Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
72/19.4GBGDL.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
FORMALISMO
ESTRUTURA ACUSATÓRIA
INSTRUÇÃO INEXEQUÍVEL
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Em caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público, é o requerimento de abertura de instrução, a partir da sua formulação, que define e limita o objeto do processo, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa.

- Não contendo o requerimento de abertura da instrução o indispensável conteúdo fáctico e não respeitando o constante das várias alíneas do n.º 3 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, a instrução torna-se inexequível.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo de Instrução Criminal de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo de instrução n.º 72/19.4GBGDL, no qual, mediante despacho judicial, foi decidido não admitir o requerimento para abertura da instrução (1) apresentado pelo assistente AA por inadmissibilidade legal.

Inconformado com essa decisão, recorreu tal assistente, terminando a motivação do recurso com as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. O presente Recurso tem por objeto o despacho proferido pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal a fls…, que indeferiu o requerimento de abertura da instrução por considerar que este não enumera os factos concretos e objectivos que considera terem sido praticados pelo denunciado, limitando-se a repetir em sede de abertura de instrução toda a história factual trazida à lide com a denúncia.

2. Pugna que o assistente não elabora uma verdadeira acusação conforme dispõe o artigo 283º, nº 3 do CPP, pelo que não existindo esta acusação alternativa (atendendo ao arquivamento do processo pelo Ministério Público) não se encontra definido o respetivo objeto do processo.

3. Refere, ainda, que pela falta da imputação objectiva e subjectiva dos factos ao seu autor/arguido, a realização da instrução constituiria um ato inútil e/ou inexequível, o que é proibido por lei.

4. Contudo, não pode o assistente concordar com tais juízos.

5. O requerimento para abertura da instrução por si formulado, independentemente dos estilos quanto à sua apresentação, cumpre todos os requisitos legais, quer formais quer substantivos.

6. Refira-se que o Mandatário do assistente sempre formulou requerimento de abertura de instrução com a estrutura apresentada no caso concreto, nunca tendo sido rejeitado por qualquer Tribunal Instrução Criminal, com fundamentação de inadmissibilidade legal.

Independentemente disso,

7. estabelece a lei, no artigo 287º, nº2 do Código Processo Penal, que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que disso for o caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável no requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º. (sublinhado da signatária)

Sucede que,

8. No seu requerimento de abertura de instrução, nos termos do disposto no artigo 287º n.º 2 e 3 do CPP, o assistente, ora Recorrente, expôs as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação por parte do MP, indicou novos atos instrutórios a realizar, alertou para outros meios de prova que não foram considerados em sede de inquérito, referenciou detalhadamente a que matérias de facto deviam ser vertidas as inquirições de novas testemunhas.

9. Certo é que o requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, conforme dispõe o nº 3 do artigo 287º do C.P.P., porém nenhuma destas situações ocorrem, de todo, no caso concreto.

10. O assistente no seu requerimento de abertura de Instrução, mormente nos artigos 2º a 12º e 17º, 28º, 29º, 37º a 39º, fez a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, tendo incluído o lugar, o tempo, a motivação da sua prática, assim como o grau de participação que o agente neles teve, factos relevantes para a determinação da sanção que lhe deveria ser aplicada.

11. Existe um juízo de prognose favorável no que tange à possibilidade de condenação do arguido em julgamento.

Veja-se,

12. no artigo 3º do Requerimento para abertura de instrução, que aqui se transcreve, giza o seguinte: “o arguido, nesse mesmo dia (dia indicado no artigo 2º), no período compreendido entre as 19h53 e as 20h33, com recurso à rede social Facebook, (…) estás fodido comigo… comigo não brincas já cá estava quando nascestes.” “Era para te fazer uma visita ontem mas certamente tenho mais oportunidades a curto prazo porque parece que não ouves bem ou lês mal não tenho medo de passarinhos como tu” (…)”.

