma renda de casa de € 380,00 mensais para ter uma habitação.
d) A interessada AA não ficou a residir na casa de morada de família, nem gozou minimamente este imóvel após a propositura da ação de divórcio, já que residia e usava permanentemente outra habitação desde data anterior.
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3.2. Da modificabilidade da decisão de facto

Decorre do n.º 1 do artigo 662º do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do CPC, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto; in casu, mostram-se cumpridos tais ónus.
Sustenta o Recorrente que houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos b) e c) dos factos não provados e que falta aditar o seguinte facto: “A interessada AA viveu na fração comum do casal desde o divórcio até à venda do imóvel”.
Está em causa, no essencial, a matéria de facto julgada não provada pelo Tribunal a quo relativamente ao alegado acordo que as partes teriam realizado no processo de divórcio de que o cabeça-de-casal passaria a viver numa casa arrendada e que todos os custos referentes à casa de morada de família seriam suportados pela interessada AA.
Consta da decisão recorrida o seguinte:
“No que espeita à factualidade alinhada na al. b) - ou seja, que no processo de divórcio as partes acordaram que todos os custos referentes à casa de morada de família (cuja utilização ficou efetivamente atribuída ao cônjuge mulher) seriam assumidas pela interessada AA - a única prova que suportou essa tese do cabeça-de-casal foram as declarações que o próprio prestou em audiência de julgamento – o que, claro está, é manifestamente insuficiente para ter essa matéria como demonstrada.
Aquela versão do cabeça-de-casal foi negada pela reclamante. A testemunha CC não revelou possuir qualquer razão de ciência direta sobre aquele suposto acordo.
Acresce que da ata da tentativa de conciliação realizada na ação de divórcio a ../../2013 nada consta quanto ao alegado acordo segundo o qual a autora AA ficava obrigada a, daí em diante, suportar por si só as prestações bancárias e os outros encargos associados à casa de morada de família. Como se referiu, o acordo ali exarado quanto à utilização da casa de morada de família, e homologado pelo juiz, foi tão somente do seguinte teor: “Existe casa de morada de família, a qual fica atribuída à requerente AA, ficando o requerido BB a residir na mesma pelo período máximo de noventa (90) dias, até se mudar para nova residência”.
Acerca da matéria vertida na al. c) nenhuma prova se produziu quanto ao valor da renda mensal que o cabeça-de-casal teria pago quando saiu da habitação do casal, embora aquele tenha referido – e só ele – que passou a viver numa casa arrendada”.
Analisemos então os motivos da discordância do Recorrente quanto aos pontos impugnados, os quais têm a seguinte redação:
“b) No processo de divórcio, as partes acordaram que o cabeça-de-casal passaria a viver numa casa arrendada e que todos os custos referentes à casa de morada de família seriam suportados pela interessada AA.
c) O cabeça-de-casal teve de suportar uma renda de casa de € 380,00 mensais para ter uma habitação”.
Ouvidas as declarações prestadas pelo Recorrente e pela Recorrida, bem como pelas testemunhas CC e DD, conjugadas com os documentos juntos aos autos, em particular com o teor da ata da tentativa de conciliação realizada na ação de divórcio a ../../2013, e analisada a prova de forma critica e à luz das regras da experiência comum, adiantamos desde já que nada permite concluir que a prova produzida aponte em sentido diverso da decisão que foi proferida em 1ª Instância, de forma a poder colocar-se em causa o princípio da livre apreciação da prova por parte do Tribunal a quo, e a motivação constante da decisão recorrida.
Pelo contrário, a nossa convicção sobre os pontos de facto impugnados coincide com a da 1ª Instância.
Vejamos.
Conforme decorre dos autos (e da consulta via CITIUS dos autos de ação de divórcio) no dia ../../2013 foi realizada a tentativa de conciliação na qual as partes acordaram em converter o divórcio sem consentimento do outro cônjuge em divórcio por mútuo consentimento; nela as partes declararam estar de acordo em regular o poder paternal nos termos constantes da respetiva ata, da qual, na parte que aqui releva, ficou a constar o seguinte:
“Seguidamente, pelas partes foi pedida a palavra e, sendo-lhes concedida, no uso da mesma, disseram:
a) Existe casa morada de família, a qual fica atribuída à requerente AA, ficando o requerido BB a residir na mesma pelo período máximo de noventa (90) dias, até se mudar para nova residência;
b) Prescindem reciprocamente de alimentos;
c) Existem outros bens comuns a partilhar, protestando as partes a juntar a relação de bens no prazo máximo de trinta (30) dias”.