13. Por outro lado, o artigo 4º do mesmo Requerimento estabelece que: “Da mensagem supra transcrita, de imediato, ressalta que, por parte do arguido, a prática do crime de ameaça p.e p. no artigo 153º, nº 1 do C. Penal.”

14. E ainda no artigo 6º: “o arguido ao escrever “…estás fodido comigo… comigo não brincas…”, “Era para te fazer uma visita ontem mas certamente tenho mais oportunidades a curto prazo…”, quis ameaçar o assistente com a prática de um crime contra a sua integridade física ou até vida e contra a sua liberdade pessoal, ao ponto de ameaçar o assistente que irá recorrer às redes sociais “Youtube”, com o intuito de denegrir a sua imagem, bom nome, reputação e honra.”

15. Mais, no artigo 37º do Requerimento o assistente é claro: “dúvidas não subsistem que, o conteúdo de tais mensagens, ao contrário do que o Ministério Público defendeu no seu despacho de arquivamento, em nada configuram e consubstanciam meras advertências efetuadas pelo arguido ao assistente, mas sim, muito pelo contrário, são consubstanciadoras de verdadeiras ameaças integradoras do crime previsto e punido no nº 1, do artigo 153º, do C.P., pelo qual o arguido deve ser pronunciado nesta sede.”

16. Continuando no artigo 38º: “o arguido ao enviar tais mensagens ao assistente, bem sabia que a sua conduta não lhe era permitida e punida por lei, agindo com dolo, consubstanciando a mesma um crime de ameaça e, por esse motivo, punível penalmente.”

17. Culminando no artigo 39º: “não se coibiu de praticar tal crime de ameaça p. e p. no artigo 153º, nº 1 do C.P., pelo qual, deve ser, nesta sede, pronunciado por V. Exa.”

18. Do exposto, jamais se pode concordar com a fundamentação do despacho recorrido e no qual rejeitou, assim, o requerimento formulado pelo assistente.

19. O requerimento para abertura de instrução, formulado pelo assistente, tem a estrutura de uma acusação, uma acusação alternativa ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público e está, nessa medida, sujeito aos requisitos legalmente exigidos (cfr decisões do acórdão do STJ de 13-01-2011, in www.dgsi.pt., os acórdãos da Relação de Coimbra, de 27 de Setembro de 2006 (proc. n.º 60/03.2TANLS.C1 e de 20 de janeiro de 2016 (proc. n.º 1/13.9GBFVN.C1, in www.dgsi.pt), o acórdão da Relação de Guimarães, de 14 de Fevereiro de 2005 (C.J., n.º 180, pág. 299) e o acórdão da Relação do Porto, de 1 de Março de 2006 (proc. n.º 0515574, in www.dgsi.pt).

Todavia, ainda que assim não se entendesse,

20. sempre se impunha endereçar ao assistente convite ao aperfeiçoamento, uma vez que os factos narrados são claros e precisos, e não rejeitar liminarmente o requerimento.

21. Conforme decorre do despacho do Mmº Juiz de Instrução Criminal, o Acordão de fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal da Justiça nº 7/2005, publicado no DR I Série-A nº 212, de 4 de Novembro de 2005, fixou jurisprudência no sentido de não haver lugar ao convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução.

Porém,

22. andou mal o Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito e melhor opinião, na análise e aplicação do Acordão de Fixação de Jurisprudência quanto a esta circunstância.

23. Certo é que estipulou o Acordão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2005, de 04.11.2005, que não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoamento, apenas e só, quando tal requerimento de abertura de instrução for omisso quanto à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

Sucede que,

24. tal omissão não se vislumbra no requerimento de abertura de instrução do ora recorrente, tanto mais porque este contem a descrição dos factos necessários ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime que se imputa ao arguido.

25. Dito isto, é claro que não pode ou não deve o intérprete ou o julgador, distanciado de uma interpretação sistemática, criar novas causas de inadmissibilidade, para além daquelas que resultam diretamente da lei, as quais não se revelam in casu.

Mais,

26. no que ao elemento subjetivo do crime imputado ao arguido diz respeito deve sempre admitir-se a possibilidade deste poder ser descrito através de factos que inequivocamente o revelem.

Assim,

27. o que importa, no essencial, é que o objecto do processo esteja bem delimitado e que os dados de facto susceptíveis de evidenciarem elementos psicológicos, como o dolo e a consciência da ilicitude, sejam de tal modo claros e evidentes que não tenha sentido algum pôr em causa a sua imputação, o que se verifica no caso concreto (neste sentido pugna o Acordão do Tribunal da Relação do Porto, processo nº 470/13.7PAGDM.P1, de 04.02, in http://www.dgsi.pt/).

28. Note-se que, neste caso, o dolo resulta inequivocamente da exteriorização da conduta, ou seja, o envio concreto das mensagens escritas em tom ameaçador ao assistente por parte do arguido, estando este convicto que estava a praticar o crime de ameaça, de livre vontade e conscientemente.

29. Ora, se o facto objectivo está alegado e, dado que o dolo é um facto psicológico do foro íntimo do agente que apenas pode ser inferido através de comportamentos externos concretos, o requerimento para abertura da instrução cumpre os requisitos formais ao descrever a conduta do arguido e a sua qualificação jurídica num crime doloso.

Destarte,

30. Os elementos objectivos e subjectivos do tipo incriminador constam, claramente, do requerimento de abertura de instrução, pelo que fenece de sentido o que decidiu o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal.

31. Segundo as palavras do Prof. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, III, pág. 139., formalmente, o assistente indica tal como o Ministério Público deveria ter atuado, ou seja, que «não deveria arquivar, mas acusar e em que termos o deveria ter feito», invocando razões daquela dupla vertente, sendo imprescindível que do requerimento de abertura de instrução conste a narração dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido e das disposições legais.

32. E neste sentido também se pronunciou o Tribunal Constitucional, In Acórdão n.º 358/2004, proferido no processo n.º 358/2004, publicado no DR II série, n.º 150, de 28 de Junho de 2004, aí defendendo que o objecto da instrução tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e que tal definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, o que decorre de princípios fundamentais do processo penal, designadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória.

33. Verifica-se que no requerimento de abertura de instrução do assistente, o arguido está devidamente identificado e pese embora, sejam tecidas algumas considerações quanto à discordância do despacho de arquivamento do MP, são descritos os factos imputados ao arguido, com alusão à data, hora, local e demais circunstâncias das ocorrências; está identifico o elemento subjetivo do crime, assim como as normas incriminadoras, pedindo, a final, que este seja pronunciado.

34. No seu requerimento o assistente pugnou, ainda, pela indicação dos novos atos a praticar em sede de Instrução, com a junção aos autos de documentação relevante, pedido a reinquirição do assistente e das testemunhas já anteriormente arroladas, bem como a apresentação de novas testemunhas, fazendo a devida indicação a que matérias de facto deviam ser vertidas as suas inquirições.

35. O assistente observou os requisitos das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283 do CPP, pois narrou os factos que integram os crimes, cumprindo desse modo o princípio do acusatório, obedeceu à boa disciplina processual e observou os valores essências do processo penal, com a delimitação inequívoca do objeto do processo penal.

36. E ainda, fixou o objeto do processo, traçando os limites dentro dos quais se haveria de desenvolver a atividade investigatória e cognitiva do Digno Juiz de Instrução Criminal.

37. A decisão recorrida é ilegal, violando assim as disposições dos artigos 69º, nº 2, alíneas a) e b); 286º e 287º, nº2, nº3, todos do Código Processo Penal.”

Pugnando, em síntese:

“Nestes termos e nos melhores de Direito que Vs. Exas., doutamente suprirão, deve revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que admita a abertura da instrução, ordene a realização dos atos instrutórios requeridos, bem como o obrigatório debate instrutório por forma aferir da pronúncia ou não do arguido, pois só assim se realiza JUSTIÇA e se faz cumprir a LEI.”

O recurso foi admitido.