Daqui resulta que a versão apresentada pelo Recorrente quanto ao alegado acordo que as partes teriam realizado no processo de divórcio de que o cabeça-de-casal passaria a viver numa casa arrendada e que todos os custos referentes à casa de morada de família seriam suportados pela interessada AA, não encontra qualquer suporte no acordo constante da ata de tentativa de conciliação, do qual apenas consta que a casa de morada de família ficaria atribuída à Recorrida e que o Recorrente ficaria a residir na mesma pelo período máximo de 90 dias até se mudar para nova residência.
Veja-se que as atas de audiência de julgamento ou de qualquer diligência judicial são documentos públicos, qualificáveis como documentos autênticos, por força das disposições legais dos artigo 369º e seguintes do Código Civil, e estes, como decorre do artigo 371º, fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas perceções da entidade documentadora (v. neste sentido, entre outros, os acórdãos desta Relação de Guimarães de 11/05/2017, processo n.º 81/16.5T8MTR-A.G1, Relatora Lina Castro Baptista e da Relação de Lisboa de  02/02/2021, processo n.º 26297/19.4T8LSB-A.L1-7, Relator José Capacete, ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt); e a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade (n.º 1 do artigo 372º do Código Civil).
Assim, estando em causa um documento autêntico, a ata de uma diligência judicial, ela faz prova plena dos factos que integram o seu conteúdo, e a sua força probatória, só pode ser ilidida através da prova da falsidade dos atos a que se reporta no incidente de falsidade.
Veja-se ainda que a redação das atas judiciais incumbe ao funcionário judicial sob a direção do juiz (cfr. artigo 155º, n.º 7 e 8 do CPC), sendo habitualmente elaboradas em momento posterior ao da realização da própria audiência ou diligência, com base nos apontamentos anotados pelo funcionário judicial, pelo que é ainda de ponderar que a parte possa requerer ao juiz a sua retificação se a mesma efetivamente não retratar com fidelidade o que passou na audiência ou diligência; neste sentido prevê também o n.º 9 do artigo 155º do CPC que em caso de alegada desconformidade entre o teor do que foi ditado e o ocorrido, são feitas consignar as declarações relativas à discrepância, com indicação das retificações a efetuar, após o que o juiz profere, ouvidas as partes decisão definitiva, sustentando ou modificando a redação inicial.
Ora, diga-se desde já, na ata em causa nada consta que retrate a ocorrência de qualquer retificação, e nada nos autos permite concluir por qualquer omissão ou erro no conteúdo da ata.
Sustenta ainda o Recorrente que independentemente de não ter ficado a constar na ata, tal não impede que se considere provado que “as partes acordaram que o cabeça-de-casal passaria a viver numa casa arrendada e que todos os custos referentes à casa de morada de família seriam suportados pela interessada AA”.
Mas ainda que assim fosse, também a prova produzida nos autos não permitiria concluir que efetivamente existiu tal acordo.
É inequívoco, tal como refere o Recorrente, que as declarações de parte podem valer como meio de prova; contudo, não basta que o Autor em declarações de parte o declare para que o tribunal tenha de aderir à versão dos factos por si alegada.
O artigo 466º do CPC estabelece no seu n.º 1 que as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto, prevendo no n.º 3 que o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
Relativamente à valoração das declarações de parte foram-se posicionando, no essencial, três teses: a do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos, a tese do principio de prova e a tese da autossuficiência ou valor autónomo das declarações de parte, conforme a este propósito sintetizam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 532).
 Para a referida terceira tese, as declarações de parte, pese embora a sua especificidade, podem efetivamente estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo num valor probatório autónomo
Na mesma linha da posição assumida pelos referidos Autores também não afastamos que as declarações de parte possam estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente e possam assumir um valor probatório autónomo; porém, tudo dependerá da análise critica da prova produzida em cada processo, com base na qual será formada a convicção do julgador.
Não é pelo facto de, em tese, se admitir a possibilidade de o juiz formar a sua convicção com base nas declarações de parte, e destas poderem assumir um valor probatório autónomo, que perante o caso concreto esse meio de prova tem necessariamente de ser valorado de forma autossuficiente para o juiz formar a convicção.
É aliás o que decorre do preceituado no n.º 3 do artigo 466º: o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão; e deve fazê-lo na análise do conjunto dos meios de prova produzidos, designadamente testemunhal, documental ou eventualmente pericial.