Em resposta, o MP em 1.ª instância concluiu que (transcrição):

1. A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento;

2. Sendo a instrução requerida pelo assistente, a mesma apenas pode dizer respeito a factos relativamente aos quais o M.ºP.º não tenha deduzido acusação;

3. O requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente deve conter, para além dos requisitos constantes dos arts. 287 n.º 2 e 283 n.º 3 als. b) e c) do CPP, a narração própria de uma acusação, mediante a descrição dos factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o assistente imputa ao arguido;

4. O requerimento acusatório formulado pelo assistente delimita o objecto do processo, com a correspondente vinculação temática do tribunal, garantindo a estrutura acusatória do processo e a defesa do arguido que, sabendo concretamente quais os factos e os crimes que lhe são imputados, pode exercer o contraditório;

5. No caso em apreço, o assistente, não fez no RAI a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação, limitando-se a enumerar as razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do M.ºP.º, omitindo a descrição integrar dos factos susceptíveis de preencher os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime que imputa ao arguido;

6. Ao rejeitar o RAI com fundamento na sua inadmissibilidade legal, o Mer.º JIC a quo não violou o disposto nos arts. 286 e 287 n.º 2 e 3 do CPP.

Pugnando, em síntese:

“Em face do exposto, não deverá ser concedido provimento ao recurso, mantendo-se o douto despacho recorrido.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (2).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Requerimento de abertura da instrução de fls. 245 e seguintes:

Conforme resulta da lei processual penal, a instrução, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento, «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» – artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Finda a instrução, o juiz deverá proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia, sendo certo que a opção por um ou por outro se relaciona com o facto de até ao encerramento da instrução se haver logrado ou não recolher indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança – conforme o disposto nos artigos 308.º, n.º 1, e 283.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

Efectivamente, nesta fase processual não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas tão-só indícios suficientes de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido, sendo certo que a decisão a proferir no final desta fase não é uma decisão jurisdicional demérito, mas sim uma decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase do julgamento.

Neste escopo, deve o Juiz de instrução compulsar e ponderar toda a prova recolhida e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.

A fase de instrução permite que a actividade levada a cabo pelo Ministério Público durante o inquérito possa ser controlada através de uma comprovação por via judicial, traduzindo-se essa possibilidade na consagração, no nosso sistema, da estrutura acusatória do processo penal, a qual encontra assento legal no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

Por isso, a actividade processual desenvolvida na instrução é materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações – Acórdão da Relação de Lisboa de 12/07/1995, CJ, XX, 4.º, pág. 140, e Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 128.

Nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, podem requerer a abertura de instrução o arguido e o assistente, esclarecendo a lei quem pode constituir-se como assistente em processo penal.

Prevê o artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, referindo-se ao requerimento de abertura de instrução, que o mesmo deve conter «em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for o caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar», sendo certo que a tal requerimento, quando formulado pelo assistente, é aplicável «o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) (...)».

Quer isto dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente está sujeito ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se-lhe (vide Acórdão da Relação de Lisboa de 12/05/1998, BMJ n.º 477.º, pág. 555; da Relação do Porto de 15/04/1998, BMJ n.º 476.º, pág. 487; da Relação de Lisboa de 2/12/1998, BMJ n.º 482.º, pág. 294; da Relação de Lisboa de 21/10/1999, CJ, XXII pág. 158; Relação de Lisboa de 9/02/2000, CJ, XXIII, 1.º, 153).

Tal ponto é crucial. Não pode o assistente limitar-se a repetir em sede de abertura de instrução toda a história factual trazida à lide com a denúncia. É necessário que efectue uma verdadeira acusação, pois a mesma, existindo indícios suficientes, fixará o objecto da causa. E tal objecto não se coaduna com a natural falta de rigor formal e material da mera descrição de factos que consta, por exemplo, da denúncia.

Destarte, por força da conjugação do artigo 287.º, n.º 2, com o artigo 309.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, a instrução requerida pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público – aquele que aqui importa ter em conta –, não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho, sendo certo que tal exigência, formalismo e equiparação não se pode afirmar ou exigir ao requerimento formulado pelo arguido (cfr. artigo 287.º, n.º 2, in fine, a contrario sensu).

Pelas razões acima aludidas, no requerimento para abertura de instrução o assistente tem de indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida. Ou seja, tem que deduzir materialmente uma acusação. O juiz, por seu turno, irá apurar se esses factos se indiciam ou não, proferindo ou não, em consonância, despacho de pronúncia (cfr., neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 05/05/1993, CJ, XVIII, 3.º, pág. 243 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/11/1993, CJ, XVIII, 5.º, pág. 61).

Isto significa, portanto, que o requerimento de abertura de instrução equivale, em tudo, à acusação, definindo e delimitando o objecto do processo a partir da sua apresentação; ele constitui, pois, substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de abstenção proferido pelo Ministério Público.

Seguindo-se tal raciocínio assegurar-se-á a estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, na medida em que «o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (...) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto da acusação do Ministério Público.» – Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, pág. 264.

Por outro lado, o Tribunal Constitucional já se pronunciou s obre a questão da constitucionalidade da norma do artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas, tendo declarado a sua não inconstitucionalidade (veja-se, entre outros, o Acórdão n.º 358/04 desse Tribunal, publicado na IIª Série do D.R. n.º 150, de 28 de Junho de 2004).

Concretizando, analisando o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente AA verifica-se que o mesmo avança as razões da sua discordância com o despacho final de arquivamento proferido pelo Ministério Público, contudo, parece olvidar a referida estrutura acusatória. Lidos todos os factos, o que se verifica é que o assistente veio trazer novamente todos os fundamentos que deram origem à denúncia, mas não individualizou e explanou quais os factos que se subsumem aos tipos criminais em causa e que devem ser sujeitos ao crivo judicial.

Repare-se que o assistente não faz referência material aprofundada à forma como se terão desenvolvido os factos denunciados, impondo ao juiz de instrução, dada a forma como alegou, a busca nos elementos constantes dos autos dos factos que poderão consubstanciar a prática dos imputados crimes. Isto é, estamos perante uma alegação genérica de factos, sendo que é ao Juiz de Instrução que compete “escolher” os factos que posteriormente serão sujeitos a debate. Tal situação, à luz dos preceitos citados, não é admissível.

Note-se ainda que não se mostram individualizados os factos que correspondem aos elementos dos tipos criminais. Com efeito, não existe um segmento idêntico a um despacho de acusação. Não existem um campo, no RAI ora apresentado, destinado à selecção dos factos que poderiam vir a constituir o objecto de um eventual Julgamento, inexistindo factos subsumíveis aos elementos objectivos e factos subsumíveis aos elementos subjectivos do tipo. Tal como está o RAI, não só não permite a fixação de um objecto, como igualmente impede totalmente o exercício do direito de defesa por banda do arguido, que simplesmente desconhece os factos que lhe são imputados.

Constatamos, assim, que, e ao contrário daquilo a que estava obrigado, o assistente não fez no requerimento de abertura da instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto não enumerou de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, susceptíveis de integrarem a prática por um concreto indivíduo de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena. Ou seja, a assistente não elaborou um requerimento de abertura da instrução onde desse cumprimento às imposições legais supra referidas, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação.

Sublinhe-se novamente que não é ao Juiz de instrução criminal que incumbe seleccionar na alegação que constitui a denúncia aqueles factos que concretamente, a terem-se por suficientemente indiciados, poderiam permitir a imputação ao denunciado na fase da instrução de um qualquer ilícito penal, nomeadamente os crimes de violação de domicílio ou perturbação da vida privada e de falsificação de documento.

Relembra-se o que já foi dito sobre a exigência que, in casu, devia conter o requerimento da assistente não só para que a denunciada possa, eventualmente, ser pronunciada pelos factos nele descritos, mas também para que fiquem definitivamente assegurados os seus direitos de defesa e lhe seja possível carrear para o processo os elementos de prova que entender úteis (cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, Anotado, 9.ª edição, pág. 541).