Por isso, e voltando ao caso concreto, não releva aqui a discussão teórico/jurídica sobre a valoração das declarações de parte, mas sim a análise critica das declarações prestadas pelo Recorrente no confronto com a demais prova produzida.
É que, no caso dos autos, não foi apenas o Recorrente que prestou declarações, mas também a interessada AA e a validade da tese da autossuficiência das declarações de parte, não poderia valer apenas para as declarações do Recorrente, sempre teria de valer também para as declarações da interessada AA; ora, tais declarações, a que o Recorrente pretende não seja atribuída qualquer credibilidade, contrariando a versão apresentada pelo Recorrente relativamente ao alegado acordo, são as que melhor sustentação encontram na prova constante dos autos, em particular no acordo constante da ata de tentativa de conciliação que nenhuma referência contém a que todos os custos referentes à casa de morada de família seriam suportados pela interessada AA.
De facto, não é minimamente plausível que se as partes tivessem acordado que, ficando a casa atribuída à interessada AA, esta suportaria todos os custos referentes à casa de morada de família, não tivesse ficado a constar da ata essa parte do acordo; e, como já referimos, na ata em causa nada consta que retrate a ocorrência de qualquer retificação, e nada nos autos, nem da prova produzida, permite concluir por qualquer omissão ou erro no conteúdo da ata.
Na verdade, ouvidas integralmente as declarações prestadas pela testemunha CC, não só não revelou possuir razão de ciência direta sobre esse suposto acordo, tal como refere o tribunal a quo, como as suas declarações nem sequer se apresentam merecedoras de grande credibilidade porquanto, afirmando ter estado presente numa audiência, onde estariam os interessados e outras testemunhas, e apenas ter estado presente uma vez, não soube dizer se foi no processo de divórcio ou outro processo, e nem esclarecer a que titulo estaria presente como testemunha, e com outras testemunhas como referiu, numa audiência em tribunal, quando na ação de divórcio só foi designada data para uma tentativa de conciliação, para a qual apenas são convocadas as partes, e na qual foi convolada a ação de Divórcio sem Consentimento do Outro Cônjuge em Divórcio por Mútuo Consentimento.
Do exposto decorre que deve manter-se inalterada a alínea b) dos factos não provados.
Quanto à alínea c) dos factos julgados não provados sustenta ainda o Recorrente que deve considerar-se provado que teve de suportar uma renda de casa para ter uma habitação, ainda que não tenha resultado provado o valor dessa renda, tendo por base as declarações que prestou.
Tal como consta da sentença recorrida nenhuma prova se produziu quanto ao valor da renda mensal que o Recorrente teria pago quando saiu da habitação do casal, sendo que apenas este referiu que passou a viver numa casa arrendada.
Não vemos, também aqui, que em face da prova produzida nos autos se possa encontrar na decisão do tribunal a quo qualquer erro de julgamento; na verdade, apenas o Recorrente afirmou ter ido morar numa casa arrendada e nem sequer soube esclarecer qual o valor da renda. De toda a forma, se passou a viver numa casa arrendada e efetivamente pagou renda, facilmente teria demonstrado tal facto mediante a junção aos autos do contrato de arrendamento ou dos respetivos recibos comprovativos, para além do mais, do valor da renda.
Do exposto decorre que nada permite concluir que a prova produzida aponte em sentido diverso da decisão que foi proferida em 1ª Instância de forma a poder colocar-se em causa o princípio da livre apreciação da prova por parte do tribunal a quo, e a motivação constante da decisão recorrida.
Aliás, a nossa convicção sobre os pontos de facto impugnados coincide com a da 1ª Instância, inexistindo fundamento para que seja alterada a matéria de facto no sentido pretendido pelo Recorrente, devendo manter-se os pontos b) e c) dos factos não provados.
Por último, quanto ao pretendido aditamento da matéria respeitante ao facto de que a “interessada AA viveu na fração comum do casal desde o divórcio até à venda do imóvel” importa apenas referir que tal facto não foi alegado pelo Recorrente; pelo contrário, a interessada AA é que alegou não ter ficado a residir na casa de morada de família, nem gozado minimamente o imóvel após a propositura da ação de divórcio, já que residia e usava permanentemente outra habitação desde data anterior, matéria julgada não provada na alínea d) dos factos não provados.
Pelo exposto, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida pela 1ª instância, conforme com a prova constante dos autos, mantêm-se inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª instância.
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3.3. Reapreciação da decisão de mérito da ação

Mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado pelo Tribunal a quo, importa agora apreciar se deverá manter-se a decisão jurídica da causa que, julgando parcialmente procedente a reclamação, decidiu declarar reconhecidos os seguintes créditos da interessada AA sobre o património comum do extinto casal: a) no montante de €12.030,57, relativo a capital, juros, seguros, imposto de selo e comissões, para amortização do empréstimo contraído para aquisição de habitação junto do então Banco 1..., S.A., b) no montante de €4.048,50, relativo a comparticipação nas despesas de conservação e fruição das zonas comuns das frações autónomas que haviam sido relacionadas sob as verbas nºs 1, 2 e 3 do ativo.
Vejamos.
O Recorrente vem invocar o abuso de direito e o enriquecimento sem causa.
Quanto ao enriquecimento sem causa estamos perante uma questão nunca antes invocada pelo Recorrente e, consequentemente, não apreciada e nem decida em 1ª Instância.
Ora, os recursos destinam-se a apreciar as decisões impugnadas (artigo 627º n.º 1 do CPC) e, com exceção de questões de conhecimento oficioso, não podem decidir questões não apreciadas previamente pelas instâncias.
Como é entendimento pacífico na Doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida, pois os recursos “são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/2016, relator Conselheiro Gonçalves Rocha, disponível em www.dgsi.pt).
Escreve a este propósito Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, Almedina, 2017, p. 109) que: “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto, decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas”.
Por outro lado, a questão do enriquecimento sem causa não é de conhecimento oficioso, não podendo o tribunal suprir de ofício a falta da sua alegação.
Por isso, e quanto a esta questão, não tendo sido apreciada em 1ª Instância, antes constituindo questão nova, e não sendo de conhecimento oficioso, não pode esta Relação emitir um qualquer juízo de reexame.
Sustenta ainda o Recorrente que a Interessada AA está a cometer um abuso do direito com a sua pretensão de incluir no passivo do património comum do casal o valor das prestações bancárias por si pagas enquanto habitou a casa de morada de família pois acordou com o Recorrente que suportaria ela o pagamento dos encargos com o uso da casa (prestações bancárias e encargos de condomínio) e vem agora, contra esse acordo, isto é, contra facto próprio, exigir que esses encargos sejam partilhados como passivo no presente inventário; e que, por outro lado, mesmo que tal não sucedesse, entende que o comportamento da Recorrida vai contra o fim social e económico do direito à partilha do passivo do património comum do casal, que tem como finalidade fazer com que nenhum cônjuge fique beneficiado ou prejudicado com despesas que fez em proveito do património comum do casal.
Entende ainda que, mesmo não tendo em consideração o acordo celebrado, fazendo as contas às prestações bancárias pagas pela Recorrida, elas são de, em média, 190 euros mensais ao longo dos 5 anos, pelo que, habitando a casa de morada de família mediante uma contraprestação tão baixa, vir agora exigir que o que pagou seja considerado passivo dos cônjuges, é eticamente inaceitável.
Em sentido contrário, o tribunal a quo entendeu que não tendo sido feita prova que antes, depois ou contemporaneamente com o acordo formalizado por escrito na ata da tentativa de conciliação, os interessados tivessem convencionado que todos os custos referentes à morada da família seriam por suportados pela interessada AA, esta não incorre em abuso de direito, nomeadamente na modalidade de venire contra factum proprium, ao vir reclamar no processo de inventário aquilo que pagou a mais com recurso a dinheiros próprios para satisfação de dívidas que eram também, e em igual medida, da responsabilidade do cabeça-de-casal.

Vejamos.

O artigo 334º do Código Civil prevê o abuso do direito dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito”.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume I, 3ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra Editora, p. 298) a conceção adotada de abuso de direito é objetiva pois “não é necessária a consciência de se excederem com o seu exercício os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, basta que se excedam esses limites”.
Esta complexa figura do abuso de direito é uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o julgador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que redundaria o exercício de um direito por lei conferido (v. Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, p. 63 e seguintes; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª Edição, 2014, p. 80 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit. Vol. I, p. 299).
Poderá dizer-se, em síntese, que existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito (v. acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 03/10/2019, relatado pela Conselheira Maria Rosa Tching, disponível em www.dgsi.pt).