Assim se respeitarão, então, os princípios basilares que subjazem ao processo penal: estrutura acusatória e delimitação ou vinculação temática do tribunal, em ordem a assegurar as garantias de defesa do(s) arguido(s) contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e a possibilitar-lhe(s) a preparação da defesa, no respeito pelo princípio do contraditório.

Leia-se, a este propósito, o que se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa, de 20 de Maio de 1997 (in CJ, XXII, 3.º pág. 143), «o requerimento de abertura de instrução, no caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público, é que define e limita o respectivo objecto do processo, a partir da sua formulação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim, e além do mais, deverá dele constar a descrição dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições legais incriminadoras». Mais adiante ainda se anota: «não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois, então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor».

O não acatamento pelo assistente desta exigência torna-se depois insuprível: «face à indiscutível ausência no requerimento de abertura de instrução do necessário conteúdo fáctico», o despacho de pronúncia que, porventura, viesse a ser proferido na sua sequência «seria nulo» ou, até, «juridicamente inexistente» (cfr. neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 9 de Fevereiro de 2000, in CJ, XXV, 1.º, pág. 153).

Com efeito, não contendo o requerimento de abertura da instrução o indispensável conteúdo fáctico e não respeitando o constante das várias alíneas do n.º 3 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, «não só se torna inexequível a instrução, ficando o juiz sem saber quais os factos que o assistente gostaria de ver julgados indiciados – e também o arguido, ficando inviabilizada a sua defesa –, como também, caso mesmo assim se prosseguisse a instrução, qualquer despacho de pronúncia que se proferisse na sua sequência sempre seria nulo nos termos do artigo 309.º do Código de Processo Penal», e, por isso, «inútil e proibido, tal como os actos eventualmente subsequentes» (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 11 de Outubro de 2001, in CJ, XXVI, 4. º, pág. 141).

Também que se o assistente requerer a abertura de instrução sem a indicação e enunciação do constante naquelas alíneas «a instrução será a todos os títulos inexequível» (cfr. Maia Gonçalves, op. cit., pág. 541, e Souto de Moura, “Inquérito e Instrução” in “Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal”, Ed. do C.E.J., Almedina, Coimbra, 1991, pág. 120).

Em síntese, a instrução é inadmissível , por falta de objecto (artigo 287.º, n. º 3), impondo-se, pois, a rejeição do requerimento de abertura de instrução.

De harmonia com o teor do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, publicado no D.R. I Série-A n.º 212, de 4 de Novembro de 2005, que fixou jurisprudência no sentido de não haver lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentando nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo, Penal, quando for omisso à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, não se proferirá tal despacho.

Concluímos, assim, que o requerimento de abertura da instrução em apreço terá forçosamente de ser liminarmente rejeitado.

*

Decisão

Nestes termos, sem necessidade de ulteriores considerações e tendo em atenção o supra exposto, decido rejeitar, por inadmissível, o requerimento de abertura da instrução em apreço.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

A questão única a decidir no presente recurso reside na verificação ou não de fundamento legal de rejeição do RAI.

B. Decidindo.

Segundo o recorrente, a lei não permite a rejeição do RAI nos termos concretizados pelo despacho recorrido, uma vez que nenhum dos três motivos elencados na lei (art.º 287.º, n.º 3) se verifica.

Vejamos.

Atento o disposto no art.º 287.º, n.º 2, o RAI deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e outros se espera provar, sendo ainda aplicável o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.°, ou seja, o RAI deve conter, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Consta do RAI (transcrição):

A - DA MATÉRIA DE FACTO:

O assistente é músico de profissão.

Por esse motivo,

foi contratado pela BB, sita em …, para no dia 22.09.2018, tocar e cantar durante toda a tarde.

Nessa sequência,

o arguido, nesse mesmo dia, no período compreendido entre as 19h53 e as 20h33, com recurso à rede social Facebook, proveniente do seu URL https://www....., enviou para o URL do assistente ttps://www… , as mensagens que abaixo se transcrevem:

“Tira os teus vídeos no nome da CC és um ipocrita no YouTube dela tens mais vídeos teus que dela ganha vergonha comigo não brincas podes ir fazer queixa novamente… palhaço queres te mostrar arranja outra forma e não tem aprovei rés dos outros.até um dia destes ok devia ter parado no fórum a 15 dias”

“Dou te uma semana,senão vou escrever para toda a gente ver.a diferença nos YouTubes.estas fodido comigo… comigo não brincas já cá estava quando nascestes.”

“Era para te fazer uma visita ontem mas certamente tenho mais oportunidades a curto prazo porquê parece que não ouves bem ou lês mal não tenho medo de passarinhos como tu.livra te de falares do meu nome a alguém é que me venham dizer se eu trabalha se em saldos e em nome dos outros também era bom… tristeza”

Da mensagem supra transcrita, de imediato, ressalta que, por parte do arguido, a prática do crime de ameaça p.e p. no artigo 153º, nº 1 do C.P..

Situação essa que, o Ministério Público, ressalvando o devido e infinito respeito, entendeu, erradamente, não se encontrar verificado e, em consequência disso, determinar o arquivamento dos presentes autos.

B - DA MATÉRIA DE DIREITO:

(…)

38º

dúvidas também não subsistem que, o arguido ao enviar tais mensagens ao assistente, bem sabia que a sua conduta não lhe era permitida e punida por lei, agindo com dolo, consubstanciando a mesma um crime de ameaça e, por esse motivo, punível penalmente.

Mesmo assim,

39º

não se coibiu de praticar tal crime de ameaça p. e p. no artigo 153º, nº 1 do C.P., pelo qual, deve ser, nesta sede, pronunciado por V.Exa..

O objecto do processo que a acusação incorpora materializa-se numa unidade complexa (3) que compreende uma questão de facto (a descrição dos factos imputados) e uma questão de direito (a indicação normativa, ou seja, mais especificamente, na indicação do crime imputado). É consequência necessária da estrutura acusatória do processo penal (4) que cabe em exclusivo à entidade acusadora a definição rigorosa do respectivo objecto, ou seja, a conformação concreta da acusação, não sendo legalmente admissível qualquer interferência nesse labor, nomeadamente por parte do juiz. In casu, verifica-se que no RAI, como muito acertadamente se sublinha na decisão recorrida, não se mostram individualizados os factos que correspondem aos elementos do tipo em causa, inexistindo um segmento específico idêntico a um despacho de acusação ou seja, inexiste um campo destinado à selecção dos factos que poderiam vir a constituir o objecto de julgamento, inexistindo factos subsumíveis aos elementos objectivos e factos subsumíveis aos elementos subjectivos do tipo, não permitindo a fixação de um objecto, como igualmente impede totalmente o exercício do direito de defesa por banda do arguido, que simplesmente desconhece os factos que lhe são imputados. Do exposto flui, como também ali se menciona, ao invés daquilo a que estava obrigado, o assistente não fez no requerimento de abertura da instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto não enumerou de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, susceptíveis de integrarem a prática pelo arguido de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena, não sendo funções do JIC seleccionar aqueles factos que, concretamente, a terem-se por suficientemente indiciados, poderiam permitir a imputação ao(s) denunciado(s) na fase da instrução de um qualquer ilícito penal. Por outro lado, os factos que, efectivamente, teriam interesse, rectius, seriam essenciais para decisão da decisão instrutória, não constam. Vejamos. O assistente, ora recorrente, alega que no RAI, mormente nos artigos 2º a 12º e 17º, 28º, 29º, 37º a 39º, fez a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, tendo incluído o lugar, o tempo, a motivação da sua prática, assim como o grau de participação que o agente neles teve, factos relevantes para a determinação da sanção que lhe deveria ser aplicada.