O abuso de direito pressupõe, por isso, a titularidade de um direito e o seu consequente exercício, e que será legítimo em tese geral, mas que, em face dos contornos concretos da situação em causa, se revele manifestamente excessivo em face dos “limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
O abuso de direito ocorre “quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça” (acórdão da Relação do Porto de 24/02/2015, Processo n.º 46/14.1TBAMT.P1, Relator Desembargador Fernando Samões, disponível em www.dgsi.pt)
Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o venire contra factum proprium, a qual se manifesta no essencial pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adota uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes atuara” (v. o citado acórdão da Relação do Porto de 24/02/2015).
Como ensina Menezes Cordeiro (Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, julho 1998, p. 964, https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-1998/ano-58-vol-ii-jul-1998/doutrina/), podem apontar-se quatro pressupostos da proteção da confiança através do venire contra factum proprium:
“1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma atividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela proteção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível”.
Ou seja, a proibição do venire contra factum propriumancora na ideia de proteção da confiança e da exigência de correta atuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi isento de desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; reclama uma atuação pautada por regras éticas, de decência e respeito pelos direitos da contraparte; havendo violação objetiva desse modelo de atuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito formalmente exercido, se pretendem atuar, mas que, objetivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado que a ética negocial reprova, porque incompatível com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito que colidem com o sentido de justiça que a comunidade adota como sendo o seu padrão cultural” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/01/2013, Processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, Relator Fonseca Ramos, disponível em www.dgsi.pt).
In casu, está em causa o direito que a interessada AA pretende exercer de incluir no passivo do património comum do casal o valor das prestações bancárias por si pagas enquanto habitou a casa de morada de família, alegando o Recorrente que a mesma acordou que suportaria ela o pagamento dos encargos com o uso da casa (prestações bancárias e encargos de condomínio) e vem agora, contra esse acordo, isto é, contra facto próprio, exigir que esses encargos sejam partilhados como passivo no presente inventário.
Ora, esta alegação do Recorrente, pressupunha desde logo a alteração da decisão da matéria de facto nos termos por si pugnados, ou seja, que tivesse ficado demonstrada a existência do alegado acordo de que a Recorrida suportaria o pagamento dos encargos com o uso da casa, pelo que mantida na integra a decisão de facto não merece censura o entendimento do tribunal a quo de que aquela não incorre em abuso de direito, nomeadamente na modalidade de venire contra factum proprium, ao vir reclamar no processo de inventário aquilo que pagou a mais com recurso a dinheiros próprios para satisfação de dívidas que eram também, e em igual medida, da responsabilidade do cabeça-de-casal.
Alegou o Recorrente que, ainda que tal não sucedesse sempre o comportamento da Recorrida vai contra o fim social e económico do direito à partilha do passivo do património comum do casal; e que, mesmo não tendo em consideração o acordo celebrado, fazendo as contas às prestações bancárias pagas pela Recorrida, que são em média de 190 euros mensais ao longo dos 5 anos, tendo esta habitado a casa de morada de família mediante uma contraprestação tão baixa, vir agora exigir que o que pagou seja considerado passivo dos cônjuges, é eticamente inaceitável.
Não podemos, contudo, concordar com o Recorrente; de facto, não vemos como alegando o Recorrente que o fim social e económico do direito à partilha do passivo do património comum do casal tem como finalidade fazer com que nenhum cônjuge fique beneficiado ou prejudicado com despesas que fez em proveito do património comum do casal, e tendo a Recorrida demonstrado ter efetuado tais despesas, se pode concluir como sendo abusiva a sua pretensão de reclamar tais despesas.
Da mesma forma, se não pode dirigir à Recorrida, tendo em atenção os factos que resultaram provados (e reiteramos que o Recorrente não logo demonstrar o acordo por si alegado), um juízo de censura ética ao pretender reclamar créditos sobre o património comum do extinto casal  relativo a capital, juros, seguros, imposto de selo e comissões, para amortização do empréstimo contraído para aquisição de habitação junto do então Banco 1..., S.A., e relativo a comparticipação nas despesas de conservação e fruição das zonas comuns das frações autónomas, que pagou com o seu dinheiro próprio [v. pontos 4) e 5) dos factos provados].
Do exposto decorre que, não se considerando in casu existir abuso de direito no comportamento da Interessada AA entendemos não merecer censura a decisão recorrida.
Em face de todo o exposto, improcede, pois, a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida.
As custas são da responsabilidade do Recorrente atento o seu integral decaimento (artigo 527º do CPC).
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IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Guimarães, 11 de abril de 2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Joaquim Boavida (1º Adjunto)
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira (2ª Adjunta)