Vejamos o disposto na referência normativa aqui aplicável:

Artigo 283.º Acusação pelo Ministério Público 1 - Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele. 2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. 3 - A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

Como se nos afigura óbvio, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança não são facultativos, constituindo menção obrigatória. Apenas alguns elementos não essenciais (que a lei cuidadosamente descrimina - o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada) é que apenas deverão constar da acusação se for possível. Como também se menciona na decisão recorrida, os elementos em falta são estruturalmente integrantes do crime imputado.

Recorde-se que o “princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame.” (5) É indiscutível que o RAI deve conter factos concretos, suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal imputado. O recorrente, para além de, formalmente, não dar cumprimento à necessidade de uma estrutura factual idêntica à que deve ter uma acusação pública, persiste, nesta sede, em afirmar que os factos atomisticamente alegados constituem o crime que pretende ver imputado ao arguido (ameaça).

De acordo com o disposto no art.º 153.º, n.º 1 do Código Penal, quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. Recorde-se que no aludido crime está patente uma “certa tensão entre o interesse na salvaguarda da liberdade de decisão e de acção e o interesse em não limitar excessivamente a liberdade social de acção”, tensão que aqui se manifesta especificamente “na oscilação legislativa entre o considerar suficiente que o «mal ameaçado» seja um «mal importante» (CP de 1886) e o exigir que o «mal ameaçado» constitua crime (CP de 1982 e Revisão de 1995).” (6) Não se vislumbra, na mensagem em causa, a essencial referência à prática concreta de qualquer crime dos indicados na norma em causa. É certo que se trata de um teor desagradável, deselegante, admitindo-se, como o faz o MP, que contenha advertências implícitas. No entanto, essas advertências, para transporem o limite de ultima ratio inerente à antecâmara do direito penal, terão de traduzir uma referência expressa a um mal criminal que a lei, como vimos, vem (de)limitando progressivamente. Segundo o recorrente, o arguido, ao escrever as expressões constantes da mensagem, quis ameaçar o assistente com a prática de um crime contra a sua integridade física ou até a vida e contra a sua liberdade pessoal. Porém, essa intenção (“quis”) tem de ter, previamente, um substrato objectivo de onde resulte a alusão à prática de um dos crimes descritos no catálogo da norma incriminadora. A mera intenção de ameaçar não é suficiente para atribuir relevo criminal a determinada conduta, sendo, obviamente diríamos, necessário que tal intenção seja inerente à prática de uma conduta ameaçadora “com a prática” dos aludidos crimes. Logo, falha a narração de um dos elementos essenciais à estrutura objectiva típica do crime de ameaça. Consequentemente, “[o] não descrever factos, ou descrever factos que não constituam crime, não pode deixar de conduzir à mesma solução, isto é, à inadmissibilidade legal do RAI do assistente por falta de requisitos legais. Com diversas nuances, o RAI do assistente que não narra os factos é rejeitado por inadmissibilidade legal. (7)” Assim, entendemos que no despacho recorrido se efectuou uma correcta interpretação do art.º 287.º, n.º 2, improcedendo a pretensão recursória do assistente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. (art.º 515.º, n.º 1, alínea b) do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

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1 Doravante RAI.

2 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.

3 A. Castanheira Neves (in Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, página 236) identifica o objecto do processo como “o caso jurídico concreto apresentado e a resolver”.

4 Cfr. art.º 32.º, n.º 5 da CRP. 5 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, 2007, 4.ª edição, página 522.

6 Américo Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, tomo I, página 341. Sublinhando o estreitamento do campo de aplicação (operada pela reforma de 1995) deste tipo pela “indicação dos bens ameaçados”, vide Maia Gonçalves in Código Penal Português Anotado e Comentado, Almedina, 18.ª edição, 2007, página 595.

7 Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª edição, Quid Juris, 2020, página 639, que faz um historial da evolução histórica do entendimento doutrinário e jurisprudencial do conceito, remetendo-se para numerosa jurisprudência aí referida no apontado sentido